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ConJur - Uso crescente da precaução nos tribunais superiores

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22/05/2020 ConJur - Uso crescente da precaução nos tribunais superiores
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AMBIENTE JURÍDICO
11 de janeiro de 2020, 8h00
Por Gabriel Wedy
O princípio da precaução tem sido utilizado para
justificar a regulação ou o impedimento de atividades ou
empreendimentos cujas consequências e extensão dos
danos ambientais não são plenamente conhecidas ou
comprovadas. Cabe observar, primeiramente, que ainda,
para alguns, em sede de doutrina, paira divergência a
respeito da autonomia deste princípio e de sua diferença
quanto à prevenção. Predomina o entendimento, assim
sintetizado por Milaré, no sentido de que a prevenção
trata de riscos ou impactos já conhecidos pela ciência, ao
passo que a precaução se destina a gerir riscos ou
impactos desconhecidos. Em outros termos, enquanto a
prevenção trabalha com o risco certo, a precaução vai
além e se preocupa com o risco incerto. Ou ainda, a prevenção se dá em relação ao
perigo concreto, ao passo que a precaução envolve o perigo abstrato.[1]
Fiorillo entende que “o chamado ‘princípio da precaução’, se é que pode ser
observado no plano constitucional, estaria evidentemente colocado dentro do
princípio constitucional da prevenção”.[2] Dessa orientação não destoa Sirvinskas
para quem o princípio da prevenção é gênero no qual se inclui a precaução ou
cautela.[3] De todo modo, seja no direito pátrio, seja no Direito Ambiental
Internacional[4], a precaução tem sido tratada de forma independente da
prevenção, embora inegável a existência de pontos de contato entre ambos.[5]
A doutrina de modo geral diferencia a prevenção da precaução na circunstância de
a primeira exigir atuação estatal em face da certeza da degradação ambiental,
enquanto, para a segunda, bastaria incerteza científica, seja dos efeitos nocivos, seja
do nexo de causalidade, para justificar a regulação, a restrição ou a paralisação da
atividade. O princípio da precaução é aplicado para impedir o “mero risco”, e o da
prevenção para “evitar diretamente o dano”. O risco “pode ser entendido como a
possibilidade de ocorrência de uma situação de perigo. Já o perigo nada mais é do
que a possibilidade de ocorrência do dano”. Pode-se trabalhar com uma “reta
Uso crescente da precaução nos tribunais
superiores
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causal”, em que a “situação da precaução está antes da situação de aplicação do
princípio da prevenção em face do hipotético dano”. Outra distinção entre ambos
está na finalidade de evitar o perigo concreto (comprovado cientificamente) para a
prevenção, e de obstar o perigo abstrato (não comprovado cientificamente, mas que
seja verossímil à sua ocorrência) para a precaução.[6]
O STF[7] e o STJ têm aplicado, nos últimos anos, o princípio da precaução, de modo
autônomo, nos seus julgados. De fato, estando presentes o risco de dano e a
incerteza científica, relacionados à atividade potencialmente danosa, esta deve ser
suspensa para a tutela do meio ambiente, inclusive, com a inversão do ônus da
prova contra o potencial poluidor-degradador.[8]
O princípio da precaução, em virtude das diferentes percepções de risco[9], costuma
ser estudado a partir de três abordagens[10] ou sentidos:
a) em sentido forte ou pela abordagem radical, demanda a atuação estatal diante da
mera possibilidade abstrata de risco. Preza pelo “risco zero”, exige a paralisação da
atividade enquanto não sanadas as incertezas científicas e admite a inversão do
ônus da prova;
b) a abordagem minimalista ou na versão fraca requer riscos sérios e irreversíveis,
afasta a moratória e não conduz à inversão do ônus da prova.[11] É o sentido
adotado por aqueles que criticam o princípio da precaução, ao fundamento de ser
paralisante e desproporcional. Sunstein defende que as providências executadas
“devem ser proporcionais ao nível de proteção escolhido” e a regulação tem de ser
apoiada em uma análise de custo-benefício, já que o risco raramente pode ser
reduzido a zero, bem assim reconhecida a relevância de considerações não
econômicas. Acrescenta que a versão forte “não oferece qualquer tipo de
orientação”, porque “proíbe todos os cursos de ação, incluindo a inação”, e impõe
um “ônus da prova que é impossível de ser superado”. Alerta ainda que essa
orientação poderá eliminar “benefícios de oportunidade” à sociedade, dar origem a
“riscos substitutos” e trazer efeitos adversos em caso de regulação dispendiosa;[12]
c) para a concepção intermediária ou moderada, exige-se risco científico crível, não
exclui a moratória e implica a carga dinâmica do ônus da prova.[13]
É mister uma “ponderação de valores”, para que o “aplicador do princípio da
precaução proceda de modo a não violar os vetores do princípio da
proporcionalidade – da vedação de excesso e de insuficiência – evitando assim
danos ao meio ambiente e à saúde pública”.[14] Dessa feita, uma implementação
exacerbada da precaução pode resultar em inércia geradora de prejuízos, diante da
perplexidade derivada dos diversos riscos constatados. Sendo assim, a concepção
moderada sustenta a incidência do princípio da precaução quando presentes
indícios suficientes ou verossimilhança da relação causal entre a atividade e a
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degradação, não bastando simples temor remoto, medo público ou, até mesmo, a
histeria coletiva.
