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Sumário coluna Francisco Bosco Marcia Tiburi Bianca Santana Vladimir Safatle especial Michel Foucault O trabalho da memória Casa aberta No táxi com Michel Foucault entrevista Roberto Machado Risos e sorrisos de Michel Foucault perfil Preta Rara dossiê Arte e psicanálise Apresentação A criação artística como metamorfose O avesso do imaginário O olhar estilete de Evgen Bavcar A verdade da arte provém do real livros O blefe dos blefes Na poesia, a pulsão do nome Uma impressão de Simone de Beauvoir colaboraram nesta edição coluna Variações sobre o narcisismo FRANCISCO BOSCO “Me decepcionei com você.” A esse comentário, a única resposta decente é: “Problema é seu”. É preciso estar atento contra as tentativas de controle pelo narcisismo. Funciona assim: a pessoa enaltece em você qualidades e condutas que interessam ao desejo dela. E assim espera que você se comporte da maneira que, no fundo, é vantajosa para ela. Tenta prendê-lo por uma imagem. Mas essa imagem de você foi feita à semelhança do desejo dela, e não necessariamente do seu. Então, se você age em desacordo com essa imagem, vem a moralização vitimada: “Me decepcionei com você”. Pois bem: “Problema é seu”. Quem chama de “pedante” alguém que escreve “difícil” (difícil para quem?) mobiliza um álibi moral para uma reação, no fundo, imaginária: sente-se diminuído porque sua incompreensão revela sua ignorância – e procura recalcar isso projetando no outro seu sentimento de inferioridade. De resto, é absurdo moralizar o que não se compreende. “Afinal, o que as mulheres querem?” Como se se soubesse o que querem os homens! (Na verdade, trata-se de controle patriarcal por meio de certa imagem do desejo – estável, previsível, domesticável – que a alguns homens interessa que as mulheres realizem.) O contentamento é narcísico, a alegria é impessoal. A tendência a torcer pelo mais fraco tem duas explicações, uma via psicanálise, outra via teoria da informação: escolhe-se o pior por compensação narcísica (sentir-se menos inferior por meio do rebaixamento do superior) e por ganho informacional (quanto mais imprevisto o resultado, maior a informação). Uma das provas da natureza narcísica do ciúme é quando se fica incomodado por causa da mera manifestação do desejo de um terceiro pela pessoa que se ama. Basta que ela seja desejada explicitamente para nos sentirmos não reconhecidos por quem a deseja. Produz menos ciúme, pois, quem quer que seja o terceiro, não nos será imaginariamente tão importante quanto a pessoa que amamos. Não ocupará tanto o centro de nossa autoimagem. Mas incomoda, numa escala progressiva que vai do totalmente estranho ao amigo mais íntimo. Malhar, em sua dimensão estética, é a maneira mais servil de obter reconhecimento: trabalha-se o corpo para o outro, sem produzir qualquer riqueza subjetiva para si. Definição do neurótico benemérito: aquele que se ofende com o desejo do outro. (Cena de um filme de Woody Allen: “Como assim?! Você mal me conhece e tá me propondo transar com você? Quem você pensa que é?!” Naturalmente, o desejo do outro só provoca reações ofendidas em quem de repente se vê obrigado a reconhecer o próprio desejo.) Por que o que hoje se chama de “culto ao corpo” é sobretudo um culto ao narcisismo? O verdadeiro culto ao corpo consiste em explorar e realizar suas infinitas e desconhecidas potências. O corpo belo é aquele que apresenta os traços dessa realização (por exemplo, o corpo rijo e flexível de um bailarino). Já o “corpo belo” dos spinnings e supinos é, ao contrário, resultado do corpo mecanizado, reduzido em suas possibilidades. Aparentemente, são corpos semelhantes (definidos e tonificados), mas as práticas de que resultam são opostas. Na primeira, o fundamento da beleza decorre de uma ética da existência: tornar o corpo liberado. A forma desse corpo resulta do trabalho enquanto autorrealização. Já a forma do outro corpo resulta do trabalho repetitivo e alienado como o labor industrial, e não por acaso se costuma chamá-lo de “corpo trabalhado”. Nele, a ética liberadora é abolida em nome de sua finalidade meramente visível, fenomenológica (abdomes definidos, glúteos torneados) e assim a beleza se repete como farsa. A autocrítica é uma forma insuspeitada do narcisismo. Nela não há humildade: quem rebaixa o eu é ainda o eu. (Autocrítica ostentação: “Vejam como sou humilde”, “Vejam como me rebaixo”, isto é, “Vejam como tenho a grandeza de me rebaixar publicamente”.) Balança da separação: quem dá um pé na bunda arca com a angústia da decisão, a responsabilidade e a culpa (além das ações em baixa no caso de reconciliação) – quem leva o pé na bunda leva um tiro no coração do narcisismo (mas também a liberdade que mora no coração do real). Diferentemente do que se poderia pensar a princípio, um ego forte não é um ego sólido. Ao contrário, os sujeitos que têm uma relação mais segura com a sua autoimagem são aqueles que a têm leve, arejada, inconsistente, portanto frágil, de certo modo. Lembremos que estereótipo vem do grego stereos, que quer dizer sólido. Um ego sólido é vulnerável porque depende todo o tempo da confirmação de sua autoimagem. Um ego frágil é, ao contrário, forte, porque não se abala facilmente com os reflexos distorcidos que o outro lhe apresenta. O maior atestado de saúde imaginária é apresentado pelas pessoas que podem rir de si mesmas. Como diria Warhol: I never fall apart, because I never fall together. A diferença entre o narcisismo e as críticas que lhe são endereçadas é que estas últimas são, além de também narcisistas, ressentidas. “Inbox pra vc”, ou: voyeurismo às avessas. Avisa-se a todos que há um segredo, mas que eles não podem ouvir. É uma manipulação do privado para fins públicos; da intimidade para fins de exclusão; do invisível para fins de inveja. A diferença entre o competitivo e o invejoso é que o primeiro quer superar o outro, enquanto o segundo quer anular o outro. O competitivo não toca, imaginariamente, no outro. Sua relação é consigo mesmo, apenas se mede por meio do outro. Já o invejoso deseja o lugar do outro, e não um lugar melhor do que o do outro. O competitivo deseja que o outro exista. O invejoso deseja que não exista. Por isso aquele é vital, e esse é mortífero. Quando nos separamos, parece a princípio que perde o sentido a disputa pela narrativa (“Não foi assim que aconteceu”, “Você também errou” etc.). Disputá-la, debatê-la tem um propósito no interior da construção da relação amorosa, onde a compreensão correta serve para consertar falhas e aprimorar processos. Entretanto, testemunhamos que isso não acontece. Morre a relação, sobrevivem por algum tempo as disputas. É que, mais profundamente, sua natureza é e sempre foi a de uma luta narcísica cega e sem finalidade objetiva, a rinha erística do amor, cujo sentido no limite é vencer a queda de braço do reconhecimento. Essa luta só termina quando o outro se torna irrelevante na economia do reconhecimento. coluna PT como metáfora MARCIA TIBURI Em Doença como metáfora, Susan Sontag fala sobre a tuberculose e o câncer que, na condição de metáforas fantasiosas e punitivas, levaram a um plus de sofrimento relativamente ao que, de fato, estava em jogo. Mais tarde, ela escreveu sobre a aids no momento em que o desconhecimento da doença criou ao seu redor uma cultura do medo. Criticando a ideia de doença como metáfora, ela nos conduz ao tema da doença como experiência comum à vida. Fato que envolve o encontro entre natureza e cultura, a doença tornou-se uma espécie de marcador de opressão. Em seu livro, Sontag quer devolver à doença a sua dignidade como parte da vida para além do caráter lúgubre com que é vista e para além da espetacularidade com que é tratada pelo todo da cultura. Metáforas são expressões criadas com intenções de significar, sinalizar, demarcar, definir, orientar perspectivas. Há nelas um elemento interpretativo, mas há também muito de projeção moral. A construção da metáfora se dá em condições históricas, mas passa a ter validade de natureza. Com uma metáfora pode-setentar explicar o mundo, embora a expressão metafórica sirva mais à compreensão do que à explicação que sempre exige provas e está inscrita no campo das teorias e práticas científicas. O MAL RADICAL Nesse pequeno artigo eu gostaria de contribuir com uma reflexão sobre a criação de uma nova metáfora sobrecarregada de elementos negativos que tem sido um recurso expressivo para o mal em nossa cultura. Refiro-me ao PT como metáfora. PT tornou-se entre nós um signo para designar o mal. A frase “a culpa é do PT” poderia ser analisada como uma metonímia, se estivesse em jogo apenas o uso da parte pelo todo. A metáfora, contudo, está dada no momento em que o signo “PT” vem a substituir o governo ou até mesmo o Estado. Antigamente dizíamos “a culpa é do governo” sem que se pudesse evidenciar, nessa frase, a complexidade da ideia de culpa em sua associação com a complexa questão de governo. “A culpa é do PT” e outras frases tais como “isso é coisa de PT”, usadas em profusão, nos mostram algo importante em nossa cultura desde que o mesmo tipo de enunciado não foi usado tendo em vista nenhum outro partido ou sigla. PT é a sigla de um partido, mas tornou-se, em uma operação sociolinguística, o signo do mal. Nesse contexto, a questão da corrupção, comum a todos os partidos e até à própria cultura, passa a ser usada no contexto da opinião pública como se fosse uma prática “petista” e não de todos os partidos e da maioria dos cidadãos. Para muitos o ódio ao PT corresponde ao velho ódio que elites têm de classes subalternas ou trabalhadoras. Na forma como esse ódio se alastra por meio, inclusive, dessa operação metafórica, até mesmo quem não pertence a elite alguma acaba por experimentá-lo, já que os afetos são psicologicamente contagiosos. Esse ódio seria bem diferente do que se chama de antipetismo, misto de crítica e ressentimento, de oposição, seja oportunista ou fundamentada. O ódio ao PT seria fruto de algo muito anterior ao PT. No nosso caso brasileiro, poderíamos