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FILOSOFIA GERAL E JURÍDICA AULA 7 Prof. Celso Luiz Ludwig 2 CONVERSA INICIAL Olá! Seja muito bem-vindo(a)! Esta aula tem como objetivo apresentar e refletir sobre a teoria crítica – ou as teorias críticas. Muitos são os conceitos que integram a formulação delas, e veremos os mais importantes em detalhes. No Tema 1 apresentaremos alguns conceitos, categorias e características da epistemologia que, de alguma maneira, ajudam na formulação da ideia de uma teoria crítica. No Tema 2 mostraremos figuras da compreensão dialética. O Tema 3 examina questões relacionadas ao método, especialmente ao método dialético. O Tema 4 consiste na apresentação de uma ideia de teoria crítica. E no Tema 5, por fim, temos a ideia de uma crítica jurídica, ou uma teoria crítica do direito. Bons estudos! TEMA 1 – A EPISTEMOLOGIA 1.1 Conceitos fundamentais 1.1.1 Definições Em termos gerais, a epistemologia é o estudo que se ocupa da verificação do conhecimento produzido, especialmente pelas ciências. De maneira geral, pode-se dizer que é a “ciência que estuda a ciência” ou, extensivamente, o “saber que estuda o saber”, ou ainda a “filosofia das ciências”. Não há, no entanto, um sentido único no uso do vocábulo pelos autores. O próprio termo sofreu transformações, podendo-se destacar pelos menos três sentidos: 1. No sentido originário, quando era considerada como um capítulo da teoria do conhecimento, a epistemologia se ocupava da natureza e do alcance do conhecimento científico, em contraste com o conhecimento vulgar. Como se distingue um conhecimento científico do senso comum? Nesse aspecto, considera-se que o processo do conhecer (científico) já está previamente condicionado pela concepção que se tem do objeto. Há aí uma ontologia que precede ou subjaz à epistemologia. 3 2. Um segundo sentido está ligado à obra Tractatus logico-philosophicus, do filósofo Ludwig Wittgenstein, que em sua primeira fase entende que a “linguagem reflete especularmente o mundo”, e caberia ao epistemólogo analisar as proposições científicas e indicar as que são verdadeiras, isto é, as que descrevem o mundo natural. Portanto, nesse sentido, epistemologia significa analisar a linguagem da ciência, enfim, as proposições científicas. 3. Esse reducionismo ficou superado num terceiro momento, quando a epistemologia passa a ter por objeto vários aspectos da ciência. Dos muitos problemas da ciência, ocupam-se diferentes setores ou disciplinas: lógica da ciência, metodologia da ciência, axiologia da ciência, ontologia da ciência, entre outras; enfim, a epistemologia nesse momento é uma reflexão sobre o sentido das perguntas sobre o conhecimento (especialmente científico) e também sobre as respostas do conhecimento (particularmente das ciências). Em síntese, nas palavras de Hilton Japiassu: “por epistemologia, no sentido bem amplo do termo, podemos considerar o estudo metódico e reflexivo do saber, de sua organização, de sua formação, de seu desenvolvimento, de seu funcionamento e de seus produtos intelectuais” (1986, p. 16). 1.1.2 Tipologia A epistemologia surge como questão na medida em que é necessário situar problemas que ocorrem na prática efetiva dos cientistas. Assim, da reflexão epistemológica resultam alguns conceitos, categorias e características na configuração, que podem ser assim tipificadas: 1. Epistemologia geral: quando se trata do saber em geral, seja problemas de ordem especulativa, seja científicos; 2. Epistemologia particular: quando se ocupa de um campo particular do saber; 3. Epistemologia específica: quando diz respeito a uma disciplina conceitual tecnicamente constituída, num sistema ou campo do saber. 4 1.1.3 Objeto da epistemologia A epistemologia como disciplina se estabelece a partir do século XIX. Em que pesem as transformações antes apontadas, sua determinação central consiste essencialmente no estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências. 1.1.4 Funções clássicas da epistemologia 1. Situar o lugar do conhecimento científico na ordem do saber; 2. Estabelecer os limites do conhecimento; 3. Investigar a natureza da ciência: um conhecimento-estado ou um conhecimento-processo? (Japiassu, 1986, p. 25-27). 1.2 Categorias centrais Cabe registrar a existência de algumas importantes categorias elaboradas, que indicam a dramaticidade da produção do conhecimento, especialmente na concepção dada pela epistemologia (Japiassu, 1986, p. 19). 