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Autor: Prof. Alexandre Cavalcante de Queiroz Colaboradoras: Profa. Roberta Pasqualucci Ronca Profa. Laura Cristina da Cruz Dominciano Fundamentos de Saúde Coletiva Professor conteudista: Alexandre Cavalcante de Queiroz Graduado em Odontologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 1996. Especialista em Endodontia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), em 1998. Mestre em Ciências Biológicas (Área de Microbiologia) pela Universidade de São Paulo (USP), em 2001. Doutor em Patologia Ambiental e Experimental pela Universidade Paulista (UNIP), em 2017. Desde 2001, é professor titular da UNIP. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Q3f Queiroz, Alexandre Cavalcante. Fundamentos de Saúde Pública / Alexandre Cavalcante Queiroz – São Paulo: Editora Sol, 2020. 108 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Saúde pública. 2. Poluição. 3. Doenças. I. Título. CDU 614 U504.42 – 20 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Willians Calazans Jaci Albuquerque Sumário Fundamentos de Saúde Coletiva APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................9 Unidade I 1 HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL ........................................................................................... 11 1.1 Histórico do sistema de saúde brasileiro .................................................................................... 11 1.1.1 Antecedentes do SUS .............................................................................................................................11 1.1.2 Oitava Conferência Nacional de Saúde (8ª CNS) ....................................................................... 13 1.1.3 Definição de SUS ..................................................................................................................................... 15 1.1.4 Direito a saúde ......................................................................................................................................... 15 1.1.5 Processo de implantação do SUS ..................................................................................................... 15 1.1.6 Princípios doutrinários do SUS ......................................................................................................... 16 1.1.7 Princípios que regem a organização do SUS ............................................................................... 18 1.1.8 Complementariedade do setor privado ......................................................................................... 19 1.1.9 Atribuições do SUS ................................................................................................................................. 19 1.1.10 Normas operacionais básicas (NOB) ............................................................................................. 20 2 ESTRUTURA DA GESTÃO DO SUS .............................................................................................................. 21 2.1 O que é ser gestor do SUS? .............................................................................................................. 21 2.2 Qualificação de gestores do SUS ................................................................................................... 22 2.3 Funções dos gestores do SUS .......................................................................................................... 22 2.3.1 Comissões intergestores na saúde ................................................................................................... 24 2.3.2 Conselhos participativos na saúde .................................................................................................. 25 2.4 Estrutura do SUS .................................................................................................................................. 26 2.5 Financiamento do SUS ....................................................................................................................... 27 2.6 Funções gestoras e atribuições dos governos estaduais no SUS ...................................... 28 2.7 Pactos pela saúde ................................................................................................................................. 29 3 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE - OSS .......................................................................................... 31 3.1 Organizações sociais e as formas de relacionamento com o Estado .............................. 31 3.2 Contratualização e sua aplicabilidade na gestão da atenção primária à saúde ........ 32 3.3 Público e privado .................................................................................................................................. 33 4 POLUIÇÃO AMBIENTAL .................................................................................................................................. 34 4.1 Saúde ambiental ................................................................................................................................... 34 4.1.1 Princípios de saúde ambiental .......................................................................................................... 35 4.2 Saneamento ambiental ...................................................................................................................... 37 4.2.1 Ações de saneamento ambiental ..................................................................................................... 37 4.3 Qualidade e eficiência dos serviços de saneamento .............................................................. 38 4.4 Vigilância ambiental (VA) .................................................................................................................. 38 4.4.1 Vigilância da qualidade da água para consumo humano (Vigiagua) ................................ 40 4.4.2 Vigilância em saúde de populações expostas a solo contaminado (Vigisolo) ............... 40 4.4.3 Vigilância em saúde ambiental relacionada à qualidade do ar (Vigiar) ........................... 40 4.4.4 Vigilância em saúde ambiental relacionada às substâncias químicas (Vigiquim)..............40 4.4.5 Vigilância em saúde ambiental relacionada a fatores físicos (Vigifis) .............................. 41 4.4.6 Vigilância em saúde ambiental dos riscos decorrentes dos desastres naturais (Vigidesastres) .................................................................................................................................... 41 4.5 Água na natureza .................................................................................................................................41 4.5.1 Sistemas de abastecimento ................................................................................................................ 42 4.6 Poluição da água .................................................................................................................................. 42 4.6.1 Relação da água com a saúde humana ......................................................................................... 43 4.7 Doenças de veiculação hídrica ........................................................................................................ 43 4.8 Tratamento da água ............................................................................................................................ 45 4.8.1 Sistemas de tratamento ....................................................................................................................... 45 4.9 Tratamento de esgoto (águas residuais) ..................................................................................... 49 4.9.1 Tratamento primário do esgoto ........................................................................................................ 49 4.9.2 Tratamento secundário do esgoto ................................................................................................... 50 4.9.3 Tratamento terciário do esgoto ........................................................................................................ 52 4.10 Considerações importantes sobre a água ................................................................................ 53 Unidade II 5 POLUIÇÃO DO SOLO ....................................................................................................................................... 60 5.1 Agrotóxicos ............................................................................................................................................. 60 5.1.1 Agrotóxicos e poluição ......................................................................................................................... 60 5.2 Mineração ................................................................................................................................................ 62 5.2.1 Mineração e poluição ............................................................................................................................ 62 5.3 Resíduos sólidos .................................................................................................................................... 64 5.3.1 Conceitos importantes ......................................................................................................................... 65 5.3.2 Classificação dos resíduos sólidos .................................................................................................... 