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O sistema nervoso possui dois tipos de células As células nervosas são as unidades sinalizadoras do sistema nervoso Células gliais dão suporte às células nervosas Cada célula nervosa é parte de um circuito que tem uma ou mais funções comportamentais específicas A sinalização é organizada da mesma forma em todas as células nervosas O componente aferente produz sinais locais graduados A zona de gatilho é decisiva na geração do potencial de ação O componente condutivo propaga um potencial de ação tudo-ou-nada O componente eferente libera neurotransmissores A transformação do sinal neuronal de sensorial para motor é ilustrada pela via do reflexo patelar Células nervosas diferem principalmente em nível molecular Modelos de redes neurais simulam o processamento em paralelo da informação no encéfalo Conexões neurais podem ser modificadas pela experiência A IMPRESSIONANTE VARIEDADE DO COMPORTAMENTO HU- MANO depende de uma gama sofisticada de recep- tores sensoriais conectados a um órgão neural alta- mente flexível – o encéfalo – que seleciona, dentre o fluxo de sinais sensoriais, aqueles eventos ambientais que são importantes para o indivíduo. Em outras palavras, o en- céfalo organiza ativamente a percepção, parte da qual é ar- mazenada na memória para referência futura, e outra parte é transformada em respostas comportamentais imediatas. Tudo isso é realizado por células nervosas interconectadas. Células nervosas individuais, ou neurônios, são as uni- dades básicas do encéfalo. O encéfalo humano possui um enorme número dessas células, da ordem de 1011 neurônios, que podem ser classificadas em, no mínimo, mil diferentes tipos. Mesmo assim, a complexidade do comportamento humano depende mais da organização dos neurônios em circuitos anatômicos com funções precisas do que de sua variedade. Um princípio organizacional fundamental do encéfalo, portanto, é que as células nervosas com proprie- dades similares podem produzir ações diferentes de acor- do com a maneira como se interconectam. Uma vez que relativamente poucos princípios de or- ganização podem gerar uma complexidade considerável, é possível entender muito sobre como o sistema nervoso gera um comportamento com foco em cinco características básicas do sistema nervoso: 1. os componentes estruturais das células nervosas indi- viduais; 2. os mecanismos pelos quais os neurônios produzem si- nais dentro e entre eles; 3. os padrões de conexões das células nervosas entre si e com seus alvos, como músculos e glândulas; 4. a relação de diferentes padrões de interconexão com diferentes tipos de comportamento; 5. as formas de modificação, pela experiência, de neurô- nios e suas conexões. As várias partes deste livro são organizadas de acordo com os cinco tópicos principais, acima referidos. Neste capítulo, oferecemos uma visão geral do controle neural do comportamento, introduzindo tais tópicos em conjunto. Primeiramente, consideraremos a estrutura e a função dos neurônios e das células gliais que os cercam e sustentam. Depois, examinaremos como as células in- dividuais organizam e transmitem sinais e como a sina- lização entre algumas células nervosas interconectadas produz um comportamento simples, o reflexo patelar. Finalmente, consideraremos como as mudanças na sina- lização por células específicas podem modificar o com- portamento. 2 As células nervosas, os circuitos neurais e o comportamento 20 Eric R. Kandel, James H. Schwartz, Thomas M. Jessell, Steven A. Siegelbaum & A. J. Hudspeth O sistema nervoso possui dois tipos de células Há duas classes principais de células no sistema nervoso: células nervosas, ou neurônios, e células gliais, ou glia. As células nervosas são as unidades sinalizadoras do sistema nervoso Um neurônio típico tem quatro regiões morfologicamente definidas: (1) o corpo celular, (2) os dendritos, (3) o axônio e (4) os terminais pré-sinápticos (Figura 2-1). Como veremos adiante, cada região tem um papel distinto na geração de sinais e na comunicação com outras células nervosas. O corpo celular, ou soma, é o centro metabólico da cé- lula. Contém o núcleo, que possui os genes da célula, e o retículo endoplasmático, uma extensão do núcleo onde proteínas celulares são sintetizadas. O corpo celular geral- mente origina dois tipos de processos: vários dendritos cur- tos e um axônio longo e tubular. Os dendritos ramificam-se de forma semelhante a uma árvore e são o principal apara- to para recepção de sinais aferentes de outras células ner- vosas. O axônio tipicamente estende-se até certa distância do corpo celular e carrega sinais a outros neurônios. Um axônio pode transportar sinais elétricos por longas distân- cias, de 0,1 mm a 2 m. Esses sinais elétricos, chamados po- tenciais de ação, são iniciados em uma zona especializada de disparo (zona de gatilho) próxima à origem do axônio, chamada segmento inicial, a partir da qual esses potenciais se propagam através do axônio sem falhas ou distorções, a velocidades de 1 a 100 m/s. A amplitude de um poten- cial de ação viajando pelo axônio se mantém constante a 100 mV porque o potencial de ação é um impulso tudo-ou- -nada que se regenera a intervalos regulares ao longo do axônio (Figura 2-2). Potenciais de ação são os sinais pelos quais o encéfalo recebe, analisa e transmite a informação. Esses sinais são altamente estereotipados em todo o sistema nervoso, mes- mo que iniciados por uma grande variedade de eventos ambientais que nos atingem – da luz ao contato mecânico, de odores a ondas de pressão. Os sinais que transmitem informação sobre visão são idênticos aos que carregam in- formação sobre odores. Eis um princípio básico da função cerebral: a informação transmitida por um potencial de ação é determinada não pela forma do sinal, mas pela via trafegada pelo sinal no encéfalo. O encéfalo analisa e inter- preta os padrões de sinais elétricos aferentes e suas vias, criando nossas sensações de visão, tato, olfato e audição. Para aumentar a velocidade de condução dos poten- ciais de ação, grandes axônios são enrolados em uma subs- tância lipídica isolante, a mielina. A bainha de mielina é in- terrompida a intervalos regulares pelos nodos de Ranvier, Figura 2-1 A estrutura do neurônio. A maioria dos neurônios no sistema nervoso dos vertebrados tem várias características principais em comum. O corpo celular contém o núcleo, o depó- sito da informação genética, e origina dois tipos de processos ce- lulares: axônios e dendritos. Os axônios são o elemento transmis- sor dos neurônios; variam bastante em comprimento, e alguns se estendem por mais de 2 metros dentro do corpo. A maioria dos axônios no sistema nervoso central é muito fina (entre 0,2 mm e 20 mm de diâmetro) em comparação com o diâmetro do corpo celular (50 mm ou mais). Muitos axônios são isolados por uma bainha gordurosa de mielina, que é interrompida regularmente em alguns pontos chamados nodos de Ranvier. O potencial de ação, sinal condutor da célula, é iniciado no segmento inicial do axônio e propaga-se para a sinapse, local no qual os sinais se transmitem de um neurônio a outro. As ramificações do axônio do neurônio pré-sináptico transmitem sinais para a célula pós- -sináptica. As ramificações de um único axônio podem formar sinapses com até mil neurônios pós-sinápticos. Os dendritos apicais e basais junto com o corpo celular são os elementos aferentes (de entrada) do neurônio, recebendo sinais de outros neurônios. Dendritos