1.2.1 Obstáculos epistemológicos Definem-se como resistência ou inércia do pensamento ao pensamento; ocorre resistência ao surgir uma ciência como contrapensamento ou um saber que se opõe ao até então aceito ou hegemônico (exemplos: o processo da pré- ciência para a ciência normal, desta para a ciência revolucionária; o positivismo frente ao jusnaturalismo; a dialética em contraste com o positivismo epistêmico; pós-positivismo ante o positivismo jurídico); e ocorre inércia quando há uma parada do pensamento num determinado estágio de seu desenvolvimento (por exemplo, paralisia de paradigma). 1.2.2 Corte epistemológico O corte (ou ruptura) diz respeito a quando determinada ciência se estabelece (a exemplo da ciência normal) e rompe com a pré-ciência, ou com sua pré-história; ou ainda quando uma nova ciência substitui uma velha ciência, ou com outro paradigma da ciência. De algum modo ocorre um corte na 5 linearidade do conhecimento (ou do saber), e tal quebra não é instantânea; ela decorre de um processo complexo de transformação até se constituir numa nova ciência. A ruptura não suprime a continuidade histórica, apenas a diferencia. 1.2.3 A vigilância epistemológica Atitude reflexiva crítica constante sobre o método e os resultados da ciência. Exige-se uma contínua atitude crítica de retificação metódica, seja das premissas, dos conceitos, das definições do objeto ou dos resultados alcançados pela ciência (e pelo saber). É necessário autorreflexividade, atitude de percorrer criticamente o caminho da crítica, e tal necessidade se impõe subjetivamente, porque na mudança paradigmática da ciência estamos sempre mais próximos do paradigma dominante e ainda muito distantes do insurgente. A vigilância epistêmica é necessária principalmente na perspectiva da concepção construtivista de ciência, que atua na ótica do conhecimento aproximativo e corrigível, como vimos. 1.3 Características Todo conhecimento é histórico e tem sua historicidade; A ideia de conhecimento-processo, e não de conhecimento-estado – é um devir, e não um ser; A ideia de que o conhecimento não é um sistema acabado de dogmas evidentes; A rigor não existe ciência (no singular), mas ciências (no plural); A primeira e mais fundamental função do sujeito é se enganar (daí a necessária vigilância crítica); Ainda assim, para muitos o pensamento vai ao real, não parte dele (Bachelard); o ponto de vista cria o objeto (Saussure); os fatos não falam (Poincaré), pois: o objeto é construído; Não há objetividade científica no sentido de uma representação perfeita e fiel da realidade; Existe objetivação que consiste na possibilidade, necessidade e esforço de aproximação ao máximo do objeto investigado. 6 Esses são alguns elementos que configuram a epistemologia geral. Problemas dessa ordem ocorrem na epistemologia jurídica (epistemologia específica), campo que tem sua autonomia sistêmica estabelecida. As premissas e questões mencionadas se aplicam ao mundo do direito em sua dimensão científica, hermenêutica ou prudencial – ou seja, na teoria e na prática. De onde surge, como se organiza, como se forma e formula, como se desenvolve, como funciona, qual seu lugar entre os saberes e no conhecimento científico? Quais os limites desse conhecimento? Qual sua natureza? Quais ascaracterísticas do conhecimento jurídico? Por exemplo, o conhecimento jurídico pode ou deve se ocupar da questão da verdade? Ou só com a verossimilhança? A epistemologia jurídica se relaciona diretamente com pressupostos e premissas típicas da epistemologia geral, diferenciando-se pela especificidade do jurídico. TEMA 2 – A DIALÉTICA Veremos a seguir três ideias (imagens) de dialética. O termo tem múltiplas definições, usos e aplicações, aparecendo como método e também como filosofia. Fala-se da dialética pré-socrática, socrática, platônica, aristotélica, plotiniana, agostiniana, kantiana, hegeliana, marxista, ou de dialética positiva, negativa, antiga, moderna, subjetiva, objetiva. Na síntese, três imagens – como veremos agora. 