Em recentes decisões, o STF esposou uma visão, ao menos, moderada do princípio
da precaução, que poderá, de todo modo, justificar a suspensão de atividade diante
de indícios suficientes de danos ambientais graves. Ao analisar ação civil pública
envolvendo a exposição ocupacional e da população em geral a campos elétricos,
magnéticos e eletromagnéticos gerados por sistemas de energia elétrica, entendeu
que a evolução científica poderia trazer riscos, muitas vezes imprevisíveis ou
imensuráveis, a exigir uma reformulação das práticas e procedimentos
tradicionalmente adotados na respectiva área da ciência. Consignou que, quando da
aplicação do princípio da precaução, a existência de riscos decorrentes de incertezas
científicas não deveria produzir uma paralisia estatal ou da sociedade, tampouco
balizar a adoção de medidas derivadas de temores infundados. Em face de
relevantes elementos de convicção sobre os riscos, o Estado deveria agir de forma
proporcional. Por sua vez, o eventual controle pelo Poder Judiciário quanto à
legalidade e à legitimidade na aplicação desse princípio haveria de ser realizado
com prudência, com um controle mínimo, diante das incertezas que reinam no
campo científico. A Suprema Corte concluiu, no caso, que não existiriam
impedimentos a que sejam adotados os parâmetros propostos pela Organização
Mundial de Saúde (OMS), conforme estabelece a Lei nº 11.934/09.[15]
Em outro julgado, o STF decidiu pela possibilidade de suspensão de atividade de
mineração, diante da constatação de evidência de danos às comunidades indígenas.
[16] Semelhante posição foi adotada pelo STJ, ao decidir pela suspensão de
licenciamento até que fossem dirimidas dúvidas sobre o impacto de uma obra.[17]
Em outro caso, a Corte Superior, com esteio no princípio da precaução, exigiu a
realização de licenciamento ambiental e estudo de impacto ambiental para o
emprego de queima de palha de cana-de-açúcar em atividades agrícolas.[18]
Referido princípio, nesta era das mudanças climáticas e de necessária promoção do
desenvolvimento sustentável[19], tende a ser de aplicação fundamental nos litígios
climáticos ajuizados, e nos que ainda estão por vir, para diminuir as emissões de
gases de efeito estufa e minorar as nefastas consequências do aquecimento global.
[20]
De um modo ou de outro, atento ao princípio da proporcionalidade,o Poder
Judiciário, como demonstrado nos precedentes das Cortes Superiores, ao verificar os
requisitos da incerteza científica e o risco de dano, admitida a inversão do ônus da
prova contra o demandado (gerador do risco), tem aplicado o princípio
constitucional da precaução, com maior frequência, nos últimos anos. Fenômeno
que é, em regra, benfazejo, em um país no qual os seus entes, tradicionalmente, nas
esferas pública e privada, não são experts na gestão de riscos de dano como
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demonstram as catástrofes de Mariana e de Brumadinho. Ambas, apenas a título de
exemplo, evidentes casos de má e precária governança.
