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Cult #225 Michel Foucault


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Sumário
coluna
Francisco Bosco
Marcia Tiburi
Bianca Santana
Vladimir Safatle
especial Michel Foucault
O trabalho da memória
Casa aberta
No táxi com Michel Foucault
entrevista Roberto Machado
Risos e sorrisos de Michel Foucault
perfil Preta Rara
dossiê Arte e psicanálise
Apresentação
A criação artística como metamorfose
O avesso do imaginário
O olhar estilete de Evgen Bavcar
A verdade da arte provém do real
livros
O blefe dos blefes
Na poesia, a pulsão do nome
Uma impressão de Simone de Beauvoir
colaboraram nesta edição
coluna
Variações sobre o narcisismo
FRANCISCO BOSCO
“Me decepcionei com você.” A esse comentário, a única resposta
decente é: “Problema é seu”. É preciso estar atento contra as
tentativas de controle pelo narcisismo. Funciona assim: a pessoa
enaltece em você qualidades e condutas que interessam ao desejo
dela. E assim espera que você se comporte da maneira que, no fundo,
é vantajosa para ela. Tenta prendê-lo por uma imagem. Mas essa
imagem de você foi feita à semelhança do desejo dela, e não
necessariamente do seu. Então, se você age em desacordo com essa
imagem, vem a moralização vitimada: “Me decepcionei com você”.
Pois bem: “Problema é seu”.
Quem chama de “pedante” alguém que escreve “difícil” (difícil para
quem?) mobiliza um álibi moral para uma reação, no fundo,
imaginária: sente-se diminuído porque sua incompreensão revela sua
ignorância – e procura recalcar isso projetando no outro seu
sentimento de inferioridade. De resto, é absurdo moralizar o que não
se compreende.
“Afinal, o que as mulheres querem?” Como se se soubesse o que
querem os homens! (Na verdade, trata-se de controle patriarcal por
meio de certa imagem do desejo – estável, previsível, domesticável –
que a alguns homens interessa que as mulheres realizem.)
O contentamento é narcísico,
a alegria é impessoal.
A tendência a torcer pelo mais fraco tem duas explicações, uma via
psicanálise, outra via teoria da informação: escolhe-se o pior por
compensação narcísica (sentir-se menos inferior por meio do
rebaixamento do superior) e por ganho informacional (quanto mais
imprevisto o resultado, maior a informação).
Uma das provas da natureza narcísica do ciúme é quando se fica
incomodado por causa da mera manifestação do desejo de um terceiro
pela pessoa que se ama. Basta que ela seja desejada explicitamente
para nos sentirmos não reconhecidos por quem a deseja. Produz
menos ciúme, pois, quem quer que seja o terceiro, não nos será
imaginariamente tão importante quanto a pessoa que amamos. Não
ocupará tanto o centro de nossa autoimagem. Mas incomoda, numa
escala progressiva que vai do totalmente estranho ao amigo mais
íntimo.
Malhar, em sua dimensão estética, é a maneira mais servil de obter
reconhecimento: trabalha-se o corpo para o outro, sem produzir
qualquer riqueza subjetiva para si.
Definição do neurótico benemérito: aquele que se ofende com o
desejo do outro. (Cena de um filme de Woody Allen: “Como assim?!
Você mal me conhece e tá me propondo transar com você? Quem
você pensa que é?!” Naturalmente, o desejo do outro só provoca
reações ofendidas em quem de repente se vê obrigado a reconhecer o
próprio desejo.)
Por que o que hoje se chama de “culto ao corpo” é sobretudo um
culto ao narcisismo? O verdadeiro culto ao corpo consiste em
explorar e realizar suas infinitas e desconhecidas potências. O corpo
belo é aquele que apresenta os traços dessa realização (por exemplo,
o corpo rijo e flexível de um bailarino). Já o “corpo belo” dos
spinnings e supinos é, ao contrário, resultado do corpo mecanizado,
reduzido em suas possibilidades. Aparentemente, são corpos
semelhantes (definidos e tonificados), mas as práticas de que resultam
são opostas. Na primeira, o fundamento da beleza decorre de uma
ética da existência: tornar o corpo liberado. A forma desse corpo
resulta do trabalho enquanto autorrealização. Já a forma do outro
corpo resulta do trabalho repetitivo e alienado como o labor
industrial, e não por acaso se costuma chamá-lo de “corpo
trabalhado”. Nele, a ética liberadora é abolida em nome de sua
finalidade meramente visível, fenomenológica (abdomes definidos,
glúteos torneados) e assim a beleza se repete como farsa.
A autocrítica é uma forma insuspeitada do narcisismo. Nela não há
humildade: quem rebaixa o eu é ainda o eu. (Autocrítica ostentação:
“Vejam como sou humilde”, “Vejam como me rebaixo”, isto é,
“Vejam como tenho a grandeza de me rebaixar publicamente”.)
Balança da separação: quem dá um pé na bunda arca com a angústia
da decisão, a responsabilidade e a culpa (além das ações em baixa no
caso de reconciliação) – quem leva o pé na bunda leva um tiro no
coração do narcisismo (mas também a liberdade que mora no coração
do real).
Diferentemente do que se poderia pensar a princípio, um ego forte
não é um ego sólido. Ao contrário, os sujeitos que têm uma relação
mais segura com a sua autoimagem são aqueles que a têm leve,
arejada, inconsistente, portanto frágil, de certo modo. Lembremos que
estereótipo vem do grego stereos, que quer dizer sólido. Um ego
sólido é vulnerável porque depende todo o tempo da confirmação de
sua autoimagem. Um ego frágil é, ao contrário, forte, porque não se
abala facilmente com os reflexos distorcidos que o outro lhe
apresenta. O maior atestado de saúde imaginária é apresentado pelas
pessoas que podem rir de si mesmas. Como diria Warhol: I never fall
apart, because I never fall together.
A diferença entre o narcisismo e as críticas que lhe são endereçadas é
que estas últimas são, além de também narcisistas, ressentidas.
“Inbox pra vc”, ou: voyeurismo às avessas. Avisa-se a todos que há
um segredo, mas que eles não podem ouvir. É uma manipulação do
privado para fins públicos; da intimidade para fins de exclusão; do
invisível para fins de inveja.
A diferença entre o competitivo e o invejoso é que o primeiro quer
superar o outro, enquanto o segundo quer anular o outro. O
competitivo não toca, imaginariamente, no outro. Sua relação é
consigo mesmo, apenas se mede por meio do outro. Já o invejoso
deseja o lugar do outro, e não um lugar melhor do que o do outro. O
competitivo deseja que o outro exista. O invejoso deseja que não
exista. Por isso aquele é vital, e esse é mortífero.
Quando nos separamos, parece a princípio que perde o sentido a
disputa pela narrativa (“Não foi assim que aconteceu”, “Você
também errou” etc.). Disputá-la, debatê-la tem um propósito no
interior da construção da relação amorosa, onde a compreensão
correta serve para consertar falhas e aprimorar processos. Entretanto,
testemunhamos que isso não acontece. Morre a relação, sobrevivem
por algum tempo as disputas. É que, mais profundamente, sua
natureza é e sempre foi a de uma luta narcísica cega e sem finalidade
objetiva, a rinha erística do amor, cujo sentido no limite é vencer a
queda de braço do reconhecimento. Essa luta só termina quando o
outro se torna irrelevante na economia do reconhecimento. 
coluna
PT como metáfora
MARCIA TIBURI
Em Doença como metáfora, Susan Sontag fala sobre a tuberculose
e o câncer que, na condição de metáforas fantasiosas e punitivas,
levaram a um plus de sofrimento relativamente ao que, de fato, estava
em jogo. Mais tarde, ela escreveu sobre a aids no momento em que o
desconhecimento da doença criou ao seu redor uma cultura do medo.
Criticando a ideia de doença como metáfora, ela nos conduz ao
tema da doença como experiência comum à vida. Fato que envolve o
encontro entre natureza e cultura, a doença tornou-se uma espécie de
marcador de opressão. Em seu livro, Sontag quer devolver à doença a
sua dignidade como parte da vida para além do caráter lúgubre com
que é vista e para além da espetacularidade com que é tratada pelo
todo da cultura.
Metáforas são expressões criadas com intenções de significar,
sinalizar, demarcar, definir, orientar perspectivas. Há nelas um
elemento interpretativo, mas há também muito de projeção moral. A
construção da metáfora se dá em condições históricas, mas passa a ter
validade de natureza. Com uma metáfora pode-setentar explicar o
mundo, embora a expressão metafórica sirva mais à compreensão do
que à explicação que sempre exige provas e está inscrita no campo
das teorias e práticas científicas.
O MAL RADICAL
Nesse pequeno artigo eu gostaria de contribuir com uma reflexão
sobre a criação de uma nova metáfora sobrecarregada de elementos
negativos que tem sido um recurso expressivo para o mal em nossa
cultura. Refiro-me ao PT como metáfora.
PT tornou-se entre nós um signo para designar o mal. A frase “a
culpa é do PT” poderia ser analisada como uma metonímia, se
estivesse em jogo apenas o uso da parte pelo todo. A metáfora,
contudo, está dada no momento em que o signo “PT” vem a substituir
o governo ou até mesmo o Estado. Antigamente dizíamos “a culpa é
do governo” sem que se pudesse evidenciar, nessa frase, a
complexidade da ideia de culpa em sua associação com a complexa
questão de governo.
“A culpa é do PT” e outras frases tais como “isso é coisa de PT”,
usadas em profusão, nos mostram algo importante em nossa cultura
desde que o mesmo tipo de enunciado não foi usado tendo em vista
nenhum outro partido ou sigla. PT é a sigla de um partido, mas
tornou-se, em uma operação sociolinguística, o signo do mal. Nesse
contexto, a questão da corrupção, comum a todos os partidos e até à
própria cultura, passa a ser usada no contexto da opinião pública
como se fosse uma prática “petista” e não de todos os partidos e da
maioria dos cidadãos.
Para muitos o ódio ao PT corresponde ao velho ódio que elites têm
de classes subalternas ou trabalhadoras. Na forma como esse ódio se
alastra por meio, inclusive, dessa operação metafórica, até mesmo
quem não pertence a elite alguma acaba por experimentá-lo, já que os
afetos são psicologicamente contagiosos. Esse ódio seria bem
diferente do que se chama de antipetismo, misto de crítica e
ressentimento, de oposição, seja oportunista ou fundamentada. O ódio
ao PT seria fruto de algo muito anterior ao PT. No nosso caso
brasileiro, poderíamos falar de um ódio colonial.