falar de um ódio colonial. Independentemente do que o Partido dos Trabalhadores possa ou não ter feito de bom ou de mau em termos políticos, impressiona o uso moralista que sua sigla, transformada em signo, assumiu entre nós. Um problema continua nos obrigando a pensar. A metáfora é uma fala indireta que tanto oculta quanto mostra alguma coisa que não podemos encarar. Em nosso momento histórico, cabe perguntar o que realmente estamos querendo manifestar com cada ódio que se expressa relativamente a esse ou outro signo. O quanto as metáforas falam mais da sociedade que as inventa do que do “mal” que querem afirmar, é um problema mais do que político. coluna Quem lava sua privada? BIANCA SANTANA Se a resposta para a pergunta do título for o nome de outra mulher, aquela com quem você compartilha a casa, ou uma diarista, empregada doméstica – provavelmente negra, certamente pobre – te dedico este texto, minha primeira coluna na Revista CULT. Não o faço como provocação! Bem sei como são bacanas as pessoas que leem esta revista. Não quero te acusar de nada, porque, no caso de uma trabalhadora doméstica, sei que você paga um bom salário, com todos os benefícios, e ainda doa roupas usadas à mulher por quem nutre respeito e carinho. Mesmo assim, gostaria de propor uma reflexão. Porque sua ação quanto aos afazeres domésticos, independentemente do que a motiva, é também social e reverbera uma história. Uma história de desigualdade, machismo e racismo. O recenseamento do Império do Brasil de 1872, dezesseis anos antes da Lei Áurea, indicava que 46,67% da população escravizada na cidade do Rio de Janeiro atuava nos serviços domésticos; 70% dentre as mulheres. A abolição não veio acompanhada por políticas reparatórias ou inclusivas. Não à toa, mais de cem anos depois da abolição, em 1998, 48% do total de mulheres negras trabalhadoras no Brasil eram domésticas. Em 2008, 22%; em 2014, 17%. Uma questão de raça. Mas não só. Seria impossível aprofundar neste texto a complexidade das relações, marcadas por abusos e também afetos, quando há uma pessoa assalariada na intimidade da casa. Recomendo uma visita à página do Facebook “Eu Empregada Doméstica”, mantida pela rapper Preta Rara, Joyce Fernandes, desde julho de 2016, depois da grande repercussão de um relato publicado por ela: “Joyce, você foi contratada pra cozinhar pra minha família e não pra vc. Por favor, traga marmita e um par de talheres e se possível coma antes de nós na mesa da cozinha; Não é por nada tá filha, só pra gente manter a ordem da casa” Patroa Jussara, em Santos 2009 – meu último emprego como doméstica”. A hashtag utilizada por Joyce, #EuEmpregadaDoméstica, deu origem à página que republica histórias de mulheres e anúncios abusivos que circulam por todo o país. Mesmo depois da PEC das Domésticas, que, graças à luta organizada, garante direitos a quem trabalha mais de dois dias na semana em uma mesma casa, como jornada de 8 horas diárias e 44 semanais, férias remuneradas e horas extras. Direitos adquiridos somente em 2013, mas que não valem para as diaristas. Estas, segundo o Dieese, eram 30,2% dentre as domésticas em 1992, passaram a ser 39,5% em 2015. Ganham mais por dia, trabalhando em 4, 5, algumas vezes 6 casas diferentes por semana, mas sem carteira assinada, garantia de salário mínimo, 13º, repouso semanal remunerado, férias, aviso prévio, licença- maternidade, vale-transporte ou jornada máxima. Nenhum direito trabalhista, em 2017. A realidade que o governo golpista quer ampliar a todos. Por mais que haja especificidades nas condições de vida de negras ou brancas, pobres ou ricas, as que têm empregadas ou as que são empregadas, as mulheres, no geral, são responsáveis pelo trabalho doméstico e sofrem com a dupla jornada, como denuncia o movimento feminista há décadas. Segundo dados da Pnad de 2009, os homens sem filhos dedicavam 11,7 horas semanais a afazeres domésticos, enquanto as mulheres, cercade 26 horas. No caso de terem filhos, as mulheres chegavam a despender 33,8 horas semanais nestes afazeres, enquanto os homens dedicavam 10,3 horas. Uma questão de gênero. “Mas o que sugere, então?”, você pode me perguntar. “Sabe quantas horas por dia trabalho fora de casa? A mulher com quem vivo não é melhor e mais rápida que eu nos afazeres domésticos? E as negras pobres ficariam sem emprego?” Não tenho respostas às suas perguntas. Nem vai ajudar dizer que tenho lavado minha própria privada, que muitas vezes penso em desistir e voltar a reproduzir as relações opressivas do trabalho doméstico remunerado na minha casa. Mas é urgente que, como sociedade, encaremos estas questões em busca de justiça social. O machismo e o racismo estão, também, dentro das nossas casas. E já passou da hora de compreendermos como os problemas sociais macro são produzidos, também, na vida cotidiana. https://www.facebook.com/hashtag/euempregadadom%C3%A9stica?source=embed O livro Revolution at point zero: housework, reproduction and feminist struggle, de Silvia Federici, publicado em 2012 pela Autonomedia, oferece pistas importantes para esboçarmos respostas, e ainda mais perguntas. Ali estão reunidos textos da autora sobre trabalho doméstico e de cuidados, escritos desde 1975 até 2010. A sequência dos textos torna evidente o percurso intelectual de Silvia: de problematizar o trabalho doméstico não remunerado e se engajar na proposta de remuneração destas tarefas, para que as mulheres pudessem ser independentes economicamente dos homens, à percepção de que o feminismo não poderia estar reduzido a uma agenda neoliberal que, ao promover autonomia em relação aos homens, gerasse dependência do capital. Silvia passa, então, a investigar aquilo que tem sido chamado de commons, o comum. Segundo a autora: “que começam por novas formas de reprodução coletiva e pelo enfrentamento das divisões geradas entre nós com base na raça, no gênero, na idade e na origem geográfica.” Reprodução, na economia feminista, diz respeito a todo o trabalho necessário a reproduzir a vida, como cozinhar, lavar, limpar e cuidar.Tantas vezes percebido como trabalho repetitivo, improdutivo, invisível, exaustivo. Foi assim também que Silvia percebeu o trabalho doméstico e de cuidados, por décadas. Até se reconectar com memórias de infância, dos momentos em que ajudava a mãe no preparo de massas, molhos e licores, quando aconteceram conversas importantes que a fortaleceram por toda a vida e permitiram outra percepção: “(...) é pelas atividades cotidianas que produzimos nossa existência e podemos desenvolver nossa capacidade de cooperar, e não somente resistir à desumanização, como também aprender a reconstruir o mundo como um espaço de criação, criatividade e cuidado”. É isso mesmo. Lavar a privada poderia levar, então, a um caminho de transformação. À revolução, a partir do ponto zero. Duas experiências alteraram a perspectiva teórica e política de Silvia, segundo ela mesma: estudar a história das mulheres na Europa durante a transição para o capitalismo, o que resultou no livro Calibán e a bruxa: mulheres, o corpo e acumulação primitiva, recentemente traduzido para a língua portuguesa, e ter sido professora visitante na University of Port Harcourt, na Nigéria, onde teve contato com modos de vida não capitalistas resistindo a intervenções do Banco Mundial e do FMI. “Revisitar o início do capitalismo também ampliou meu conceito de reprodução do trabalho doméstico para a agricultura de subsistência, ‘abrindo a porta’ da cozinha para o jardim e a terra.” O que leva a outra importante pergunta: quem produz sua comida? Atenção! A resposta, se passar por determinadas empresas de alimentos, pode ter relação com o golpe em curso no Brasil. coluna Governar é fazer desaparecer VLADIMIR SAFATLE O Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência. Nunca entenderemos o Brasil se não compreendermos o tipo de violência que funda seu Estado. Pois entender como o Estado brasileiro funciona é entender como ele administra o desaparecimento e o direito de matar. Esta é sua verdadeira forma de governo, uma atualização do secular poder soberano e seu direito de vida e morte. Com uma mão, ele massacra parte da população através de seu aparato policial, a encarcera em um espaço de não direito, permite a criação de zonas urbanas e rurais de anomia nas quais a violência e a morte são invisíveis, nas quais os corpos desaparecem sem deixar restos. Sobre esta parte da população, o Estado não tem apenas o direito de vida e morte, ele tem o direito de desaparecimento. Porque o eixo fundamental do processo de gestão é gerir a invisibilidade. Sobre esta violência, não haverá marcas, não haverá nomes, não haverá imagens, não haverá afeto nem identificação. Com outra mão, o Estado brasileiro promete a uma parcela amedrontada reunida em condomínios fechados que ele será ainda mais duro contra o crime. Assim, governa-se gerindo a invisibilidade e alimentando uma dinâmica de guerra civil. Alguns países criam unidade através da guerra e da constituição do inimigo externo. O Brasil cria coesão através da constituição de inimigos internos. Por isso, o Brasil não precisa de inimigos. Desde o tempo em que ele se constituiu através de genocídios indígenas nunca reconhecidos enquanto tais, ficou claro que ele próprio já era o seu pior inimigo. Esta lógica encontrou sua forma mais bem-acabada de governo na ditadura militar (1964-1984). Pois a ditadura militar brasileira foi a consolidação de um modelo de gestão sempre presente na história nacional, mas que a partir de então ganharia estruturas e aparatos institucionais que se mostraram invulneráveis, mesmo em tempo de “redemocratização”. Este é um dos pontos mais impressionantes dos últimos trinta anos no Brasil, a saber, a maneira como suas políticas de desaparecimento permaneceram intocadas, seja sob os governos FHC, seja sob os governos Lula e Dilma. Não foi apenas uma lógica de “segurança nacional” que ficou imune a toda revisão. Foi a natureza do Estado brasileiro e de seu direito de vida e morte sobre a população que pairou para além das