[1] MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015
p. 262-263.
[2] FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 17. ed.
São Paulo: Saraiva, 2017. p. 91-92.
[3] SIRVINSKAS, Luis Paulo. Manual de Direito Ambiental. 15. ed. São Paulo: Saraiva,
2017. p. 146.
[4] Ver, MACINTYRE, Owen; MOSEDALE, Thomas. The Precautionary Principle as a
Norm of Customary International Law. Journal of Environmental Law, n.9/2, p.221,
1997.
[5] Ver, WEDY, Gabriel; MOREIRA, Rafael. Manual de Direito Ambiental: de acordo
com a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2019.
[6] WEDY, Gabriel. O Princípio Constitucional da Precaução: como instrumento de
tutela do meio ambiente e da saúde pública. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p.
47-60.
[7] STF, Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, ADPF 101, j. 24.06.2009.
[8] STJ, 3ª T., AgRg no AREsp 206.748/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j.
21.02.2013, DJe 27.02.2013.
[9] Sobre o tema, ver: SLOVIC. Paul. Perception of Risk. London: Earthscan, 2000;
MARGOULIS, Howard. Dealing With Risk. Chicago: Chicago University Press, 1996;
COLLMAN, James P. Naturally Dangerous: Surprising facts about food, health and
environmental. Sausalito: University Science Book, 2001; GILLAND, Tony. Precaution.
GM Crops and Farmland Birds. In: MORRIS, Julian. Rething Risk and the
Precautionary Principle. Oxford: Butterworth-Heinemann, 2000 ; MANDEL Gregory
N; GATI, James Thuo. Cost-Benefit Analysus vs The Precautionary Principle: Beyond
Cass Sunstein`s Laws of Fear. v. 5. Univesity Of Illinois Law Review. Lllinois, 2006,
p.1037-1079.
[10] CAPPELLI, Sílvia; MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise
Monteiro. Direito Ambiental. 7. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013. p. 56.
[11] Ibid.
[12] SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. Revista de Direito
Administrativo, Belo Horizonte, ano 2012, n. 259, jan./abr. 2012. Sobre uma
abordagem minimalista do princípio da precaução, ver: SUNSTEIN, Cass. Laws of
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https://www.conjur.com.br/2020-jan-11/ambiente-juridico-uso-crescente-precaucao-tribunais-superiores?imprimir=1 5/5
fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005;Risk and
Reason. S.e, 2002; The Arithmetic of arsenic, 90 Georgetown Law Review 2255, 2002;
Worst-Case Scenarios. Cambridge: Harvard University Press, 2007. E, ainda,
SUNSTEIN, Cass; HAHN, Robert W. The precautionary principle as a basis for
decision making. The economist’s voice, vol. 2, n. 2, article 8, 2005. Disponível em:
<http://www.ssrn.com/abstract= 721122>. Acesso em: 02.01.2020.
[13] CAPPELLI, Sílvia; MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise
Monteiro. Direito Ambiental. 7. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013. p. 56.
[14] WEDY, Gabriel. O Princípio Constitucional da Precaução: como instrumento de
tutela do meio ambiente e da saúde pública. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p.
131.
[15] STF, RE 627189, Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 08.06.2016, DJe 03.04.2017.
[16] STF, Pleno, SL 933 ED/PA, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, red. p/ ac. Min. Marco
Aurélio, j. 31.05.2017.
[17] STJ, Corte Especial, AgRg na SLS 1.524/MA, Rel. Min. Ari Pargendler, Rel. p/ Ac.
Min. Presidente, j. 02.05.2012, DJe 18.05.2012.
[18] STJ, 2ª T., REsp 1285463/SP, Rel. Min. Humberto Martins, j. 28.02.2012, DJe
06.03.2012.
[19] Ver, WEDY, Gabriel. Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças
Climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.
[20] Ver, WEDY, Gabriel. Litígios Climáticos: de acordo com o direito brasileiro,
norte-americano e alemão. Salvador: Juspodvm, 2019.
Gabriel Wedy é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em
Direito e visiting scholar pela Columbia Law School no Sabin Center for Climate
Change Law.
Revista Consultor Jurídico, 11 de janeiro de 2020, 8h00
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