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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA Mayara Joice Dionizio Moralidade e problemas éticos Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer os problemas éticos contemporâneos. Analisar o significado da bioética. Relacionar diferentes perspectivas sobre o aborto e a eutanásia. Introdução A bioética é uma área recente. Surgida no século XX, ela trata de casos médicos, biológicos e científicos que envolvem questões morais relativas à vida humana, animal e vegetal. Desde o início do século passado, os avanços científicos e tecnológicos fazem com que transplantes de órgãos, transfusões de sangue e abortos, por exemplo, integrem a pauta de discussões acirradas. Entretanto, a bioética não é um sistema fechado que propõe uma solução final a todas as problematizações. Ela é um estudo que se atualiza com o surgimento de casos novos. Neste capítulo, você vai conhecer os problemas éticos da contem- poraneidade. Assim, vai ver de que forma questões morais e sociais se ligam à tecnologia, à medicina e à ciência. Você também vai verificar como o conceito de bioética é importante na relação entre profissionais da saúde e pacientes, tanto em procedimentos médicos quanto em pesquisas científicas. Por fim, vai avaliar as perspectivas relacionadas ao aborto e à eutanásia. C16_Filosofia_contemporanea.indd 1 16/01/2019 10:49:02 Problemas éticos contemporâneos Muito se fala atualmente sobre ética e moral. Hoje, com o desenvolvimento tecnológico e a globalização da economia, dos costumes e dos modos de agir, a discussão ética está sempre presente, ainda que implicitamente. Por isso, você deve conhecer melhor esse debate para identifi car alguns problemas éticos importantes que permeiam a sua vida. A palavra “ética” vem do grego éthos, que se refere ao modo de ser, a um hábito ou costume. Já o termo “moral” deriva etimologicamente da palavra mos, moris, que frequentemente designa costume e é a tradução latina de éthos. Assim, em sua origem, ambas as palavras eram sinônimos. Porém, desde o surgimento dos termos até os dias atuais, já se passaram mais de 2 mil anos. Assim, foi adotada uma distinção entre ambas as palavras. A maioria dos pesquisadores do tema concorda que a moral é o conjunto de regras, valores e princípios que norteiam as ações das pessoas em uma sociedade (MÖLLER, 2005). Ela provém do costume, das tradições e da cultura de uma sociedade. A ética, por sua vez, designa o próprio estudo dos preceitos morais, de seus fundamentos e princípios; é a disciplina filosófica, o estudo racional e crítico. Considere este exemplo prático: a segregação social definida pela hereditariedade é considerada moral em uma sociedade de castas, a exemplo da sociedade hindu ou da divisão entre nobres e servos durante a Idade Média na Europa. Contudo, na sociedade ocidental contemporânea, essa segregação é totalmente repudiada. A discussão sobre a justiça dessa norma é tema da ética. Por isso, ao investigar a correção das condutas, a demarcação entre certo e errado e bem e mal no campo filosófico, você está frente a uma investigação ética (MÖLLER, 2005). Muitas questões éticas gerais — por exemplo, o que define uma ação boa, ou o que é o bem — permeiam toda a história da filoso- fia. Porém, muitas outras questões éticas têm origem na contemporaneidade e decorrem do próprio processo histórico, ou seja, surgem a partir de novas relações sociais, reivindicações de grupos sociais específicos. Além disso, podem surgir a partir de fenômenos como guerras e desenvolvimento de novas tecnologias, entre outros. Dessa maneira, a complexidade das relações humanas e das relações do homem com a natureza ocasiona novos problemas éticos. A seguir, você pode ver alguns exemplos. Como você sabe, o século XX foi marcado pela ascensão de movimentos antirracistas. É o caso da luta contra o Apartheid, que promovia a segregação racial na África do Sul e que teve Nelson Mandela como uma das suas principais figuras. Outro exemplo é o movimento pelos direitos civis dos afroamericanos nos Estados Unidos entre os anos 1950 e 1980. O movimento feminista, surgido Moralidade e problemas éticos2 C16_Filosofia_contemporanea.indd 2 16/01/2019 10:49:02 no século XIX, com fortalecimento no século XX, é