68 5.3.3 Saneamento básico ................................................................................................................................ 69 5.3.4 Destino dos resíduos sólidos .............................................................................................................. 70 6 POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA ............................................................................................................................ 78 6.1 Atmosfera e poluição .......................................................................................................................... 78 6.2 Poluente ................................................................................................................................................... 78 6.2.1 Alguns poluentes e seus efeitos ....................................................................................................... 78 6.3 Poluidor .................................................................................................................................................... 79 6.4 Instrumentos administrativos para a prevenção da poluição do ar ................................ 79 6.5 Normas de fixação de padrões de qualidade do ar ................................................................ 79 6.6 Impactos da poluição na saúde pública...................................................................................... 80 6.7 Aquecimento global ............................................................................................................................ 80 6.7.1 Efeito estufa .............................................................................................................................................. 80 6.7.2 Protocolo de Quioto .............................................................................................................................. 81 6.8 Impactos da mudança climática .................................................................................................... 81 6.8.1 Doenças ...................................................................................................................................................... 81 6.8.2 Desmatamento e emissão de dióxido de carbono .................................................................... 82 6.8.3 Outros fenômenos atmosféricos ...................................................................................................... 82 6.9 Principais problemas de saúde ambiental .................................................................................. 83 6.9.1 Uso e transporte de energia ............................................................................................................... 84 7 PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO (PRONAN) ......................................... 84 7.1 Histórico das políticas públicas de alimentação e nutrição em saúde no Brasil ...................84 7.2 Antecedentes das políticas públicas de alimentação e nutrição em saúde ................. 85 7.3 Abordagem tecnocrática nas políticas de alimentação e nutrição (1960-1980) .................86 7.4 Redemocratização em favor da resolução dos dilemas sociais (1980 em diante) .......................................................................................................................................... 88 8 VETORES DE DOENÇAS .................................................................................................................................. 92 8.1 Principais vetores e doenças que transmitem .......................................................................... 92 8.2 Manejo integrado de vetores (MIV) .............................................................................................. 93 8.3 Controle de vetores ............................................................................................................................. 93 8.3.1 Controle biológico .................................................................................................................................. 94 8.3.2 Controle mecânico ou ambiental ..................................................................................................... 94 8.3.3 Controle químico .................................................................................................................................... 94 9 APRESENTAÇÃO Nosso propósito é apresentar os fundamentos básicos da saúde coletiva. Ela é o efeito das interações socioeconômicas de uma sociedade com o ambiente e o quanto isso pode influenciar a salubridade de uma região ou de uma comunidade. Ao contrário das demais áreas de saúde que tendem a possuir um caráter de tratamento, a saúde coletiva tem como objetivo principal prevenir o desenvolvimento ou a disseminação de patologias e demais problemas de saúde, por meio da implantação de perfis sanitários condizentes com a cultura e a necessidade de uma região. O objetivo deste livro é ampliar o conhecimento no tocante ao Sistema Único de Saúde (SUS), além de entender aspectos relacionados à saúde ambiental, como poluição da água, do ar e do solo e seu impacto.Analisamos ainda alguns fatores relacionados à vigilância em saúde ambiental. INTRODUÇÃO Estudaremos a saúde coletiva no Brasil, o surgimento do SUS, suas diretrizes e princípios organizacionais, atribuições, gestão e financiamento. Aprenderemos também sobre as organizações sociais de saúde (OSS) e o saneamento ambiental, dando ênfase à poluição das águas, sistemas de tratamento de água e esgoto e doenças de veiculação hídrica. Além disso, enfatizamos aspectos do saneamento do ar e do solo, gestão de resíduos sólidos, doenças relacionadas à poluição do ar e à contaminação do solo. Vamos estudar também as políticas de alimentação e nutrição e o controle de vetores causadores de doenças. 11 FUNDAMENTOS DE SAÚDE COLETIVA Unidade I 1 HISTÓRIA DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL A saúde pública no Brasil, sob a perspectiva histórica, pode ser dividida em três grandes etapas: • Descobrimento até 1923 (Lei Eloy Chaves): este período é basicamente caracterizado pela centralização e pela desorganização administrativa, iniciado com o descobrimento do Brasil, passando pelo período colonial e pelo Império, até chegar ao início da República. São, de qualquer forma, dignas de nota algumas das iniciativas adotadas nesse período. Mas, de qualquer modo, as medidas de saúde pública implementadas traziam sempre a marca das iniciativas isoladas, nem sempre concatenadas entre si, fundamentadas basicamente na filantropia. • 1923 a 1988 (promulgação da Constituição Federal): com o advento da Lei Eloy Chaves, em 1923, quando foram criadas as caixas de aposentadoria e pensão, seguidas (e substituídas) pelos institutos de aposentadoria e pensão (IAP), estes, depois, em 1960, substituídos pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), paralelamente à criação do Ministério da Saúde (em 1953, com suas finalidades mais bem definidas em 1967) e o sistema nacional de saúde (em 1975), o sistema de saúde público foi adotando contornos vinculados às políticas previdenciárias, inclusive quanto à parte de seu custeio e manutenção. • Vigência da Constituição Federal: somente com o advento da Constituição Federal, em 1988, sucedida pela legislação complementar (Lei n. 8.080/1990, Lei n. 8.142/1990, Emenda Constitucional n. 29/2000, Decreto n. 7.508/2011 e Lei Complementar n. 141/2012), foram traçadas as bases legais atuais de funcionamento do SUS. 1.1 Histórico do sistema de saúde brasileiro 1.1.1 Antecedentes do SUS Antes da criação do SUS, o Ministério da Saúde, com o apoio dos estados e municípios, desenvolvia quase exclusivamente ações de promoção da saúde e prevenção de doenças, com destaque para as campanhas de vacinação e controle de endemias. Todas essas ações eram desenvolvidas com caráter universal, ou seja, sem nenhum tipo de discriminação com relação à população beneficiária. Na área de assistência à saúde, o Ministério da Saúde atuava apenas por meio de alguns poucos hospitais especializados, nas áreas de psiquiatria e tuberculose, além da ação da Fundação de Serviços Especiais de Saúde Pública (FSESP) em algumas regiões específicas, com destaque para o interior do Norte e do Nordeste. Essa ação, também chamada de assistência médico-hospitalar, era prestada à parcela da população definida como indigente, por alguns municípios e estados e, principalmente, por instituições de caráter filantrópico. 