apicais Dendritos basais Axônio (segmento inicial) Cone de implantação axonal Nodo de Ranvier Núcleo Corpo celular Axônio Dendrito pós-sináptico Sinapse Terminal pré-sináptico Célula pré-sináptica Células pós-sinápticas Bainha de mielina Princípios de Neurociências 21 pontos do axônio não isolados pela mielina, onde o poten- cial de ação é regenerado. Voltaremos a tratar da mielini- zação no Capítulo 4 e de potenciais de ação no Capítulo 7. Próximoao seu final, o axônio se divide em finas rami- ficações que contatam outros neurônios em zonas especiali- zadas de comunicação chamadas sinapses. A célula nervosa que está transmitindo o sinal é chamada célula pré-sináptica; a célula receptora do sinal é a célula pós-sináptica. A célula pré-sináptica transmite sinais por regiões especializadas di- latadas em suas ramificações axonais, chamadas terminais pré-sinápticos ou terminais nervosos. As células pré-sinápticas e pós-sinápticas são separadas por um espaço muito estrei- to, a fenda sináptica. A maioria dos terminais pré-sinápticos termina nos dendritos dos neurônios pós-sinápticos, mas os terminais podem também fazer contato com o corpo ce- lular ou, menos frequentemente, no início ou extremidade do axônio da célula receptora (ver Figura 2-1). Como visto no Capítulo 1, Ramón y Cajal foi o respon- sável por grande parte das evidências iniciais da doutrina neuronal, o princípio de que cada neurônio é uma célula distinta com processos específicos que surgem de seu cor- po celular e que os neurônios são as unidades sinalizadoras do sistema nervoso. Em retrospecto, é difícil avaliar como foi difícil persuadir os cientistas dessa ideia elementar. Di- ferentemente de outros tecidos, nos quais as células têm formas simples e cabem em um único campo do micros- cópio óptico, as células nervosas têm formas complexas. Os padrões elaborados de dendritos e o curso aparente- mente infinito de alguns axônios a princípio tornou muito difícil estabelecer uma relação entre tais elementos. Mes- mo depois que os anatomistas Jacob Schleiden e Theodor Schwann estabeleceram a teoria celular no início da década de 1830 – e a ideia de que as células são as unidades estru- turais de todos os seres vivos se tornou um dogma central da Biologia –, a maioria dos anatomistas não aceitava que a teoria celular se aplicava ao encéfalo, o qual imaginavam ser uma estrutura reticular contínua de processos muito fi- nos, em formato de teia. A coerência sobre a estrutura do neurônio não se tornou clara até o fim do século XIX, quando Ramón y Cajal come- çou a usar o método de coloração com prata introduzido por Golgi. Ainda utilizado nos dias de hoje, esse método possui duas vantagens. Primeiro, de uma maneira randômica que não é compreendida, a solução de prata cora apenas por vol- ta de 1% das células de qualquer região cerebral específica, tornando possível examinar um único neurônio isolado da sua vizinhança. Segundo, os neurônios que são efetivamen- te corados ficam inteiramente delineados, incluindo corpo celular, axônio e árvore dendrítica completa. Essa coloração revela que não há continuidade citoplasmática entre neurô- nios, mesmo nas sinapses entre duas células. Ramón y Cajal aplicou o método de Golgi para visua- lizar o sistema nervoso embrionário de muitos animais e também humanos. Examinando a estrutura dos neurônios em quase todas as regiões do sistema nervoso, ele pode descrever classes de células nervosas e mapear as conexões precisas entre muitas delas. Assim, Ramón y Cajal adicio- nou, além da doutrina neuronal, outros dois princípios da organização neural que seriam particularmente valiosos no estudo da comunicação no sistema nervoso. O primeiro deles tornou-se conhecido como o princípio da polarização dinâmica. Estabelece que sinais elétricos den- tro de uma célula nervosa fluem apenas em uma direção: dos sítios receptivos neuronais, geralmente os dendritos e o corpo celular, para a região da zona de gatilho (ou zona de disparo) do axônio. De lá, o potencial de ação propaga-se por toda a extensão do axônio até seus terminais. Na maio- ria dos neurônios estudados até agora, os sinais elétricos de fato trafegam em um sentido. Mais adiante, neste capítulo, é descrita a base fisiológica de tal princípio. O outro princípio proposto por Ramón y Cajal é o da es- pecificidade conectiva, que postula que as células nervosas não fazem conexões randômicas entre si na formação das redes neurais. Em vez disso, cada célula faz conexões específicas – em pontos de contato particulares –, com certas células-alvo pós-sinápticas, mas não com outras. Os princípios da pola- rização dinâmica e da especificidade conectiva são a base da moderna abordagem conexionista para estudo do encéfalo. Ramón y Cajal também esteve entre os primeiros a per- ceber que a característica que mais distingue um tipo de neurônio de outro é a forma, especificamente o número de processos que se originam do corpo celular. Os neurônios são, portanto, classificados em três grandes grupos: unipo- lares, bipolares e multipolares. Neurônios unipolares são os mais simples porque pos- suem um único processo primário, que geralmente origina muitas ramificações. Uma ramificação atua como axônio, e as outras, como estruturas receptivas (Figura 2-3A). Essas célu- las são predominantes no sistema nervoso de invertebrados; em vertebrados, fazem parte do sistema nervoso autônomo*. Neurônios bipolares têm um corpo oval que origina dois processos distintos: uma estrutura dendrítica, que recebe sinais da periferia do organismo, e um axônio, que carre- * N. de R.T. Diferentes termos são empregados para designar este sistema: sistema nervoso autônomo, sistema neurovegetativo ou sistema motor visceral. +40 –70 0 Figura 2-2 Este traçado histórico foi o primeiro registro in- tracelular de um potencial de ação publicado. Foi registrado em 1939, por Hodgkin e Huxley em um axônio gigante da lula, usando eletrodos capilares de vidro preenchidos com água do mar. Os pulsos temporais são separados por 2 ms. A escala ver- tical indica o potencial do eletrodo interno em milivolts, sendo a água do mar externa tomada como o potencial zero. (Reproduzi- da, com permissão, de Hodgkin e Huxley, 1939.) 22 Eric R. Kandel, James H. Schwartz, Thomas M. Jessell, Steven A. Siegelbaum & A. J. Hudspeth ga essa informação para o sistema nervoso central (Figura 2-3B). Muitas células sensoriais são bipolares, inclusive as da retina e as do epitélio olfatório nasal. Os neurônios sen- soriais que transmitem sinais de tato, pressão e dor à me- dula espinal são variantes das células bipolares chamadas de pseudounipolares. Essas células se desenvolvem inicial- mente como bipolares, mas os dois processos celulares se fundem em uma estrutura única e contínua que se origina de um ponto único no corpo celular. O axônio divide-se em duas ramificações, uma se dirigindo à periferia (para receptores sensoriais na pele, articulações e músculos), e outra para a medula espinal (Figura 2-3C). Neurônios multipolares são os predominantes no sis- tema nervoso de vertebrados. Possuem comumente um único axônio e muitas estruturas dendríticas originadas de vários pontos ao redor do corpo celular (Figura 2-3D). Cé- lulas multipolares variam muito na forma, especialmente no comprimento de seus axônios e na extensão, nas dimen- sões e na complexidade de suas ramificações dendríticas. Via de regra, a extensão das ramificações correlaciona-se A Célula unipolar C Célula pseudounipolarB