Independentemente do que o Partido dos Trabalhadores possa ou
não ter feito de bom ou de mau em termos políticos, impressiona o
uso moralista que sua sigla, transformada em signo, assumiu entre
nós.
Um problema continua nos obrigando a pensar. A metáfora é uma
fala indireta que tanto oculta quanto mostra alguma coisa que não
podemos encarar. Em nosso momento histórico, cabe perguntar o que
realmente estamos querendo manifestar com cada ódio que se
expressa relativamente a esse ou outro signo. O quanto as metáforas
falam mais da sociedade que as inventa do que do “mal” que querem
afirmar, é um problema mais do que político. 
coluna
Quem lava sua privada?
BIANCA SANTANA
Se a resposta para a pergunta do título for o nome de outra mulher,
aquela com quem você compartilha a casa, ou uma diarista,
empregada doméstica – provavelmente negra, certamente pobre – te
dedico este texto, minha primeira coluna na Revista CULT. Não o
faço como provocação! Bem sei como são bacanas as pessoas que
leem esta revista. Não quero te acusar de nada, porque, no caso de
uma trabalhadora doméstica, sei que você paga um bom salário, com
todos os benefícios, e ainda doa roupas usadas à mulher por quem
nutre respeito e carinho. Mesmo assim, gostaria de propor uma
reflexão. Porque sua ação quanto aos afazeres domésticos,
independentemente do que a motiva, é também social e reverbera
uma história. Uma história de desigualdade, machismo e racismo.
O recenseamento do Império do Brasil de 1872, dezesseis anos
antes da Lei Áurea, indicava que 46,67% da população escravizada
na cidade do Rio de Janeiro atuava nos serviços domésticos; 70%
dentre as mulheres. A abolição não veio acompanhada por políticas
reparatórias ou inclusivas. Não à toa, mais de cem anos depois da
abolição, em 1998, 48% do total de mulheres negras trabalhadoras no
Brasil eram domésticas. Em 2008, 22%; em 2014, 17%. Uma questão
de raça. Mas não só.
Seria impossível aprofundar neste texto a complexidade das
relações, marcadas por abusos e também afetos, quando há uma
pessoa assalariada na intimidade da casa. Recomendo uma visita à
página do Facebook “Eu Empregada Doméstica”, mantida pela rapper
Preta Rara, Joyce Fernandes, desde julho de 2016, depois da grande
repercussão de um relato publicado por ela: “Joyce, você foi
contratada pra cozinhar pra minha família e não pra vc. Por favor,
traga marmita e um par de talheres e se possível coma antes de nós na
mesa da cozinha; Não é por nada tá filha, só pra gente manter a
ordem da casa” Patroa Jussara, em Santos 2009 – meu último
emprego como doméstica”.
A hashtag utilizada por Joyce, #EuEmpregadaDoméstica, deu
origem à página que republica histórias de mulheres e anúncios
abusivos que circulam por todo o país. Mesmo depois da PEC das
Domésticas, que, graças à luta organizada, garante direitos a quem
trabalha mais de dois dias na semana em uma mesma casa, como
jornada de 8 horas diárias e 44 semanais, férias remuneradas e horas
extras. Direitos adquiridos somente em 2013, mas que não valem para
as diaristas. Estas, segundo o Dieese, eram 30,2% dentre as
domésticas em 1992, passaram a ser 39,5% em 2015. Ganham mais
por dia, trabalhando em 4, 5, algumas vezes 6 casas diferentes por
semana, mas sem carteira assinada, garantia de salário mínimo, 13º,
repouso semanal remunerado, férias, aviso prévio, licença-
maternidade, vale-transporte ou jornada máxima. Nenhum direito
trabalhista, em 2017. A realidade que o governo golpista quer ampliar
a todos.
Por mais que haja especificidades nas condições de vida de negras
ou brancas, pobres ou ricas, as que têm empregadas ou as que são
empregadas, as mulheres, no geral, são responsáveis pelo trabalho
doméstico e sofrem com a dupla jornada, como denuncia o
movimento feminista há décadas. Segundo dados da Pnad de 2009, os
homens sem filhos dedicavam 11,7 horas semanais a afazeres
domésticos, enquanto as mulheres, cercade 26 horas. No caso de
terem filhos, as mulheres chegavam a despender 33,8 horas semanais
nestes afazeres, enquanto os homens dedicavam 10,3 horas. Uma
questão de gênero.
“Mas o que sugere, então?”, você pode me perguntar. “Sabe
quantas horas por dia trabalho fora de casa? A mulher com quem vivo
não é melhor e mais rápida que eu nos afazeres domésticos? E as
negras pobres ficariam sem emprego?” Não tenho respostas às suas
perguntas. Nem vai ajudar dizer que tenho lavado minha própria
privada, que muitas vezes penso em desistir e voltar a reproduzir as
relações opressivas do trabalho doméstico remunerado na minha casa.
Mas é urgente que, como sociedade, encaremos estas questões em
busca de justiça social. O machismo e o racismo estão, também,
dentro das nossas casas. E já passou da hora de compreendermos
como os problemas sociais macro são produzidos, também, na vida
cotidiana.
https://www.facebook.com/hashtag/euempregadadom%C3%A9stica?source=embed
O livro Revolution at point zero: housework, reproduction and
feminist struggle, de Silvia Federici, publicado em 2012 pela
Autonomedia, oferece pistas importantes para esboçarmos respostas,
e ainda mais perguntas. Ali estão reunidos textos da autora sobre
trabalho doméstico e de cuidados, escritos desde 1975 até 2010. A
sequência dos textos torna evidente o percurso intelectual de Silvia:
de problematizar o trabalho doméstico não remunerado e se engajar
na proposta de remuneração destas tarefas, para que as mulheres
pudessem ser independentes economicamente dos homens, à
percepção de que o feminismo não poderia estar reduzido a uma
agenda neoliberal que, ao promover autonomia em relação aos
homens, gerasse dependência do capital. Silvia passa, então, a
investigar aquilo que tem sido chamado de commons, o comum.
Segundo a autora: “que começam por novas formas de reprodução
coletiva e pelo enfrentamento das divisões geradas entre nós com
base na raça, no gênero, na idade e na origem geográfica.”
Reprodução, na economia feminista, diz respeito a todo o trabalho
necessário a reproduzir a vida, como cozinhar, lavar, limpar e cuidar.Tantas vezes percebido como trabalho repetitivo, improdutivo,
invisível, exaustivo.
Foi assim também que Silvia percebeu o trabalho doméstico e de
cuidados, por décadas. Até se reconectar com memórias de infância,
dos momentos em que ajudava a mãe no preparo de massas, molhos e
licores, quando aconteceram conversas importantes que a
fortaleceram por toda a vida e permitiram outra percepção: “(...) é
pelas atividades cotidianas que produzimos nossa existência e
podemos desenvolver nossa capacidade de cooperar, e não somente
resistir à desumanização, como também aprender a reconstruir o
mundo como um espaço de criação, criatividade e cuidado”. É isso
mesmo. Lavar a privada poderia levar, então, a um caminho de
transformação. À revolução, a partir do ponto zero.
Duas experiências alteraram a perspectiva teórica e política de
Silvia, segundo ela mesma: estudar a história das mulheres na Europa
durante a transição para o capitalismo, o que resultou no livro
Calibán e a bruxa: mulheres, o corpo e acumulação primitiva,
recentemente traduzido para a língua portuguesa, e ter sido professora
visitante na University of Port Harcourt, na Nigéria, onde teve
contato com modos de vida não capitalistas resistindo a intervenções
do Banco Mundial e do FMI. “Revisitar o início do capitalismo
também ampliou meu conceito de reprodução do trabalho doméstico
para a agricultura de subsistência, ‘abrindo a porta’ da cozinha para o
jardim e a terra.” O que leva a outra importante pergunta: quem
produz sua comida? Atenção! A resposta, se passar por determinadas
empresas de alimentos, pode ter relação com o golpe em curso no
Brasil. 
coluna
Governar é fazer desaparecer
VLADIMIR SAFATLE
O Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência. Nunca
entenderemos o Brasil se não compreendermos o tipo de violência
que funda seu Estado. Pois entender como o Estado brasileiro
funciona é entender como ele administra o desaparecimento e o
direito de matar. Esta é sua verdadeira forma de governo, uma
atualização do secular poder soberano e seu direito de vida e morte.
Com uma mão, ele massacra parte da população através de seu
aparato policial, a encarcera em um espaço de não direito, permite a
criação de zonas urbanas e rurais de anomia nas quais a violência e a
morte são invisíveis, nas quais os corpos desaparecem sem deixar
restos. Sobre esta parte da população, o Estado não tem apenas o
direito de vida e morte, ele tem o direito de desaparecimento. Porque
o eixo fundamental do processo de gestão é gerir a invisibilidade.
Sobre esta violência, não haverá marcas, não haverá nomes, não
haverá imagens, não haverá afeto nem identificação.
Com outra mão, o Estado brasileiro promete a uma parcela
amedrontada reunida em condomínios fechados que ele será ainda
mais duro contra o crime. Assim, governa-se gerindo a invisibilidade
e alimentando uma dinâmica de guerra civil. Alguns países criam
unidade através da guerra e da constituição do inimigo externo. O
Brasil cria coesão através da constituição de inimigos internos. Por
isso, o Brasil não precisa de inimigos. Desde o tempo em que ele se
constituiu através de genocídios indígenas nunca reconhecidos
enquanto tais, ficou claro que ele próprio já era o seu pior inimigo.
Esta lógica encontrou sua forma mais bem-acabada de governo na
ditadura militar (1964-1984). Pois a ditadura militar brasileira foi a
consolidação de um modelo de gestão sempre presente na história
nacional, mas que a partir de então ganharia estruturas e aparatos
institucionais que se mostraram invulneráveis, mesmo em tempo de
“redemocratização”. Este é um dos pontos mais impressionantes dos
últimos trinta anos no Brasil, a saber, a maneira como suas políticas
de desaparecimento permaneceram intocadas, seja sob os governos
FHC, seja sob os governos Lula e Dilma. Não foi apenas uma lógica
de “segurança nacional” que ficou imune a toda revisão. Foi a
natureza do Estado brasileiro e de seu direito de vida e morte sobre a
população que pairou para além das modificações político-eleitorais.