12 Unidade I Essa população não tinha nenhum direito e a assistência que recebia era na condição de um favor, uma caridade. A grande atuação do poder público nessa área se dava por meio do INPS, que depois passou a ser denominado Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), autarquia do Ministério da Previdência e Assistência Social. O INPS foi o resultado da fusão dos IAPs de diferentes categorias profissionais organizadas (bancários, comerciários, industriários etc.), que posteriormente foi desdobrado em Instituto de Administração da Previdência Social (Iapas), INPS e Inamps. Esse último tinha a responsabilidade de prestar assistência à saúde de seus associados, o que justificava a construção de grandes unidades de atendimento ambulatorial e hospitalar, como também a contratação de serviços privados nos grandes centros urbanos, onde estava a maioria dos seus beneficiários. A assistência à saúde desenvolvida pelo Inamps beneficiava apenas os trabalhadores da economia formal, com carteira assinada, e seus dependentes, ou seja, não tinha o caráter universal, que passa a ser um dos princípios fundamentais do SUS. Dessa forma, o Inamps aplicava nos estados, por meio de suas superintendências regionais, recursos para a assistência à saúde de modo mais ou menos proporcional ao volume existente de recursos arrecadados e de beneficiários. Portanto, quanto mais desenvolvida a economia do estado, com maior presença das relações formais de trabalho, maior o número de beneficiários e, consequentemente, maior a necessidade de recursos para garantir a assistência a essa população. Assim, o Inamps aplicava mais recursos nos estados das regiões Sul e Sudeste, mais ricos, e, nessas e em outras regiões, em maior proporção nas cidades de maior porte. Nessa época, os brasileiros, com relação à assistência à saúde, estavam divididos em três categorias: • Os que podiam pagar pelos serviços. • Os que tinham direito à assistência prestada pelo Inamps. • Os que não tinham nenhum direito. Esses recursos eram utilizados para o custeio das unidades próprias do Inamps (postos de assistência médica e hospitais) e, principalmente, para a compra de serviços da iniciativa privada. Com a crise de financiamento da Previdência, que começa a se manifestar a partir de meados da década de 1970, o Inamps adota várias providências para racionalizar suas despesas e começa, na década de 1980, a comprar serviços do setor público (redes de unidades das secretarias estaduais de saúde [SES] e das secretarias municipais de saúde [SMS]), inicialmente por meio de convênios. A assistência à saúde prestada pela rede pública, apesar do financiamento do Inamps apenas para os seus beneficiários, preservou seu caráter de universalidade da clientela. Também, nessa época, o Inamps passa a dar aos trabalhadores rurais, até então precariamente assistidos por hospitais conveniados com o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural), um tratamento equivalente àquele prestado aos trabalhadores urbanos. Mesmo com a crise que já se abatia sobre o Inamps, essa medida significou uma grande melhoria nas condições de acesso dessa população aos serviços de saúde, particularmente na área hospitalar. No final da década de 1980, o Inamps adotou uma série de medidas que o aproximou ainda mais de uma cobertura universal de clientela, entre elas se destaca o fim da exigência da carteira de segurado do Inamps para o atendimento nos hospitais próprios e conveniados da rede pública. Esse processo culminou com a instituição do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), implementado por 13 FUNDAMENTOS DE SAÚDE COLETIVA meio da celebração de convênios entre o Inamps e os governos estaduais. Assim, começava a se construir no Brasil um sistema de saúde com tendência à cobertura universal, mesmo antes da aprovação da Lei n. 8.080/1990 (também conhecida como Lei Orgânica da Saúde), que instituiu o SUS. Isso foi motivado, por um lado, pela crescente crise de financiamento do modelo de assistência médica da Previdência Social e, por outro, pela grande mobilização política dos trabalhadores da saúde, de centros universitários e de setores organizados da sociedade, que constituíam o então denominado Movimento da Reforma Sanitária, no contexto da democratização do país. 1.1.2 Oitava Conferência Nacional de Saúde (8ª CNS) Foram cinco dias de debates, mais de quatro mil participantes, 135 grupos de trabalho e objetivos muito claros: contribuir para a formulação de um novo sistema de saúde e subsidiar as discussões sobre o setor na futura Constituinte. A 8ª CNS, realizada entre17 e 21 de março de 1986, foi um dos momentos mais importantes na definição do SUS e debateu três temas principais: • A saúde como dever do Estado e direito do cidadão. • A reformulação do sistema nacional de saúde. • O financiamento setorial. O relatório final aponta a importante conclusão de que as mudanças necessárias para a melhoria do sistema de saúde brasileiro não seriam alcançadas apenas com uma reforma administrativa e financeira. Era preciso que se ampliasse o conceito de saúde e se fizesse uma revisão da legislação. Em outras palavras, implantar uma reforma sanitária. O crescimento do movimento sanitário, organizado desde os anos 1970, foi crucial para o amplo debate dessas questões. Enquanto o país passava pelo processo de redemocratização, o movimento ganhou consistência e avançou na produção de conhecimento, com a criação de órgãos como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1976, e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), em 1979. Em meados dos anos 1980, alguns dos integrantes do movimento conquistaram cargos importantes para a condução da política setorial. Sérgio Arouca assumiu a Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro, e Hésio Cordeiro a presidência do Inamps. A convocação da 8ª CNS se deu durante um conflito entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Previdência e Assistência Social. Uma das propostas do movimento sanitário era levar o Inamps para dentro do Ministério da Saúde, de forma que a assistência à saúde, restrita aos previdenciários, pudesse ser estendida. A 8ª CNS foi a primeira conferência que contou com a participação de usuários. Antes dela, os debates se restringiam à presença de deputados, senadores e autoridades do setor. O relatório final apontava o consenso em relação à formação de um sistema único de saúde, separado da Previdência, e coordenado, em nível federal, por um único ministério. O financiamento se daria por impostos gerais e incidentes sobre produtos e atividades nocivas à saúde. Também foram aprovadas na 8ª CNS as propostas de integralização 14 Unidade I das ações, de regionalização e hierarquização das unidades prestadoras de serviço e de fortalecimento do município. O relatório aponta ainda a necessidade de participação popular, por meio de entidades representativas, na formulação da política, no planejamento, na gestão e na avaliação do sistema. Outra grande resolução diz respeito a um conceito mais abrangente de saúde, que é descrito no relatório final como resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer, liberdade, acesso à posse de terra e a serviços de saúde. Até então, o conceito de saúde mais amplo e avançado era aquele formulado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), nos anos 1940, que dizia que saúde não é apenas ausência de doença, mas o mais completo estado de bem-estar físico, social e mental. Os delegados da 8ª CNS atribuíram ao Estado o dever de garantir condições dignas de vida e de acesso universal à saúde, e apontaram a necessidade de integrar a política de saúde às demais políticas econômicas e sociais. Para que as resoluções da 8ª CNS pudessem se estruturar melhor e chegar à nova Constituição Federal, foi criada a Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), que funcionou de agosto de 1986 a maio de 1987. A CNRS era composta de representantes de segmentos importantes, inclusive do setor privado, Confederação Nacional do Comércio (CNC), Confederação Nacional da Indústria (CNI), Sociedade Brasileira de Hospitais, gestores públicos, membros da Academia e integrantes da Abrasco. Lembrete A 8ª CNS é considerada um marco da reforma sanitária. A subcomissão considerou o documento da CNRS no momento da redação da seção sobre o SUS na Constituição Federal. O relatório final foi enviado à Comissão da Ordem Social e, de lá, foi para a Comissão de Sistematização, que era responsável por elaborar o projeto final da Constituição Federal. Nessa etapa, o movimento sanitário, representado por Sérgio Arouca, apresentou ao Congresso uma emenda popular, que agregava ao documento analisado anteriormente mais de cinquenta mil assinaturas. A emenda popular era uma forma de legitimar o documento que chegava à Comissão. E esse projeto foi aprovado quase na íntegra. Saiba mais Assista ao pronunciamento do sanitarista Sérgio Arouca durante a 8ª CNS, em 1986, em Brasília (DF), que representa um marco na história do SUS: DEMOCRACIA é saúde. Direção: VídeoSaúde. Brasil: Comissão Organizadora da 8ª CNS; Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 1986. 4 min. Disponível em: https://bvsarouca.icict.fiocruz.br/galeria_video.htm. Acesso em: 24 out. 2019. 15 FUNDAMENTOS DE SAÚDE COLETIVA 1.1.3 Definição de SUS O SUS é uma nova formulação política e organizacional para o reordenamento dos serviços e ações de saúde estabelecida pela Constituição Federal de 1988. Ele não é o sucessor do Inamps, tampouco do Suds. O SUS é o novo sistema de saúde que está em construção. Por que sistema único? Porque ele segue a mesma doutrina e os mesmos princípios organizativos em todo o território nacional, sob a responsabilidade das três esferas autônomas de governo: federal, estadual e municipal. Assim, o SUS não é um serviço ou uma instituição, mas um sistema, que significa um conjunto de unidades, de serviços e ações que interagem para um fim comum. Esses elementos integrantes do sistema referem-se, ao mesmo tempo, às atividades de promoção, proteção e recuperação da saúde. 1.1.4 Direito a saúde A saúde consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, no artigo XXV, que define que todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a ele e sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis. Ou seja, o direito à saúde é indissociável do direito à vida, que tem por inspiração o valor de igualdade entre as pessoas. 