Célula bipolar Neurônio de invertebrado Célula ganglionar da raiz dorsalCélula bipolar da retina Axônio central Processo único bifurcado Corpo celular Axônio periférico para pele e músculos Dendritos Dendritos Corpo celular Axônio Dendritos Corpo celular Axônio D Três tipos de células multipolares Dendrito basal Corpo celular Axônio Neurônio motor da medula espinal Célula piramidal do hipocampo Célula de Purkinje do cerebelo Dendritos Corpo celular Axônio Dendrito apical Terminais axonais Dendritos Axônio Terminais axonais Corpo celular Figura 2-3 Neurônios são classificados como unipolares, bipolares ou multipolares, de acordo com o número de pro- cessos que se originam do corpo celular. A. Células unipolares têm um único processo originado da célula. Diferentes segmentos servem como superfícies receptoras ou terminais de liberação. Células unipolares sãocaracterísticas do sistema nervoso de invertebrados. B. Células bipolares têm dois tipos de processos que são espe- cializados funcionalmente. O dendrito recebe sinais elétricos, e o axônio os transmite para outras células. C. Células pseudounipolares são variantes das células bipolares que transmitem informação somatossensorial para a medula espi- nal. Durante o desenvolvimento, os dois processos da célula bipo- lar embrionária se fundem e emergem do corpo celular como um único processo que tem dois segmentos funcionalmente distintos. Ambos os segmentos funcionam como axônios: um se estende para a periferia (pele ou músculo), e o outro, para o centro da me- dula espinal. (Adaptada, com permissão, de Ramón y Cajal, 1933.) D. Células multipolares têm um único axônio e muitos dendri- tos. Elas são o tipo de neurônio mais comum no sistema nervo- so de mamíferos. Três exemplos ilustram a grande diversidade dessas células: os neurônios motores espinais inervam as fibras dos músculos esqueléticos; as células piramidais têm um corpo celular aproximadamente triangular; os dendritos emergem tanto do ápice (dendritos apicais) quanto da base (dendritos basais). As células piramidais são encontradas no hipocampo e por todo o córtex cerebral. As células de Purkinje do cerebelo são carac- terizadas por uma árvore dendrítica rica e extensa, que acomoda uma enorme aferência sináptica. (Adaptada, com permissão, de Ramón y Cajal, 1933.) Princípios de Neurociências 23 com o número de contatos sinápticos feitos por outros neu- rônios. Um neurônio motor espinal com um número relati- vamente pequeno de dendritos recebe por volta de 10 mil contatos – 1 mil no corpo celular e 9 mil nos dendritos. A árvore dendrítica de uma célula de Purkinje no cerebelo é muito maior e mais ramificada, recebendo até um milhão de contatos. As células nervosas são também classificadas em três categorias funcionais principais: neurônios sensoriais, neurônios motores e interneurônios. Neurônios sensoriais carregam a informação de sensores periféricos do organis- mo para o sistema nervoso, objetivando tanto a percepção quanto a coordenação motora. Alguns neurônios sensoriais primários são chamados de aferentes, e as duas denomina- ções são usadas como sinônimos. O termo aferente (trans- mitido para o sistema nervoso) aplica-se a toda a informa- ção que atinge o sistema nervoso central vinda da periferia, independentemente de essa informação levar ou não à sensação. O termo sensorial deveria, no seu sentido estrito, ser aplicado apenas às aferências que levam à percepção. Neurônios motores carregam comandos do encéfalo ou da medula espinal para os músculos e glândulas (informação eferente). Os interneurônios são os mais numerosos e sub- dividem-se em duas classes: neurônios de retransmissão (relés) e locais. Interneurônios de retransmissão ou de pro- jeção têm axônios longos e transmitem sinais por distâncias consideráveis, de uma região encefálica a outra. Interneu- rônios locais têm axônios curtos porque formam conexões com neurônios próximos em circuitos locais. Cada classificação funcional pode ser subdividida ain- da mais. Os interneurônios sensoriais são classificados de acordo com o tipo de estímulo sensorial ao qual respon- dem, e essas classificações iniciais podem ainda ser des- membradas em muitos subgrupos de acordo com locali- zação, densidade e tamanho. Por exemplo, interneurônios das células ganglionares da retina, que respondem à luz, são classificados em 13 tipos, com base no tamanho da ár- vore dendrítica, na densidade das ramificações e na pro- fundidade da sua localização em camadas específicas da retina (Figura 2-4). Células gliais dão suporte às células nervosas As células gliais são muito mais numerosas do que os neurônios – há 2 a 10 vezes mais glia do que neurônios no sistema nervoso central dos vertebrados. O nome dessas células deriva do grego, “cola”, mas não é comum a glia ligar as células nervosas uma a outra; em vez disso, essas células circundam os corpos celulares, axônios e dendritos dos neurônios. A glia difere morfologicamente dos neurô- nios, pois não forma dendritos ou axônios. Também difere funcionalmente: embora originem-se das mesmas célu- las precursoras embrionárias, as células gliais não têm as mesmas propriedades da membrana dos neurônios, não são eletricamente excitáveis e não estão diretamente en- volvidas na sinalização elétrica, que é a função das células nervosas. Há muitos tipos de células gliais. Como será discuti- do no Capítulo 4, a diversidade na morfologia das células gliais sugere que a glia seja provavelmente tão heterogê- nea quanto os neurônios. Ainda assim, a glia no sistema nervoso dos vertebrados pode ser dividida em duas classes principais: micróglia e macróglia. Micróglias são células do sistema imunológico, mobilizadas contra antígenos presen- tes e que se tornam fagócitos durante trauma, infecção ou doenças degenerativas. Há três tipos principais de macró- glias: oligodendrócitos, células de Schwann e astrócitos. No encéfalo humano, por volta de 80% de todas a células são macróglias. Dessas, aproximadamente metade são oli- godendrócitos, e metade, astrócitos. Oligodendrócitos e células de Schwann são células pequenas com relativamente poucos processos. Ambas formam a bainha de mielina que envolve e isola o axônio, Tamanho e complexidade do campo dendrítico Posição dos dendritos na camada plexiforme interna Camada de células ganglionaresAnãs (Midget) Guarda-chuva (Parasol) Esparsa grande Esparsa gigante Monoestratificadas Biestratificadas Espinhosa ampla Espinhosa estreita Pequena Grande Figura 2-4 Os neurônios sensoriais podem ser subdividi- dos em grupos funcionalmente distintos. A coloração fotodi- nâmica distingue 13 tipos de células ganglionares da retina com base na sua forma dendrítica e profundidade da posição na retina. (Reproduzida, com permissão, de Dacey et al., 2003.) 