Os governos passaram, mas a gestão do desaparecimento ficou.
É importante lembrar-se disso mais uma vez, porque nossa
“redemocratização”, a constituição do que chamamos de “Nova
República”, foi baseada na tese de que o esquecimento dos
“excessos” do passado seria o preço doloroso, mas necessário, a ser
pago para garantir a estabilidade democrática eliminando o trauma da
violência estatal. Uma violência que aparentemente não teria
recorrido à morte sistemática, haja vista os números menores de
mortos e desaparecidos se comparados a outras ditaduras latino-
americanas. No entanto, esses números escondem uma violência
ainda mais brutal. Pois não significa nada dizer que a ditadura
brasileira teria matado menos do que vários de seus congêneres
latino-americanos. Ela matou menos porque havia alcançado um grau
de violência que fez deste tipo de brutalidade algo desnecessário, já
que ela foi capaz de aprimorar um regime de violência que outras
nem sequer imaginaram ser possível: a violência da certeza da
onipotência de um Estado que administra a morte enquanto assina
tratados internacionais contra a tortura, que apaga os rastos, que opera
por desaparecimento e continuará a operar, seja sob uma ditadura,
seja sob uma “democracia”. Uma estrutura imóvel no tempo,
resistente a toda e qualquer mudança, indestrutível. Um Leviatã
descontrolado sob a capa do Estado de direito.
O resultado é inapelável. Nenhum outro país protegeu tanto seus
torturadores, permitiu tanto que as forças armadas conservassem seu
discurso de salvação através do porrete, integrou tanto o núcleo civil
da ditadura aos novos tempos de redemocratização quanto o Brasil.
Há de se lembrar, por exemplo, que o Brasil é o único país da
América Latina onde os casos de tortura aumentaram em relação à
ditadura militar. Prova maior da generalização de um modus operandi
de exceção agora aplicado de maneira extensiva à gestão social da
população. Por isso, atualmente, nenhum outro país latino-americano
teve um colapso tão brutal de sua “democracia” como o nosso, com
uma polícia militar que age como manada solta de porcos contra a
própria população que paga seus salários. Nenhum outro país latino-
americano precisa conviver com um setor protofascista da classe
média a clamar nas ruas por “intervenção militar”, a ponto de invadir
o plenário do Congresso Nacional com suas bandeiras. Tudo isto
demonstra algo claro: a ditadura brasileira venceu. Como um corpo
latente sob um corpo manifesto, ela se conservou e a qualquer
momento pode novamente emergir. 
especial Michel Foucault
O trabalho da memória
ERNANI CHAVES
Do vasto campo semântico ao qual “impressões” nos remete, dois
sentidos parecem indicar, com precisão, o que caracteriza esse livro:
o primeiro diz respeito à marca, vestígio, rastro; o segundo, a um
gênero literário próximo da crônica ou do diário, em que se mesclam
sensações, sentimentos, reflexões, relatos, experiências de viagens.
Esses dois sentidos, por sua vez, estão entrelaçados ao trabalho da
memória, ou melhor, do esforço não apenas de lembrar, a partir
desses rastros e vestígios, que, como pegadas deixadas na areia, o
vento do esquecimento teima em apagar, mas também o de fixá-los
por meio da escrita, para que eles permaneçam vivos e constituam
uma espécie de legado às gerações futuras. Impressões de Michel
Foucault, o mais recente livro de Roberto Machado, parece ter sido
escrito com essa intenção.
Nessa perspectiva, ele bem poderia também se chamar História de
uma amizade, tal como Gershom Scholem intitulou seu livro de
memórias sobre Walter Benjamin. Pois apenas a ‘amizade’,
considerada um misto de ‘confiabilidade e integridade’, como o
próprio Scholem sinalizou no “Prefácio” de seu livro, pode conceder
a esse tipo de relato alguma ‘autoridade’ àquele que narra, uma vez
que essas ‘impressões’ não surgem a partir de uma narrativa objetiva,
distanciada, precisa e exata, cuja matéria seria apenas a obra – de
Benjamin ou de Foucault – como se se tratasse deum trabalho
acadêmico. Ao contrário, a compreensão do pensamento, da obra, nos
dois casos, também se alimenta das impressões afetivas, tornando-se
inseparáveis delas. Além disso, como separar a história de uma
amizade da própria história daquele que a conta e da história do seu
tempo? Se no relato de Scholem vimos ressurgir a Alemanha desde os
anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial até o começo da
Segunda, o de Roberto Machado nos remete ao Brasil desde os anos
que imediatamente antecederam ao golpe militar de 1964 e aos
primeiros anos da ditadura, até 1984, ano da morte de Foucault.
Histórias pessoais que estão, portanto, vinculadas à história de uma
época.
Entretanto, uma diferença importante marca o relato de Scholem e
o de Roberto Machado: no primeiro caso, são dois jovens que se
encontram e se conhecem, a fama de ambos só virá depois; no
segundo, trata-se do encontro entre um jovem professor de filosofia
da PUC do Rio de Janeiro, nordestino do Recife, com uma intensa
militância política na esquerda católica do Brasil pré-1964 e que saiu
do país, um ano depois do golpe, para fazer pós-graduação em
Filosofia na Bélgica, e um filósofo já famoso e consagrado por um
livro, o qual, segundo célebre manchete de um jornal parisiense,
“vendeu mais que pãezinhos” no verão de 1966. O primeiro encontro
de ambos, em maio de 1973, quando Foucault proferiu as cinco
conferências intituladas “A verdade e as formas jurídicas”, na PUC
carioca, não poderia ser mais emblemático: o professor, que há pouco
havia se encantado com As palavras e as coisas, embora discordasse
de suas teses principais, e o filósofo que apresentava, nas suas
conferências, sua concepção de poder disciplinar, base do Vigiar e
punir, que viria a ser publicado dois anos depois. De um lado, o
professor interessado na “arqueologia das ciências humanas”; de
outro, o filósofo já inteiramente voltado para a “genealogia do
poder”.
Esse primeiro encontro, que também já era, num certo sentido, um
desencontro, marcaria de uma vez por todas a amizade e a intensa
colaboração intelectual que daí se seguiu. Como Roberto mostra à
exaustão em seu livro, ele e Foucault nem sempre concordavam em
tudo, aliás, essa não era, de modo algum, a condição para que
continuassem amigos. O que o leitor tem nas mãos não é, portanto, a
simples história da admiração por um grande filósofo e do fascínio
por ele exercido. É, principalmente, a história de uma amizade, a
qual, para lembrar uma das últimas entrevistas de Foucault, em que
ele celebra a amizade como um modo de vida, não tinha, de início,
nenhuma forma. Essa é, me parece, a matéria viva de onde brota esse
livro, a necessidade de dar uma forma a essa amizade, em meio a
concordâncias e discordâncias, a proximidades e distâncias. O
reconhecimento, por exemplo, da “extrema doçura que transbordava
dos olhos” de Foucault não fez com que Roberto deixasse de assinalar
que além de generoso, Foucault fosse também muitas vezes “cruel”.
É importante assinalar, portanto, que esse livro não é um elogio
desmesurado a um Foucault idealizado. Nesse sentido, lembremos,
por exemplo, o pouco entusiasmo de Foucault quando Roberto lhe
disse que ia escrever uma tese de doutorado sobre a ‘arqueologia’ ou
ainda as suas diferentes opiniões sobre diversos filmes, quando
Roberto, então assíduo ouvinte dos cursos no Collège de France, já
participava do círculo de amigos mais próximos de Foucault. Roberto
insistiu no tema de sua tese e legou a nós, leitores de Foucault, mas
também leitores dele, Roberto, um dos clássicos dos estudos
foucaultianos no Brasil. Nem sempre partilhando as mesmas opiniões
sobre os filmes a que assistiam, ambos, entretanto, tiveram uma
participação decisiva em dois filmes importantes: Foucault,
colaborador no filme que Renée Allio dirigiu a partir do dossiê sobre
Pierre Rivière em 1976 e Roberto, roteirista de Ato de violência,
dirigido por Eduardo Escorel, em 1980, a propósito do caso do
famoso “Chico Picadinho”.
De 1973 a 1984, Roberto Machado privou-se da amizade de
Foucault. Em fins de 1973, alguns meses depois das conferências na
PUC, ele já estava em Paris para assistir ao curso “O poder
psiquiátrico”. Daí, até 1980, não só foi ouvinte dos cursos públicos,
mas também participante dos seminários mais fechados, que Foucault
coordenava no Collège de France, no qual seus participantes
expunham suas pesquisas específicas. Dessa colaboração intensa
surgiu Danação da norma: a constituição histórica da psiquiatria no
Brasil, publicado em 1977, que deu origem a vários trabalhos, em
diversos lugares do Brasil, na década de 1980 em especial, a
pesquisas semelhantes. Além disso, todas as visitas de Foucault ao
Brasil, a partir desse primeiro contato em 1973, tiveram a
participação decisiva de Roberto, mesmo quando ele não estava
presente, como é o caso da segunda visita a Belém, em novembro de
1976.
Para o estudioso de Foucault, esse livro, sem sombra de dúvida, é
muito mais do que aquilo que ele pode sugerir à primeira vista ao
leitor comum, qual seja, um conjunto de anedotas acerca da vida
pessoal de um grande filósofo. Aliás, da vida pessoal de Foucault,
esse livro não revela nenhum grande segredo inconfessável, nenhuma
grande novidade que abalaria Paris. Entretanto, ele revela o quanto
numa conversa informal, na cozinha do apartamento de Foucault em
Paris, algo se expõe no campo do pensamento. O mesmo se dá
quando ambos caminham numa praia carioca ou nordestina ou ainda,
em outra conversa, desta feita no apartamento de Roberto no Rio de
Janeiro. Ou seja, o leitor vai acompanhando como essa amizade vai
ganhando forma em meio à própria vida ou, ainda, que se pode pensar
em qualquer lugar, em qualquer ocasião, desde que haja, para tal, um
vínculo afetivo e um interesse comum, o que nem sempre acontece
nas instituições que construímos para serem os lugares do
pensamento.