modificações político-eleitorais. Os governos passaram, mas a gestão do desaparecimento ficou. É importante lembrar-se disso mais uma vez, porque nossa “redemocratização”, a constituição do que chamamos de “Nova República”, foi baseada na tese de que o esquecimento dos “excessos” do passado seria o preço doloroso, mas necessário, a ser pago para garantir a estabilidade democrática eliminando o trauma da violência estatal. Uma violência que aparentemente não teria recorrido à morte sistemática, haja vista os números menores de mortos e desaparecidos se comparados a outras ditaduras latino- americanas. No entanto, esses números escondem uma violência ainda mais brutal. Pois não significa nada dizer que a ditadura brasileira teria matado menos do que vários de seus congêneres latino-americanos. Ela matou menos porque havia alcançado um grau de violência que fez deste tipo de brutalidade algo desnecessário, já que ela foi capaz de aprimorar um regime de violência que outras nem sequer imaginaram ser possível: a violência da certeza da onipotência de um Estado que administra a morte enquanto assina tratados internacionais contra a tortura, que apaga os rastos, que opera por desaparecimento e continuará a operar, seja sob uma ditadura, seja sob uma “democracia”. Uma estrutura imóvel no tempo, resistente a toda e qualquer mudança, indestrutível. Um Leviatã descontrolado sob a capa do Estado de direito. O resultado é inapelável. Nenhum outro país protegeu tanto seus torturadores, permitiu tanto que as forças armadas conservassem seu discurso de salvação através do porrete, integrou tanto o núcleo civil da ditadura aos novos tempos de redemocratização quanto o Brasil. Há de se lembrar, por exemplo, que o Brasil é o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram em relação à ditadura militar. Prova maior da generalização de um modus operandi de exceção agora aplicado de maneira extensiva à gestão social da população. Por isso, atualmente, nenhum outro país latino-americano teve um colapso tão brutal de sua “democracia” como o nosso, com uma polícia militar que age como manada solta de porcos contra a própria população que paga seus salários. Nenhum outro país latino- americano precisa conviver com um setor protofascista da classe média a clamar nas ruas por “intervenção militar”, a ponto de invadir o plenário do Congresso Nacional com suas bandeiras. Tudo isto demonstra algo claro: a ditadura brasileira venceu. Como um corpo latente sob um corpo manifesto, ela se conservou e a qualquer momento pode novamente emergir. especial Michel Foucault O trabalho da memória ERNANI CHAVES Do vasto campo semântico ao qual “impressões” nos remete, dois sentidos parecem indicar, com precisão, o que caracteriza esse livro: o primeiro diz respeito à marca, vestígio, rastro; o segundo, a um gênero literário próximo da crônica ou do diário, em que se mesclam sensações, sentimentos, reflexões, relatos, experiências de viagens. Esses dois sentidos, por sua vez, estão entrelaçados ao trabalho da memória, ou melhor, do esforço não apenas de lembrar, a partir desses rastros e vestígios, que, como pegadas deixadas na areia, o vento do esquecimento teima em apagar, mas também o de fixá-los por meio da escrita, para que eles permaneçam vivos e constituam uma espécie de legado às gerações futuras. Impressões de Michel Foucault, o mais recente livro de Roberto Machado, parece ter sido escrito com essa intenção. Nessa perspectiva, ele bem poderia também se chamar História de uma amizade, tal como Gershom Scholem intitulou seu livro de memórias sobre Walter Benjamin. Pois apenas a ‘amizade’, considerada um misto de ‘confiabilidade e integridade’, como o próprio Scholem sinalizou no “Prefácio” de seu livro, pode conceder a esse tipo de relato alguma ‘autoridade’ àquele que narra, uma vez que essas ‘impressões’ não surgem a partir de uma narrativa objetiva, distanciada, precisa e exata, cuja matéria seria apenas a obra – de Benjamin ou de Foucault – como se se tratasse deum trabalho acadêmico. Ao contrário, a compreensão do pensamento, da obra, nos dois casos, também se alimenta das impressões afetivas, tornando-se inseparáveis delas. Além disso, como separar a história de uma amizade da própria história daquele que a conta e da história do seu tempo? Se no relato de Scholem vimos ressurgir a Alemanha desde os anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial até o começo da Segunda, o de Roberto Machado nos remete ao Brasil desde os anos que imediatamente antecederam ao golpe militar de 1964 e aos primeiros anos da ditadura, até 1984, ano da morte de Foucault. Histórias pessoais que estão, portanto, vinculadas à história de uma época. Entretanto, uma diferença importante marca o relato de Scholem e o de Roberto Machado: no primeiro caso, são dois jovens que se encontram e se conhecem, a fama de ambos só virá depois; no segundo, trata-se do encontro entre um jovem professor de filosofia da PUC do Rio de Janeiro, nordestino do Recife, com uma intensa militância política na esquerda católica do Brasil pré-1964 e que saiu do país, um ano depois do golpe, para fazer pós-graduação em Filosofia na Bélgica, e um filósofo já famoso e consagrado por um livro, o qual, segundo célebre manchete de um jornal parisiense, “vendeu mais que pãezinhos” no verão de 1966. O primeiro encontro de ambos, em maio de 1973, quando Foucault proferiu as cinco conferências intituladas “A verdade e as formas jurídicas”, na PUC carioca, não poderia ser mais emblemático: o professor, que há pouco havia se encantado com As palavras e as coisas, embora discordasse de suas teses principais, e o filósofo que apresentava, nas suas conferências, sua concepção de poder disciplinar, base do Vigiar e punir, que viria a ser publicado dois anos depois. De um lado, o professor interessado na “arqueologia das ciências humanas”; de outro, o filósofo já inteiramente voltado para a “genealogia do poder”. Esse primeiro encontro, que também já era, num certo sentido, um desencontro, marcaria de uma vez por todas a amizade e a intensa colaboração intelectual que daí se seguiu. Como Roberto mostra à exaustão em seu livro, ele e Foucault nem sempre concordavam em tudo, aliás, essa não era, de modo algum, a condição para que continuassem amigos. O que o leitor tem nas mãos não é, portanto, a simples história da admiração por um grande filósofo e do fascínio por ele exercido. É, principalmente, a história de uma amizade, a qual, para lembrar uma das últimas entrevistas de Foucault, em que ele celebra a amizade como um modo de vida, não tinha, de início, nenhuma forma. Essa é, me parece, a matéria viva de onde brota esse livro, a necessidade de dar uma forma a essa amizade, em meio a concordâncias e discordâncias, a proximidades e distâncias. O reconhecimento, por exemplo, da “extrema doçura que transbordava dos olhos” de Foucault não fez com que Roberto deixasse de assinalar que além de generoso, Foucault fosse também muitas vezes “cruel”. É importante assinalar, portanto, que esse livro não é um elogio desmesurado a um Foucault idealizado. Nesse sentido, lembremos, por exemplo, o pouco entusiasmo de Foucault quando Roberto lhe disse que ia escrever uma tese de doutorado sobre a ‘arqueologia’ ou ainda as suas diferentes opiniões sobre diversos filmes, quando Roberto, então assíduo ouvinte dos cursos no Collège de France, já participava do círculo de amigos mais próximos de Foucault. Roberto insistiu no tema de sua tese e legou a nós, leitores de Foucault, mas também leitores dele, Roberto, um dos clássicos dos estudos foucaultianos no Brasil. Nem sempre partilhando as mesmas opiniões sobre os filmes a que assistiam, ambos, entretanto, tiveram uma participação decisiva em dois filmes importantes: Foucault, colaborador no filme que Renée Allio dirigiu a partir do dossiê sobre Pierre Rivière em 1976 e Roberto, roteirista de Ato de violência, dirigido por Eduardo Escorel, em 1980, a propósito do caso do famoso “Chico Picadinho”. De 1973 a 1984, Roberto Machado privou-se da amizade de Foucault. Em fins de 1973, alguns meses depois das conferências na PUC, ele já estava em Paris para assistir ao curso “O poder psiquiátrico”. Daí, até 1980, não só foi ouvinte dos cursos públicos, mas também participante dos seminários mais fechados, que Foucault coordenava no Collège de France, no qual seus participantes expunham suas pesquisas específicas. Dessa colaboração intensa surgiu Danação da norma: a constituição histórica da psiquiatria no Brasil, publicado em 1977, que deu origem a vários trabalhos, em diversos lugares do Brasil, na década de 1980 em especial, a pesquisas semelhantes. Além disso, todas as visitas de Foucault ao Brasil, a partir desse primeiro contato em 1973, tiveram a participação decisiva de Roberto, mesmo quando ele não estava presente, como é o caso da segunda visita a Belém, em novembro de 1976. Para o estudioso de Foucault, esse livro, sem sombra de dúvida, é muito mais do que aquilo que ele pode sugerir à primeira vista ao leitor comum, qual seja, um conjunto de anedotas acerca da vida pessoal de um grande filósofo. Aliás, da vida pessoal de Foucault, esse livro não revela nenhum grande segredo inconfessável, nenhuma grande novidade que abalaria Paris. Entretanto, ele revela o quanto numa conversa informal, na cozinha do apartamento de Foucault em Paris, algo se expõe no campo do pensamento. O mesmo se dá quando ambos caminham numa praia carioca ou nordestina ou ainda, em outra conversa, desta feita no apartamento de Roberto no Rio de Janeiro. Ou seja, o leitor vai acompanhando como essa amizade vai ganhando forma em meio à própria vida ou, ainda, que se pode pensar em qualquer lugar, em qualquer ocasião, desde que haja, para tal, um vínculo afetivo e um interesse comum, o que nem sempre acontece nas instituições que construímos para serem os lugares do pensamento. Entretanto, isso não é tudo. O mais importante é que esse livro expõe também o que Roberto pensa da própria filosofia de Foucault ou, ainda, como ele a compreende. Eu