24 Eric R. Kandel, James H. Schwartz, Thomas M. Jessell, Steven A. Siegelbaum & A. J. Hudspeth enrolando firmemente seus processos membranosos em espiral ao redor desse axônio. Oligodendrócitos são en- contrados no sistema nervoso central: cada célula envolve de 1 até 30 segmentos axonais (chamados internodulares), dependendo do diâmetro do axônio (Figura 2-5A). Células de Schwann ocorrem no sistema nervoso periférico, onde cada uma circunda um único segmento de um axônio (Fi- gura 2-5B). Com a mielinização, oligodendrócitos e células de Schwann influenciam os axônios, aumentando a con- dução do sinal e segregando canais iônicos dependentes de voltagem em domínios axonais distintos (chamados nodos de Ranvier). Astrócitos, a terceira das classes principais de células gliais, devem seu nome aos seus corpos celulares irregula- res, semelhantes a estrelas, e grande número de processos (Figura 2-5C). Compreendem dois tipos principais. Astró- citos protoplásmicos são encontrados nas substância cin- zenta, e seus vários processos terminam em forma de folha. Astrócitos fibrosos são encontrados na substância branca e têm processos longos e finos que contêm grandes feixes de filamentos intermediários firmemente empacotados. Am- bos os tipos de astrócitos possuem dilatações finais (“pés”) que circundam e fazem contato com capilares e arteríolas por todo o encéfalo (Figura 2-5C). Os processos em forma de folha dos astrócitos protoplásmicos circundam os cor- pos das células nervosas e as sinapses, enquanto as termi- nações dos astrócitos fibrosos fazem contato com os axô- nios nos nodos de Ranvier. As funções dos astrócitos ainda são desconhecidas. Acredita-se que elas não sejam essenciais para o processa- mento de informações, mas deem suporte aos neurônios de quatro formas: 1. Os astrócitos separam as células, isolando, assim, gru- pos neuronais e conexões sinápticas umas das outras. 2. Por serem altamente permeáveis a K1, os astrócitos ajudam a regular as concentraçõesde K1 no espaço entre neurônios. Como será visto, K1 flui para fora dos neurônios quando disparam. O disparo repetitivo pode criar um excesso de K1 extracelular que interferi- ria na sinalização entre células vizinhas. Os astrócitos podem captar o excesso de K1 e, assim, manter a efi- ciência da sinalização entre os neurônios. 3. Os astrócitos atuam em outras tarefas de manutenção importantes que promovem a sinalização eficiente en- tre os neurônios. Por exemplo, como se verá adiante, captam neurotransmissores das zonas sinápticas após a liberação. 4. Os astrócitos ajudam a nutrir os neurônios vizinhos li- berando fatores de crescimento. Embora não gerem potenciais de ação, as células gliais recentemente foram descritas como participantes nos pro- cessos de sinalização neurônio-gliais. O significado dessa sinalização ainda é pouco compreendido, mas ela pode ati- vamente auxiliar na regulação do desenvolvimento e fun- cionamento da sinapse (Capítulo 4). Camadas de mielina Porção interna Núcleo Célula de Schwann Axônio Nodos de Ranvier A Oligodendrócito B Célula de Schwann Capilar Pé Astrócito fibroso Neurônio Pé Nodos de Ranvier C Astrócito Figura 2-5 Os principais tipos de células gliais são oligo- dendrócitos e astrócitos no sistema nervoso central e célu- las de Schwann no sistema nervoso periférico. A. Os oligodendrócitos são células pequenas com relativamente poucos processos. Na substância branca encefálica, como mos- trado aqui, fornecem a bainha de mielina que envolve os axônios. Um único oligodendrócito pode enrolar seus processos membra- nosos ao redor de vários axônios. Na substância cinzenta peri- neural, os oligodendrócitos envolvem e dão suporte aos corpos celulares de neurônios. B. Células de Schwann fornecem a bainha de mielina para axô- nios no sistema nervoso periférico. Durante o desenvolvimento, várias células de Schwann são posicionadas ao longo da exten- são de um único axônio. Cada célula forma uma bainha de mie- lina de aproximadamente 1 mm de extensão entre dois nodos de Ranvier. A bainha desenvolve-se conforme a porção interna da célula de Schwann se volta ao redor do axônio muitas vezes, enrolando o axônio em camadas de membrana. De fato, as ca- madas de mielina são mais compactas do que mostrado aqui. (Adaptada, com permissão, de Alberts et al., 2002.) C. Os astrócitos, a maior classe de células gliais do sistema ner- voso central, são caracterizados por seu formato estelar e am- plas terminações em seus processos (“pés”). Considerando que essas terminações colocam os astrócitos em contato tanto com capilares quanto com neurônios, acredita-se que os astrócitos tenham uma função nutritiva. Os astrócitos também têm um im- portante papel na manutenção da barreira hematencefálica. (Ver Apêndice D.) Princípios de Neurociências 25 Cada célula nervosa é parte de um circuito que tem uma ou mais funções comportamentais específicas Cada comportamento é mediado por conjuntos específicos de neurônios interconectados, e a função comportamental de cada neurônio é determinada por suas conexões com outros neurônios. Esse fato é ilustrado por um compor- tamento simples, o reflexo patelar. Tal reflexo é iniciado quando um desequilíbrio transitório do corpo estira os músculos quadríceps extensores da coxa. O estiramento elicita uma informação sensorial que é transmitida aos neurônios motores, que, por sua vez, enviam comandos ao músculos extensores para que se contraiam de forma a restaurar o equilíbrio. Esse reflexo é útil da perspectiva clínica, mas o mecanismo envolvido é importante porque mantém continuamente o tônus normal no quadríceps e evita que os nossos joelhos se dobrem quando levantamos ou caminhamos. O tendão do quadríceps femoral, um músculo exten- sor que movimenta a perna, está ligado à tíbia por meio do tendão do joelho. Estimular esse tendão logo abaixo da patela estira o quadríceps femoral. Esse estiramento inicia a contração reflexa do músculo quadríceps para produzir o conhecido reflexo patelar. Aumentando a tensão de um grupo específico de músculos, o reflexo de estiramento muda a posição da perna, lançando-a subitamente para a frente (Figura 2-6). Os corpos celulares dos neurônios sensoriais envolvi- dos no reflexo patelar estão agrupados próximos à medula espinal nos gânglios da raiz dorsal. Eles são células pseu- dounipolares. Uma ramificação do axônio de cada célu- la vai até o músculo quadríceps na periferia, enquanto a outra se direciona centralmente para a medula espinal. O ramo que inerva o quadríceps faz contato com receptores sensíveis ao estiramento (fusos musculares) e é estimulado quando o músculo é estirado. O ramo que atinge a medula espinal forma conexões excitatórias com neurônios moto- res que inervam o quadríceps e controlam a sua contração. Esse ramo também faz contato com interneurônios que inibem os neurônios motores que controlam os músculos flexores opositores (Figura 2-6). Esses interneurônios locais não estão envolvidos na produção do reflexo patelar em si, mas, coordenando a ação motora, aumentam a estabilidade do reflexo. Assim, os sinais elétricos que produzem o refle- xo carregam quatro tipos de informação: 1. A informação sensorial é transmitida ao sistema nervo- so central (medula espinal) a partir do músculo. 2. Comandos motores do sistema nervoso central são en- viados aos músculos responsáveis pelo reflexo patelar. 3. Comandos inibitórios são enviados aos neurônios motores que inervam músculos opositores, provendo coordenação da ação muscular. 