Entretanto, isso não é tudo. O mais importante é que esse livro
expõe também o que Roberto pensa da própria filosofia de Foucault
ou, ainda, como ele a compreende. Eu resumiria isso a dois aspectos,
que considero fundamentais. O primeiro é que o pensamento de
Foucault prima muito mais pela descontinuidade temática e de
abordagem do que por uma presumida continuidade. Com isso,
Roberto toma uma distância crítica em relação a um tipo de
interpretação bastante comum hoje em dia, que procura encontrar fios
de continuidade na obra de Foucault. Como entender, pergunta ele a
certa altura de seu livro, que Foucault diga que ora seu problema foi o
do sujeito, ora foi o do poder? Como compatibilizar essas duas
respostas diferentes senão pelo permanente deslocamento que
Foucault opera no seu próprio pensamento? A resposta não estaria,
portanto, em investigar o quanto haveria de verdade ou falsidade
nessas diferentes respostas, para que o intérprete se decida por uma
ou por outra, mas sim em situá-las estrategicamente na obra, ou seja,
ambas são verdadeiras, mas somente o são quando referidas a este ou
aquele momento da obra. Nem o próprio Nietzsche, que Roberto
reputa como a mais importância referência filosófica no pensamento
de Foucault, escapou dos deslocamentos e das mudanças de
perspectiva. A segunda diz respeito ao papel dos cursos, das
entrevistas, das conferências, no entendimento da obra, para além dos
livros efetivamente publicados. Nesse caso, Roberto não deixa de
assinalar que faz um uso muito prudente dos “ditos e pequenos
escritos” de Foucault. E, para justificar isso, não hesita em reiterar
sua proximidade com “Michel”! Aliás, que o leitor fique atento, para
o fato de que Roberto ora chama Foucault de “Foucault”, ora de,
simplesmente, “Michel”. O uso do primeiro nome entre os europeus,
como sabemos, é índice de intimidade, de proximidade, de amizade.
Assim, “Michel”, ao contrário de Deleuze (nunca chamado de
“Gilles”), cujos cursos, primeiro em Vincennes e depois em Saint-
Denis, Roberto também acompanhou por vários anos, “jamais falava
do mesmo modo sobre os mesmos temas”. Isso implica, segundo
Roberto, a imperiosa necessidadede relativizar o que diz Michel,
“sobretudo nas entrevistas”, as quais trazem a marca do momento, do
país em que foram dadas, do assunto tratado, da preferência filosófica
de seu anfitrião, a quem muitas vezes ele queria agradar e até mesmo
do interesse que lhe despertava o rapaz que tinha feito uma pergunta.
Nessa perspectiva, todas as vezes que se trata de “Michel”, estamos
diante de um argumento que extrapola sua legitimidade do âmbito do
estudo da filosofia de “Foucault”, para também se amparar nos laços
estreitos da proximidade afetiva que os uniu.
Por fim, gostaria de assinalar que esse livro também traz consigo
uma marca que caracteriza todos os outros livros de Roberto
Machado: ele é escrito com uma limpidez, com uma clareza, com
uma elegância refinada, que raramente encontramos entre os
estudiosos da filosofia no Brasil. Essa limpidez, essa clareza às vezes
tão incômoda, como se nada pudesse ficar obscuro, equilibra, do
ponto de vista da escrita, a reflexão e o afeto, o momento em que a
filosofia de Foucault assume o primeiro plano e aquele outro, em que
a figura de Michel se torna protagonista. Livre da necessidade da nota
de rodapé e das referências bibliográficas de acordo com as regras da
ABNT, estamos diante aqui, certamente, não apenas do professor
Roberto Machado, renomado especialista na filosofia de Foucault,
mas do Roberto contador de histórias, um Roberto que tenho a alegria
de conhecer há mais de três décadas. 
Casa aberta
DANIEL BENEVIDES
Impressões de Foucault é um livro inclassificável, no melhor dos
sentidos. Passeio livre pela memória, exercício de saudade, conta das
idas e vindas de uma amizade pautada pela admiração intelectual.
Não se trata, portanto, de um estudo, ainda que o autor seja profundo
conhecedor da obra do filósofo francês, tendo sido um dos maiores
difusores de seu pensamento no país.
Numa escrita solta, que de certa forma se assemelha a seu
retratado, Machado mescla reminiscências pessoais, histórias de
militância contra a ditadura, indagações filosóficas, análise de seu
próprio percurso acadêmico à luz das aulas e conversas que teve com
Foucault, Deleuze e outros, e lembranças dos momentos de
convivência íntima com o amigo, tanto em Paris quanto nas várias
passagens pelo Brasil do autor de História da loucura e Vigiar e
punir.
São essas viagens que proporcionam alguns dos momentos mais
saborosos do livro, em que o leitor mais afeito à obra de Foucault
pode vislumbrar o homem por trás dos óculos de aro grosso e da
indefectível gola rolê. O curioso é que o retrato surge meio borrado,
talvez por conta do jeito imprevisível com que Foucault se colocava
no mundo. Ora ele é gentil e generoso, como com as crianças pobres
em Salvador ou Recife, que o cercavam curiosas com sua brancura
alienígena, ora ele é cruel e sarcástico com alunos e mesmo amigos,
capaz de ressentimentos eternos. “Metia medo. Sentia-se que era
perigoso”. Suas brigas com Sartre, Althusser, Baudrillard, Derrida,
Hélio Pellegrino e Deleuze, para citar apenas alguns, são descritas
com certo espanto pelo autor, este sim, claramente conciliador. Com
Machado, sempre muito modesto e natural, as controvérsias, que não
eram poucas, acabavam em risadas. Mesmo assim, há momentos em
que o leitor se pergunta se Foucault não foi grosseiro demais. “Este é
Roberto, um brasileiro tão simpático quanto um heterossexual pode
ser.”
Machado deixa que a cronologia se ajuste ao ritmo das lembranças,
o que dá um ar desenvolto, espontâneo ao livro. Personagens
secundários, mas não menos importantes, como Daniel Defert,
parceiro de Foucault, os psicanalistas Jurandir Freire e Chaim Katz, o
divertido sociólogo Jean-Robert Weisshaupt e os cineastas Rainer
Werner Fassbinder e Daniel Schmid entram e saem como se as
páginas fossem portas e janelas abertas e o livro uma casa sempre
pronta a receber convidados. O tom também varia bastante, ao sabor
casual da vida narrada. Há trechos densos em que dá sua visão de
algumas das “ideias crepitantes” e conceitos mais importantes de
Foucault (e também de Deleuze, outro pensador que lhe é
particularmente caro, assim como Nietzsche) e de como o
influenciaram em seu trabalho, o que pode servir de boa introdução
aos leitores leigos. Ao mesmo tempo, há clareiras em que se alojam
anedotas curiosas e reflexões informais – até um certo grau de fofoca
(sem nenhuma maldade). É divertido, por exemplo, quando fala de
sua paquera com a deslumbrante atriz Alexandra Stewart, de Trinta
anos essa noite, ou quando divaga sobre Proust depois de receber do
amigo ilustre uma gravura de Roberto Matta. Ou, ainda, quando conta
que Ingrid Caven, outra diva do cinema de arte (assunto importante
no livro), ao notar, ”botando a mão na boca”, a braguilha aberta de
Foucault, teria ouvido: “Não se preocupe. Não tem o menor perigo”.
Essa palavra, “perigo”, é recorrente, como, aliás, algumas cenas e
considerações cuja redundância só aumenta a sensação de agradável
informalidade provocada pela leitura.
Por fim, há momentos comoventes, sempre descritos com
elegância. Num deles, Machado declara que a qualidade que mais
admira em Foucault é a coragem, à parte sua gentileza, inteligência,
lucidez (“falava como se estivesse escrevendo”), rigor e capacidade
de se reinventar. E cita episódios como a participação do filósofo no
ato ecumênico por Vladimir Herzog e as diversas vezes em que ele se
colocou, com firmeza, contra o autoritarismo. 
No táxi com Michel Foucault
JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO
Naqueles primeiros anos da década de 1970 de reconstrução
democrática após a dizimação sangrenta de toda resistência ao
arbítrio e à brutalidade da ditadura civil-militar, nós, que
recomeçávamos a resistência contra a opressão, não sabíamos pensar
ou agir no singular. O plural e o coletivo nos inspiravam e orientavam
nossas ações, a despeito das diferenças entre os poucos e aguerridos
grupos que reconstruíam o movimento estudantil (ME) na USP.
Escrever um depoimento na primeira pessoa, como me pede a
CULT, sobre um inesquecível encontro com Michel Foucault em
1975, é uma difícil tarefa. Além, é claro, da lembrança incômoda de
um período no qual muitos de nós tivemos parte da juventude ceifada
pela onipresença do arbítrio e da usurpação dos direitos mais
fundamentais.
A verdade é que tínhamos muito medo e do medo tiramos uma
força solidária que nos fazia vibrar a cada colega que se juntava a nós
tornando-se companheiro de luta e resistência, unidade indivisível
que expressava uma vontade de liberdade cada vez mais plural.
Queríamos mais do que sobreviver, queríamos viver plenamente.
Com esse espírito e vontade comecei meu curso na Filosofia da
USP em 1972. O convívio entre os estudantes acontecia em ritmo
lento, as conversas contidas se aprofundavam conforme o ritmo da
confiança que ganhávamos entre nós pouco a pouco. Os colegas da
pós-graduação se achegavam, procuravam nos influenciar sobre as
questões do país e da necessidade de reerguer o ME. Engajar-se ou se
alienar tentando manter distância dos tímidos movimentos de
recriação de espaços representativos como os Centros Acadêmicos
foram as primeiras dúvidas quase filosóficas que tive que enfrentar.
Eram tempos de censura às notícias e opiniões políticas nos diários
e, ao mesmo tempo, de explosão cultural e transgressões da ordem
imposta. Livros proibidos de humanidades eram comprados em
outros idiomas na banca do Raul Castell nos “Barracos” da USP ou
em algumas livrarias no centro velho, como a Duas Cidades, a
Brasiliense, a Avanço, capas embaladas em papel pardo para o caso
de alguma “batida” nas ruas paulistanas. Ao mesmo tempo surgiram
novos ares na imprensa: “Brasil Mulher”, “Lampião”, “Em Tempo”,
“Movimento”, “Nós, mulheres”, “Versus”, “Bondinho”, “ex”, “Jornal
da República”, os chamados “nanicos” eram contra a censura e a
ditadura, se alinhavam à contracultura, à argumentação oposicionista,
aos direitos das mulheres e homossexuais.