2.1 Dialética como ciência Uma primeira ideia de dialética pode ser associada à ciência. Tal ocorre quando pensamos a dialética juntando materialismo e dialética, na expressão “materialismo dialético”, vista na perspectiva científica, ou mesmo, de maneira mais acentuada, como visão na qual a dialética é concebida como desprovida de parcialidade e de todo e qualquer juízo de valor, afirmando-se como verdade objetiva. A compreensão da dialética nesses termos tem como referência, em geral, as chamadas leis da dialética, em suas diversas expressões. Para exemplificar, Engels, preocupado em defender o caráter materialista da dialética, associa a dialética humana a uma certa dialética da natureza (ou pelo menos a 7 uma pré-dialética). Dessa relação entre dialética da natureza e dialética humana ele chegou às seguintes leis gerais da dialética: 1. Lei da passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa); 2. Lei da interpenetração dos contrários; 3. Lei da negação da negação. A ideia é mostrar a presença de leis ou princípios no processo de transformação das coisas, enfim, da realidade. Assim: 1. A primeira lei refere-se à condição objetiva de que as coisas, ao mudarem, não o fazem sempre no mesmo ritmo; o processo de transformação passa por períodos lentos (alterações quantitativas) e por períodos mais acelerados (alterações qualitativas), estas mais radicais, nas quais ocorrem os “saltos” na realidade. Engels exemplifica essa lei com a água, que vai aquecendo até atingir cem graus centígrados e ferver, passando do estado líquido ao gasoso. 2. A segunda lei mostra que existe uma relação de tudo com tudo; há uma conexão entre as diversas partes ou aspectos da realidade. Em diferentes níveis, as partes dependem umas das outras, de modo que não podem ser compreendidas separada ou isoladamente. Dependendo das conexões e do contexto, prevalece em cada parte um lado ou outro da realidade. Essa realidade é intrinsecamente contraditória; os diferentes lados se opõem e, ao mesmo tempo, estabelecem uma unidade, chamada de unidade da luta dos contrários; por exemplo, a luta de classes 3. A terceira lei procura mostrar que o movimento geral da realidade faz sentido, isto é, tem inteligibilidade, não é irracional, caótico; ao contrário, uma afirmação produz necessariamente sua negação, que por sua vez não permanece como tal, pois, assim como a afirmação, também a negação é superada na síntese, que consiste na negação da negação. Essas chamadas leis ou princípios (que já estavam presentes no idealismo de Hegel) recebem novas versões em outros autores. Antonio Gramsci, por exemplo, fala em: 1. Ações recíprocas (intelectual orgânico/massa, teoria/prática, infra/supraestrutura não seriam termos sem relação); 2. Processo TAS (tese, antítese e síntese); 8 3. Passagem da quantidade para a qualidade. Stálin, por sua vez, retomou de Engels o esquema das três leis dialéticas e as desdobrou em quatro: 1. Tudo se relaciona (conexão universal e interdependência dos fenômenos); 2. Tudo se transforma (o movimento, a transformação e o desenvolvimento); 3. Mudança qualitativa (passagem de um estado qualitativo a outro); 4. Luta dos contrários (fonte interna do desenvolvimento, do simples ao complexo, do inferior ao superior). Na medida em que essa ideia de leis se transforma numa espécie de código que estabelece e fixa leis rígidas da mudança das coisas – e com isso acentua uma lógica da transformação comandada pela objetividade –, houve para muitos a compreensão da dialética como ciência. Assim, com tal base científica se estende o materialismo dialético, em significado amplo, a tudo: está na natureza, na história, na consciência, no método, no partido, ou seja, configura uma ontologia geral. A realidade objetiva se impõe com uma densidade tal que ultrapassa toda e qualquer subjetividade. Ela passa a ser autônoma e independente do sujeito e das ideologias, pois contém leis próprias e objetivas, em interpretação científica que estabelece um monismo metodológico. 2.2 Dialética como consciência de classe Uma segunda ideia de dialética está associada à consciência de classe. Desde a obra História e consciência de classe, Gyorgy Lukács luta por recuperar a determinação da subjetividade como decisiva para a dialética. Seu ponto de partida é que a unidade (identidade) do sujeito e do objeto constitui o núcleo da dialética, e essa unidade é a própria dialética, pois a dialética só pode ser compreendida como atividade – atividade humana e histórica. Dessa maneira, reestabelece-se a subjetividade como necessária no movimento dialético, que está inserido no contexto do materialismo da realidade social e propõe uma ontologia do ser social. O mundo humano do ser social se movimenta, se produz, se reproduz e se desenvolve na imbricação entre sujeito e objeto, isto é, na dialética sujeito-objeto. A subjetividade, no entanto, é coletiva antes de ser individual. É na e pela classe social que o indivíduo e a humanidade 9 se libertam ou se perdem na reificação. O portador social privilegiado da consciência dialética é o proletariado, daí porque dialética como consciência de classe. 