4. A informação sobre a atividade neuronal local relacio- nada ao reflexo patelar é enviada a centros superiores do sistema nervoso central, permitindo ao encéfalo a coordenação de comportamentos diferentes tanto si- multaneamente quanto em série. O estiramento de apenas um músculo, o quadríceps, ativa várias centenas de neurônios sensoriais, cada um dos quais faz contato direto com 45 a 50 neurônios motores. Esse padrão de conexão, no qual um neurônio ativa muitas células-alvo, é chamado divergência (Figura 2-7A). É espe- cialmente comum nos pontos de aferência do sistema ner- voso – pela distribuição dos sinais a muitas células-alvo, um único neurônio pode exercer uma influência ampla e diversificada. Por sua vez, uma única célula motora no cir- cuito do reflexo patelar recebe entre 200 a 450 aferências de aproximadamente 130 células sensoriais. Esse padrão de conexão é chamado de convergência (Figura 2-7B). É comum em pontos de eferência do sistema nervoso – uma célula-al- vo motora que recebe informação de muitos neurônios sen- soriais é capaz de integrar a informação de muitas fontes. A convergência também garante que um neurônio motor seja ativado apenas se um número suficiente de neurônios sensoriais foi ativado simultaneamente. Um reflexo de estiramento como o reflexo patelar é um comportamento simples produzido por duas classes de neurônios conectados em sinapses excitatórias. Contu- do, nem todos os sinais importantes no encéfalo são ex- citatórios. Muitos neurônios produzem sinais inibitórios Quadríceps (extensor) Estímulo Corda poplítea (flexor) Interneurônio inibitório Medula espinal Neurônio motor extensor (ativado) Neurônio motor flexor (inibido) Neurônio sensorial Fuso muscular Figura 2-6 O reflexo patelar é controlado por um circuito simples de neurônios sensoriais e motores. O estímulo na patela com um martelo de reflexos puxa o tendão do quadríceps femoral, um músculo que estende a perna. Quando o músculo se estira em resposta ao estímulo do tendão, a informação referente a essa mudança no músculo é transmitida ao sistema nervoso central por neurônios sensoriais. Na medula espinal, os neurô- nios sensoriais formam sinapses excitatórias com neurônios motores extensores que contraem o quadríceps, o músculo que havia sido estirado. Os neurônios sensoriais agem indiretamente, por meio de interneurônios,para inibir os neurônios motores fle- xores que iriam, de outra forma, contrair o músculo oposto (corda poplítea). Essas ações são combinadas para produzir o comporta- mento reflexo. Na figura, cada neurônio motor extensor e flexor representa uma população de muitas células. 26 Eric R. Kandel, James H. Schwartz, Thomas M. Jessell, Steven A. Siegelbaum & A. J. Hudspeth que reduzem a chance de disparo. Mesmo no simples re- flexo patelar, os neurônios sensoriais fazem conexões tanto excitatórias quanto inibitórias. Conexões excitatórias nos músculos extensores da perna levam à contração desses músculos, enquanto conexões com interneurônios inibitó- rios evitam a contração nos músculos flexores antagonis- tas. Tal característica do circuito é um exemplo de pró-ação inibitória (Figura 2-8A). Num reflexo patelar, essa inibição é recíproca, garantindo que as vias flexoras e extensoras se inibam mutuamente, de forma que apenas os músculos apropriados para o movimento (e não seus opositores) se- jam recrutados. Os neurônios também têm conexões que fornecem retroalimentação inibitória. Por exemplo, um neurônio mo- tor pode ter conexões excitatórias tanto com um músculo quanto com um interneurônio inibitório que, por sua vez, inibe o neurônio motor. O interneurônio inibitório é, por- tanto, capaz de limitar a capacidade do neurônio motor de estimular o músculo (Figura 2-8B). Serão encontrados muitos exemplos de inibição por pró-ação e por retroali- mentação quando comportamentos mais complexos forem estudados nos capítulos seguintes. A sinalização é organizada da mesma forma em todas as células nervosas Para produzir um comportamento, como o reflexo de es- tiramento, cada célula nervosa sensorial e motora parti- cipante deve gerar quatro sinais diferentes em sequência, cada um num local diverso dentro da célula: um sinal afe- rente, um sinal de gatilho (ou disparo), um sinal condutor e um sinal eferente. Independentemente do tamanho ou do formato celular, da bioquímica dos transmissores ou da função comportamental, praticamente todos os neurô- nios podem ser descritos por um modelo neuronal que tem quatro componentes funcionais que geram os quatro tipos de sinais: um componente receptivo, um componente adi- tivo ou integrador, um componente de sinalização de lon- go alcance e um componente secretório (Figura 2-9). Esse modelo neuronal é a expressão fisiológica do princípio de polarização dinâmica de Ramón y Cajal. Os diferentes tipos de sinais gerados em um neurônio são determinados em parte pelas propriedades elétricas da membrana celular. Cada célula, inclusive o neurônio, man- tém uma certa diferença no potencial elétrico entre os dois lados da membrana plasmática quando a célula está em re- pouso. Esse potencial é chamado de potencial de repouso da membrana. Em um neurônio típico em repouso, a voltagem no interior da célula é por volta de 65 mV mais negativo do que a voltagem no exterior da célula. Considerando que a voltagem na porção externa da membrana é definida como zero, dizemos que o potencial da membrana em repouso é –65 mV. O potencial de repouso em diferentes células nervosas varia de –40 a –80 mV; nas células musculares é A Divergência B Convergência Figura 2-7 Conexões neuronais divergentes e convergentes são uma característica organizacional chave do encéfalo. A. Nos sistemas sensoriais, cada neurônio receptor geralmente faz contato com vários neurônios, que representam o segundo estágio do processamento. Em estágios subsequentes de pro- cessamento, as conexões seguintes divergem ainda mais. Isso permite que a informação sensorial de um único local seja distri- buída mais amplamente na medula espinal e no encéfalo. B. Em contraste, neurônios motores são alvos de conexões con- vergentes progressivas. Com esse arranjo, sinais vindos de muitas células pré-sinápticas são requeridos para ativar o neurônio motor. + + A Inibição por pró-ação Neurônios aferentes inervando os músculos extensores Neurônio motor extensor + + + + + + – – Neurônios aferentes inervando músculos flexores Interneurônio inibitório Neurônio motor flexor Flexores Extensores Extensores B Inibição por retroalimentação Neurônios aferentes inervando os músculos extensores Neurônio motor extensor Interneurônio inibitório Figura 2-8 Interneurônios inibitórios podem produzir inibi- ção por pró-ação ou por retroalimentação. A. A inibição por pró-ação amplifica o efeito da rota ativa supri- mindo a atividade das rotas que medeiam ações opositoras. A inibição por pró-ação é comum em sistemas reflexos monossi- nápticos. Por exemplo, no circuito do reflexo patelar (Figura 2-6), neurônios aferentes dos músculos extensores não apenas esti- mulam os neurônios motores extensores, mas também inibem os interneurônios, evitando o disparo de células motoras que inervam os músculos flexores opositores. B. A inibição por retroalimentação é um mecanismo de autorregu- lação. Aqui os neurônios motores extensores agem em interneu- rônios inibitórios que, por sua vez, atuam nos próprios neurônios motores extensores e, portanto, reduzem sua probabilidade de disparo. O efeito é de inibir a atividade da própria rota estimulada e evitar que o estímulo ultrapasse certo nível crítico. Princípios de Neurociências 27 ainda maior, por volta de –90 mV. Como será visto no Ca- pítulo 6, o potencial de repouso resulta de dois fatores: a distribuição desigual de íons carregados eletricamente, em particular os íons carregados positivamente Na1 e K1, e a permeabilidade seletiva da membrana plasmática. A distribuição desigual de íons carregados positiva- mente entre os dois lados da membrana celular é manti- da por dois mecanismos principais. As concentrações in- tracelulares de Na1 e K1 são controladas sobretudo por uma proteína da membrana que