resumiria isso a dois aspectos, que considero fundamentais. O primeiro é que o pensamento de Foucault prima muito mais pela descontinuidade temática e de abordagem do que por uma presumida continuidade. Com isso, Roberto toma uma distância crítica em relação a um tipo de interpretação bastante comum hoje em dia, que procura encontrar fios de continuidade na obra de Foucault. Como entender, pergunta ele a certa altura de seu livro, que Foucault diga que ora seu problema foi o do sujeito, ora foi o do poder? Como compatibilizar essas duas respostas diferentes senão pelo permanente deslocamento que Foucault opera no seu próprio pensamento? A resposta não estaria, portanto, em investigar o quanto haveria de verdade ou falsidade nessas diferentes respostas, para que o intérprete se decida por uma ou por outra, mas sim em situá-las estrategicamente na obra, ou seja, ambas são verdadeiras, mas somente o são quando referidas a este ou aquele momento da obra. Nem o próprio Nietzsche, que Roberto reputa como a mais importância referência filosófica no pensamento de Foucault, escapou dos deslocamentos e das mudanças de perspectiva. A segunda diz respeito ao papel dos cursos, das entrevistas, das conferências, no entendimento da obra, para além dos livros efetivamente publicados. Nesse caso, Roberto não deixa de assinalar que faz um uso muito prudente dos “ditos e pequenos escritos” de Foucault. E, para justificar isso, não hesita em reiterar sua proximidade com “Michel”! Aliás, que o leitor fique atento, para o fato de que Roberto ora chama Foucault de “Foucault”, ora de, simplesmente, “Michel”. O uso do primeiro nome entre os europeus, como sabemos, é índice de intimidade, de proximidade, de amizade. Assim, “Michel”, ao contrário de Deleuze (nunca chamado de “Gilles”), cujos cursos, primeiro em Vincennes e depois em Saint- Denis, Roberto também acompanhou por vários anos, “jamais falava do mesmo modo sobre os mesmos temas”. Isso implica, segundo Roberto, a imperiosa necessidadede relativizar o que diz Michel, “sobretudo nas entrevistas”, as quais trazem a marca do momento, do país em que foram dadas, do assunto tratado, da preferência filosófica de seu anfitrião, a quem muitas vezes ele queria agradar e até mesmo do interesse que lhe despertava o rapaz que tinha feito uma pergunta. Nessa perspectiva, todas as vezes que se trata de “Michel”, estamos diante de um argumento que extrapola sua legitimidade do âmbito do estudo da filosofia de “Foucault”, para também se amparar nos laços estreitos da proximidade afetiva que os uniu. Por fim, gostaria de assinalar que esse livro também traz consigo uma marca que caracteriza todos os outros livros de Roberto Machado: ele é escrito com uma limpidez, com uma clareza, com uma elegância refinada, que raramente encontramos entre os estudiosos da filosofia no Brasil. Essa limpidez, essa clareza às vezes tão incômoda, como se nada pudesse ficar obscuro, equilibra, do ponto de vista da escrita, a reflexão e o afeto, o momento em que a filosofia de Foucault assume o primeiro plano e aquele outro, em que a figura de Michel se torna protagonista. Livre da necessidade da nota de rodapé e das referências bibliográficas de acordo com as regras da ABNT, estamos diante aqui, certamente, não apenas do professor Roberto Machado, renomado especialista na filosofia de Foucault, mas do Roberto contador de histórias, um Roberto que tenho a alegria de conhecer há mais de três décadas. Casa aberta DANIEL BENEVIDES Impressões de Foucault é um livro inclassificável, no melhor dos sentidos. Passeio livre pela memória, exercício de saudade, conta das idas e vindas de uma amizade pautada pela admiração intelectual. Não se trata, portanto, de um estudo, ainda que o autor seja profundo conhecedor da obra do filósofo francês, tendo sido um dos maiores difusores de seu pensamento no país. Numa escrita solta, que de certa forma se assemelha a seu retratado, Machado mescla reminiscências pessoais, histórias de militância contra a ditadura, indagações filosóficas, análise de seu próprio percurso acadêmico à luz das aulas e conversas que teve com Foucault, Deleuze e outros, e lembranças dos momentos de convivência íntima com o amigo, tanto em Paris quanto nas várias passagens pelo Brasil do autor de História da loucura e Vigiar e punir. São essas viagens que proporcionam alguns dos momentos mais saborosos do livro, em que o leitor mais afeito à obra de Foucault pode vislumbrar o homem por trás dos óculos de aro grosso e da indefectível gola rolê. O curioso é que o retrato surge meio borrado, talvez por conta do jeito imprevisível com que Foucault se colocava no mundo. Ora ele é gentil e generoso, como com as crianças pobres em Salvador ou Recife, que o cercavam curiosas com sua brancura alienígena, ora ele é cruel e sarcástico com alunos e mesmo amigos, capaz de ressentimentos eternos. “Metia medo. Sentia-se que era perigoso”. Suas brigas com Sartre, Althusser, Baudrillard, Derrida, Hélio Pellegrino e Deleuze, para citar apenas alguns, são descritas com certo espanto pelo autor, este sim, claramente conciliador. Com Machado, sempre muito modesto e natural, as controvérsias, que não eram poucas, acabavam em risadas. Mesmo assim, há momentos em que o leitor se pergunta se Foucault não foi grosseiro demais. “Este é Roberto, um brasileiro tão simpático quanto um heterossexual pode ser.” Machado deixa que a cronologia se ajuste ao ritmo das lembranças, o que dá um ar desenvolto, espontâneo ao livro. Personagens secundários, mas não menos importantes, como Daniel Defert, parceiro de Foucault, os psicanalistas Jurandir Freire e Chaim Katz, o divertido sociólogo Jean-Robert Weisshaupt e os cineastas Rainer Werner Fassbinder e Daniel Schmid entram e saem como se as páginas fossem portas e janelas abertas e o livro uma casa sempre pronta a receber convidados. O tom também varia bastante, ao sabor casual da vida narrada. Há trechos densos em que dá sua visão de algumas das “ideias crepitantes” e conceitos mais importantes de Foucault (e também de Deleuze, outro pensador que lhe é particularmente caro, assim como Nietzsche) e de como o influenciaram em seu trabalho, o que pode servir de boa introdução aos leitores leigos. Ao mesmo tempo, há clareiras em que se alojam anedotas curiosas e reflexões informais – até um certo grau de fofoca (sem nenhuma maldade). É divertido, por exemplo, quando fala de sua paquera com a deslumbrante atriz Alexandra Stewart, de Trinta anos essa noite, ou quando divaga sobre Proust depois de receber do amigo ilustre uma gravura de Roberto Matta. Ou, ainda, quando conta que Ingrid Caven, outra diva do cinema de arte (assunto importante no livro), ao notar, ”botando a mão na boca”, a braguilha aberta de Foucault, teria ouvido: “Não se preocupe. Não tem o menor perigo”. Essa palavra, “perigo”, é recorrente, como, aliás, algumas cenas e considerações cuja redundância só aumenta a sensação de agradável informalidade provocada pela leitura. Por fim, há momentos comoventes, sempre descritos com elegância. Num deles, Machado declara que a qualidade que mais admira em Foucault é a coragem, à parte sua gentileza, inteligência, lucidez (“falava como se estivesse escrevendo”), rigor e capacidade de se reinventar. E cita episódios como a participação do filósofo no ato ecumênico por Vladimir Herzog e as diversas vezes em que ele se colocou, com firmeza, contra o autoritarismo. No táxi com Michel Foucault JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO Naqueles primeiros anos da década de 1970 de reconstrução democrática após a dizimação sangrenta de toda resistência ao arbítrio e à brutalidade da ditadura civil-militar, nós, que recomeçávamos a resistência contra a opressão, não sabíamos pensar ou agir no singular. O plural e o coletivo nos inspiravam e orientavam nossas ações, a despeito das diferenças entre os poucos e aguerridos grupos que reconstruíam o movimento estudantil (ME) na USP. Escrever um depoimento na primeira pessoa, como me pede a CULT, sobre um inesquecível encontro com Michel Foucault em 1975, é uma difícil tarefa. Além, é claro, da lembrança incômoda de um período no qual muitos de nós tivemos parte da juventude ceifada pela onipresença do arbítrio e da usurpação dos direitos mais fundamentais. A verdade é que tínhamos muito medo e do medo tiramos uma força solidária que nos fazia vibrar a cada colega que se juntava a nós tornando-se companheiro de luta e resistência, unidade indivisível que expressava uma vontade de liberdade cada vez mais plural. Queríamos mais do que sobreviver, queríamos viver plenamente. Com esse espírito e vontade comecei meu curso na Filosofia da USP em 1972. O convívio entre os estudantes acontecia em ritmo lento, as conversas contidas se aprofundavam conforme o ritmo da confiança que ganhávamos entre nós pouco a pouco. Os colegas da pós-graduação se achegavam, procuravam nos influenciar sobre as questões do país e da necessidade de reerguer o ME. Engajar-se ou se alienar tentando manter distância dos tímidos movimentos de recriação de espaços representativos como os Centros Acadêmicos foram as primeiras dúvidas quase filosóficas que tive que enfrentar. Eram tempos de censura às notícias e opiniões políticas nos diários e, ao mesmo tempo, de explosão cultural e transgressões da ordem imposta. Livros proibidos de humanidades eram comprados em outros idiomas na banca do Raul Castell nos “Barracos” da USP ou em algumas livrarias no centro velho, como a Duas Cidades, a Brasiliense, a Avanço, capas embaladas em papel pardo para o caso de alguma “batida” nas ruas paulistanas. Ao mesmo tempo surgiram novos ares na imprensa: “Brasil Mulher”, “Lampião”, “Em Tempo”, “Movimento”, “Nós, mulheres”, “Versus”, “Bondinho”, “ex”, “Jornal da República”, os chamados “nanicos” eram contra a censura e a ditadura, se alinhavam à contracultura, à argumentação oposicionista, aos direitos das mulheres e homossexuais. Tempos de medo, mas tempos de reação. Tomei a decisão de juntar-me aos colegas que reconstruíam o Centro