1.1.5 Processo de implantação do SUS A partir das definições legais estabelecidas pela Constituição Federal de 1988 e da Lei Orgânica de Saúde, se iniciou o processo de implantação do SUS, sempre de uma forma negociada com as representações dos secretários estaduais e municipais de saúde. Esse processo tem sido orientado pelas normas operacionais do SUS, instituídas por meio de portarias ministeriais. Essas normas definem as competências de cada esfera de governo e as condições necessárias para que Estados e municípios possam assumir as novas posições no processo de implantação do SUS. Saiba mais Consulte as seguintes leis: BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 24 out. 2019. Veja, especialmente, a Seção II – Da saúde, do Capítulo II – Da seguridade social, do Título VIII – Da ordem social, da Constituição Federal. 16 Unidade I BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm. Acesso em: 24 out. 2019. A Lei n. 8.080/1990 regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8142.htm. Acesso em: 24 out. 2019. Lembrete Até 1988, a saúde não era reconhecida como um direito público subjetivo, sendo tratada, nos textos constitucionaisanteriores, apenas como mais um serviço público. 1.1.6 Princípios doutrinários do SUS Universalidade A universalidade decorre do art. 196 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que afirma a saúde como direito fundamental de todo ser humano, cabendo ao Estado o dever de prover acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência a todos os cidadãos brasileiros. A noção de saúde como direito carrega consigo a ideia de que esta não é um serviço a ser prestado, mas um bem a ser garantido aos cidadãos. Nessa perspectiva, está presente a concepção de Estado de bem-estar social, segundo a qual não basta o acesso aos serviços e ações de saúde, é necessário também garantir condições dignas de vida aos brasileiros, de modo a reduzir os riscos e os danos à vida. Em sua concepção ampla, entende-se saúde como resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. Equidade A equidade é assegurar ações e serviços de todos os níveis de acordo com a complexidade que cada caso requeira, more o cidadão onde morar, sem privilégios e sem barreiras. Todo cidadão é igual perante o SUS e será atendido conforme suas necessidades até o limite do que o sistema puder oferecer para todos. Todos devem ter igualdade de oportunidades na utilização do SUS, mesmo no contexto 17 FUNDAMENTOS DE SAÚDE COLETIVA de desigualdades e disparidades sociais existentes no Brasil. Trata-se de um princípio de justiça social, segundo o qual a alocação de recursos financeiros, humanos e tecnológicos deve ser proporcional às demandas e necessidades em saúde apresentadas por grupos sociais distintos. Inscrito na legislação como igualdade, na concepção do direito de cidadania, o princípio da equidade identifica o espaço da diferença na medida em que busca apontar os diferenciais de risco de adoecimento e morte e das condições favoráveis à vida que devem ser reforçadas e mantidas. Desse modo, pressupõe atentar para as necessidades coletivas e individuais, que devem orientar a instituição do processo de cuidado. Ao mesmo tempo em que direciona e busca assegurar prioridade aos grupos com mais necessidades, identifica e considera a pluralidade e a diversidade da condição humana em suas potencialidades e demandas como referencial para alocação de recursos. Assim é que, com base na discriminação dos diferenciais que determinam as possibilidades de viver e morrer, os investimentos devem ser orientados, a fim de elevar a um patamar de dignidade humana as pessoas submetidas à insuficiência de recursos, de modo a reduzir e eliminar as iniquidades e a lacuna existente entre os distintos grupos sociais. A construção da equidade simboliza o desafio da emancipação social e da convivência entre os diferentes e as diferenças. Integralidade A integralidade é o reconhecimento, na prática dos serviços, de que cada pessoa é um todo indivisível e integrante de uma comunidade; as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde formam também um todo indivisível e não podem ser compartimentalizadas e as unidades prestadoras de serviço, com seus diversos graus de complexidade, formam também um todo indivisível, configurando um sistema capaz de prestar assistência integral. Pressupõe considerar o ser humano em sua totalidade e as várias dimensões do processo saúde-doença que afetam o indivíduo e a coletividade. Além disso, diz respeito à unicidade do atendimento, historicamente cindido em ações preventivas e curativas consideradas dicotômicas no processo de organização formal e institucional da saúde anterior ao advento do SUS. Desse modo, integra as dimensões de prevenção, proteção, promoção e recuperação da saúde, por meio da prestação continuada do conjunto de ações e serviços destinados à população. É necessário prever a articulação do setor de saúde com outros setores que tenham repercussão na qualidade de vida das pessoas e dos distintos grupos sociais. A integralidade exige também o esforço de identificar necessidades diferenciadas determinadas pela natureza dos processos que incidem em grupos específicos e de mobilizar saberes e recursos materiais correspondentes a essas especificidades. Coloca-se, portanto, a exigência de conhecimentos e práticas que estruturam o processo de trabalho em saúde e que devem constituir-se em ordenadores das necessidades de educação permanente para qualificar o trabalho. Descentralização, participação social, hierarquização e regionalização são as diretrizes que configuram as estratégias e os movimentos táticos, os quais, articulados aos princípios já citados, operacionalizam o SUS. 18 Unidade I 1.1.7 Princípios que regem a organização do SUS Descentralização Descentralizar significa distribuir responsabilidades entre as três esferas de governo, de modo que cada uma delas, em especial o município, tenha autonomia para decidir, implantar e desenvolver ações e serviços de saúde, inclusive para legislar sobre assuntos de interesse local. Para tanto, as instâncias subnacionais de governo devem ser dotadas de condições gerenciais, administrativas e financeiras para exercerem as competências que lhes foram atribuídas. O objetivo é possibilitar a organização de serviços com qualidade e transparência, visto que as decisões devem ser tomadas o mais próximo possível da população interessada. Esse processo vincula-se às transformações presentes na atualidade do SUS, como proposição discutida, ainda na década de 1960, por ocasião da Terceira Conferência Nacional de Saúde (3ª CNS), quando o tema municipalização foi objeto dos debates. Ficou evidenciada a necessidade de superar a desarticulação entre os serviços e de garantir a coordenação das ações de saúde em todo o território nacional, ressaltando que não se trata de representações locais do nível central, mas de administrações próprias da instância de governo, gerindo efetivamente as atividades/ações de saúde a serem produzidas e distribuídas. A descentralização ultrapassa os aspectos técnico-administrativos e configura um deslocamento de poder para uma possível distribuição mais eficiente dos recursos públicos, o que favorece a coerência entre a estrutura de necessidades dos distintos grupos sociais e o perfil das demandas existentes. Para tanto, é necessária flexibilidade para que os serviços organizem seu processo de produção de diferentes maneiras, cuja referência seja a especificidade econômica, histórica, cultural e sanitária dos espaços sociais em que a população está inserida. Fundamental ainda é considerar que tal mecanismo ocorra em um contexto institucional compatível com essas premissas. Em um país de dimensões continentais como o Brasil, as implicações para o planejamento e a organização das ações de saúde são bastante complexas. Essa característica acaba por configurar um quadro de baixa capacidade administrativa e gerencial, o que requer a adoção de estratégias de compartilhamento de responsabilidades e cogestão. Se as virtudes da descentralização podem residir na possibilidade de ganhos de eficiência e racionalidade na alocação de recursos, não são poucos seus aspectos controversos, considerando as experiências heterogêneas que se configuram em cenários de recursos limitados e que são direcionadas por um marco regulatório comum. Participação dos cidadãos A participação dos cidadãos é a garantia constitucional de que a população, por meio de suas entidades representativas, participará do processo de formulação das políticas de saúde e do controle da sua execução, em todos os níveis, desde o federal até o local. Essa participação deve se dar nos conselhos de saúde, com representação paritária de usuários, governo, profissionais de saúde e prestadores de serviço. Outra forma de participação são as conferências de saúde, periódicas, para definirprioridades e linhas de ação sobre a saúde. Deve ser também considerado elemento do processo participativo o dever de as instituições oferecerem informações e conhecimentos necessários para que a população se posicione sobre as questões que dizem respeito à sua saúde. 19 FUNDAMENTOS DE SAÚDE COLETIVA Hierarquização e regionalização Os serviços devem ser organizados em níveis de complexidade tecnológica crescente, dispostos numa área geográfica delimitada e com a definição da população a ser atendida. Isso implica a capacidade dos serviços em oferecer a uma determinada população todas as modalidades de assistência, bem como o acesso a todo tipo de tecnologia disponível, possibilitando um ótimo grau de resolubilidade (solução de seus problemas). O acesso da população à rede deve se dar por meio dos serviços de nível primário de atenção que devem estar qualificados para atender e resolver os principais problemas que demandam os serviços de saúde. Os demais deverão ser referenciados para os serviços de maior complexidade tecnológica. A rede de serviços, organizada de forma hierarquizada e regionalizada, permite um conhecimento maior dos problemas de saúde da população da área delimitada, favorecendo ações de vigilância epidemiológica, sanitária, controle de vetores, educação em saúde, além das ações de atenção ambulatorial e hospitalar em todos os níveis de complexidade. 