bombeia ativamente Na1 para fora da célula e K1 para dentro da célula. Essa bomba Na1-K1, da qual se voltará a tratar no Capítulo 6, mantém a concentração de Na1 baixa dentro da célula (por volta de um décimo da sua concentração no exterior da célula) e a concentração de K1 alta (cerca de 20 vezes a mais do que a concentração no exterior celular). As concentrações extra- celulares de Na1 e K1 são mantidas pelos rins. A membrana celular é seletivamente permeável ao K1 porque possui proteínas que formam poros chamados ca- nais iônicos. Os canais ativos quando a célula está em repou- so são muito permeáveis ao K1, mas consideravelmente menos permeáveis ao Na1. Os íons K1 tendem a vazar por meio desses canais abertos, a favor do gradiente de concen- tração do íon. Conforme saem da célula, os íons K1 deixam uma quantidade de cargas negativas não neutralizadas na face interna da membrana, de forma que a carga final no interior da membrana é mais negativa do que no exterior. Uma célula, como as nervosas ou musculares, é dita excitável quando o seu potencial de membrana pode ser rá- pida e significativamente alterado. Essa alteração funciona como um mecanismo de sinalização. Em alguns neurônios, a redução do potencial de membrana em 10 mV (de –65 para –55 mV) torna a membrana muito mais permeável ao Na1 do que ao K1. O consequente influxo de cargas positi- vas de Na1 neutraliza a carga negativa no interior da célula e causa uma mudança breve e explosiva no potencial de membrana para 140 mV. Esse potencial de ação é conduzido através do axônio celular até o terminal axonal, onde inicia uma comunicação química elaborada com outro neurônio ou célula muscular. O potencial de ação é propagado ativa- mente pelo axônio de forma que a sua amplitude não di- minui até que ele chegue no terminal axonal. Um potencial de ação típico dura cerca de 1 ms, após o que a membrana retorna a seu estado de repouso com a separação normal de cargas e maior permeabilidade ao K1 do que ao Na1. Retornar-se-á aos mecanismos responsáveis pelo po- tencial de repouso e potencial de ação nos Capítulos 6 e 7. Alémde sinais de longa distância representados pelo potencial de ação, as células nervosas também produzem sinais locais – potenciais receptores e potenciais sinápticos – que não são ativamente propagados e que, em geral, de- caem dentro de apenas alguns milímetros. A mudança no potencial de membrana que gera sinais locais e à distância pode ser tanto uma diminuição quan- to um aumento do potencial de repouso. O potencial de repouso da membrana, portanto, fornece um estado basal sobre o qual toda a sinalização acontece. Uma redução no potencial de membrana é chamada despolarização. Como a despolarização aumenta a capacidade da célula em gerar um potencial de ação, ela é excitatória. Por sua vez, um au- mento no potencial de membrana é chamado hiperpolari- zação. A hiperpolarização torna a célula menos propensa a gerar um potencial de ação e é, portanto, inibitória. O componente aferente produz sinais locais graduados Na maioria dos neurônios em repouso não há fluxo de cor- rente de uma parte da célula a outra, de forma que o po- tencial de repouso se distribui igualmente. Em neurônios sensoriais, o fluxo de corrente em geral é iniciado por um Região: Integrativa Condutiva Eferente Neurônio sensorial Neurônio motor Interneurônio local Interneurônio de projeção Célula neuroendócrina Músculo Neurônio central Neurônio central Neurônio central Modelo neuronal Capilar Aferente Figura 2-9 A maioria dos neurônios, independentemente do tipo, possui quatro regiões funcionais nas quais diferen- tes tipos de sinais são gerados. Assim, a organização funcional da maioria dos neurônios pode ser representada esquematica- mente por um modelo neuronal. Os sinais de entrada, integra- tivos e condutivos são todos elétricos e integrais para a célula, enquanto o sinal de saída é uma substância química ejetada pela célula na fenda sináptica. Nem todos os neurônios compartilham essas características – por exemplo, interneurônios locais com frequência não possuem um componente condutivo. 28 Eric R. Kandel, James H. Schwartz, Thomas M. Jessell, Steven A. Siegelbaum & A. J. Hudspeth estímulo físico, que ativa proteínas receptoras especializa- das na superfície receptiva do neurônio. No exemplo do reflexo patelar, o estiramento do músculo ativa canais iô- nicos específicos que se abrem em resposta ao estiramen- to da membrana do neurônio sensorial, como veremos no Capítulo 5. A abertura desses canais quando a célula é es- tirada permite o influxo rápido de íons Na1 para dentro da célula sensorial. A corrente iônica altera o potencial de membrana, produzindo um sinal local chamado potencial de receptor. A amplitude e a duração de um potencial de receptor dependem da intensidade do estiramento muscular: quan- to maior ou mais duradouro for o estiramento, maior ou mais longo será o potencial de receptor resultante (Figu- ra 2-10A). Assim, ao contrário do potencial de ação, que é tudo-ou-nada, os potenciais de receptores são graduados. A maioria dos potenciais de receptores são despolarizantes (excitatórios). Entretanto, potenciais de receptores hiperpo- larizantes (inibitórios) são encontrados na retina. O potencial de receptor é a primeira representação do estiramento a ser codificada no sistema nervoso. Contudo, esse sinal espalha-se passivamente, e não vai muito além de 1 a 2 milímetros. Na verdade, após 1 milímetro, a am- plitude do sinal é apenas um terço daquela vista no local onde foi gerada. Para ser carregado com sucesso ao sistema nervoso central, o sinal local deve ser amplificado – deve gerar um potencial de ação. No reflexo patelar, o potencial de receptor no neurônio sensorial deve atingir o primeiro nodo de Ranvier do axônio. Se for grande o suficiente, o sinal dispara um potencial de ação que então se propaga sem falhas aos terminais axonais na medula espinal (Fi- gura 2-10C). Na sinapse entre o neurônio sensorial e um neurônio motor, o potencial de ação produz uma cadeia de eventos que resulta em um sinal aferente para o neurônio motor. No reflexo patelar, o potencial de ação no terminal pré- -sináptico do neurônio sensorial inicia a liberação de uma substância química, ou neurotransmissor, na fenda sinápti- Tempo (s) 0 5 100 5 10 0 5 10 –80 –60 –40 –20 0 20 –80 –60 –40 –20 0 20 –80 –60 –40 –20 0 20 Limiar para o potencial de ação A Potencial de receptor B Ação de disparo C Potencial de ação D Sinal de saída (liberação de neurotransmissor) Estímulo (estiramento) Fuso muscular Axônio mielinizado Corpo celular do neurônio sensorial Terminal sináptico Zona de gatilho P o te n c ia l d e m e m b ra n a ( m V ) Amplitude Duração Limiar para o potencial de ação Estiramento Figura 2-10 Cada um dos quatro componentes sinaliza- dores do neurônio produz um sinal característico. A figura mostra um neurônio sensorial ativado pelo estiramento de um músculo, que o neurônio percebe por meio de um receptor espe- cializado, o fuso muscular. A. O sinal aferente, chamado potencial de receptor, é graduado em sua amplitude e duração, proporcional à amplitude e à dura- ção do estímulo. B. A zona de gatilho integra a despolarização gerada pelo poten- cial de receptor. Um potencial de ação é gerado apenas se o po- tencial de receptor exceder um certo limiar de voltagem. Uma vez que esse limiar é ultrapassado, qualquer posterior aumento na amplitude do potencial de receptor só pode aumentar a fre- quência com