2.3 Dialética como teoria crítica A terceira imagem de dialética está associada à teoria crítica (ou crítica social), tematizada especialmente pela chamada Escola de Frankfurt. Se na concepção anterior o portador social da dialética é o proletariado, agora a crítica pertence a todos e todas que sofrem de alguma forma de alienação e opressão. Em síntese, o que se afirma agora é que a base ontológica e epistemológica não é o proletariado como classe, mas a essência humana negada e oprimida pelo capitalismo. Como efeito, temos: 1. A crítica pertence a todos e todas; 2. A razão como categoria fundamental não pode se reduzir à razão instrumental; 3. Aproximação com a psicanálise e com as artes (ampliação do conceito de razão), incorporação da paixão, do desejo. TEMA 3 – O MÉTODO 3.1 A questão do método A questão tem sido proposta por todos os grandes filósofos. Assim, temos uma variedade enorme de métodos propostos na trajetória da filosofia do Ocidente. Para além do sentido mais restrito da reflexão filosófica, encontramos a questão também – e principalmente – no âmbito dos estudos da metodologia nos mais diversos ramos da pesquisa, do ensino, das ciências e áreas especializadas. No campo da reflexão filosófica, embora o tema já esteja presente nas obras dos filósofos antigos e medievais, é no mundo moderno que o método passa a ser tematizado como tal; por exemplo, em René Descartes, com seu Discurso sobre o método, e em Francis Bacon, com seu Novum Organum. Portanto, tanto a tradição filosófica racionalista quanto a empirista têm como ponto de partida a questão do método. A primeira elaborou, como já vimos, um 10 método de análise conhecido como dúvida metódica, e a segunda elaborou a teoria conhecida como crítica dos ídolos (ídolos da caverna, do fórum, do teatro e da tribo). Fritjof Capra1, como vimos anteriormente, afirma que o método analítico de Descartes se tornouo padrão essencial do moderno pensamento científico, ocorrendo o mesmo com sua concepção de natureza, influenciando todos os ramos da ciência moderna. A concepção mecânica da natureza serviu como padrão da ciência após Descartes. Reproduzimos aqui a constatação de Capra (1982, p. 56): Toda a elaboração da ciência mecanicista nos séculos XVII, XVIII e XIX, incluindo a grande síntese de Newton, nada mais foi do que o desenvolvimento da ideia cartesiana. Descartes deu ao pensamento científico sua estrutura geral – a concepção da natureza como uma máquina perfeita, governada por leis matemáticas exatas. Da mesma maneira, para reforçar a ideia, trazemos a afirmação do cientista físico Heisenberg, referindo-se ao modelo cartesiano: Essa divisão penetrou profundamente no espírito humano nos três séculos que se seguiram a Descartes, e levará muito tempo para que seja substituída por uma atitude realmente diferente em face do problema da realidade. (citado por Capra, 1982, p. 55) Dessa maneira, consagra-se o chamado método analítico de Descartes, que consiste em duvidar de tudo que não conhecesse à evidência como tal; dividir as dificuldades em tantas partes quanto possível e necessário; ordenar no pensamento os assuntos a começar pelos mais simples e fáceis para alcançar gradativamente os mais complexos; e, por fim, fazer enumerações e precisões gerais para se certificar de que nada foi esquecido. Esse método analítico, como citado, influenciou por séculos o caminho do pensamento, da produção do conhecimento teórico e prático, e ainda se faz presente em nossa formação. Outros métodos surgem no decorrer da história moderna e contemporânea. No entanto, para contrastar com o método analítico mencionado, dada a sequência de nosso estudo, apresentamos uma possível compreensão do sentido do método dialético, nos termos a seguir. 