outro importante exemplo de movimento social contemporâneo. Esses exemplos levantam questões éticas importantes relacionadas à igualdade entre etnias e gêneros, respectivamente. A percepção da degradação da natureza pelos seres humanos também é um problema ético relevante e bastante presente na atualidade. O desenvolvimento industrial-tecnológico, o consumo desenfreado e o grande aumento da popula- ção mundial tiveram consequências relevantes e bastante negativas na biosfera. Ocorrem, por exemplo, a poluição dos oceanos, a redução da vida marinha, a extinção de espécies, o desmatamento de florestas, a poluição dos grandes centros urbanos, o aquecimento global, entre várias outras consequências. Por isso, atualmente, ao se discutir a responsabilidade dos seres humanos sobre a biosfera ou a responsabilidade ambiental de empresas, ingressa-se no campo da ética, na medida em que estão envolvidos assuntos como a responsabiliza- ção, as correções de práticas, etc. Ainda nesse campo, você pode considerar a atual discussão sobre o direito dos animais, que, inclusive, endossa práticas alimentares como o vegetarianismo e o veganismo. Os refugiados de guerras ou mesmo imigrantes em busca de melhores condições de vida apontam para outros problemas éticos. A responsabilidade da comunidade global sobre refugiados e imigrantes e o problema da xenofobia, a aversão a estrangeiros, são temas éticos. Você também deve considerar os avanços médicos e científicos do século XX, que são diversos, como a descoberta dos antibióticos, novas técnicas no tratamento do câncer, decodificação do DNA humano, entre outros. Esses avanços são frutos de intensa pesquisa e de experimentos científicos. Atual- mente, há grande preocupação ética com experimentos, principalmente aqueles que necessitam de testes nos seres humanos. Um grande marco da experimentação em seres humanos foi o código de Nuremberg, que surgiu após a Segunda Guerra Mundial e decorre dos processos de guerra de Nuremberg, quando foram expostos os experimentos nazistas nos campos de concentração. O código de Nuremberg elenca diversos princípios, como a necessidade de consentimento voluntário daquele que se submete ao teste, a necessidade de o experimento efetivamente produzir resultados 3Moralidade e problemas éticos C16_Filosofia_contemporanea.indd 3 16/01/2019 10:49:02 vantajosos à sociedade, entre outros. Tais princípios são incorporados pelos códigos de ética médica de diversos países (MÖLLER, 2005). A seleção artificial que os seres humanos promovem sobre a natureza é bastante antiga. As espécies de cães, bois, galos e galinhas decorrem de uma seleção promovida pela humanidade ao longo dos séculos. Também ocorre seleção e cruzamento de plantas com objetivos diversos, como melhor adaptação a determinado tipo de solo ou ambiente, maior produção de frutos, etc. Porém, com o sequenciamento genético, a manipulação das espécies assume outro nível, no qual as alterações das espécies podem ser muito mais profundas. O problema torna-se ainda maior quando se considera a alteração genética em relação a seres humanos. Diversos genes relacionados a doenças hereditárias específicas já foram identificados. Assim, em uma inseminação artificial, é possível selecionar embriões que, por exemplo, não portam o gene de determinada doença. A partir dos experimentos já realizados em genes de plantas e animais, se sabe que é perfeitamente possível a manipulação genética de seres humanos. Mas você acha que há limites para esse tipo de procedimento? E quais são as consequências dessas manipulações para a espécie, ou as suas consequências sociais? Esses são alguns dos grandes dilemaséticos atuais. De início, você pode considerar que não se sabem as consequências que uma manipulação genética causa a longo prazo. É possível pensar em uma alteração profunda da espécie e até mesmo na evolução de outra espécie, ou ainda no desenvol- vimento de novas doenças em razão da alteração genética. Sob um aspecto social, pode-se supor uma casta de “super-humanos”, mais inteligentes, fortes e longevos do que os demais. Essa casta poderia se resumir àqueles capazes de pagar por melhoramentos, aprofundando ainda mais as desigualdades sociais. As questões relacionadas à ética na pesquisa médica, à responsabilidade dos