Acadêmico de Filosofia– CAF, batizado por nós “João Cruz Costa”, o inesquecível professor aposentado da USP que nos acolheu algumas vezes em sua casa para contar histórias da faculdade e nos animar com sua erudição filosófica. Éramos poucos, mas irmãos quase siameses. De todos, eu e Vânia, e mais tarde Jorge, éramos os mais inseparáveis. No CAF fazíamos murais de notícias, fomentávamos grupos de debates, montávamos mesas-redondas com professores da casa e outros aposentados compulsoriamente, como José Arthur Gianotti. A Filosofia foi a primeira unidade da USP a proclamar um CA livre. Não tínhamos uma diretoria hierárquica, mas um grupo de lideranças que coordenavam os trabalhos. Na pauta de lutas estudantis a autonomia universitária, o Decreto 477, o combate ao ensino pago ganharam maior densidade em 17/03/1973 quando os órgãos de repressão assassinaram o nosso colega Alexandre Vanucchi Leme. A missa na Catedral da Sé em sua memória, celebrada por D. Paulo Evaristo Arns, mobilizou 3.500 pessoas que enfrentaram o enorme aparato repressivo que se formou na região. O passar pelo corredor de PMs para entrar na Sé naquele início de noite foi uma das experiências mais assustadoras por que já passei. Mas o ar de solidariedade e revolta ativa que recebíamos ao entrar na catedral enchia nossos pulmões de vontade e força para seguir resistindo. Desde então o ME avançou em lutas por liberdades democráticas. Em 1974 constituiu-se o Comitê de Defesa dos Presos Políticos e, em 1975, a famosa “greve da ECA” marcou a USP com a primeira concentração estudantil desde o AI-5. Foi nesse contexto de repressão, medo e resistência ativa, que conheci Michel Foucault em 1975, não como aluno ou pesquisador de sua obra, mas como jovem militante e estudante de filosofia combatente da ditadura militar. À ousadia das manifestações estudantis em 1975, a ditadura reagiu efetuando várias prisões de estudantes, e fez o mesmo com a resistência civil ao golpe, prendendo jornalistas, professores e sindicalistas, alguns deles membros de partidos clandestinos de esquerda. Em setembro e outubro essas prisões se intensificaram e, justamente nesse período, Michel Foucault, que acabara de lançar uma de suas mais importantes obras – Vigiar e punir –, estava ministrando um concorridíssimo curso na Psicologia da USP, nos mesmos “Barracos” em que estudávamos. A primeira vez que eu o vi foi atendendo a um chamado de socorro dos organizadores que me procuraram, e à Vânia, para convencer nosso colega Luiz Gonzaga, que sofria de alguns distúrbios emocionais, a se retirar da frente da mesa onde Foucault ministrava sua conferência. Com uma garrafa de cachaça na mão, já alterado, Luiz falava alto: “Bobagem”, “Mentiras”, para espanto do culto auditório. O clima estava quase hostil para com ele e entre os poucos olhares de compreensão e de aceitação daquela contravenção explícita da ordem, estava o de Foucault. Delicadamente conversamos com nosso amigo e o conduzimos para seu habitat naqueles anos, o CAF. Mas me sobrou o olhar não discriminatório do ilustre palestrante. A repressão se intensificou, o clima estava tenso e o medo à flor da pele. No dia 22 de outubro a Profa. Marilena Chaui nos procurou e nos informou que Foucault estava disposto a se manifestar contra a repressão de Estado que estávamos sofrendo e gostaria de saber o que sugeríamos enquanto ME. Lembro que de pronto afirmamos que renunciasse às aulas, denunciasse a ditadura militar no exterior e expressasse sua solidariedade aos presos. No dia seguinte, 23, teríamos uma Assembleia Universitária no Salão Caramelo da FAU- USP contra as prisões e convidamos Foucault, que prontamente aceitou. Apenas pediu uma conversa prévia antes do evento. Coube-me fazer essa conversa e por volta das 8 h do dia 23 de outubro de 1975, às vésperas da prisão e antevéspera do assassinato de Vladimir Herzog, lá estava eu, com 22 anos, em um banco na Praça Roosevelt, aguardando o famoso filósofo e seu colega (e nosso professor) Gerard Lebrun. Recordo-me de que preparei esse encontro com toda a apreensão do mundo, não porque iria encontrar um filósofo de renome internacional, mas porque o assunto era por demais importante e estratégico para a nossa luta democrática. É incrível como a juventude e a força da época de combate ao arbítrio podem tornar- nos, mesmo muito jovens, avessos ao deslumbramento. Novamente a atitude de um verdadeiro mestre se impôs perante a notoriedade do filósofo estrelado. Tive dele diálogo objetivo, questionador, respeitoso e atento a um jovem estudante que o escutava, o compreendia em francês, mas que precisava de um tradutor (Lebrun) para fazer-se compreender. Não era um diálogo de intelectuais, entre pares, mas o respeito cidadão se impunha e tivemos uma longa conversação sobre o que estávamos construindo no ME, no foco de nossas lutas, na situação dos presos políticos e no horror cotidiano de estudar e trabalhar sob uma ditadura sanguinária. Ele ouvia, argumentava, questionava. Ao final disse-me: “vamos, estou pronto, podemos ir, farei lá uma declaração renunciando às aulas e denunciarei no exterior o que está se passando no Brasil”. Tomamos o primeiro táxi que passou, um fusca apenas com o banco traseiro. Sentei-me ao meio, ladeado por Lebrun e Foucault e, naquele momento, senti “cair a ficha”, como se dizia na época. Subia a Consolação com um dos pensadores mais polêmicos e inovadores daquele período e o sentia próximo a nós, à nossa luta, à nossa identidade. Como tantos professores que estavam conosco naqueles tempos, Michel Foucault também era um dos nossos. A chegada à FAU criou um justificado murmúrio na assembleia que já estava acontecendo. Levei-o aos bastidores onde alguns colegas já nos esperavam. Ele pediu papel, sentou-se à mesa e rapidamente escreveu um pequeno texto de dois parágrafos. Glauco fez a tradução para o português, alguns revisaram e me coube ler a versão para a assembleia ao lado de Foucault que leu o texto em francês. Aplausos emocionados, vibração genuína pelas palavras fortes do filósofo que se recusava a continuar dando aulas num país que prendia e torturava intelectuais e trabalhadores. No manifesto, o prenúncio do que viria a se tornar realidade nos anos vindouros, a de aproximação do ME com o novo sindicalismo que já se anunciava em 1975 no ABC: “Na defesa dos direitos, na luta contra as torturas e a infâmia da polícia, as lutas dos trabalhadores intelectuais se unem à dos trabalhadores manuais”. Terminada a leitura nos demos as mãos com energia e olhos emocionados. Nunca mais o vi, apenas o acompanhei ao longe, nas leituras e nas incontáveis polêmicas de sua vida. Mas o garoto aguerrido de 22 anos, ainda em formação, recebeu de Foucault outro tipo de lição que certamente o ajudou a marcar sua própria trajetória intelectual como professor e cidadão. Tempos duros, mas de grandes lições! entrevista Roberto Machado Risos e sorrisos de Michel Foucault SILVIO ROSA FILHO Formado em filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco e mestre e doutor em filosofia pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, Roberto Machado fez vários estágios no Collège de France sob a orientação de Michel Foucault e pós-doutorado na Universidade de Paris 7 com Gilles Deleuze. Professor titular aposentado do Departa-mento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Roberto Machado realizou pesquisas sobre medicina social e psiquiatria e estudos sobre a relação entre ontologia e estética como: Nietzsche e a verdade; Zaratustra, tragédia nietzschiana; Foucault a filosofia e a literatura; O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche; Deleuze, a arte e a filosofia. Prepara, atualmente, um livro sobre Proust e as artes. A elegância de seu texto, nos livros, reaparece nesta entrevista que Roberto Machado concedeu por escrito à CULT. Uma das impressões mais marcantes de seu livro está expressa numa frase quando você diz de Michel Foucault: “Ria-se muito com ele”. No início do livro, acentuando o fato de que Foucault sempre buscava levar em consideraçãocom quem estava falando para saber o que dizer, você recorda momentos em que ele, no Japão, trata da possibilidade de uma cultura e de uma filosofia não capitalistas. Assunto muito sério, sem dúvida, principalmente porque “a era de uma cultura não ocidental do mundo capitalista estava começando”. Em 1973, por exemplo, vocês estão na casa de um de seus colegas, professor da PUC, e alguém pergunta pomposamente a Foucault sobre o seu “lugar de fala”. Você poderia nos contar esse episódio e o seu vínculo com a questão do nascimento de uma “filosofia no futuro”? Quando reli pela primeira vez o livro que estava escrevendo, fiquei impressionado com a presença do riso na vida de Foucault, a ponto de pensar em intitulá-lo “Risos e sorrisos de Michel Foucault”. Várias vezes chamo atenção para o quanto ele era engraçado. Mas também para o quanto ele se divertia com o que fazia, sem dar a suas palavras a seriedade que os outros, inclusive eu, víamos nelas. É verdade que, às vezes, eu o vi exibir diante de adversários ou críticos, com quem não interessava dialogar, risos de mofa. Como no episódio, lembrado por você, do professor que lhe perguntou pomposamente de onde ele falava, querendo que ele exibisse os princípios que autorizavam ou legitimavam sua maneira de pensar, e ele respondeu: “Daqui desta cadeira!” Felizmente durante nossos contatos, mesmo quando estridentes, seus risos eram ternos e compreensivos, e estampavam no rosto que o outro merecia um esclarecimento. Muito provavelmente isso aconteceu porque desde o início eu compreendi que o importante para ele não era ter a última palavra; era ter sua palavra. Mas há outro aspecto importante na sua pergunta: o fato de que Foucault jamais falava do mesmo modo sobre os mesmos temas, e de que isso foi importante para eu relativizar o que ele dizia. Uma entrevista, por exemplo, não tem a importância do que é dito por ele num curso e muito menos do que é escrito num livro. Por isso suas entrevistas devem ser lidas com