1.1.8 Complementariedade do setor privado A Constituição Federal definiu que, quando por insuficiência do setor público, for necessária a contratação de serviços privados, isso deve se dar sob três condições: • A celebração de contrato deverá se realizar conforme as normas de direito público, ou seja, o interesse público prevalecendo sobre o particular. • A instituição privada deverá estar de acordo com os princípios básicos e normas técnicas do SUS. Prevalecem, assim, os princípios da universalidade, equidade etc., como se o serviço privado fosse público, uma vez que, quando contratado, atua em nome deste. • A integração dos serviços privados deverá se dar na mesma lógica organizativa do SUS, em termos de posição definida na rede regionalizada e hierarquizada dos serviços. Dessa forma, em cada região, deverá estar claramente estabelecido, considerando os serviços públicos e privados contratados, quem vai fazer o quê, em que nível e em que lugar. Entre os serviços privados, devem ter preferência os não lucrativos, conforme determina a Constituição Federal. Assim, cada gestor deverá planejar primeiro o setor público e, na sequência, complementar a rede assistencial com o setor privado, com os mesmos concertos de regionalização, hierarquização e universalização. Torna-se fundamental o estabelecimento de normas e procedimentos a serem cumpridos pelos conveniados e contratados, os quais devem constar, em anexo, dos convênios e contratos. 1.1.9 Atribuições do SUS Os objetivos e as atribuições do SUS são: • Identificar e divulgar os fatores condicionantes e determinantes da saúde. • Formular as políticas de saúde. 20 Unidade I • Fornecer assistência à população por meio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com integração de ações assistenciais e preventivas. • Executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica. • Executar ações visando à saúde do trabalhador. • Participar na formulação da política e na execução de ações de saneamento básico. • Participar da formulação da política de recursos humanos para a saúde. • Realizar atividades de vigilância nutricional e de orientação alimentar. • Participar das ações direcionadas ao meio ambiente. • Formular políticas referentes a medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção. • Atuar no controle e fiscalização de serviços, produtos e substâncias de interesse para a saúde, na fiscalização e inspeção de alimentos, água e bebidas para consumo humano. • Participar do controle e fiscalização de produtos psicoativos, tóxicos e radioativos. • Auxiliar no desenvolvimento científico e tecnológico na área da saúde, na formulação e execução da política de sangue e hemoderivados. 1.1.10 Normas operacionais básicas (NOB) O objetivo das NOB do SUS é operacionalizar o sistema, detalhando as responsabilidades e atribuições das três esferas da administração pública. Com a NOB n. 1/1991 (BRASIL, 1991), foram criados a Autorização de Internação Hospitalar (AIH), o Sistema de Informação Hospitalar (SIH), o Fator de Estímulo à Municipalização (FIM) e os conselhos estaduais e municipais. A NOB n. 1/1993 (BRASIL, 1993) definiu procedimentos e instrumentos operacionais, visando ao aprimoramento das condições de gestão, para estabelecer o comando único do SUS nas três esferas da administração pública. Assim, foram criados as comissões intergestores, o Fator de Apoio do Estado (FAE), o Fator de Apoio ao Município (FAM) e o Sistema de Informação Laboratorial (SIL). A NOB n. 1/1996 (BRASIL, 1996) buscou aperfeiçoar a gestão dos serviços de saúde e a organização do sistema, definindo especialmente a responsabilidade do município pelas condições de saúde da sua população e organizando os serviços sob sua gestão. 21 FUNDAMENTOS DE SAÚDE COLETIVA A edição da Norma Operacional da Assistência à Saúde (Noas) n. 1/2001 (BRASIL, 2001a) foi motivada pela constatação da existência de municípios que, por serem pequenos, não reúnem condições de gestão do sistema de funcionamento completo e os que se encontram na situação de polos de atração regional, para onde se deslocam as populações dos pequenos municípios próximos. Tratou-se, assim, do processo de regionalização da assistência médica nessas condições, além de promover outros ajustes e regulamentações. Observação Desde o início do processo de implantação do SUS, foram publicadas três NOB (n. 1/1991, n. 1/1993 e n. 1/1996). Em 2001, foi publicada a primeira Noas (n. 1/2001), que foi revista e publicada em 2002 (n. 1/2002), a qual se encontra atualmente em vigor (BRASIL, 2002). As NOB definem critérios para que estados e municípios voluntariamente se habilitem a receber repasses de recursos do Fundo Nacional de Saúde (FNS) para seus respectivos fundos de saúde. A habilitação às condições de gestão definidas nas NOB é condicionada ao cumprimento de uma série de requisitos e ao compromisso de assumir um conjunto de responsabilidades referentes à gestão do sistema de saúde. Embora o instrumento que formaliza as normas seja uma portaria do Ministro da Saúde, seu conteúdo é definido de forma compartilhada entre o ministério e os representantes do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). 2 ESTRUTURA DA GESTÃO DO SUS 2.1 O que é ser gestor do SUS? A Lei n. 8.080/1990 (BRASIL, 1990a) define que a direção do SUS é única em cada esfera de governo, e estabelece como órgãos responsáveis pelo desenvolvimento das funções de competência do Poder Executivo na área de saúde o Ministério da Saúde no âmbito nacional e as secretarias de saúde ou órgãos equivalentes nos âmbitos estadual e municipal. Com essa definição, no setor de saúde, a expressão “gestor do SUS” passou a ser amplamente utilizada em referência ao ministro e aos secretários de saúde. Mais do que um administrador, o gestor do SUS é a autoridade sanitária em cada esfera de governo, cuja ação política e técnica deve estar pautada pelos princípios da reforma sanitária brasileira. O reconhecimento de duas dimensões indissociáveis da atuação dos gestores da saúde – a política e a técnica – pode ajudar a compreender a complexidade e os dilemas no exercício dessa função pública de autoridade sanitária, a natureza dessa atuação e as possíveis tensões relativas à direcionalidade da política de saúde em um dado governo e ao longo do tempo. A autoridade sanitária tem a responsabilidade de conduzir as políticas de saúde segundo as determinações constitucionais e legaisdo SUS, que constituem um dado modelo de política de Estado para a saúde que não se encerra no período de um governo. A atuação política do gestor do SUS se expressa em seu relacionamento constante com diversos grupos e atores sociais, nos diferentes espaços de negociação e decisão existentes, formais e informais. Os objetivos a serem perseguidos na área da saúde exigem a interação do gestor com os demais órgãos governamentais 22 Unidade I executivos (por exemplo, outros ministérios ou secretarias de governo), com outros Poderes (Legislativo e Judiciário), com gestores de outras esferas de governo e com a sociedade civil organizada. A atuação técnica do gestor do SUS, permanentemente permeada por variáveis políticas, se consubstancia por meio do exercício das funções e atribuições na saúde, cujo desempenho depende de conhecimentos, habilidades e experiências no campo da gestão pública e da gestão em saúde. Tais funções podem ser definidas como um conjunto articulado de saberes e práticas de gestão necessários para a condução de políticas na área da saúde. A adoção de um sistema político federativo e as especificidades de cada federação têm implicações importantes para as políticas públicas, incluindo as de saúde. Ao abordar as imensas diferenças entre os milhares de municípios brasileiros, Souza (2002) adverte para o fato de que, em contexto de grande heterogeneidade econômica e social, a descentralização de políticas públicas, incluindo as de saúde, pode levar a consequências adversas, como até mesmo ao aprofundamento das desigualdades. Para evitar isso, é necessário assegurar condições adequadas para o fortalecimento da gestão pública, dos mecanismos de coordenação da rede e de promoção do acesso de todos os cidadãos às ações e serviços de saúde necessários, independentemente de seu local de residência. A saúde expressou fortemente as mudanças no arranjo federativo após a Constituição Federal de 1988. O processo de descentralização em saúde predominante no Brasil, desde então, é do tipo político-administrativo, envolvendo não apenas a transferência de serviços, mas também a transferência de poder, responsabilidades e recursos, antes concentrados no nível federal, para estados e, principalmente, para os municípios. A descentralização da política de saúde nos anos 1990 contou com uma forte indução federal, mediante a formulação e implementação das normas operacionais do SUS e outras milhares de portarias. Essas portarias eram editadas a cada ano pelas diversas áreas do Ministério da Saúde e demais entidades federais da saúde, em geral associadas a mecanismos financeiros de incentivo ou inibição de políticas e práticas realizadas pelos gestores estaduais, municipais e prestadores de serviços (LEVCOVITZ; LIMA; MACHADO, 2001; MACHADO, 2007). 