cientistas e aos limites das pesquisas fazem parte da bioética e dominam boa parte das discussões éticas atuais (MÖLLER, 2005). Como você viu até aqui, o questionamento ético esteve e está presente na história da humani- dade. Além disso, por uma ampla gama de fatores, constantemente surgem novos problemas éticos e antigos dilemas se rearranjam de outras formas, em constante mudança e problematização sobre a vida. O conceito de bioética O termo “bioética” é a junção das palavras gregas bio (vida) e éthos (ética). Ou seja, esse termo designa uma ética aplicada à vida. Tal estudo pertence a correntes teóricas divergentes: biologia, direito, fi losofi a, entre outras. Nesse Moralidade e problemas éticos4 C16_Filosofia_contemporanea.indd 4 16/01/2019 10:49:02 contexto, a bioética se concentra em buscar um tratamento respeitável à vida humana, mesmo em questões que não são unanimidade. O termo “bioética” foi utilizado pela primeira vez em 1927 por um protestante alemão, Fritz Jahr, em um artigo em que se referia à bioética relacionada à vida animal e vegetal. Posteriormente, em 1971, Van Rensselaer Potter escreveu uma proposta a que deu o nome de “bioética”. Tal proposta tratava da junção do estudo da biologia e suas extensões com os valores morais. Dessa forma, a bioética surge também a partir do desenvolvimento técnico e científico dos últimos cem anos (CHANGEUX, 1997). Ou seja, dadas as mudanças em relação às soluções e alternativas sobre questões médicas, am- bientais e morais, se fez necessário um estudo que atendesse reflexivamente a essas problemáticas. A partir do início do século XX, devido a experimentos médicos que aconteciam em humanos, surgiu uma regulamentação ética da medicina e das pesquisas científicas. Nesse contexto, ainda não existia um código que regulasse a conduta médica-científica. Assim, os pacientes muitas vezes passavam por experimentos sem mesmo saber. Foi o que aconteceu, por exemplo, no processo de investigação sobre o parto cesariano. Apesar de a cesariana ser um processo cirúrgico datado da Antiguidade, em que o feto era retirado por meio de um corte após a morte da mãe, foi na virada do século XIX para o século XX que o procedimento conseguiu êxito medicinal, ou seja, que foi possível preservar a mãe e o bebê. Entretanto, até ter êxito, os médicos faziam experimentos nas próprias ges- tantes, que muitas vezes não sobreviviam, assim como os bebês. Na maioria das vezes, o parto envolvia risco, e por diversas vezes as mães nem sabiam que seriam submetidas a uma cirurgia. Apesar de existir um primeiro código de ética prussiano, datado de 1900, em que se exigia que os pacientes fossem informados e consentissem em participar de experimentos e procedimentos médicos, muitos profissionais o ignoravam. Em 1931, após a morte de cerca de cem crianças na Alemanha pela aplicação de uma vacina-teste contra tuberculose sem o consentimento dos responsáveis, foram estabelecidas as Diretrizes para Novas Terapêuticas e Pesquisa em Seres Humanos. Entretanto, essas diretrizes passaram a ser ignoradas com a ascensão nazista. No governo nazista, eram feitas “pesquisas” em judeus e qualquer tipo de opositor capturado. Ocorriam procedimentos como a aplicação de tinta azul nos olhos de um judeu vivo a fim de verificar se era possível melhorar a raça alemã. Após a Segunda Guerra Mundial e a criação do código de Nuremberg, em 1949, ainda continuaram a surgir casos de abuso científico-medicinal em humanos. Nos Estados Unidos, aconteceram alguns dos casos mais famosos da segunda metade do século XX, como o caso de Tuskegee Syphilis Study. 5Moralidade e problemas éticos C16_Filosofia_contemporanea.indd 5 16/01/2019 10:49:02 Nesse caso, cerca de 400 pessoas negras foram submetidas à infecção de sífilis sem garantia do medicamento de cura, a penicilina. Os pesquisados desejavam entender como o vírus funcionava, principalmente em pessoas negras. Posteriormente, em 1963, em Nova Iorque, cerca de 20 idosos já doentes desenvolveram cânceres devido à aplicação de injeções com células cancerígenas sem o consentimento deles ou de seus responsáveis. Outro caso famoso aconteceu em 1950, quando pesquisadores aplicaram injeções com o vírus da hepatite A em crianças residentes em uma instituição para doentes mentais, com a