cuidado, exigindo atenção a quando, onde e a quem foram dadas. Dou vários exemplos disso no livro. E, embora as utilize tanto, em geral não as valorizo muito para entender sua obra quando são de outra época. A razão mais profunda disso é que Foucault não é um pensador sistemático, alguém que constrói um sistema filosófico fechado, uma filosofia da identidade, alguém que elabora um método de investigação rígido, invariável, universalmente válido. Foucault é um pensador provisório. Você mostra a que ponto chegava a admiração de Foucault por um “jornalismo radical”, ou seja, capaz de se perguntar pela forma política que toma a vontade popular, “dar voz aos excluídos” e ao momento em que se diz “não” ao soberano. Na análise das forças em presença, opondo lutas concretas a governos repressivos, Foucault foi muito criticado por suas posições sobre a sublevação popular contra forças de repressão fortemente armadas do xá Reza Pahlevi. Ao encontrá-lo em Paris, no ano de 1979, você lhe perguntou sobre essas críticas, e ele respondeu: “As pessoas confundem um juízo de valor com um juízo de realidade. Quis dar conta do que estava acontecendo”. Essa atenção de Foucault à singularidade dos fatos políticos e teóricos reaparece numa entrevista concedida a Le Monde (maio do mesmo ano). Pode falar sobre isso? Foucault não era apenas um universitário, um acadêmico, um especialista numa área de conhecimento. Ele também era um intelectual. Não no sentido de querer modelar o projeto político dos outros, mas de questionar as evidências, os hábitos, os modos de agir estabelecidos. E pelo fato de pensar que a crítica é um instrumento de luta, de resistência, gostava de intervir na imprensa, tendo sido um dos criadores do jornal francês Libération. Chegou até mesmo a expor sua ideia de que a filosofia deve fazer o diagnóstico do presente, compreender a atualidade, definindo-a como um tipo de jornalismo radical. Esse episódio ao qual você se refere diz respeito à série de artigos que Foucault escreveu sobre o Irã em 1978. Penso que essa atividade jornalística é profundamente coerente com seu interesse pelo novo, por novas formas de agir e de pensar. Pois o que o motivou nesse episódio foi procurar entender como se dá uma sublevação popular contra uma repressão fortemente armada e a relação profunda que havia, no movimento revolucionário, entre política e religião, entre um levante popular e uma instância religiosa. E isso era novo na época. Ora, quando o movimento popular, que ele sentiu como libertador, torna-se intolerante e sangrento, com a tomada do poder por Khomeini e o estabelecimento de um Estado teocrático, Foucault critica o caminho tomado pela sublevação, ressaltando não ter mudado de posição porque continuou contra qualquer regime repressivo. É nesse contexto que ele defende o direito e o universal. Se eu chamei atenção para isso foi porque até essa época era difícil vê-lo pensar assim. E porque essa referência ao direito e ao universal se dá no âmbito de uma análise política. Como também aconteceu, na mesma época, quando ele defende Klaus Croissant, advogado do grupo Baader-Meinhof, preso pela polícia francesa e extraditado a pedido do governo alemão, e os militantes políticos espanhóis condenados pelo regime fascista de Franco ao garrote vil. Vamos falar de sua temporada na Universidade Católica de Louvain? À primeira vista, sua formação filosófica esteve um tanto apartada das leituras de Marx e Althusser, feitas em paralelo, com militantes da Ação Popular da qual você foi membro e simpatizante. Você não foi tão obediente a seu tutor em Louvain? Não fui inteiramente obediente a esse conselho de que o importante é conhecer o pensamento dos outros e não ousar pensar por si mesmo, por ter procurado, durante minha formação acadêmica, articular estudos de filosofia marxista com atividades políticas existentes no Brasil. Mas isso não foi o mais importante, inclusive porque eu não via aqueles estudos paralelos como se fizessem parte de minha formação filosófica. O que prevaleceu durante esse período na Universidade de Louvain foi a compreensão de que, se quisesse possuir uma boa formação filosófica, precisava privilegiar o conhecimento dos clássicos. E não tenho dúvida de que a tentação de reduzir a filosofia à história da filosofia esteve presente durante toda minha vida profissional. Felizmente, de volta ao Brasil, passei a admirar Nietzsche por haver afirmado com destemor que mora em sua própria casa, sem jamais ter imitado ninguém, e criticado os filósofos que pensam como se fossem especialistas no cérebro da sanguessuga. Ou a valorizar o alerta de Deleuze de que a história da filosofia não deve funcionar como uma escola de intimidação do pensamento, ou exercer um papel repressor. Mas quem mais contribuiu para o que, bem ou mal, eu fiz esses anos todos foi Foucault. Não tenho dúvida de que minha relação com Foucault era motivada pelo desejo não de ficar repetindo os filósofos, mas de fazer alguma coisa a partir de seu pensamento, de utilizar o instrumental filosófico criado por ele para produzir um conhecimento novo. E você seguiu outros caminhos, diferentes daqueles tomados por Foucault em 1977 ou 1980, quando Deleuze chegou a enxergar, nestes últimos, uma crise no trabalho intelectual. Você, por seu turno, parece reconhecer uma unidade temática na circunscrição do problema que relaciona o poder e a investigação de novas formas de governar, unidade entrevista retrospectivamente, e mais de uma vez, pelo próprio Foucault. Por outro lado ainda, a composição de seu livro atesta que você continua dando importância à relação entre filosofia e outros saberes, não apenas os produzidos pelas ciências, mas principalmente pelas artes e filosofia. Como então o tema do trágico lhe permitiu articular estética e ontologia? Esse desejo de produzir um conhecimento novo, levando em consideração exigências metodológicas criadas por Foucault, se realizou primeiro com a pesquisa que fiz em grupo – antes mesmo de concluir o doutorado – sobre o nascimento da medicinasocial e da psiquiatria brasileiras. Mas até mesmo quando abandonei a pesquisa de documentos médicos e psiquiátricos, o projeto de relacionar a filosofia com outros saberes, que ele realizou tão bem, foi o que me levou a privilegiar temas estéticos e ontológicos, como o trágico. Quando se pensa em trágico geralmente se pensa em Nietzsche. Quis, no entanto, mostrar que Nietzsche se insere perfeitamente no projeto existente, na Alemanha, desde o final do século 18 de interpretar a tragédia como documento filosófico, ontológico, que apresentaria uma visão trágica do mundo. Pensadores importantes como Peter Szondi, Lacoue-Labarthe e Jacques Taminiaux me ensinaram isso e muito mais a esse respeito. Mas esse estudo que fiz sobre o trágico – do seu nascimento com Schiller até seu apogeu com Nietzsche – pode ser aproximado da história arqueológica de Foucault, por eu ter procurado fazer uma análise que privilegiasse o conceito, atento a seu aparecimento e a suas transformações no tempo. Você poderia nos dizer em que medida – bem entendida: não como “homenagem” nem como uma “explicação” – a sua retomada dos temas e problemáticas iniciais de Foucault estaria aliada à sua própria perspectiva política hoje? Quando escrevia esse livro, foi muito interessante relembrar que Foucault dissera numa entrevista a uma revista japonesa, em 1976 – época em que estava interessado em saber se vivíamos o fim da idade da revolução – que em países excessivamente explorados como o Brasil e a Bolívia a revolução ainda é efetivamente desejada, concluindo que o papel do intelectual deve ser restabelecer o mesmo desejo de revolução que havia no século 19 Acredito que esse desejo de revolução que ele detectou nas pessoas com quem teve contato no Brasil foi o que o motivou a vir aqui cinco vezes e contribuir para nossos trabalhos teóricos e políticos. E se achei interessante essa declaração foi porque Foucault foi justamente o pensador e militante que mostrou a muitos de nós, com mais argúcia e coragem, como é possível cultivar um projeto revolucionário socialista diferente do que ficou conhecido com o nome de “socialismo real”. Durante o período em que estive novamente mergulhado em seus textos para avivar a memória e escrever esse misto de testemunho e reflexão, uma pergunta esteve o tempo todo presente: “Que pensaria e faria ele hoje”? perfil Preta Rara Geração incômodo AMANDA MASSUELA Joyce Fernandes virou Preta Rara há doze anos. Adotou como nome artístico o apelido que ganhou da mãe por gostar de coisas “diferentes” das outras meninas: jogar futebol, escalar muros, escrever rimas. Aos 32 anos, a rapper e arte-educadora já se acostumou a ouvir por aí que a sua fala “incomoda”. Faz sentido. Foram anos de silêncio e outros tantos de desabafo só com a caneta e o papel. “Por muito tempo eu escutava as coisas e me calava”, conta, na sala do apartamento para o qual se mudou recentemente, no centro de São Paulo. Durante a infância e boa parte da adolescência, Preta Rara se calou, por exemplo, ao ouvir que estava “predestinada” a ser empregada doméstica, ou que tinha um rosto “exótico”, ou que estava proibida de brincar com as filhas das patroas de sua mãe. Quando decidiu falar, tinha muito a dizer. Nascida e criada na cidade de Santos, ela “se deu ao luxo” de morar durante um ano na capital para tentar viver exclusivamente dos seus projetos artísticos, que envolvem o rap, a moda e também a literatura. É por meio deles que, hoje, fala sobre racismo, machismo, gordofobia e feminismo sem medir o tamanho do “incômodo” que pode provocar em seus interlocutores. Na verdade, quanto maior o desconforto, melhor. “As pessoas me falam: ‘nossa, Preta, você é muito pesada quando fala, vai lá no fundo mesmo’. E desde criança escuto minha mãe dizer que sou muito agressiva”, diz. Foi primeiro no rap que Preta Rara encontrou um meio de dar vazão ao turbilhão: menina negra, gorda, zoada na escola, filha de trabalhadoras domésticas, colocava tudo no papel. A mãe dizia que a menina