Tempos de medo, mas tempos de reação. Tomei a decisão de
juntar-me aos colegas que reconstruíam o Centro Acadêmico de
Filosofia– CAF, batizado por nós “João Cruz Costa”, o inesquecível
professor aposentado da USP que nos acolheu algumas vezes em sua
casa para contar histórias da faculdade e nos animar com sua erudição
filosófica.
Éramos poucos, mas irmãos quase siameses. De todos, eu e Vânia,
e mais tarde Jorge, éramos os mais inseparáveis. No CAF fazíamos
murais de notícias, fomentávamos grupos de debates, montávamos
mesas-redondas com professores da casa e outros aposentados
compulsoriamente, como José Arthur Gianotti. A Filosofia foi a
primeira unidade da USP a proclamar um CA livre. Não tínhamos
uma diretoria hierárquica, mas um grupo de lideranças que
coordenavam os trabalhos.
Na pauta de lutas estudantis a autonomia universitária, o Decreto
477, o combate ao ensino pago ganharam maior densidade em
17/03/1973 quando os órgãos de repressão assassinaram o nosso
colega Alexandre Vanucchi Leme. A missa na Catedral da Sé em sua
memória, celebrada por D. Paulo Evaristo Arns, mobilizou 3.500
pessoas que enfrentaram o enorme aparato repressivo que se formou
na região. O passar pelo corredor de PMs para entrar na Sé naquele
início de noite foi uma das experiências mais assustadoras por que já
passei. Mas o ar de solidariedade e revolta ativa que recebíamos ao
entrar na catedral enchia nossos pulmões de vontade e força para
seguir resistindo.
Desde então o ME avançou em lutas por liberdades democráticas.
Em 1974 constituiu-se o Comitê de Defesa dos Presos Políticos e, em
1975, a famosa “greve da ECA” marcou a USP com a primeira
concentração estudantil desde o AI-5.
Foi nesse contexto de repressão, medo e resistência ativa, que
conheci Michel Foucault em 1975, não como aluno ou pesquisador de
sua obra, mas como jovem militante e estudante de filosofia
combatente da ditadura militar.
À ousadia das manifestações estudantis em 1975, a ditadura reagiu
efetuando várias prisões de estudantes, e fez o mesmo com a
resistência civil ao golpe, prendendo jornalistas, professores e
sindicalistas, alguns deles membros de partidos clandestinos de
esquerda.
Em setembro e outubro essas prisões se intensificaram e,
justamente nesse período, Michel Foucault, que acabara de lançar
uma de suas mais importantes obras – Vigiar e punir –, estava
ministrando um concorridíssimo curso na Psicologia da USP, nos
mesmos “Barracos” em que estudávamos.
A primeira vez que eu o vi foi atendendo a um chamado de socorro
dos organizadores que me procuraram, e à Vânia, para convencer
nosso colega Luiz Gonzaga, que sofria de alguns distúrbios
emocionais, a se retirar da frente da mesa onde Foucault ministrava
sua conferência. Com uma garrafa de cachaça na mão, já alterado,
Luiz falava alto: “Bobagem”, “Mentiras”, para espanto do culto
auditório. O clima estava quase hostil para com ele e entre os poucos
olhares de compreensão e de aceitação daquela contravenção
explícita da ordem, estava o de Foucault. Delicadamente
conversamos com nosso amigo e o conduzimos para seu habitat
naqueles anos, o CAF. Mas me sobrou o olhar não discriminatório do
ilustre palestrante.
A repressão se intensificou, o clima estava tenso e o medo à flor da
pele. No dia 22 de outubro a Profa. Marilena Chaui nos procurou e
nos informou que Foucault estava disposto a se manifestar contra a
repressão de Estado que estávamos sofrendo e gostaria de saber o que
sugeríamos enquanto ME. Lembro que de pronto afirmamos que
renunciasse às aulas, denunciasse a ditadura militar no exterior e
expressasse sua solidariedade aos presos. No dia seguinte, 23,
teríamos uma Assembleia Universitária no Salão Caramelo da FAU-
USP contra as prisões e convidamos Foucault, que prontamente
aceitou. Apenas pediu uma conversa prévia antes do evento.
Coube-me fazer essa conversa e por volta das 8 h do dia 23 de
outubro de 1975, às vésperas da prisão e antevéspera do assassinato
de Vladimir Herzog, lá estava eu, com 22 anos, em um banco na
Praça Roosevelt, aguardando o famoso filósofo e seu colega (e nosso
professor) Gerard Lebrun.
Recordo-me de que preparei esse encontro com toda a apreensão do
mundo, não porque iria encontrar um filósofo de renome
internacional, mas porque o assunto era por demais importante e
estratégico para a nossa luta democrática. É incrível como a
juventude e a força da época de combate ao arbítrio podem tornar-
nos, mesmo muito jovens, avessos ao deslumbramento.
Novamente a atitude de um verdadeiro mestre se impôs perante a
notoriedade do filósofo estrelado. Tive dele diálogo objetivo,
questionador, respeitoso e atento a um jovem estudante que o
escutava, o compreendia em francês, mas que precisava de um
tradutor (Lebrun) para fazer-se compreender. Não era um diálogo de
intelectuais, entre pares, mas o respeito cidadão se impunha e tivemos
uma longa conversação sobre o que estávamos construindo no ME,
no foco de nossas lutas, na situação dos presos políticos e no horror
cotidiano de estudar e trabalhar sob uma ditadura sanguinária. Ele
ouvia, argumentava, questionava. Ao final disse-me: “vamos, estou
pronto, podemos ir, farei lá uma declaração renunciando às aulas e
denunciarei no exterior o que está se passando no Brasil”.
Tomamos o primeiro táxi que passou, um fusca apenas com o
banco traseiro. Sentei-me ao meio, ladeado por Lebrun e Foucault e,
naquele momento, senti “cair a ficha”, como se dizia na época. Subia
a Consolação com um dos pensadores mais polêmicos e inovadores
daquele período e o sentia próximo a nós, à nossa luta, à nossa
identidade. Como tantos professores que estavam conosco naqueles
tempos, Michel Foucault também era um dos nossos.
A chegada à FAU criou um justificado murmúrio na assembleia
que já estava acontecendo. Levei-o aos bastidores onde alguns
colegas já nos esperavam. Ele pediu papel, sentou-se à mesa e
rapidamente escreveu um pequeno texto de dois parágrafos. Glauco
fez a tradução para o português, alguns revisaram e me coube ler a
versão para a assembleia ao lado de Foucault que leu o texto em
francês. Aplausos emocionados, vibração genuína pelas palavras
fortes do filósofo que se recusava a continuar dando aulas num país
que prendia e torturava intelectuais e trabalhadores.
No manifesto, o prenúncio do que viria a se tornar realidade nos
anos vindouros, a de aproximação do ME com o novo sindicalismo
que já se anunciava em 1975 no ABC: “Na defesa dos direitos, na
luta contra as torturas e a infâmia da polícia, as lutas dos
trabalhadores intelectuais se unem à dos trabalhadores manuais”.
Terminada a leitura nos demos as mãos com energia e olhos
emocionados. Nunca mais o vi, apenas o acompanhei ao longe, nas
leituras e nas incontáveis polêmicas de sua vida. Mas o garoto
aguerrido de 22 anos, ainda em formação, recebeu de Foucault outro
tipo de lição que certamente o ajudou a marcar sua própria trajetória
intelectual como professor e cidadão. Tempos duros, mas de grandes
lições! 
entrevista Roberto Machado
Risos e sorrisos de Michel Foucault
SILVIO ROSA FILHO
Formado em filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco e
mestre e doutor em filosofia pela Universidade Católica de Louvain,
na Bélgica, Roberto Machado fez vários estágios no Collège de
France sob a orientação de Michel Foucault e pós-doutorado na
Universidade de Paris 7 com Gilles Deleuze.
Professor titular aposentado do Departa-mento de Filosofia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Roberto Machado realizou
pesquisas sobre medicina social e psiquiatria e estudos sobre a
relação entre ontologia e estética como: Nietzsche e a verdade;
Zaratustra, tragédia nietzschiana; Foucault a filosofia e a literatura;
O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche; Deleuze, a arte e a
filosofia. Prepara, atualmente, um livro sobre Proust e as artes.
A elegância de seu texto, nos livros, reaparece nesta entrevista que
Roberto Machado concedeu por escrito à CULT.
Uma das impressões mais marcantes de seu livro está expressa
numa frase quando você diz de Michel Foucault: “Ria-se muito
com ele”. No início do livro, acentuando o fato de que Foucault
sempre buscava levar em consideraçãocom quem estava falando
para saber o que dizer, você recorda momentos em que ele, no
Japão, trata da possibilidade de uma cultura e de uma filosofia
não capitalistas. Assunto muito sério, sem dúvida, principalmente
porque “a era de uma cultura não ocidental do mundo capitalista
estava começando”. Em 1973, por exemplo, vocês estão na casa de
um de seus colegas, professor da PUC, e alguém pergunta
pomposamente a Foucault sobre o seu “lugar de fala”. Você
poderia nos contar esse episódio e o seu vínculo com a questão do
nascimento de uma “filosofia no futuro”?
Quando reli pela primeira vez o livro que estava escrevendo, fiquei
impressionado com a presença do riso na vida de Foucault, a ponto de
pensar em intitulá-lo “Risos e sorrisos de Michel Foucault”. Várias
vezes chamo atenção para o quanto ele era engraçado. Mas também
para o quanto ele se divertia com o que fazia, sem dar a suas palavras
a seriedade que os outros, inclusive eu, víamos nelas. É verdade que,
às vezes, eu o vi exibir diante de adversários ou críticos, com quem
não interessava dialogar, risos de mofa. Como no episódio, lembrado
por você, do professor que lhe perguntou pomposamente de onde ele
falava, querendo que ele exibisse os princípios que autorizavam ou
legitimavam sua maneira de pensar, e ele respondeu: “Daqui desta
cadeira!” Felizmente durante nossos contatos, mesmo quando
estridentes, seus risos eram ternos e compreensivos, e estampavam no
rosto que o outro merecia um esclarecimento. Muito provavelmente
isso aconteceu porque desde o início eu compreendi que o importante
para ele não era ter a última palavra; era ter sua palavra.