finalidade de pesquisar uma vacina contra a doença. Para conhecer melhor o caso Tuskegee Syphilis Study, assista ao filme Cobaias, dirigido por Joseph Sargent. Você deve ter em mente que a bioética se propõe pensar não só esses casos de abusos, mas também os avanços medicinais e científicos (CHANGEUX, 1997). Por exemplo, desde o século XX, vê-se o desenvolvimento da biomedicina e da tecnologia voltado a buscar soluções e curas para doenças consideradas incuráveis, assim como para melhorar a vida de pessoas que poderiam viver mais ou com melhor qualidade. É o caso de tecnologias como o transplante de órgãos e de sangue. Um dos embates que acontecem em torno de tal tecnologia no Brasil, por exemplo, é em relação a determinados segmentos religiosos que não permitem transfusão de sangue ou transplantes de órgãos. O problema maior se dá quando se trata de um infante que precisa de transplante ou transfusão e a família não permite que o procedimento seja realizado. Nesses casos, é necessária intervenção jurídica. Outro caso co- mum é a questão da eutanásia em pacientes terminais, ou que estão sendo mantidos por aparelhos sem previsão de melhora. Há ainda a questão do aborto, primeiramente relacionado a casos de estupros e de bebês acéfalos. Nesses casos, entra em jogo o direito das mulheres de decidir em relação ao próprio corpo, ou seja, de optar por levar uma gestação adiante ou não. Atualmente, os Conselhos Nacionais de Saúde seguem protocolos éticos e têm, em seus núcleos, grupos dedicados à discussão bioética dos casos que chegam aos hospitais. Moralidade e problemas éticos6 C16_Filosofia_contemporanea.indd 6 16/01/2019 10:49:03 Diferentes perspectivas sobre o aborto e a eutanásia Dois temas bastante relevantes e que são alvo de intensas discussões éticas referem- -se aos dois extremos da vida: seu início e seu fi m (MÖLLER, 2007). Tratam-se do aborto e da eutanásia, que envolvem questões éticas relacionadas à própria vida. A discussão sobre o aborto é extremamente complexa. Ela envolve fatores sociais, como o consentimento da gestante no ato sexual, condições sociais após o nascimento e fatores médico-biológicos, como a discussão sobre o início da vida e o risco de morte da gestante. Mesmo cientificamente, há diversas posições sobre o início da vida, como você pode ver a seguir. Concepção genética: a vida se inicia na concepção, ou seja, quando espermatozoide e óvulo se combinam. Nessa concepção, a fertilização in vitro, por geralmente descartar alguns embriões, e a utilização da chamada “pílula do dia seguinte”, que dificulta a fecundação ou impede a fixação do óvulo na parede uterina, são consideradas homicídio ou aborto. Como você sabe, muitos abortos ocorrem espontaneamente nessa fase. Concepção embriológica: a vida se inicia na terceira semana de gesta- ção, pois até tal data não se pode estabelecer a individualidade humana, uma vez que o embrião é capaz de dar origem a mais de uma pessoa (gêmeos). Nessa concepção, os casos de fertilização ouuso da pílula do dia seguinte não são considerados aborto. Concepção neurológica: a vida se inicia com o início da atividade neurológica, pois, se você considerar que a morte é o fim da atividade neurológica, o seu início deve ser marcado por essa característica. Isso ocorreria após o terceiro mês de gestação, apesar de haver divergência quanto à data exata, por isso a interrupção da gestação antes dessa data não deveria ser criminalizada. Concepção ecológica: a vida se inicia quando o feto é capaz de sobreviver de forma independente fora do útero. Isso ocorre aproximadamente entre a 20ª e a 24ª semanas, quando ocorre o desenvolvimento dos pulmões. Essas concepções sobre o início da vida demarcam também o que é aborto ou até quando é possível a interrupção da gravidez sem que se possa dizer que uma vida é eliminada. Porém, a questão do aborto é mais complexa do que apenas a definição do início da vida. Em defesa do aborto, argumenta-se 7Moralidade e problemas éticos C16_Filosofia_contemporanea.indd 7 16/01/2019 10:49:03 também o direito da mulher sobre seu próprio corpo, uma vez que o embrião é parte dele. Outro aspecto é a questão do consenso da gestante no ato sexual. Nesse sentido, há o direito social da mulher de praticar o aborto em casos de estupro, independentemente