1 Capra (1982). O autor trata da questão particularmente no Capítulo II. 11 3.2 O método dialético Existem distintas dialéticas porque distintas são as épocas em que foram formuladas, ou os problemas, enfrentados. A seguir apresentamos um esboço de como se pode compreender a dialética como método. Trata-se de uma moldura da dialética marxista, em esquematização elaborada por Enrique Dussel (2012, p. 49-63), em livre interpretação: 1. O real concreto (o existente): é o ponto de partida efetivo em todo processo de investigação, mundo real (A); 2. Representação plena: desse real e concreto temos inicialmente uma representação plena, cheia, porém, uma totalidade caótica, confusa, mas que de todo modo já nos situa no mundo conceituado (B); 3. Determinações abstratas: pela abstração como ato analítico, separam- se da representação plena conteúdos que constituem a realidade; separa uma parte do todo pela capacidade conceptiva da consciência, como objeto ou conteúdo, e ao fazê-lo a abstração produz uma determinação abstrata (DA), isto é, um conceito definido – a rigor, conceitos definidos; é ainda a esfera do simples; 4. Totalidade construída (concreta) em geral: é a nova totalidade (não mais a totalidade caótica da representação plena do momento 2) em sua mútua codeterminação; as determinações se abstraem e ao mesmo tempo se produzem; a nova totalidade é construída, por isso complexa; é o movimento dialético propriamente dito em sua essência na passagem do momento 3 para o momento 4. Dessa maneira, de 1 a 4 temos um “ascenso” dialético; uma elevação que vai de A (movimento 1 ao 2) para B (movimento 2 ao 3) e de B para C (movimento 3 ao 4). Essa elevação é a passagem do simples ao complexo. 5. Categorias explicativas: é o movimento de retorno, ou o descenso; é necessário descer da totalidade construída, que é concreta em relação às determinações abstratas (momento 3), mas é abstrata em relação à totalidade concreta explicada (momento 6); novas DAs são necessárias como categorias explicativas, instrumentos ou mediações interpretativas; 12 6. Totalidade concreta histórica explicada: nesse momento temos a explicação de uma totalidade concreta histórica, a moderna sociedade burguesa; 7. Realidade conhecida: retorno para o momento 1; refere-se ao conhecimento dialético da realidade. Nesse passo, de 4 a 7 temos um “descenso” dialético; um retorno que vai de D (movimento 4 ao 5) para E (movimento 5 ao 6) e de E a F (movimento 6 ao 7). Esse descenso é a passagem do abstrato ao concreto. Dessa maneira, o concreto é a síntese de múltiplas determinações, isto é, unidade do diverso. O concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo (Marx), como podemos ver nos movimentos de 1 a 7. TEMA 4 – TEORIA CRÍTICA Existem muitas teorias críticas no campo da filosofia. Como a criticidade é uma característica central da filosofia, podemos encontrar referências críticas na filosofia do Ocidente desde seu começo. Já no mundo grego, o embate filosófico entre Sócrates e sofistas indica o esboço de uma teoria crítica, ao destacar a importância da racionalidade crítica para além da razão descritiva ou demonstrativa. No entanto, nosso tema tem em vista o esboço de uma teoria crítica no sentido moderno do termo, na caracterização de um núcleo central, e a posterior menção da variação da teoria crítica hoje. 4.1 Teoria e prática Teoria, prática e teoria crítica são termos relacionados pela semelhança e pela diferença, e não devem aqui ser compreendidos como partes isoladas, mas na sua totalidade. Vejamos algumas definições e associações entre essas palavras. Teoria e prática como contraposição: num primeiro sentido, o termo teoria, no uso cotidiano da filosofia implícita (senso comum), consiste na maioria das vezes na explicação de algum assunto ou fenômeno. Ter uma teoria sobre algum acontecimento natural, social, cultural ou ambiental significa ter uma hipótese ou conjunto de argumentos racionais que expliquem ou compreendam 13 tal fenômeno ou determinada conexão. Assim, a teoria pretende explicar as coisas como elas são ou funcionam. Assim entendida, em geral a noção de teoria se opõe à prática, contraposição manifesta na frase “a teoria na prática é outra” ou semelhantes. Nesse caso, prática significa aplicação da teoria e revela que existe uma diferença entre ambas. Teoria e prática como lógicas distintas: num segundo sentido, teoria e prática se contrapõem porque existe uma diferença entre como as coisas são e como deveriam ser. A prática não consiste na aplicação da teoria, mas num conjunto de ideais que orientam a ação, princípios orientadores da conduta. A diferença entre o que é e o que deve ser – entre teoria e prática – não deve ser superada, sob pena de destruição da teoria ou da prática. Elas têm lógicas distintas e, portanto, não devem se confundir, pois uma diz respeito ao conhecer, a outra ao agir. Teoria crítica como expressão paradoxal: qual o sentido da expressão teoria crítica? Se teoria significa dizer o que as coisas são, como posso fazer uma crítica de como as coisas são no contexto da própria teoria? Fazer a crítica não me levaria a negar a função da teoria de dizer o que as coisas são? A teoria crítica enfrenta essa primeira tarefa de questionar o sentido de teoria, prática e a própria distinção ente esses dois momentos. Enfim, incluir a crítica na teoria, isto é, sem abdicar de dizer o que as coisas são. Eis o desafio. 