Mas há outro aspecto importante na sua pergunta: o fato de que
Foucault jamais falava do mesmo modo sobre os mesmos temas, e de
que isso foi importante para eu relativizar o que ele dizia. Uma
entrevista, por exemplo, não tem a importância do que é dito por ele
num curso e muito menos do que é escrito num livro. Por isso suas
entrevistas devem ser lidas com cuidado, exigindo atenção a quando,
onde e a quem foram dadas. Dou vários exemplos disso no livro. E,
embora as utilize tanto, em geral não as valorizo muito para entender
sua obra quando são de outra época. A razão mais profunda disso é
que Foucault não é um pensador sistemático, alguém que constrói um
sistema filosófico fechado, uma filosofia da identidade, alguém que
elabora um método de investigação rígido, invariável, universalmente
válido. Foucault é um pensador provisório.
Você mostra a que ponto chegava a admiração de Foucault por
um “jornalismo radical”, ou seja, capaz de se perguntar pela
forma política que toma a vontade popular, “dar voz aos
excluídos” e ao momento em que se diz “não” ao soberano. Na
análise das forças em presença, opondo lutas concretas a
governos repressivos, Foucault foi muito criticado por suas
posições sobre a sublevação popular contra forças de repressão
fortemente armadas do xá Reza Pahlevi. Ao encontrá-lo em Paris,
no ano de 1979, você lhe perguntou sobre essas críticas, e ele
respondeu: “As pessoas confundem um juízo de valor com um
juízo de realidade. Quis dar conta do que estava acontecendo”.
Essa atenção de Foucault à singularidade dos fatos políticos e
teóricos reaparece numa entrevista concedida a Le Monde (maio
do mesmo ano). Pode falar sobre isso?
Foucault não era apenas um universitário, um acadêmico, um
especialista numa área de conhecimento. Ele também era um
intelectual. Não no sentido de querer modelar o projeto político dos
outros, mas de questionar as evidências, os hábitos, os modos de agir
estabelecidos. E pelo fato de pensar que a crítica é um instrumento de
luta, de resistência, gostava de intervir na imprensa, tendo sido um
dos criadores do jornal francês Libération. Chegou até mesmo a
expor sua ideia de que a filosofia deve fazer o diagnóstico do
presente, compreender a atualidade, definindo-a como um tipo de
jornalismo radical.
Esse episódio ao qual você se refere diz respeito à série de artigos
que Foucault escreveu sobre o Irã em 1978. Penso que essa atividade
jornalística é profundamente coerente com seu interesse pelo novo,
por novas formas de agir e de pensar. Pois o que o motivou nesse
episódio foi procurar entender como se dá uma sublevação popular
contra uma repressão fortemente armada e a relação profunda que
havia, no movimento revolucionário, entre política e religião, entre
um levante popular e uma instância religiosa. E isso era novo na
época.
Ora, quando o movimento popular, que ele sentiu como libertador,
torna-se intolerante e sangrento, com a tomada do poder por
Khomeini e o estabelecimento de um Estado teocrático, Foucault
critica o caminho tomado pela sublevação, ressaltando não ter
mudado de posição porque continuou contra qualquer regime
repressivo. É nesse contexto que ele defende o direito e o universal.
Se eu chamei atenção para isso foi porque até essa época era difícil
vê-lo pensar assim. E porque essa referência ao direito e ao universal
se dá no âmbito de uma análise política. Como também aconteceu, na
mesma época, quando ele defende Klaus Croissant, advogado do
grupo Baader-Meinhof, preso pela polícia francesa e extraditado a
pedido do governo alemão, e os militantes políticos espanhóis
condenados pelo regime fascista de Franco ao garrote vil.
Vamos falar de sua temporada na Universidade Católica de
Louvain? À primeira vista, sua formação filosófica esteve um
tanto apartada das leituras de Marx e Althusser, feitas em
paralelo, com militantes da Ação Popular da qual você foi
membro e simpatizante. Você não foi tão obediente a seu tutor em
Louvain?
Não fui inteiramente obediente a esse conselho de que o importante é
conhecer o pensamento dos outros e não ousar pensar por si mesmo,
por ter procurado, durante minha formação acadêmica, articular
estudos de filosofia marxista com atividades políticas existentes no
Brasil. Mas isso não foi o mais importante, inclusive porque eu não
via aqueles estudos paralelos como se fizessem parte de minha
formação filosófica. O que prevaleceu durante esse período na
Universidade de Louvain foi a compreensão de que, se quisesse
possuir uma boa formação filosófica, precisava privilegiar o
conhecimento dos clássicos. E não tenho dúvida de que a tentação de
reduzir a filosofia à história da filosofia esteve presente durante toda
minha vida profissional.
Felizmente, de volta ao Brasil, passei a admirar Nietzsche por
haver afirmado com destemor que mora em sua própria casa, sem
jamais ter imitado ninguém, e criticado os filósofos que pensam como
se fossem especialistas no cérebro da sanguessuga. Ou a valorizar o
alerta de Deleuze de que a história da filosofia não deve funcionar
como uma escola de intimidação do pensamento, ou exercer um papel
repressor. Mas quem mais contribuiu para o que, bem ou mal, eu fiz
esses anos todos foi Foucault. Não tenho dúvida de que minha relação
com Foucault era motivada pelo desejo não de ficar repetindo os
filósofos, mas de fazer alguma coisa a partir de seu pensamento, de
utilizar o instrumental filosófico criado por ele para produzir um
conhecimento novo.
E você seguiu outros caminhos, diferentes daqueles tomados por
Foucault em 1977 ou 1980, quando Deleuze chegou a enxergar,
nestes últimos, uma crise no trabalho intelectual. Você, por seu
turno, parece reconhecer uma unidade temática na circunscrição
do problema que relaciona o poder e a investigação de novas
formas de governar, unidade entrevista retrospectivamente, e
mais de uma vez, pelo próprio Foucault. Por outro lado ainda, a
composição de seu livro atesta que você continua dando
importância à relação entre filosofia e outros saberes, não apenas
os produzidos pelas ciências, mas principalmente pelas artes e
filosofia. Como então o tema do trágico lhe permitiu articular
estética e ontologia?
Esse desejo de produzir um conhecimento novo, levando em
consideração exigências metodológicas criadas por Foucault, se
realizou primeiro com a pesquisa que fiz em grupo – antes mesmo de
concluir o doutorado – sobre o nascimento da medicinasocial e da
psiquiatria brasileiras. Mas até mesmo quando abandonei a pesquisa
de documentos médicos e psiquiátricos, o projeto de relacionar a
filosofia com outros saberes, que ele realizou tão bem, foi o que me
levou a privilegiar temas estéticos e ontológicos, como o trágico.
Quando se pensa em trágico geralmente se pensa em Nietzsche.
Quis, no entanto, mostrar que Nietzsche se insere perfeitamente no
projeto existente, na Alemanha, desde o final do século 18 de
interpretar a tragédia como documento filosófico, ontológico, que
apresentaria uma visão trágica do mundo. Pensadores importantes
como Peter Szondi, Lacoue-Labarthe e Jacques Taminiaux me
ensinaram isso e muito mais a esse respeito. Mas esse estudo que fiz
sobre o trágico – do seu nascimento com Schiller até seu apogeu com
Nietzsche – pode ser aproximado da história arqueológica de
Foucault, por eu ter procurado fazer uma análise que privilegiasse o
conceito, atento a seu aparecimento e a suas transformações no
tempo.
Você poderia nos dizer em que medida – bem entendida: não
como “homenagem” nem como uma “explicação” – a sua
retomada dos temas e problemáticas iniciais de Foucault estaria
aliada à sua própria perspectiva política hoje?
Quando escrevia esse livro, foi muito interessante relembrar que
Foucault dissera numa entrevista a uma revista japonesa, em 1976 –
época em que estava interessado em saber se vivíamos o fim da idade
da revolução – que em países excessivamente explorados como o
Brasil e a Bolívia a revolução ainda é efetivamente desejada,
concluindo que o papel do intelectual deve ser restabelecer o mesmo
desejo de revolução que havia no século 19 Acredito que esse desejo
de revolução que ele detectou nas pessoas com quem teve contato no
Brasil foi o que o motivou a vir aqui cinco vezes e contribuir para
nossos trabalhos teóricos e políticos. E se achei interessante essa
declaração foi porque Foucault foi justamente o pensador e militante
que mostrou a muitos de nós, com mais argúcia e coragem, como é
possível cultivar um projeto revolucionário socialista diferente do que
ficou conhecido com o nome de “socialismo real”. Durante o período
em que estive novamente mergulhado em seus textos para avivar a
memória e escrever esse misto de testemunho e reflexão, uma
pergunta esteve o tempo todo presente: “Que pensaria e faria ele
hoje”? 
perfil Preta Rara
Geração incômodo
AMANDA MASSUELA
Joyce Fernandes virou Preta Rara há doze anos. Adotou como nome
artístico o apelido que ganhou da mãe por gostar de coisas
“diferentes” das outras meninas: jogar futebol, escalar muros,
escrever rimas. Aos 32 anos, a rapper e arte-educadora já se
acostumou a ouvir por aí que a sua fala “incomoda”. Faz sentido.
Foram anos de silêncio e outros tantos de desabafo só com a caneta e
o papel.
“Por muito tempo eu escutava as coisas e me calava”, conta, na sala
do apartamento para o qual se mudou recentemente, no centro de São
Paulo. Durante a infância e boa parte da adolescência, Preta Rara se
calou, por exemplo, ao ouvir que estava “predestinada” a ser
empregada doméstica, ou que tinha um rosto “exótico”, ou que estava
proibida de brincar com as filhas das patroas de sua mãe. Quando
decidiu falar, tinha muito a dizer.
Nascida e criada na cidade de Santos, ela “se deu ao luxo” de morar
durante um ano na capital para tentar viver exclusivamente dos seus
projetos artísticos, que envolvem o rap, a moda e também a literatura.
É por meio deles que, hoje, fala sobre racismo, machismo, gordofobia
e feminismo sem medir o tamanho do “incômodo” que pode provocar
em seus interlocutores. Na verdade, quanto maior o desconforto,
melhor.
“As pessoas me falam: ‘nossa, Preta, você é muito pesada quando
fala, vai lá no fundo mesmo’. E desde criança escuto minha mãe dizer
que sou muito agressiva”, diz. Foi primeiro no rap que Preta Rara
encontrou um meio de dar vazão ao turbilhão: menina negra, gorda,
zoada na escola, filha de trabalhadoras domésticas, colocava tudo no
papel.