que os potenciais de ação são gerados, porque estes têm uma amplitude constante. A duração do potencial de receptor determina a duração do trem de potenciais de ação. As- sim, a amplitude e a duração graduadas do potencial de receptor se transformam num código de frequência de potenciais de ação gerados na zona de gatilho. Todos os potenciais de ação produzi- dos são propagados fielmente ao longo do axônio. C. Potenciais de ação são tudo-ou-nada. Como todos os potenciais de ação têm amplitude e duração similares, a frequência e a dura- ção do disparo representam a informação transmitida pelo sinal. D. Quando atinge o terminal sináptico, o potencial de ação inicia a liberação de um neurotransmissor, a substância química que serve como sinal de saída. A frequência dos potenciais de ação determina exatamente a quantidade do neurotransmissor libera- do pela célula. Princípios de Neurociências 29 ca (Figura 2-10D). Após a difusão pela fenda, o transmissor liga-se a proteínas receptoras na membrana pós-sináptica do neurônio motor, onde abre canais iônicos direta ou indi- retamente. O consequente fluxo de corrente altera o poten- cial de membrana da célula motora, uma mudança chama- da potencial sináptico. Assim como o potencial de receptor, o potencial sináp- tico é graduado; sua amplitude depende de quanto trans- missor é liberado. Na mesma célula, o potencial sináptico pode ser tanto despolarizante quanto hiperpolarizante, dependendo do tipo de molécula receptora ativada. Poten- ciais sinápticos, como potenciais de receptor, espalham-se passivamente e são, portanto, alterações locais de poten- cial, a menos que o sinal atinja além do segmento inicial do axônio e, assim, possa originar um potencial de ação. As características dos potenciais de receptor e dos potenciais sinápticos estão sumarizadas na Tabela 2-1. A zona de gatilho é decisiva na geração do potencial de ação Sherrington foi o primeiro a observar que a função do sis- tema nervoso é avaliar as consequências de diferentes tipos de informação e decidir sobre as respostas apropriadas. Essa função integrativa do sistema nervoso é claramente vista na ação da zona de gatilho do neurônio, o segmento inicial do axônio. Potenciais de ação são gerados por um influxo súbito de Na1 por canais na membrana celular que abrem e fe- cham em resposta a alterações no potencial de membra- na. Quando um sinal de entrada (um potencial de recep- tor ou um potencial sináptico) despolariza uma área da membrana,a mudança local no potencial de membrana abre canais de Na1 locais que permitem que o Na1 flua a favor do seu gradiente de concentração, do exterior da célula, onde sua concentração é maior, para o interior, onde é menor. Como o segmento inicial do axônio tem a mais alta densidade de canais de Na1 dependente de voltagem e, portanto, o menor limiar para geração de um potencial de ação, um sinal aferente que transita passivamente ao longo da membrana celular tem mais chance de gerar um poten- cial de ação no segmento inicial do que em outros locais da célula. Assim, essa arte do axônio é conhecida como zona de gatilho. É aqui que a atividade de todos os potenciais de re- ceptor (ou potenciais sinápticos) se soma e onde, se a soma dos sinais aferentes atinge o limiar, o neurônio gera um po- tencial de ação. O componente condutivo propaga um potencial de ação tudo-ou-nada O potencial de ação é um evento do tipo tudo-ou-nada: es- tímulos abaixo do limiar não produzem um sinal, mas estí- mulos acima do limiar produzem sempre sinais da mesma amplitude. Embora os estímulos variem em intensidade ou duração, a amplitude e a duração de cada potencial de ação são sempre as mesmas. Além disso, diferentemente dos potenciais de receptor e potenciais sinápticos, que se espalham de modo passivo e diminuem em amplitude, o potencial de ação não decai ao longo de sua transmissão no axônio até seu alvo – uma distância que pode atingir 2 me- tros – porque ele é periodicamente regenerado. Esse sinal condutor pode se transmitir a velocidades de até 100 m/s. Uma característica marcante dos potenciais de ação é que eles são bastante estereotipados, variando apenas le- vemente (mas em algumas situações de forma importante) entre as células nervosas. Tal característica foi demonstrada na década de 1920 por Edgar Adrian, um dos primeiros a estudar o sistema nervoso em nível celular. Adrian descre- veu que todos os potenciais de ação têm uma forma similar ou formato de curva (ver Figura 2-2). De fato, os potenciais de ação que chegam ao sistema nervoso por meio de um axônio sensorial são com frequência indistinguíveis daque- les que saem do sistema nervoso para os músculos via axô- nio motor. Apenas duas características do sinal condutor transmi- tem informação: o número de potenciais de ação e o inter- valo de tempo entre eles (Figura 2-10C). Conforme Adrian descreveu em 1928, resumindo seu trabalho em fibras sen- soriais: “todos os impulsos são muito parecidos, seja a men- sagem destinada a estimular a sensação de luz, de tato ou de dor: se forem vários em conjunto, a sensação é intensa; se forem separados por um intervalo longo, a sensação é correspondentemente menor”. Assim, o que determina a intensidade da sensação ou a velocidade do movimento é a frequência dos potenciais de ação. Da mesma forma, a du- ração da sensação ou do movimento é determinada pelo pe- ríodo de tempo no qual os potenciais de ação são gerados. Além da frequência dos potenciais de ação, o seu padrão também transmite informação importante. Por exemplo, alguns neurônios não são silenciosos na au- sência da estimulação, mas sim espontaneamente ativos. Algumas células nervosas espontaneamente ativas (neu- rônios pulsáteis) disparam potenciais de ação com regula- ridade; outros neurônios (neurônios de disparo) disparam em breves salvas de potenciais de ação. Essas diferentes Tabela 2-1 Comparação de sinais locais (passivos) e propagados Tipo de sinal Amplitude (mV) Duração Somação Efeito do sinal Tipo de propagação Sinais locais (passivos) Potenciais de receptor Pequena (0,1-10) Breve (5-100 ms) Graduados Hiperpolarização ou despolarização Passiva Potenciais sinápticos Pequena (0,1-10) Breve a longa (5 ms-20 min) Graduados Hiperpolarização ou despolarização Passiva Sinais propagados (ativos) Potenciais de ação Grande (70-110) Breve (1-10 ms) Tudo-ou- -nada Despolarização Ativa 30 Eric R. Kandel, James H. Schwartz, Thomas M. Jessell, Steven A. Siegelbaum & A. J. Hudspeth células respondem de forma diversa à mesma aferência sináptica excitatória. Um potencial sináptico excitatório pode iniciar um ou mais potenciais de ação numa célula que não tem atividade espontânea, mas, em células es- pontaneamente ativas, essa mesma aferência irá modular o ritmo, aumentando a frequência de disparo dos poten- ciais de ação. Vê-se uma diferença ainda mais significativa quando o sinal aferente é inibitório. Aferências inibitórias possuem pouco valor informativo em uma célula silenciosa. Em con- traste, em células espontaneamente ativas, a inibição pode ter um poderoso papel modulador. Estabelecendo períodos de silêncio numa atividade via de regra constante, a ini- bição pode produzir um padrão complexo de alternância entre disparo e silêncio, previamente inexistente. Essas diferenças sutis nos padrões de disparo podem ter conse- quências funcionais importantes para a transferência de informação entre neurônios. Matemáticos que trabalham com modelos de redes neurais tentam