2.2 Qualificação de gestores do SUS A década de 1990 testemunhou a passagem de um sistema extremamente centralizado para um cenário em que centenas de gestores – municipais e estaduais – tornaram-se atores fundamentais no campo da saúde. Além da dimensão federativa, o processo de descentralização na saúde apresenta a especificidade de necessariamente ter que estar atrelado à ideia de conformação de um sistema integrado de serviços e ações de saúde, implicando novas formas de articulação entre esferas de governo, instituições e serviços de saúde (VIANA, 1995). Nesse contexto, foram feitos esforços de definição mais clara das responsabilidades de cada esfera de governo no SUS e da conformação de instâncias de debate e negociação entre os gestores da saúde. Assim, o papel e as funções dos gestores da saúde nas três esferas de governo sofreram mudanças importantes no processo de implantação do SUS, em grande parte relacionadas à descentralização. 2.3 Funções dos gestores do SUS A atuação do gestor do SUS se consubstancia por meio do exercício das funções gestoras na saúde. Essas funções podem ser definidas como um conjunto articulado de saberes e práticas de gestão necessários para a implementação de políticas na área da saúde, que devem ser exercidas de forma coerente com os princípios do sistema público de saúde e da gestão pública. 23 FUNDAMENTOS DE SAÚDE COLETIVA Simplificadamente, pode-se identificar quatro grandes grupos de funções gestoras na saúde: • Formulação de políticas/planejamento. • Financiamento. • Regulação, coordenação, controle e avaliação (do sistema/redes e dos prestadores, públicos ou privados). • Prestação direta de serviços de saúde. Cada uma dessas macrofunções compreende, por sua vez, uma série de subfunções e de atribuições dos gestores. Por exemplo, dentro da função de formulação de políticas/planejamento estão incluídas as atividades de diagnóstico de necessidades de saúde, identificação de prioridades e programação de ações etc. A legislação do SUS e diversas normas e portarias complementares editadas a partir dos anos 1990 empreenderam esforços no sentido de definir e diferenciar o papel dos gestores da saúde nas três esferas. No entanto, a análise das funções delineadas para a União, estados e municípios no terreno das políticas de saúde no âmbito legal e normativo evidencia que o sistema brasileiro se caracteriza pela existência de atribuições concorrentes entre essas esferas de governo, sem que existam padrões de autoridade e responsabilidade claramente delimitados, o que é comum em países federativos. Na maioria das vezes, observa-se uma mistura entre a existência de competências concorrentes e específicas de cada esfera. O modelo institucional proposto para o SUS é ousado no que concerne à tentativa de concretizar um arranjo federativo na área da saúde e fortalecer o controle social sobre as políticas nas três esferas de governo, de forma coerente com os princípios e diretrizes do sistema. Esse modelo pressupõe uma articulação estreita entre a atuação de: • Gestores do sistema em cada esfera de governo. • Instâncias de negociação e decisão envolvendo a participação dos gestores das diferentes esferas, a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), no âmbito nacional, as Comissões Intergestores Bipartites (CIB), uma por estado, e os Colegiados de Gestão Regional Intraestaduais (CGRI) – número variável em função do desenho regional adotado em cada estado. • Conselhos de representação dos secretários de saúde no âmbito nacional – Conass e Conasems – e no âmbito estadual – Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Cosems). • Conselhos de saúde de caráter participativo no âmbito nacional, estadual e municipal. A figura a seguir sistematiza o arcabouço institucional e decisório vigente no SUS. 24 Unidade I Conselho nacional Conselho estadual Conselho municipal Ministério da saúde Secretarias estaduais Secretarias municipais Comissão tripartite Comissão bipartite Colegiado de gestão regional Estados: Conass Municípios: Conasems Municípios: Cosems Colegiado participativo Nacional Estadual Municipal Regional Gestor Comissões intergestores Representação de gestores Figura 1 – Estrutura institucional e decisória do SUS O arranjo institucional do SUS, portanto, prevê uma série de instâncias de negociação e estabelecimento de pactos, envolvendo diferentes níveis gestores do sistema e diversos segmentos da sociedade. Tal arranjo permite que vários atores – mesmo os não diretamente responsáveis pelo desempenho de funções típicas da gestão dos sistemas – participem do processo decisório sobre a política de saúde. O exercício da gestão pública da saúde é cada vez mais compartilhado por diversos entes governamentais e não governamentais e exige a valorização e o funcionamento adequado dos espaços de representação e articulação dos interesses da sociedade. Arretche (2003) sugere que a complexa estrutura institucional para a tomada de decisões no SUS, ainda não plenamente explorada pelos atores diretamente interessados em suas ações, pode contribuir para a realização dos objetivos da política de saúde e propiciar respostasaos desafios inerentes à sua implementação. 2.3.1 Comissões intergestores na saúde Em federações, a concretização de políticas sociais fundadas em princípios igualitários nacionais e de operacionalização descentralizada, como a política de saúde, requer a adoção de estratégias de coordenação federativa. Para Abrucio (2005), a coordenação federativa consiste nas formas de integração, compartilhamento e decisão presentes nas federações, que se expressam: • Nas regras legais que obrigam os atores a compartilhar decisões e tarefas. • Em instâncias federativas e mecanismos políticos de negociação intergovernamental. • No funcionamento das instituições representativas. • No papel coordenador e/ou indutor do governo federal. 25 FUNDAMENTOS DE SAÚDE COLETIVA Na área da saúde, em face da necessidade de conciliar as características do sistema federativo brasileiro e as diretrizes do SUS, foram criadas as comissões intergestores. O objetivo dessas instâncias é propiciar o debate e a negociação entre os três níveis de governo no processo de formulação e implementação da política de saúde, devendo submeter-se ao poder fiscalizador e deliberativo dos conselhos de saúde participativos. A CIT, em funcionamento desde 1991 no âmbito nacional, tem atualmente 18 membros, sendo formada paritariamente por representantes do Ministério da Saúde, representantes dos secretários estaduais de saúde indicados pelo Conass e representantes dos secretários municipais de saúde indicados pelo Conasems, segundo representação regional. Ao longo da década de 1990, a CIT se consolidou como canal fundamental de debate sobre temas relevantes da política nacional de saúde, promovendo a participação de estados e municípios na formulação dessa política por meio dos seus conselhos de representação nacional e incentivando a interação permanente entre gestores do SUS das diversas esferas de governo e unidades da federação. A atuação da CIT se destaca particularmente nas negociações e decisões táticas relacionadas à implementação descentralizada de diretrizes nacionais do sistema e aos diversos mecanismos de distribuição de recursos financeiros federais do SUS. A CIT foi de fundamental importância no processo de debate para a elaboração das normas operacionais que regulamentaram a descentralização. É comum a formação de grupos técnicos compostos de representantes das três esferas, que atuam como instâncias técnicas de negociação e de processamento de questões para discussão posterior na CIT. Sua dinâmica tem favorecido a explicitação e o reconhecimento de demandas, conflitos e problemas comuns aos três níveis de governo na implementação das diretrizes nacionais, promovendo a formação de pactos intergovernamentais que propiciam o amadurecimento político dos gestores na gestão pública da saúde (LUCCHESE et al., 2003). No entanto, algumas pesquisas sugerem que diversas questões e decisões estratégicas para a política de saúde não passam pela CIT ou são ali abordadas de forma periférica e que as relações entre gestores nessa instância têm caráter assimétrico no que tange ao poder de direcionamento sobre a política (MIRANDA, 2003; MACHADO, 2007). As CIB foram formalmente criadas pela NOB n. 1/1993. Essa norma estabelece a CIB como instância privilegiada de negociação e decisão quanto aos aspectos operacionais do SUS (BRASIL, 1993), ressaltando os aspectos relacionados ao processo de descentralização no âmbito estadual. Em cada estado há uma CIB, formada paritariamente por representantes estaduais indicados pelo secretário de estado de saúde e representantes dos secretários municipais de saúde indicados pelo Cosems de cada estado. 