A mãe dizia que a menina tinha mais coisas escritas do que
desenhadas na infância – mesmo quando não sabia escrever muito
bem. O pai observou que os textos da filha, aos 14 anos, eram
rimados, e explicou para ela o que era rap, sublinhando que o gênero
não combinava muito com a voz “aguda” das mulheres. “Por isso eu
tenho essa voz grossa”, ri.
Seis anos mais tarde, ela criou um dos primeiros grupos femininos
de rap de Santos, o Tarja Preta. Foi aí que se tornou a Preta Rara, mas
fora dos palcos, no dia a dia da labuta, ainda era Joyce. A essa altura,
já trabalhava como empregada doméstica há pelo menos dois anos, e
repetia a trajetória de quase todas as mulheres da sua família.
“Eu não conseguia emprego em Santos. Demorei muito para
entender que currículo com foto e boa aparência nunca é
personificado numa pessoa preta. Quando contei para a minha mãe
que tinha arranjado serviço em uma casa, ela começou a chorar. Disse
que não queria isso para mim, mas eu fui. Foram os piores sete anos
da minha vida”, conta.
Foram muitas as situações de abuso pelas quais passou durante
quase uma década trabalhando em casas de classe média na baixada
santista. Lembra principalmente de quando foi proibida de comer da
própria comida que preparava, todos os dias, para uma das famílias.
Ou de quando a impediram de usar o banheiro principal de uma das
casas porque o “banheiro das empregadas” estava entupido.
Um episódio em específico a marcou. Uma das famílias, a mais
rica para a qual já trabalhou, estava de viagem marcada para um sítio.
Quando chegaram em casa com as compras e não encontraram espaço
nos armários e na geladeira, pediram a Joyce que buscasse dois sacos
de lixo. Despejaram ali bandejas de carne, frango, peixe, linguiça.
“Ela amarrou e deu pra mim. Cheguei em casa com muita raiva, abri
o saco, joguei tudo no meio da sala e falei para o meu ex-marido que
a gente ia jantar o lixo da casa das minhas patroas.”
Só no ano passado Preta Rara conseguiu dividir essas experiências
com outras pessoas – até então não havia dito a ninguém. “Todas as
mulheres da minha família, as mais velhas do que eu, foram
empregadas e eu passei a infância ouvindo elas reclamarem. Não
podia chegar para minha madrinha ou para a minha mãe e dizer que
tinha sido maltratada”.
Decidiu expor os casos na internet, por meio da página “Eu,
empregada doméstica”, que hoje já tem mais de 140 mil curtidas,
projeção internacional e centenas de histórias de mulheres de todo o
país. “A gente recebe cada relato. Tem uma senhora, trabalhadora
doméstica, que deixa um pote de margarina para poder urinar na área
de serviço, dentro do potinho.” Dados de 2014 da Organização
Internacional do Trabalho mostram que 60% das trabalhadoras
domésticas do Brasil são negras.
“É uma opção que não é uma opção. Hoje, mesmo formada e tendo
inúmeras possibilidades de trabalho, o meu maior medo é ter que
voltar a ser doméstica”, conta. “Eu queria estudar e uma das patroas
falava que se a minha mãe e minha avó foram [domésticas], eu tinha
que ser feliz com aquilo. Não acredito nisso, mas o medo ainda toma
conta em alguns momentos.”
Contrariando a previsão da ex-patroa, Preta Rara se formou em
História pela Universidade Católica de Santos em 2011 e lecionou
nos seis anos seguintes em um colégio particular de periferia da
cidade. Dividia-se entre os palcos e a sala de aula – só ela tomava
conta de oito turmas de alunos entre 12 e 16 anos. “Eles falavam que
os amigos não acreditavam que eu era a professora deles. Na saída da
escola sempre tinha um primo, um amigo que ia lá para ver se era
verdade”, lembra. A falta que sente do contato diário com os
adolescentes é suprida pelas oficinas de rima que ministra em
Fábricas de Cultura e em unidades da Fundação Casa.
Neste ano, a artista espera consolidar uma agenda de shows na
capital – seu primeiro disco solo, Audácia, foi lançado em outubro de
2015. Além disso, quer continuar o projeto do livro Eu, empregada
doméstica, no qual pretende misturar suas histórias pessoais com as
de sua avó, sua mãe e os relatosque recebe por meio da página.
Também estuda lançar, de forma independente, uma marca de roupas
plus size, e promover uma Ocupação GGG (encontro de mulheres
gordas) na capital. Neste semestre, no entanto, as energias estão
voltadas para o lançamento de sua websérie de dez episódios, Nossa
voz ecoa.
Com tantos projetos, a intenção de Preta Rara é “colocar o dedo na
ferida”. “A partir do momento em que as pretas conseguem ingressar
na universidade e publicar na internet que não é normal a amiga te
chamar de macaquinha ou uma pessoa branca encostar no seu cabelo
e te chamar de exótica, houve um boom”, afirma. “Hoje fico feliz de
ver meninas de 13 anos já falando de cabelo, de racismo reverso, de
aceitação. Nessa idade eu estava chorando, com raiva das pessoas que
me julgavam pela minha cor, pelo meu peso.”
Preta Rara integra uma nova geração de mulheres negras que faz
barulho – na internet, nos palcos e nas ruas – diante de qualquer ranço
de preconceito, seja de gênero, raça ou classe. É o que ela chama de
geração incômodo: gente que está ali para incomodar com a sua fala,
com seu estilo, com seu jeito de pensar, de se vestir, e com isso
provocar algum tipo de mudança, por menor que seja, na cabeça das
pessoas. “O incômodo é por onde eu passo: quando estou com o
cabelo azul, vermelho, nas minhas ideias, no meu rap, no meu jeito de
mostrar que lugar de mulher é onde ela quiser”, diz. “Mas eu falo e
jogo o incômodo de volta. Não fica mais comigo.” 
dossiê Arte e psicanálise
Apresentação
GILSON IANNINI
A primeira pergunta que precisa ser feita, a fim de abordar o
problema das relações entre psicanálise e a arte, é a seguinte: com que
direito, ou a que título, ou ainda com que credenciais a psicanálise se
investe da tarefa de emitir juízos sobre a arte e sobre os artistas? Esta
primeira pergunta imediatamente se desdobra em outras. Até que
ponto uma teoria do inconsciente psíquico está em condições de
extrapolar seu campo primeiro de aplicação e se enveredar por
teatros, museus, salas de concerto, telas, esculturas, instalações etc.?
Sendo uma disciplina eminentemente clínica, não corremos o risco de
transformar a psicanálise em uma visão de mundo, em um sistema
totalizante capaz de decifrar o sentido de tudo o que se apresente
diante do olhar suspeito e da escuta atenta do psicanalista?
São bem conhecidas as incursões de Freud nos diversos domínios
da arte, desde o teatro e a literatura até as artes plásticas. Comecemos
por seu interesse pela tragédia clássica grega. Um conceito como o de
“complexo de Édipo”, que qualquer pessoa medianamente informada
sabe mais ou menos o que quer dizer, é o resultado mais evidente da
aproximação entre a psicanálise e o teatro grego. Mas trata-se muito
mais de um empréstimo da arte à psicanálise, e não do contrário.
Trata-se muito mais de fornecer coordenadas acerca da relação do
desejo às leis, do que de analisar a tragédia de Édipo sobre o prisma
dos efeitos poéticos que ela ocasiona.
No terreno da literatura de língua alemã, no qual Freud privilegia
Friedrich Schiller, Goethe e Heinrich Heine como interlocutores de
maior monta, ocorre algo dessa natureza. Em muitos momentos,
trechos desses autores ilustram conceitos e/ou arejam a argumentação
às vezes demasiado árida. Mas, sobretudo, cumprem a importante
função de fornecer um ponto de apoio quando as longas cadeias de
raciocínio parecem se esgotar diante de impasses teóricos e
conceituais. Só isso já seria suficiente para demonstrar a importância
prática que Freud conferia à arte e à autoridade dos artistas.
Além disso, temos, ainda, as conhecidas incursões de Freud na
psicologia de alguns artistas proeminentes, como Leonardo da Vinci,
Michelangelo, Goethe, Jensen e Dostoiévski. Em geral, estes textos
procuram desvendar mecanismos psíquicos e pulsionais subjacentes à
criação artística. Muitos autores, como Ernst Gombrich, assinalaram a
“disposição racionalista e analítica” de Freud, que parece se interpor
como uma espécie de anteparo entre ele e a obra em questão, fazendo
ressaltar, em primeiro lugar, uma análise que privilegiaria o conteúdo
das obras, muito mais do que aspectos formais ou mesmo materiais.
Foi assim que Gombrich apontou os limites da abordagem freudiana
das obras de arte, levando consigo uma miríade de leitores e críticos
de Freud. Essa leitura, no entanto, se mostra parcial, como
recentemente demonstra Ernani Chaves em seu primoroso prefácio de
Arte, literatura e os artistas, primeira coletânea dos textos estéticos
de Freud publicada no Brasil.
Quanto às soluções que determinados sujeitos dão aos seus
conflitos psíquicos pela via da sublimação, o que interessa investigar
é justamente o que faz com que determinados objetos estéticos se
prestem melhor a estas soluções. É por isso que François Regnault,
um especialista em estética lacaniana, tem razão ao afirmar que Freud
tenha conseguido evitar, pelo menos no essencial, a “reduzir a arte a
uma economia dos afetos”. O conceito central da estética freudiana é
a sublimação. Nem perversão, nem recalque: eis o espaço tênue em
que a sublimação se vê encantoada. Sua principal característica seria
a eleição de alvos dessexualizados para satisfação de moções
pulsionais originariamente sexuais. Ou seja, a satisfação é obtida
através do desvio da pulsão para objetos “culturais”.
Mas este desvio ocorreria sem a participação do recalcamento e,
portanto, este não implicaria uma formação substitutiva, um sintoma
clássico. Isto é, embora o objeto de satisfação seja não sexual – um
objeto culturalmente valorizado –, a forma da satisfação e da
produção de prazer conservaria o modelo de satisfação próprio à
satisfação sexual, ao deixar quase intacta a excitação originária. Por
isso, a enorme atratividade da arte e o fascínio exercido pelos artistas.