de o embrião ou feto ser considerado uma vida, levando em consideração o trauma da violência sexual e suas consequências. Outra possibilidade é a descriminalização do aborto em casos em que a gestação representa um risco para a vida da gestante (MÖLLER, 2007). No Brasil, o aborto é descriminalizado em três casos: estupro, em caso de risco para a vida da gestante e em casos de anencefalia (fetos com subde- senvolvimento do cérebro), uma vez que nesses casos os fetos que nascem vivos morrem logo após ou, no máximo, nas semanas ou meses seguintes. A justificativa da legislação nesses termos é a defesa do direito da mulher de proteger a própria vida (nos casos em que a gravidez representa um risco), a minimização do trauma de levar uma gestação adiante com a certeza de que o feto irá morrer (nos casos de anencefalia), ou ainda a tentativa de minimizar as consequências de um caso de estupro. Como você pode notar, os preceitos que envolvem a discussão sobre o aborto não são nada consensuais. Para grupos que defendem que a vida se origina na concepção e que ela possui valor absoluto, qualquer tipo de interrupção ou forma de evitar o início da gravidez são injustificáveis. Por isso, mesmo as excludentes de ilicitude brasileiras seriam moralmente incorretas. Nas hipóteses previstas no Brasil, defende-se uma relativização do valor da vida em prol da preservação da autonomia da liberdade reprodutiva, da busca de minimizar os efeitos físicos e psíquicos da violência sofrida e do direito de defesa da vida da gestante nos casos em que gestação represente um risco. Ou seja, busca-se a preservação dos direitos relacionados ao prin- cípio da dignidade da pessoa humana previstos na Constituição Federal. Por outro lado, como crítica à legislação brasileira, é possível dizer que defende apenas um aspecto moralista, pois, ao permitir o aborto em caso de estupro, toma como cerne da questão o consentimento sexual. Dessa maneira, a maior preocupação não é com a vida, e sim com o fato de a mulher consentir ou não com a relação sexual. Em defesa do aborto, argumenta-se que pouco se olha para a escolha feminina e a condição social da mãe após o nascimento da criança. Como você sabe, em muitas situações a mulher não possui condições financeiras ou sociais para criar um filho. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2015 apontam que, nos arranjos familiares com filhos, “mulheres sem cônjuge e com filho” somam 26,8% do total, enquanto “homens sem cônjuge e com filho” somam 3,6%. Isso mostra que, em caso de criação de Moralidade e problemas éticos8 C16_Filosofia_contemporanea.indd 8 16/01/2019 10:49:03 filhos por apenas um dos pais, as mulheres representam um número muito mais preponderante. Além disso, em muitos casos, a gravidez ocorre na adolescência (no Brasil, a relação sexual com adolescentes a partir dos 14 anos deixa de ser estupro presumido), o que tende a dificultar a formação escolar da mãe, tendo em vista os cuidados necessários e inerentes a um filho (VELASCO, 2017). Outro tema de muita discussão na bioética é a eutanásia. Ela pode ser definida como o ato de provocar a morte de forma indolor a uma pessoa acometida por uma enfermidade incurável e/ou dolorosa. A eutanásia não se aplica apenas a casos de doentes terminais. Ela ocorre em casos de doenças debilitantes, doenças que causam grande sofrimento físico, paralisias, entre outros fatores que reduzem a capacidade de vida. A eutanásia difere-se do suicídio assistido, que consiste no ato de fornecer meios para que a própria pessoa provoque sua morte. Ela também não é o mesmo que a ortotanásia, que consiste no ato de permitir a morte natural de um doente terminal, sem a interferência da ciência, muitas vezes buscando reduzir o sofrimento e eventuais dores que uma doença pode causar. A ideia é evitar o suporte artificial e despropor- cional para a manutenção da vida de um enfermo em estágio terminal como forma de proporcionar uma morte digna a ele. A eutanásia é necessariamente um ato de uma pessoa que causa a morte de outra. Ela é voluntária quando o próprio doente expressa a sua vontade de morrer. Pode também ocorrer de a pessoa incapaz de expressar seu sentimento ter feito isso quando possuía capacidade para tanto. Além disso, a eutanásia pode ocorrer mesmo