2.3.2 Conselhos participativos na saúde Uma das diretrizes organizativas do SUS anunciada na Constituição Federal é a participação da comunidade. A incorporação dessa diretriz na Constituição deve ser entendida no contexto da redemocratização dos anos 1980, quando a importância dos movimentos sociais e da participação direta da sociedade nos processos políticos voltou a ser valorizada e defendida publicamente. Na saúde, isso se refletiu no chamado movimento sanitário, envolvendo intelectuais, trabalhadores de saúde e usuários, que criticaram o modelo de saúde vigente até então e defenderam a reforma do sistema de saúde com base nos princípios que foram incorporados à Constituição Federal. Assim, a ideia de participação 26 Unidade I da comunidade no SUS se relaciona a um processo mais abrangente de ampliação da participação direta da sociedade nos processos políticos no país. Para operacionalizar a participação social na saúde, a Lei n. 8.142/1990 (BRASIL, 1990b) propôs a conformação de conselhos de saúde nas três esferas de governo: União, estados e municípios. Tais conselhos devem ser compostos de quatro segmentos sociais: governo, prestadores de serviços, profissionais de saúde e usuários. Estes devem ter metade dos assentos em cada conselho de saúde, os demais devem ser divididos entre os representantes dos outros três grupos. A lei também definiu que os conselhos de saúde deveriam ter caráter deliberativo sobre a política de saúde, ou seja, o papel desses conselhos não seria apenas consultivo ou opinativo, mas envolveria o poder de decisão sobre os rumos da política. Isso representou uma mudança muito importante nas regras para a definição das políticas de saúde em relação à forma como elas eram conduzidas. Observação Além dos conselhos, de caráter permanente, a Lei n. 8.142/1990 também determina a realização periódica de conferências de saúde participativas em cada esfera de governo, com o propósito de traçar diretrizes estratégicas para a política de saúde nos anos subsequentes. As conferências nacionais de saúde são realizadas a cada quatro anos e as conferências estaduais e municipais são realizadas a cada dois anos ou de ano em ano, respectivamente. No item 2 da NOB n. 1/1993, relativo ao gerenciamento do processo de descentralização, foram criadas, como foros de negociação e deliberação, as comissões intergestores. No âmbito nacional, funciona a CIT, integrada paritariamente por representantes do Ministério da Saúde, do Conass e do Conasems. No âmbito estadual, funciona a CIB, integrada paritariamente por dirigentes da SES e do órgão de representação dos secretários municipais de saúde do estado. 2.4 Estrutura do SUS O SUS é composto do Ministério da Saúde, dos estados e municípios, conforme determina a Constituição Federal. Cada ente tem suas corresponsabilidades. O Ministério da Saúde é o gestor nacional do SUS. Ele formula, normatiza, fiscaliza, monitora e avalia políticas e ações, em articulação com o Conselho Nacional de Saúde (CNS). Atua no âmbito da CIT para pactuar o Plano Nacional de Saúde (PNS). Integram sua estrutura a Fiocruz, a Fundação Nacional da Saúde (Funasa), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), o Instituto Nacional de Câncer (Inca), o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into) e oito hospitais federais. A SES participa da formulação de políticas e ações de saúde, presta apoio aos municípios em articulação com o conselho estadual e participa da CIB para aprovar e implementar o plano estadual de saúde. 27 FUNDAMENTOS DE SAÚDE COLETIVA A SMS planeja, organiza, controla, avalia e executa as ações e serviços de saúde em articulação com o conselho municipal e a esfera estadual para aprovar e implantar o plano municipal de saúde. 2.5 Financiamento do SUS O financiamento do SUS é uma responsabilidade comum dos três níveis de governo. A Emenda Constitucional n. 29/2000 (BRASIL, 2000) determina a vinculação de receitas dos três níveis para o sistema. Os recursos federais, que correspondem a mais de 60% do total, progressivamente vêm sendo repassados a Estados e municípios, por meio de transferências diretas do FNS aos fundos estaduais e municipais, conformemecanismo instituído pelo Decreto n. 1.232/1994 (BRASIL, 1994). A intensa habilitação de municípios e estados gerou um expressivo aumento das transferências diretas de recursos do FNS para os fundos municipais e estaduais. Além das transferências do FNS, os fundos estaduais e municipais recebem aportes de seus próprios orçamentos. Alguns estados promovem repasses de recursos próprios para os fundos municipais de saúde, de acordo com regras definidas no âmbito estadual. O pagamento aos prestadores de serviços de saúde é feito pelo nível de governo responsável por sua gestão. Independentemente do nível de governo que execute o pagamento, o SUS utiliza um mesmo sistema de informações para os serviços ambulatoriais – o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) – e outro para os serviços hospitalares – o Sistema de Informações Hospitalares (SIH). No caso das internações hospitalares, embora o pagamento pelos serviços prestados esteja descentralizado, o processamento das informações relativas a todas as internações financiadas pelo sistema público de saúde é realizado de forma centralizada pelo número de municípios recebendo recursos fundo a fundo. Todo o sistema público utiliza uma única tabela de preços, definida pelo Ministério da Saúde, para o pagamento aos prestadores de serviços. A tendência é que os municípios assumam cada vez mais a responsabilidade pelo relacionamento com os prestadores de serviço, à medida que se habilitem às condições de gestão descentralizada do sistema. A Noas n. 1/2002 (BRASIL, 2002) define duas condições de participação do município na gestão do SUS: • Gestão plena da atenção básica ampliada, pela qual o município se habilita a receber um montante definido em base per capita para o financiamento das ações de atenção básica. • Gestão plena do sistema municipal, pela qual o município recebe o total de recursos federais programados para o custeio da assistência em seu território. O financiamento por base per capita não dispensa o gestor de alimentar o SIA, cuja produção servirá como insumo para futuras negociações de alocação de recursos financeiros. Apesar do incremento das habilitações de estados e municípios e do consequente aumento do volume de recursos repassados diretamente aos fundos de saúde subnacionais, um terço dos recursos federais ainda é empregado em pagamentos diretos a prestadores de serviços de saúde. Tal situação decorre do processo de contratação e pagamento centralizado em vigor durante o período do Inamps, que antecedeu à implementação do SUS e, em certa medida, ainda não plenamente substituído pelo processo de descentralização, dado o caráter não compulsório e progressivo deste último. Até 1997 28 Unidade I não havia subdivisão dos recursos transferidos para estados e municípios, o que passou a ocorrer com a edição da Portaria GM/MS n. 2.121/2015, com a implantação do Piso da Atenção Básica (PAB) e a separação dos recursos para o financiamento da atenção básica e da assistência de média e alta complexidade ambulatorial. O PAB de cada município, calculado com base em um valor per capita, é transferido de forma automática do FNS para os fundos municipais de saúde, mudando a forma anterior de financiamento por prestação de serviços e passando para uma lógica de transferência de recursos em função de o município assumir a responsabilidade sanitária por esse nível de atenção. Enquanto os recursos do PAB fixo são transferidos com base no valor per capita, o valor do PAB variável depende da adesão do município a programas prioritários definidos pelo Ministério da Saúde, tais como os programas de agentes comunitários de saúde, de saúde da família e de combate às carências nutricionais e a ações estratégicas, tais como a farmácia básica e as ações básicas de vigilância sanitária. A Portaria GM/MS n. 1.399/1999 (BRASIL, 1999a) regulamentou a NOB n. 1/1996 no que se refere às competências da União, estados, municípios e Distrito Federal, na área de epidemiologia e controle de doenças e definiu a sistemática de financiamento de suas ações. A Funasa começou, a partir de 2000, a implementar o processo de descentralização da área de epidemiologia e controle de doenças. 2.6 Funções gestoras e atribuições dos governos estaduais no SUS O SUS é, por definição constitucional, um sistema público, nacional e de caráter universal, baseado na concepção de saúde como direito de cidadania e nas diretrizes organizativas de descentralização, com comando único em cada esfera de governo, integralidade do atendimento e participação da comunidade. A implantação do SUS não é facultativa e as respectivas responsabilidades de seus gestores – federal, estaduais e municipais – não podem ser delegadas. O SUS é uma obrigação legalmente estabelecida. A implementação desse sistema, particularmente no que diz respeito ao processo de descentralização e definição do papel de cada esfera de governo, deve considerar o enfrentamento de pelo menos três questões gerais: • As acentuadas desigualdades existentes no país. • As especificidades dos problemas e desafios na área da saúde. • As características do federalismo brasileiro. Na implementação das políticas de saúde nos anos 1990, houve um esforço para construir um modelo federativo na saúde, seja nas tentativas de definição do papel de cada esfera no sistema, seja na criação de estruturas e mecanismos institucionais específicos de relacionamento entre os gestores do SUS e destes com a sociedade. As responsabilidades com a gestão e o financiamento do SUS são compartilhadas entre seus gestores dos três âmbitos. 