Lembremos a célebre analogia proposta por Freud em seu Totem e
tabu, de 1913: “uma histeria é imagem distorcida de uma obra de
arte, uma neurose obsessiva, uma imagem distorcida de uma religião,
e uma mania paranoica, uma imagem distorcida de um sistema
filosófico”. O que Freud sublinha é exatamente o caráter associal da
neurose, o que fornece um contraponto perfeito à arte vista como
produto social. Nesse sentido, fica mais clara a oposição entre o
recalcamento e a sublimação do ponto de vista dos modos de
interação entre o sujeito e a cultura. Não se trata, pois, de sistematizar
uma teoria freudiana da arte, mas de como determinados modos de
subjetivação podem ser pensados a partir da desfiguração de um
modelo emprestado das produções sociais. Por seu turno, Lacan
acrescentaria que o pano de fundo é sempre o modo como os saberes
lidam com o vazio.
O vazio aqui é tomado como a impossibilidade de encontrar uma
representação simbólica ou pictórica que dê conta da radical
singularidade dos desejos inconscientes. Diante do vazio deixado pela
impossibilidade de dar sentido à frustração do desejo, à falta de um
objeto adequado à fantasia, três saídas se apresentam: a religião, a
ciência e a arte. Nesse contexto, Lacan introduz o problema do vazio
como uma questão fundamental no tratamento da problemática da
sublimação. Pensar a sublimação como um modo de satisfação
libidinal caracterizado por uma “conciliação fácil entre o indivíduo e
o coletivo” parece a Lacan uma verdadeira “cilada”. É esta a razão
que o leva a denunciar o engodo de situar a sublimação na vertente do
narcisismo. Pensar a sublimação segundo o modelo do narcisismo
implica tomar o objeto como algo “perpetuamente intercambiável
com o amor que o sujeito tem por sua própria imagem”.
Por essa razão, a sublimação lacaniana não oferece ao sujeito um
horizonte de reconciliação qualquer com o desejo cujo objeto lhe
escapa. De fato, poetas, pintores, músicos, artistas em geral, não
menos do que não artistas, se matam, se automutilam, se deixam
devastar pelo gozo até a morte. O problema da sublimação vai
apontar a diferença entre o objeto narcisicamente investido e a Coisa,
que é o nome do objeto quando este não mais tem nome, nem
imagem.
Assim, aestética da psicanálise, ou, mais precisamente, o domínio
de reflexões inspiradas no dispositivo conceitual da psicanálise que se
volta para questões relativas à arte, não é uma aplicação da
psicanálise à arte, mas, ao contrário, uma aplicação da arte à
psicanálise, conforme insiste Regnault. Não se trata de submeter à
interpretação analítica a obra ou o artista, colocando a arte no lugar de
objeto ou o artista no divã. Trata-se, diferentemente, de recolher, no
campo freudiano, os efeitos de verdade ocasionados pela simples
existência de determinadas obras. Os textos reunidos neste Dossiê
buscam, cada um a seu modo, superar a lógica instrumental contida
na fórmula “x aplicado a y”, como nos alerta Célio Garcia com as
ideias de “interface” e de “psicanálise implicada”.
Uma estética à lacaniana seria uma estética que se pergunta por que
certos objetos se prestam melhor a essa inadequação com a ordem
simbólica. A arte, principalmente certa vertente da arte
contemporânea, seria então figura de certo excesso de real − que
desnuda a precariedade do simbólico − espécie de ruína, de catástrofe
das imagens da reconciliação. O caminho que vai da imagem
simbólica ao objeto retirado da imagem, isto é, ao objeto extraído de
toda relação de duplicidade, caracterizaria, na visão deste autor, a arte
do século 20. E nesse sentido, Judy Wajcman tem razão em afirmar
que “Lacan é contemporâneo desta arte do século 20, que se
singulariza por enquadrar o objeto como singularidade absoluta, sem
duplo e sem imagem”. Nisso residiria a corresponsabilidade entre a
arte e a psicanálise.
O presente Dossiê é composto de quatro ensaios. O primeiro deles,
de Ernani Chaves, visa situar algumas balizas freudianas para a
discussão das relações entre arte e psicanálise. Em seguida, três
ensaios abordam a arte contemporânea. Tania Rivera trabalha uma
obra de Helio Oiticica sob a perspectiva não hierárquica das relações
entre arte e psicanálise. Em seguida, Edson de Sousa aborda a obra de
Evgen Bavcar, sublinhando o caráter sempre utópico da criação
artística. Finalmente, a complexidade da “arte pobre” do artista
italiano Giuseppe Penone é problematizada por Guilherme Massara e
Marina Dayrrel. 
A criação artística como metamorfose
ERNANI CHAVES
Os textos de Freud sobre estética foram, em geral, muito criticados.
Neles, denunciava-se o fato de que as obras de arte eram interpretadas
como meras projeções da vida de seus autores. Com isso, Freud
ignorava ou, no mínimo, não levava em consideração a autonomia
das obras, o seu caráter propriamente estético ou ainda a sua forma.
Mesmo entre os psicanalistas, essa desconfiança é muito forte.
Entretanto, uma leitura mais atenta e cuidadosa desses textos,
favorecidos que somos pela distância histórica que nos separa do seu
primeiro impacto, pode nos abrir novas possibilidades de leitura. Não
se trata, evidentemente, de ignorar as críticas e mesmo de considerá-
las pertinentes e sim ao contrário, de tentar entender o que está em
jogo neles, não apenas a partir de uma análise interna à obra de Freud,
mas também de indicar o diálogo que eles estabelecem com a tradição
dos estudos de estética e, ao mesmo tempo, com questões e
problemas colocados na sua própria época. Com isso, retiram-se esses
textos de seu lugar secundário, como se eles fossem um subproduto
no interior do pensamento de Freud, um exercício de diletantismo por
parte dele. Ao contrário, é preciso jogar Freud contra Freud, ou seja,
lê-los em grande parte a contrapelo das posições explícitas que o
próprio Freud tomou em relação ao seu interesse por arte. Em outras
palavras, é preciso desconfiar de Freud ou, no mínimo, não tomar
muitas de suas declarações como uma confissão de humildade ou do
reconhecimento, puro e simples, de certa incompetência que ele
próprio diz ter no trato com esses assuntos. Enfim, trata-se de tomar
essas declarações como um artifício retórico, que visa, muito
provavelmente, despistar o leitor das questões técnicas, para
encaminhá-lo rumo ao que para Freud realmente interessava.
Tomo como exemplo o célebre primeiro parágrafo de Moisés de
Michelangelo, de 1913, no qual Freud como que se desculpa pelo fato
de ousar escrever sobre o artista. Ele afirma, logo no início, que não é
“nenhum conhecedor de arte, e sim um leigo”, que possui uma
evidente limitação, qual seja, a de que seu interesse é muito mais pelo
“conteúdo de uma obra de arte” do que por suas “qualidades formais
e técnicas”, embora reconheça que é sobre essas últimas que o
próprio artista atribui “valor” a sua obra. Por fim, ápice de uma
pretensa humildade, reconhece que lhe faltam condições para um
“entendimento correto” das obras, esperando com isso “assegurar um
julgamento indulgente” por parte do leitor – muito especialmente por
parte dos especialistas. O “acanhamento” de Freud devido a essas
limitações o teria, inclusive, levado a publicar o texto anonimamente.
Ora, o leitor atento certamente irá reconhecer que esse primeiro
parágrafo não parece inteiramente verdadeiro. Não só ele é resultado
de uma extensa e erudita pesquisa bibliográfica, como também do
estudo in loco da obra analisada, desde sua primeira viagem a Roma,
em 1901, ou seja, imediatamente após a publicação da Interpretação
dos sonhos, em 1899. Esses dois aspectos reunidos acabam por
problematizar a afirmação de Freud de que seu interesse se limita aos
“efeitos” das obras e não à sua forma. Pois é justamente para
sustentar sua argumentação, a contrapelo de uma série de
interpretações às quais ele se refere, que se fez necessária a atenção à
forma. Sem essa atenção, sem a minuciosa descrição da apresentação
física do profeta, sua atitude, do ponto de vista psíquico, não poderia
ser compreendida. Se Michelangelo pode, aos olhos de Freud,
contrariar o relato bíblico e não se deixar sucumbir à ira causada pela
visão dos hebreus adorando o bezerro de ouro, essa conclusão só é
possível pela análise atenta e minuciosa dos inúmeros detalhes da
composição formal da escultura: da posição das mãos – do modo
como a mão direita agarra as Tábuas da Lei e a esquerda se crava na
barba – até a posição dos pés, um aspecto fundamental. O pé
esquerdo levemente levantado significaria que Moisés intentou um
gesto, o de se atirar contra seu próprio povo para aplicar-lhe um
castigo levando consigo as Tábuas da Lei, algo que ele não
completou, uma vez que o pé direito continuou solidamente plantado
no chão. Em outras palavras, a tese central de Freud, segundo a qual o
conteúdo da obra, qual seja, a dominação da ira por parte de Moisés –
este nem quebra as Tábuas da Lei e nem está em pé, conforme diz o
relato bíblico –, expressaria a dominação da própria ira de
Michelangelo diante da autoridade e das exigências do Papa Júlio II,
para cujo sepulcro a escultura tinha sido encomendada. Assim, a cena
retratada na escultura, na qual a ira contida de Michelangelo é
transportada para a de Moisés, só faz sentido por meio de uma detida
e minuciosa análise de seus elementos formais e técnicos.
Dois outros aspectos presentes nesse texto devem ser destacados,
uma vez que eles contrariam, em larga medida, os clichês usuais. Em
primeiro lugar, a inserção histórica da obra e, portanto, do próprio
processo criativo do artista na história. Ou seja, não é possível
compreender a atitude transgressora de Michelangelo sem o inserir
em sua época, a Renascença. Michelangelo contraria o cânone, que
mesmo na Renascença não permitia alterações no relato bíblico. Por
sua vez, se entre Michelangelo e Júlio II se estabelece uma relação
tensa e conflituosa, é porque se trata de uma relação marcada pelo
modo como uma instituição, a do “mecenato”, nascida pela
organização, por Caio Mecenas, de um círculo de artistas em volta do
Imperador Augusto, poucos anos antes do início da assim chamada
“era cristã”, foi reconfigurada pela Renascença. Assim, a relação
entre o artista e o papa expressa o modo pelo qual a atividade do
artista começa a interagir com as novas formas de significação do
trabalho em geral, tal como elas começam