4.2 Princípios da teoria crítica Ideia central: muitos são os sentidos da crítica, até mesmo no interior da tradição da teoria crítica, ao ponto de ser mais adequado falar em “teorias críticas”, no plural. Mas a ideia central das diferentes teorias críticas pode ser sintetizada da seguinte maneira: 1. Mostrar o que e como as coisas são, desde a perspectiva de como deveriam ou poderiamser; 2. Conhecer, reconhecer e diagnosticar quais são os fatores que impedem que as coisas não sejam como deveriam ou poderiam ser. Princípios: 1. A teoria é crítica quando serve de guia para a emancipação da sociedade, ou seja, quando possui uma orientação emancipatória; 14 2. A teoria crítica exige a vigilância para sempre de novo identificar os obstáculos que impedem a realização das potencialidades inscritas na realidade, mas ainda não realizadas; Potencialidades: o termo se refere às potencialidades de um mundo melhor, no sentido das expectativas inscritas nas promessas. Não se trata propriamente das utopias, mas da potência que ainda não se tornou ato. Ora, se tais potencialidades não se realizam (por exemplo, na sociedade capitalista a igualdade e liberdade são promessas não cumpridas para grande parte da população mundial), estamos também diante de uma questão prática, de uma ação. Ou seja, a teoria aponta para a necessidade de uma ação; cabe à teoria mostrar nas tendências estruturais da sociedade as ações de atualização das potencialidades. Obstáculos: o termo se refere aos fatores ou causas que impedem a realização de uma sociedade ou de um mundo melhor; os obstáculos podem ser os mais diversos, seja na ordem econômica, social, cultural, ideológica, religiosa, e até mesmo na ordem jurídica. Portanto, cabe à teoria também mostrar a tendência que pereniza determinados obstáculos que impedem a realização das potencialidades, devendo se atentar aos sempre novos obstáculos que vão surgindo no processo histórico. Emancipação: como referido no primeiro princípio, uma teoria, para ser crítica, deve conter uma orientação para a emancipação especialmente social, o que exige a possibilidade de uma sociedade melhor; uma sociedade na qual experiências e expectativas não se confundam, pois as expectativas ante experiências de negação da vida devem ser de afirmação de vida, e de uma vida melhor. TEMA 5 – CRÍTICA JURÍDICA 5.1 Dogmática e crítica A teoria crítica do direito – ainda que diferenças e peculiaridades devam sempre ser levadas em conta – se desenvolveu apresentando alguns aspectos que serão destacados a seguir. 15 5.1.1 No campo da filosofia geral Para a teoria crítica, em particular para a versão da Escola de Frankfurt, a teoria crítica contrasta com a teoria tradicional. Esta pode ser entendida de duas maneiras distintas: 1. Compreende a filosofia do paradigma do ser e boa parte do paradigma da consciência (Habermas); 2. Identifica-se com a filosofia do sujeito de Descartes (Horkheimer) ou com o cientificismo positivista (Adorno). De qualquer sorte, nesses casos a teoria crítica tem como contraimagem a teoria tradicional – esta por ser dogmática e aquela por ser crítica. 5.1.2 No campo da filosofia jurídica Na crítica jurídica, a preocupação com a superação da racionalidade tradicional é o objetivo principal: 1. A superação da filosofia do idealismo jurídico está em primeiro plano. Em sentido simples, o idealismo é uma corrente filosófica que se opõe ao materialismo: o princípio fundamental de explicação do mundo encontra- se na ideia (no espírito, na forma, no conceito), concebida como superior ao mundo material, fundante da materialidade (todo real é ideal). Na medida em que a realidade jurídica consiste numa representação idealizada, uma ideia de direito, uma ideia de justiça, uma ideia de norma ou a norma como ideia, as instituições jurídicas, enfim, como idealizações, oriundas do espírito (geist), configura-se uma abstração de tipo idealista; 2. A superação da filosofia do positivismo jurídico em seus diversos analogados é tarefa comum. A superação do positivismo como formalismo vem associada: à ideia de superação do idealismo (concepção mais ampla), na medida em que o interesse maior recai sobre o aspecto formal do direito; à superação da concepção da já mencionada definição de que o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo, ou seja, a redução do direito à fonte estatal; por fim, à superação da ideia da neutralidade axiológica, segundo a qual a 16 validade normativa é que deve ser vista como a determinação nuclear do direito. Enfim, a crítica tem por objeto, nesse particular, mostrar as limitações do modelo do idealismo jurídico e do formalismo lógico-positivista, entre outros aspectos, frente aos desafios suscitados pelo aumento da complexidade da realidade nos novos tempos. Esta é mais propriamente a parte negativa da crítica dialética. 