quando o doente não tenha expressado seu desejo; nesse caso, trata-se de eutanásia involuntária. Entre os principais argumentos pró-eutanásia, está o da autodeterminação de vida e morte. Segundo ele, as pessoas têm autodeterminação sobre a sua vida. Além disso, têm o direito de morrer quando desejarem. Assim, deve ser garantida a toda pessoa a assistência à morte se o pedido for feito de forma consciente e voluntária. Apesar de os críticos afirmarem que a decisão de uma pessoa em estágio terminal de uma doença ou submetida a forte sofrimento não é totalmente voluntária dado a esses fatos, argumenta-se que todas as decisões da vida são influenciadas por fatores sociais e psicológicos. Portanto, a escolha por morrer é mais uma dessas decisões. 9Moralidade e problemas éticos C16_Filosofia_contemporanea.indd 9 16/01/2019 10:49:03 Outro importante argumento é acabar com o sofrimento prolongado, forne- cendo uma morte indolor ou o mais indolor possível, ou seja, uma morte mais digna. A eutanásia é uma medida extrema que se destina aos casos em que o sofrimento e a dor não podem ser aliviados de outra forma. Nesse sentido, se defende que há maior dignidade na morte voluntária e consciente do que na espera por estágios avançados de enfermidade, que podem causar a perda da consciência ou a necessidade de sedação do doente. Contra a eutanásia, argumenta-se que o ato de matar é moralmente errado praticamente em todas as sociedades, seja do ponto de vista cultural ou re- ligioso. Por isso, a eutanásia, por ser o ato de causar a morte a outra pessoa, ou mesmo de auxiliá-la a morrer, é um ato moralmente condenável. Nesse sentido, afirma-se também a impossibilidade dos médicos de realizá-la, por ser contrária à ética médica. Esse argumento baseia-se no juramento de Hipócrates, considerado o pai da medicina ocidental. Ele defende que o papel do médico é tratar o paciente, preservar sua vida, não promover seu fim. Outro argumento contrário à eutanásia é o risco potencial de abuso. Nesse sentido, a eutanásia poderia ser utilizada de forma indiscriminada, inclusive em casos não justificáveis. Alega-se o risco de ocorrer manipulação ou forte influência direta, por exemplo, de médicos, instituições e familiares (movi- dos por interesses egoístas, econômicos e outros) sobre enfermos para que solicitem aeutanásia ou o suicídio assistido. Afirma-se que o risco é ainda maior porque as vítimas pertencem a grupos vulneráveis, como o de doentes crônicos, sujeitos a grandes sofrimentos, idosos e doentes terminais. A eutanásia é uma prática legal na Holanda, na Bélgica, em Luxemburgo e na Colômbia, sujeita a regulamentação própria em cada um dos países. No Brasil, tanto a eutanásia como o suicídio assistido são crimes tipificados no Código Penal respectivamente como homicídio e auxílio ao suicídio. Como você viu, o aborto e a eutanásia são assuntos complexos e envolvem um debate multidisciplinar. A adoção de qualquer posição exige um debate crítico e profundo com os argumentos e fatos envolvidos em cada uma das discussões. Moralidade e problemas éticos10 C16_Filosofia_contemporanea.indd 10 16/01/2019 10:49:03 BARRETTO, V. P. As relações da bioética com o biodireito. In: BARBOZA, H. H.; BARRETTO, V. P. (Org.). Temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. CHANGEUX, J.-P. Introduction: le débat éthique dans une société pluraliste. In: CHAN- GEUX, J.-P. (Coord.). Comité Consultatif National d’Éthique Pour les Sciences de la Vie et de la Santé: une même éthique pour tous? Paris: Odile Jacob, 1997. MÖLLER, L. L. Bioética e direito: limites éticos e jurídicos à ciência. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, n. 23, p. 71-87, jan./jun. 2005. MÖLLER, L. L. Direito à morte com dignidade e autonomia: o direito à morte de pacientes terminais e os princípios da dignidade e autonomia da vontade. Curitiba: Juruá, 2007. VELASCO, C. Em 10 anos, Brasil ganha mais de 1 milhão de famílias formadas por mães solteiras. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/em-10-anos- -brasil-ganha-mais-de-1-milhao-de-familias-formadas-por-maes-solteiras.ghtml>. Acesso em: 14 jan. 2019. 11Moralidade e problemas éticos C16_Filosofia_contemporanea.indd 11 16/01/2019 10:49:03 Conteúdo:
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