tinha mais coisas escritas do que desenhadas na infância – mesmo quando não sabia escrever muito bem. O pai observou que os textos da filha, aos 14 anos, eram rimados, e explicou para ela o que era rap, sublinhando que o gênero não combinava muito com a voz “aguda” das mulheres. “Por isso eu tenho essa voz grossa”, ri. Seis anos mais tarde, ela criou um dos primeiros grupos femininos de rap de Santos, o Tarja Preta. Foi aí que se tornou a Preta Rara, mas fora dos palcos, no dia a dia da labuta, ainda era Joyce. A essa altura, já trabalhava como empregada doméstica há pelo menos dois anos, e repetia a trajetória de quase todas as mulheres da sua família. “Eu não conseguia emprego em Santos. Demorei muito para entender que currículo com foto e boa aparência nunca é personificado numa pessoa preta. Quando contei para a minha mãe que tinha arranjado serviço em uma casa, ela começou a chorar. Disse que não queria isso para mim, mas eu fui. Foram os piores sete anos da minha vida”, conta. Foram muitas as situações de abuso pelas quais passou durante quase uma década trabalhando em casas de classe média na baixada santista. Lembra principalmente de quando foi proibida de comer da própria comida que preparava, todos os dias, para uma das famílias. Ou de quando a impediram de usar o banheiro principal de uma das casas porque o “banheiro das empregadas” estava entupido. Um episódio em específico a marcou. Uma das famílias, a mais rica para a qual já trabalhou, estava de viagem marcada para um sítio. Quando chegaram em casa com as compras e não encontraram espaço nos armários e na geladeira, pediram a Joyce que buscasse dois sacos de lixo. Despejaram ali bandejas de carne, frango, peixe, linguiça. “Ela amarrou e deu pra mim. Cheguei em casa com muita raiva, abri o saco, joguei tudo no meio da sala e falei para o meu ex-marido que a gente ia jantar o lixo da casa das minhas patroas.” Só no ano passado Preta Rara conseguiu dividir essas experiências com outras pessoas – até então não havia dito a ninguém. “Todas as mulheres da minha família, as mais velhas do que eu, foram empregadas e eu passei a infância ouvindo elas reclamarem. Não podia chegar para minha madrinha ou para a minha mãe e dizer que tinha sido maltratada”. Decidiu expor os casos na internet, por meio da página “Eu, empregada doméstica”, que hoje já tem mais de 140 mil curtidas, projeção internacional e centenas de histórias de mulheres de todo o país. “A gente recebe cada relato. Tem uma senhora, trabalhadora doméstica, que deixa um pote de margarina para poder urinar na área de serviço, dentro do potinho.” Dados de 2014 da Organização Internacional do Trabalho mostram que 60% das trabalhadoras domésticas do Brasil são negras. “É uma opção que não é uma opção. Hoje, mesmo formada e tendo inúmeras possibilidades de trabalho, o meu maior medo é ter que voltar a ser doméstica”, conta. “Eu queria estudar e uma das patroas falava que se a minha mãe e minha avó foram [domésticas], eu tinha que ser feliz com aquilo. Não acredito nisso, mas o medo ainda toma conta em alguns momentos.” Contrariando a previsão da ex-patroa, Preta Rara se formou em História pela Universidade Católica de Santos em 2011 e lecionou nos seis anos seguintes em um colégio particular de periferia da cidade. Dividia-se entre os palcos e a sala de aula – só ela tomava conta de oito turmas de alunos entre 12 e 16 anos. “Eles falavam que os amigos não acreditavam que eu era a professora deles. Na saída da escola sempre tinha um primo, um amigo que ia lá para ver se era verdade”, lembra. A falta que sente do contato diário com os adolescentes é suprida pelas oficinas de rima que ministra em Fábricas de Cultura e em unidades da Fundação Casa. Neste ano, a artista espera consolidar uma agenda de shows na capital – seu primeiro disco solo, Audácia, foi lançado em outubro de 2015. Além disso, quer continuar o projeto do livro Eu, empregada doméstica, no qual pretende misturar suas histórias pessoais com as de sua avó, sua mãe e os relatosque recebe por meio da página. Também estuda lançar, de forma independente, uma marca de roupas plus size, e promover uma Ocupação GGG (encontro de mulheres gordas) na capital. Neste semestre, no entanto, as energias estão voltadas para o lançamento de sua websérie de dez episódios, Nossa voz ecoa. Com tantos projetos, a intenção de Preta Rara é “colocar o dedo na ferida”. “A partir do momento em que as pretas conseguem ingressar na universidade e publicar na internet que não é normal a amiga te chamar de macaquinha ou uma pessoa branca encostar no seu cabelo e te chamar de exótica, houve um boom”, afirma. “Hoje fico feliz de ver meninas de 13 anos já falando de cabelo, de racismo reverso, de aceitação. Nessa idade eu estava chorando, com raiva das pessoas que me julgavam pela minha cor, pelo meu peso.” Preta Rara integra uma nova geração de mulheres negras que faz barulho – na internet, nos palcos e nas ruas – diante de qualquer ranço de preconceito, seja de gênero, raça ou classe. É o que ela chama de geração incômodo: gente que está ali para incomodar com a sua fala, com seu estilo, com seu jeito de pensar, de se vestir, e com isso provocar algum tipo de mudança, por menor que seja, na cabeça das pessoas. “O incômodo é por onde eu passo: quando estou com o cabelo azul, vermelho, nas minhas ideias, no meu rap, no meu jeito de mostrar que lugar de mulher é onde ela quiser”, diz. “Mas eu falo e jogo o incômodo de volta. Não fica mais comigo.” dossiê Arte e psicanálise Apresentação GILSON IANNINI A primeira pergunta que precisa ser feita, a fim de abordar o problema das relações entre psicanálise e a arte, é a seguinte: com que direito, ou a que título, ou ainda com que credenciais a psicanálise se investe da tarefa de emitir juízos sobre a arte e sobre os artistas? Esta primeira pergunta imediatamente se desdobra em outras. Até que ponto uma teoria do inconsciente psíquico está em condições de extrapolar seu campo primeiro de aplicação e se enveredar por teatros, museus, salas de concerto, telas, esculturas, instalações etc.? Sendo uma disciplina eminentemente clínica, não corremos o risco de transformar a psicanálise em uma visão de mundo, em um sistema totalizante capaz de decifrar o sentido de tudo o que se apresente diante do olhar suspeito e da escuta atenta do psicanalista? São bem conhecidas as incursões de Freud nos diversos domínios da arte, desde o teatro e a literatura até as artes plásticas. Comecemos por seu interesse pela tragédia clássica grega. Um conceito como o de “complexo de Édipo”, que qualquer pessoa medianamente informada sabe mais ou menos o que quer dizer, é o resultado mais evidente da aproximação entre a psicanálise e o teatro grego. Mas trata-se muito mais de um empréstimo da arte à psicanálise, e não do contrário. Trata-se muito mais de fornecer coordenadas acerca da relação do desejo às leis, do que de analisar a tragédia de Édipo sobre o prisma dos efeitos poéticos que ela ocasiona. No terreno da literatura de língua alemã, no qual Freud privilegia Friedrich Schiller, Goethe e Heinrich Heine como interlocutores de maior monta, ocorre algo dessa natureza. Em muitos momentos, trechos desses autores ilustram conceitos e/ou arejam a argumentação às vezes demasiado árida. Mas, sobretudo, cumprem a importante função de fornecer um ponto de apoio quando as longas cadeias de raciocínio parecem se esgotar diante de impasses teóricos e conceituais. Só isso já seria suficiente para demonstrar a importância prática que Freud conferia à arte e à autoridade dos artistas. Além disso, temos, ainda, as conhecidas incursões de Freud na psicologia de alguns artistas proeminentes, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Goethe, Jensen e Dostoiévski. Em geral, estes textos procuram desvendar mecanismos psíquicos e pulsionais subjacentes à criação artística. Muitos autores, como Ernst Gombrich, assinalaram a “disposição racionalista e analítica” de Freud, que parece se interpor como uma espécie de anteparo entre ele e a obra em questão, fazendo ressaltar, em primeiro lugar, uma análise que privilegiaria o conteúdo das obras, muito mais do que aspectos formais ou mesmo materiais. Foi assim que Gombrich apontou os limites da abordagem freudiana das obras de arte, levando consigo uma miríade de leitores e críticos de Freud. Essa leitura, no entanto, se mostra parcial, como recentemente demonstra Ernani Chaves em seu primoroso prefácio de Arte, literatura e os artistas, primeira coletânea dos textos estéticos de Freud publicada no Brasil. Quanto às soluções que determinados sujeitos dão aos seus conflitos psíquicos pela via da sublimação, o que interessa investigar é justamente o que faz com que determinados objetos estéticos se prestem melhor a estas soluções. É por isso que François Regnault, um especialista em estética lacaniana, tem razão ao afirmar que Freud tenha conseguido evitar, pelo menos no essencial, a “reduzir a arte a uma economia dos afetos”. O conceito central da estética freudiana é a sublimação. Nem perversão, nem recalque: eis o espaço tênue em que a sublimação se vê encantoada. Sua principal característica seria a eleição de alvos dessexualizados para satisfação de moções pulsionais originariamente sexuais. Ou seja, a satisfação é obtida através do desvio da pulsão para objetos “culturais”. Mas este desvio ocorreria sem a participação do recalcamento e, portanto, este não implicaria uma formação substitutiva, um sintoma clássico. Isto é, embora o objeto de satisfação seja não sexual – um objeto culturalmente valorizado –, a forma da satisfação e da produção de prazer conservaria o modelo de satisfação próprio à satisfação sexual, ao deixar quase intacta a excitação originária. Por isso, a enorme atratividade da arte e o fascínio exercido pelos artistas. Lembremos a célebre analogia proposta por Freud em seu Totem e tabu, de 1913: “uma histeria é imagem distorcida de uma obra de arte, uma neurose obsessiva, uma imagem distorcida de uma religião, e uma mania paranoica, uma