5.2 Teoria crítica na dogmática Na parte positiva da crítica dialética, podemos destacar aspectos da teoria crítica operacionalizados na filosofia jurídica e a possibilidade de recepção em outras áreas ou disciplinas do direito. 5.2.1 Na filosofia jurídica A filosofia jurídica (filosofia do direito) produziu um conjunto de reflexões, conceitos, categorias, objetos e características que configuram em certo sentido um paradigma da crítica jurídica, com destaque para: A existência de um pensamento crítico, com diversas correntes e tendências que se ocupam em questionar, repensar e superar o modelo jurídico tradicional (idealismo/positivismo) com um conhecimento interveniente dos operadores do direito, na perspectiva de construir um mundo melhor; A ideia de que o objeto jurídico não é algo dado, mas construído metodologicamente (a questão do método a ser usado, eis que ao mesmo tempo condiciona o objeto e por este também é condicionado); A ideia de que o objeto jurídico não é algo dado, mas construído epistemologicamente pelos sujeitos (a concepção de conhecimento, de ciência e de verdade), é fator constitutivo na formulação da realidade jurídica em jogo; A ideia de que o objeto jurídico não é algo dado, mas construído teoricamente (por exemplo, a concepção de direito, relação jurídica, sujeito de direito, a forma direito); 17 A ideia de que o objeto jurídico não é algo dado, mas construído axiologicamente (a concepção dos valores e seu lugar no ordenamento jurídico, tais como igualdade, diferença, liberdade, justiça); condicionante condicionada; Enfim, a ideia de que fazer teoria crítica do direito tem o sentido de compreender o direito como ele é na perspectiva do que pode e deve ser, descrevendo e analisando as potencialidades não atualizadas, ao mesmo tempo que os obstáculos que a impedem sejam detectados e explicados. 5.2.2 Nas demais disciplinas jurídicas A teoria crítica também tem suas marcas nas diferentes disciplinas do direito; existe teoria crítica constitucional, teoria crítica no direito civil, processual civil, no direito penal, na criminologia, no direito do trabalho, ambiental e assim por diante. O que se quer indicar é a existência efetiva e a potencialidade de produzir e de sempre renovar a teoria crítica em cada disciplina. FINALIZANDO Na aula de hoje, nos concentramos em alguns dos mais relevantes conceitos, categorias e características que compõem a teoria crítica e a teoria crítica do direito. Algumas das noções da epistemologia – tais como obstáculos, ruptura e vigilância epistemológicas e objeto construído – estão presentes nas teorias críticas e na crítica jurídica. De igual modo, a racionalidade dialética fornece elementos e horizontes decisivos para compreender a materialidade tão necessária na filosofia crítica, bem como o método dialético. Na teoria crítica propriamente dita, estabelecemos um núcleo conceitual, princípios e conceitos que permitem um ponto de referência básico. Por fim, fizemos uma pequena moldura da recepção das racionalidades mencionadas no campo da crítica jurídica, especialmente pela filosofia do direito, e no campo das especialidades do direito. 18 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1970. APEL, K.-O.Transformação da filosofia. São Paulo: Loyola, 2000. 2 v. ARANHA, M. L. A. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 2000. BITTAR, E. C. B. Curso de filosofia política. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2007. BOBBIO, N. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. CAPRA, F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982. _____. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996. CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Atlas, 2000. _____. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. DUSSEL, E. 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