29 FUNDAMENTOS DE SAÚDE COLETIVA Um dos papéis fundamentais das SES é coordenar o processo de implantação do SUS no respectivo estado. Para tanto, o gestor estadual do SUS precisa agir de forma articulada com as duas outras esferas de governo (União e municípios) e com as instâncias de controle social, representadas pelo conselho estadual de saúde e pela conferência estadual de saúde. No que diz respeito aos municípios, a relação do gestor estadual é de coordenação e avaliação, não havendo uma hierarquia entre ambos ou a subordinação dos municípios à SES. Isso resulta do modelo brasileiro de federalismo e da definição constitucional e legal do comando único em cada esfera de governo. Além disso, a relação com os municípios tem como espaço de negociação e decisão política a CIB, onde as decisões devem ser tomadas por consenso. É recomendável que o próprio secretário estadual de saúde participe da coordenação da CIB, já que se trata de um espaço político e, assim, as decisões sobre a condução do processo de implantação do SUS, inclusive quanto à alocação dos recursos federais, são tomadas por ela. Já no que diz respeito à participação da comunidade, esta se concretiza por meio de conferências de saúde e conselhos de saúde. Essas duas instâncias foram instituídas em cada esfera de governo pela Lei n. 8.142/1990 (BRASIL, 1990b), que, além de dispor sobre a participação da comunidade na gestão do SUS, trata das transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde. As conferências de saúde são realizadas com periodicidade quadrienal, com representantes dos vários segmentos sociais, com o objetivo de avaliar a situação da saúde e propor as diretrizes para a formulação das políticas de saúde nos níveis correspondentes. Essas conferências se realizam em um processo ascendente, desde conferências municipais de saúde, passando por uma conferência estadual de saúde em cada estado e culminando em uma conferência nacional de saúde. Com a implantação do SUS e as definições da Constituição Federal e da Lei n. 8.080/1990, a SES passou a ter um novo papel, o de gestora estadual do SUS. Essa gestão se dá no sentido amplo, não se restringindo ao gerenciamento de apenas sua rede própria de prestação de serviços. A amplitude e o grau de autonomia dessa gestão, no entanto, estão relacionados ao tipo de gestão em que o estado esteja habilitado,variando, portanto, de estado para estado. A condição de gestão plena do sistema estadual de saúde concede ao gestor estadual uma maior autonomia para a condução desse sistema e, de modo particular, altera a forma de participação do Ministério da Saúde no financiamento do SUS. Nesse caso, os recursos relativos à assistência de média e alta complexidade sob gestão da SES são automaticamente transferidos do FNS para o fundo estadual de saúde. Já aqueles referentes à atenção básica e relativos à assistência de média e alta complexidade sob o município em gestão plena do sistema são transferidos do FNS para os fundos municipais de saúde. 2.7 Pactos pela saúde Os pactos pela saúde e pela gestão do SUS são compromissos públicos, assinados pelos gestores, que visam à qualificação da gestão e à melhoria da eficácia das ações de saúde. Foram consideradas ações prioritárias: • O compromisso com o SUS e seus princípios. • O fortalecimento da atenção primária. 30 Unidade I • A valorização da saúde. • A articulação intersetorial. • O fortalecimento do papel dos estados. • A luta pela regulamentação da Emenda Constitucional n. 29/2000, que determina os recursos mínimos para o financiamento das ações e dos serviços públicos de saúde. O pacto pela saúde tem como prioridades: • A saúde do idoso. • O controle do câncer de colo de útero e de mama. • O fortalecimento da atenção básica. • A redução da mortalidade infantil e materna. • O fortalecimento da capacidade de respostas às doenças emergentes e endemias, com ênfase em dengue, hanseníase, tuberculose, malária e influenza. • A promoção da saúde. Os municípios devem gerir o serviço de saúde de forma a cumprir as metas pactuadas. Por exemplo, para alcançar a meta de controle do câncer de útero, o município deve aumentar a quantidade de mulheres com coleta de papanicolau, oferecer exames mais complexos para aquelas que apresentarem resultados alterados, a fim de propiciar uma investigação adequada do diagnóstico e o tratamento precoce para as que tiverem resultados positivos para câncer e outras doenças. O pacto pela defesa do SUS visa reforçar os princípios do sistema, fortalecendo a participação popular e informando a população sobre seu funcionamento e a forma de gestão, ao divulgar a carta dos direitos dos usuários do SUS. Saiba mais Conheça mais sobre os pactos pela saúde acessando aos documentos disponíveis no seguinte site: http://conselho.saude.gov.br/webpacto/index.htm 31 FUNDAMENTOS DE SAÚDE COLETIVA 3 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE - OSS 3.1 Organizações sociais e as formas de relacionamento com o Estado Para operacionalizar as mudanças instituídas na administração pública, foram aprovadas duas leis que permitem ao Estado estabelecer parcerias com organizações do terceiro setor: • A Lei n. 9.637/1998 (BRASIL, 1998), sobre organizações sociais, definindo o contrato de gestão como instrumento de relação com o Estado. • A Lei n. 9.790/1999 (BRASIL, 1999b), que criou a figura jurídica da organização da sociedade civil de interesse público (Oscip), definindo o termo de parceria como instrumento de relação com o Estado. Observação A expressão terceiro setor é uma referência ao segmento das organizações de interesse público e sem fins lucrativos. É assim denominado para diferenciá-lo do primeiro setor, o estatal, e o segundo setor, o privado. O termo parceria é usado de forma genérica para indicar as relações formais de órgãos e instituições estatais com as Oscip, devidamente qualificadas na forma da lei e contratadas para produzir bens e serviços públicos. Em outras palavras, indica uma relação em que os parceiros se unem em torno de um projeto conjunto no qual se estabelece uma interação estratégica, normalmente de médio e longo prazo, visando a um objetivo comum. Essa definição é mais adequadamente à relação entre Estado e Oscip e aos convênios estabelecidos com fundações. Nos contratos de gestão, a relação não é propriamente de parceria, pois os objetivos dos dois atores envolvidos não são comuns. Nos contratos, os interesses são diversos e opostos: enquanto uma parte tem como objetivo o ajuste (obra ou serviço), outra parte visa à contraprestação correspondente (o preço ou qualquer outra vantagem). A diferença entre Oscip e organizações sociais é a natureza do relacionamento com o Estado. Enquanto as Oscip estabelecem parceria para colocar seus próprios projetos em prática – com objetivos comuns aos programas sociais do governo e, por essa razão, eleitos para receber apoio financeiro do Estado –, as organizações sociais buscam essa qualificação para estabelecer contratos de gestão e realizar serviços antes executados pela administração direta do Estado. Esse sistema híbrido de produção, que segue duas lógicas diferentes – a do setor público e a do setor privado, depende do controle externo exercido pelos diferentes órgãos e instâncias destinados a essa finalidade. O controle efetivo deve ser exercido pelo próprio Estado (avaliação e repactuação das metas e dos recursos envolvidos), pelo Ministério Público, pelo Poder Legislativo e pela sociedade civil, para garantir o compromisso com os princípios de universalização e atenção integral que regem o SUS. Nesse sentido, a transparência dos procedimentos relacionados à contratualização e à avaliação dos resultados nos contratos de gestão e nas parcerias é tão importante quanto a qualidade dos serviços prestados. 32 Unidade I As organizações sociais inserem-se no marco legal vigente das associações sem fins lucrativos e, como pessoas jurídicas de direito privado, estão fora do âmbito da administração pública, não sujeitas às normas que regulam a gestão de recursos humanos, orçamento e finanças, compras e contratos próprios do setor público. Pertencem à esfera pública, mas não se submetem ao regime jurídico único dos servidores públicos, a concursos públicos, ao Sistema de Aposentadoria e Pensão (Siape) e à tabela salarial do setor público, o que lhes dá autonomia para contratar pessoal, realizar compras e contratos e dispor de flexibilidade na execução de seu orçamento. Do ponto de vista financeiro e da gestão orçamentária, os recursos destinados às organizações sociais são consignados no orçamento da respectiva instância de poder público (União, estado ou município), constituindo receita própria, cuja alocação e execução não se sujeitam aos ditames da execução governamental orçamentária, financeira e contábil. O controle se dá pelos resultados por meio da avaliação das metas estabelecidas nos contratos de gestão, ao contrário das estatais, que se submetem a um controle processualístico. Ao ser qualificada e contratada para gerir a produção de serviços, a organização social recebe do Estado toda a infraestrutura pronta. Os funcionários públicos, no caso de o serviço estar em funcionamento, podem continuar prestando serviços na instituição (se assim o desejarem e na dependência da pactuação), mas ficam subordinados administrativamente à direção da organização social. Efetiva-se, na prática, a reestruturação da máquina administrativa para dar suporte às novas funções do Estado, que passa de executor para regulador e promotor de ações e serviços públicos. As formas de gestão compartilhadas com a sociedade civil não reduzirão o tamanho do Estado, mas promoverão uma revisão em suas funções em face das novas exigências impostas também pelas reformas, pois, enquanto ele diminui na prestação de serviços, à medida que repassa a produção para as organizações sociais, cresce em setores cuja função é administrar esses contratos. Se o propósito da nova gestão pública não está em reduzir o tamanho do Estado, para os profissionais que atuam na prestação de serviços diretos de saúde, esse modelo mostra-se perverso, na medida em que elimina progressivamente as chances de eles adentrarem a carreira pública via concurso, submetendo-se às condições de oscilação do mercado e de mudanças nas metas estabelecidas nos contratos
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