imagem distorcida de um sistema filosófico”. O que Freud sublinha é exatamente o caráter associal da neurose, o que fornece um contraponto perfeito à arte vista como produto social. Nesse sentido, fica mais clara a oposição entre o recalcamento e a sublimação do ponto de vista dos modos de interação entre o sujeito e a cultura. Não se trata, pois, de sistematizar uma teoria freudiana da arte, mas de como determinados modos de subjetivação podem ser pensados a partir da desfiguração de um modelo emprestado das produções sociais. Por seu turno, Lacan acrescentaria que o pano de fundo é sempre o modo como os saberes lidam com o vazio. O vazio aqui é tomado como a impossibilidade de encontrar uma representação simbólica ou pictórica que dê conta da radical singularidade dos desejos inconscientes. Diante do vazio deixado pela impossibilidade de dar sentido à frustração do desejo, à falta de um objeto adequado à fantasia, três saídas se apresentam: a religião, a ciência e a arte. Nesse contexto, Lacan introduz o problema do vazio como uma questão fundamental no tratamento da problemática da sublimação. Pensar a sublimação como um modo de satisfação libidinal caracterizado por uma “conciliação fácil entre o indivíduo e o coletivo” parece a Lacan uma verdadeira “cilada”. É esta a razão que o leva a denunciar o engodo de situar a sublimação na vertente do narcisismo. Pensar a sublimação segundo o modelo do narcisismo implica tomar o objeto como algo “perpetuamente intercambiável com o amor que o sujeito tem por sua própria imagem”. Por essa razão, a sublimação lacaniana não oferece ao sujeito um horizonte de reconciliação qualquer com o desejo cujo objeto lhe escapa. De fato, poetas, pintores, músicos, artistas em geral, não menos do que não artistas, se matam, se automutilam, se deixam devastar pelo gozo até a morte. O problema da sublimação vai apontar a diferença entre o objeto narcisicamente investido e a Coisa, que é o nome do objeto quando este não mais tem nome, nem imagem. Assim, aestética da psicanálise, ou, mais precisamente, o domínio de reflexões inspiradas no dispositivo conceitual da psicanálise que se volta para questões relativas à arte, não é uma aplicação da psicanálise à arte, mas, ao contrário, uma aplicação da arte à psicanálise, conforme insiste Regnault. Não se trata de submeter à interpretação analítica a obra ou o artista, colocando a arte no lugar de objeto ou o artista no divã. Trata-se, diferentemente, de recolher, no campo freudiano, os efeitos de verdade ocasionados pela simples existência de determinadas obras. Os textos reunidos neste Dossiê buscam, cada um a seu modo, superar a lógica instrumental contida na fórmula “x aplicado a y”, como nos alerta Célio Garcia com as ideias de “interface” e de “psicanálise implicada”. Uma estética à lacaniana seria uma estética que se pergunta por que certos objetos se prestam melhor a essa inadequação com a ordem simbólica. A arte, principalmente certa vertente da arte contemporânea, seria então figura de certo excesso de real − que desnuda a precariedade do simbólico − espécie de ruína, de catástrofe das imagens da reconciliação. O caminho que vai da imagem simbólica ao objeto retirado da imagem, isto é, ao objeto extraído de toda relação de duplicidade, caracterizaria, na visão deste autor, a arte do século 20. E nesse sentido, Judy Wajcman tem razão em afirmar que “Lacan é contemporâneo desta arte do século 20, que se singulariza por enquadrar o objeto como singularidade absoluta, sem duplo e sem imagem”. Nisso residiria a corresponsabilidade entre a arte e a psicanálise. O presente Dossiê é composto de quatro ensaios. O primeiro deles, de Ernani Chaves, visa situar algumas balizas freudianas para a discussão das relações entre arte e psicanálise. Em seguida, três ensaios abordam a arte contemporânea. Tania Rivera trabalha uma obra de Helio Oiticica sob a perspectiva não hierárquica das relações entre arte e psicanálise. Em seguida, Edson de Sousa aborda a obra de Evgen Bavcar, sublinhando o caráter sempre utópico da criação artística. Finalmente, a complexidade da “arte pobre” do artista italiano Giuseppe Penone é problematizada por Guilherme Massara e Marina Dayrrel. A criação artística como metamorfose ERNANI CHAVES Os textos de Freud sobre estética foram, em geral, muito criticados. Neles, denunciava-se o fato de que as obras de arte eram interpretadas como meras projeções da vida de seus autores. Com isso, Freud ignorava ou, no mínimo, não levava em consideração a autonomia das obras, o seu caráter propriamente estético ou ainda a sua forma. Mesmo entre os psicanalistas, essa desconfiança é muito forte. Entretanto, uma leitura mais atenta e cuidadosa desses textos, favorecidos que somos pela distância histórica que nos separa do seu primeiro impacto, pode nos abrir novas possibilidades de leitura. Não se trata, evidentemente, de ignorar as críticas e mesmo de considerá- las pertinentes e sim ao contrário, de tentar entender o que está em jogo neles, não apenas a partir de uma análise interna à obra de Freud, mas também de indicar o diálogo que eles estabelecem com a tradição dos estudos de estética e, ao mesmo tempo, com questões e problemas colocados na sua própria época. Com isso, retiram-se esses textos de seu lugar secundário, como se eles fossem um subproduto no interior do pensamento de Freud, um exercício de diletantismo por parte dele. Ao contrário, é preciso jogar Freud contra Freud, ou seja, lê-los em grande parte a contrapelo das posições explícitas que o próprio Freud tomou em relação ao seu interesse por arte. Em outras palavras, é preciso desconfiar de Freud ou, no mínimo, não tomar muitas de suas declarações como uma confissão de humildade ou do reconhecimento, puro e simples, de certa incompetência que ele próprio diz ter no trato com esses assuntos. Enfim, trata-se de tomar essas declarações como um artifício retórico, que visa, muito provavelmente, despistar o leitor das questões técnicas, para encaminhá-lo rumo ao que para Freud realmente interessava. Tomo como exemplo o célebre primeiro parágrafo de Moisés de Michelangelo, de 1913, no qual Freud como que se desculpa pelo fato de ousar escrever sobre o artista. Ele afirma, logo no início, que não é “nenhum conhecedor de arte, e sim um leigo”, que possui uma evidente limitação, qual seja, a de que seu interesse é muito mais pelo “conteúdo de uma obra de arte” do que por suas “qualidades formais e técnicas”, embora reconheça que é sobre essas últimas que o próprio artista atribui “valor” a sua obra. Por fim, ápice de uma pretensa humildade, reconhece que lhe faltam condições para um “entendimento correto” das obras, esperando com isso “assegurar um julgamento indulgente” por parte do leitor – muito especialmente por parte dos especialistas. O “acanhamento” de Freud devido a essas limitações o teria, inclusive, levado a publicar o texto anonimamente. Ora, o leitor atento certamente irá reconhecer que esse primeiro parágrafo não parece inteiramente verdadeiro. Não só ele é resultado de uma extensa e erudita pesquisa bibliográfica, como também do estudo in loco da obra analisada, desde sua primeira viagem a Roma, em 1901, ou seja, imediatamente após a publicação da Interpretação dos sonhos, em 1899. Esses dois aspectos reunidos acabam por problematizar a afirmação de Freud de que seu interesse se limita aos “efeitos” das obras e não à sua forma. Pois é justamente para sustentar sua argumentação, a contrapelo de uma série de interpretações às quais ele se refere, que se fez necessária a atenção à forma. Sem essa atenção, sem a minuciosa descrição da apresentação física do profeta, sua atitude, do ponto de vista psíquico, não poderia ser compreendida. Se Michelangelo pode, aos olhos de Freud, contrariar o relato bíblico e não se deixar sucumbir à ira causada pela visão dos hebreus adorando o bezerro de ouro, essa conclusão só é possível pela análise atenta e minuciosa dos inúmeros detalhes da composição formal da escultura: da posição das mãos – do modo como a mão direita agarra as Tábuas da Lei e a esquerda se crava na barba – até a posição dos pés, um aspecto fundamental. O pé esquerdo levemente levantado significaria que Moisés intentou um gesto, o de se atirar contra seu próprio povo para aplicar-lhe um castigo levando consigo as Tábuas da Lei, algo que ele não completou, uma vez que o pé direito continuou solidamente plantado no chão. Em outras palavras, a tese central de Freud, segundo a qual o conteúdo da obra, qual seja, a dominação da ira por parte de Moisés – este nem quebra as Tábuas da Lei e nem está em pé, conforme diz o relato bíblico –, expressaria a dominação da própria ira de Michelangelo diante da autoridade e das exigências do Papa Júlio II, para cujo sepulcro a escultura tinha sido encomendada. Assim, a cena retratada na escultura, na qual a ira contida de Michelangelo é transportada para a de Moisés, só faz sentido por meio de uma detida e minuciosa análise de seus elementos formais e técnicos. Dois outros aspectos presentes nesse texto devem ser destacados, uma vez que eles contrariam, em larga medida, os clichês usuais. Em primeiro lugar, a inserção histórica da obra e, portanto, do próprio processo criativo do artista na história. Ou seja, não é possível compreender a atitude transgressora de Michelangelo sem o inserir em sua época, a Renascença. Michelangelo contraria o cânone, que mesmo na Renascença não permitia alterações no relato bíblico. Por sua vez, se entre Michelangelo e Júlio II se estabelece uma relação tensa e conflituosa, é porque se trata de uma relação marcada pelo modo como uma instituição, a do “mecenato”, nascida pela organização, por Caio Mecenas, de um círculo de artistas em volta do Imperador Augusto, poucos anos antes do início da assim chamada “era cristã”, foi reconfigurada pela Renascença. Assim, a relação entre o artista e o papa expressa o modo pelo qual a atividade do artista começa a interagir com as novas formas de significação do trabalho em geral, tal como elas começam