delinear códigos neurais nos quais a informação também é transmitida pelo rico padrão de disparo – o tempo exato dos potenciais de ação (Figura 2-11). Cerebelo Córtex cerebral D Células habenulares mediais Disparos tônicos Disparos tônicosSalva de disparos Disparo regular Salva de disparos Salva de disparos B Célula cerebelar de Purkinje HbM C Células talâmicas de retransmissão A Células piramidais corticais Tálamo Figura 2-11 Neurônios no encéfalo de mamíferos exibem uma grande variedade de propriedades eletrofisiológi- cas. (Reproduzida, com permissão, de McCormick, 2004.) A. A injeção intracelular de um pulso de corrente despolarizante numa célula piramidal cortical resulta num trem de potenciais de ação que declina em frequência. Esse padrão de atividade é co- nhecido como disparo regular. Algumas células corticais geram salvas de três ou mais potenciais de ação, mesmo quando des- polarizadas apenas por um curto período. B. Células cerebelares de Purkinje geram trens de alta frequên- cia de potenciais de ação nos seus corpos celulares, interrom- pidos pela geração de potenciais de ação de Ca 21 (retropropa- gantes) nos seus dendritos. Tais células também podem gerar potenciais em platô pela ativação persistente da condutância de Na 1 . C. Células talâmicas de retransmissão podem gerar potenciais de ação tanto em salvas quanto em trens tônicos de potenciais de ação devido à presença de uma grande corrente de Ca 21 de baixo limiar. D. Células habenulares mediais (HbM) geram potenciais de ação de uma forma contínua e lenta, em forma de marca-passo. Princípios de Neurociências 31 Se os sinais são estereotipados e refletem apenas as propriedades mais elementares dos estímulos, de que for- ma transmitem a rica variedade de informações necessárias para o comportamento complexo? Como é que a mensa- gem que carrega a informação visual sobre uma abelha se distingue de outra que carrega a informação dolorosa so- bre a picada da abelha, e como esses sinais sensoriais são distintos dos sinais motores para o movimento voluntário? A resposta é simples e, mesmo assim, um dos princípios organizacionais mais importantes do sistema nervoso: vias de neurônios conectados e não neurônios individuais transmitem a informação. Neurônios interconectados for- mam vias anatômicas e funcionalmente distintas. As vias neurais ativadas pelas células receptoras da retina que res- pondem à luz são completamente distintas das vias ativa- das pelas células sensoriais na pele que respondem ao tato. O componente eferente libera neurotransmissores Quando um potencial de ação atinge um terminal neuro- nal, há estimulação da liberação de substâncias químicas pelas células. Essas substâncias, chamadas neurotransmis- sores, podem ser pequenas moléculas orgânicas, como o L-glutamato e a acetilcolina, ou peptídeos, como a subs- tância P ou o LHRH (hormônio liberador do hormônio lu- teinizante).Moléculas neurotransmissoras são mantidas em or- ganelas subcelulares chamadas vesículas sinápticas, que se acumulam em locais de liberação especializados nos ter- minais axonais chamados zonas ativas. Para liberar suas substâncias transmissoras na fenda sináptica, as vesículas se movem e se fundem com a membrana plasmática do neurônio e então se abrem, um processo conhecido como exocitose. A maquinaria molecular da liberação de neuro- transmissores é descrita nos Capítulos 11 e 12. Uma vez liberado, o neurotransmissor é o sinal de saída do neurônio. Da mesma forma que o sinal de entra- da (aferente), ele é graduado. A quantidade de transmissor liberado é determinada pelo número e pela frequência dos potenciais de ação que atingem os terminais pré-sinápticos (Figura 2-10C, D). Depois da liberação, o transmissor se di- funde através da fenda sináptica e se liga a receptores no neurônio pós-sináptico. Essa ligação gera um potencial si- náptico na célula pós-sináptica. O efeito excitatório ou ini- bitório do potencial sináptico depende do tipo de receptor na célula pós-sináptica e não do neurotransmissor químico específico. A mesma substância transmissora pode ter efei- tos diversos em diferentes receptores. A transformação do sinal neuronal de sensorial para motor é ilustrada pela via do reflexo patelar Vimos que as propriedades de um sinal se transformam conforme o sinal se move de um componente do neurônio a outro ou entre neurônios. Essa cadeia transformadora de eventos pode ser vista na retransmissão dos sinais para o reflexo patelar. Quando um músculo é estirado, a amplitude e a dura- ção do estímulo são refletidas na amplitude e na duração do potencial de receptor gerado no neurônio sensorial (Fi- gura 2-12A). Se o potencial de receptor excede o limiar para um potencial de ação naquela célula, o sinal graduado é transformado na zona de gatilho em um potencial de ação, um sinal tudo-ou-nada. Quanto mais o potencial de recep- tor excede o limiar, maior a despolarização e consequente- mente maior a frequência de potencias de ação no axônio. A duração do sinal aferente também determina a duração do trem de potenciais de ação. A informação codificada pela frequência e duração de disparos é transmitida fielmente pelo axônio até seus ter- minais, onde o disparo dos potenciais de ação determina a quantidade de transmissor liberado. Esses estágios de sina- lização possuem seus correspondentes no neurônio motor (Figura 2-12B) e no músculo (Figura 2-12C). Células nervosas diferem principalmente em nível molecular O modelo de sinalização neuronal que descrevemos é uma simplificação que se aplica à maioria dos neurônios, porém há variações importantes. Por exemplo, alguns neurônios não geram potenciais de ação. Eles são geralmente inter- neurônios locais sem um componente condutivo; não têm axônio ou possuem um tão curto que a regeneração do si- nal não é necessária. Em tais neurônios, os sinais de entra- da se somam e se espalham passivamente para a região do terminal pré-sináptico próximo, onde ocorre a liberação do transmissor. Neurônios espontaneamente ativos não neces- sitam de aferências sensoriais ou sinápticas para disparar potenciais de ação porque possuem uma classe especial de canais iônicos que permitem o fluxo de Na1 mesmo na au- sência de uma aferência excitatória sináptica. Até células similares morfologicamente podem diferir de forma importante em detalhes moleculares. Por exem- plo, elas podem ter diferentes combinações de canais iôni- cos. Como se verá no Capítulo 7, essas distinções fornecem aos neurônios diferentes limiares, propriedades de excita- bilidade e padrões de disparo (Figura 2-11). Neurônios com canais iônicos diferentes podem codificar potenciais sináp- ticos em padrões de disparo diversos e, assim, transmitir informações distintas. Os neurônios também diferem nas substâncias quí- micas que usam como transmissores e nos receptores que recebem as substâncias transmissoras de outros neurônios. De fato, muitos fármacos que agem no encéfalo modificam as ações de transmissores químicos específicos ou de recep- tores. Devido às diferenças fisiológicas entre os neurônios, uma doença pode afetar uma classe de neurônios, mas não outras. Certas doenças atingem apenas neurônios moto- res (esclerose lateral amiotrófica e poliomielite), enquanto outras afetam principalmente neurônios sensoriais (tabes dorsalis, um estágio final da sífilis). A doença de Parkinson, uma doença do movimento voluntário, danifica uma pe- quena população de interneurônios que usam a dopamina como neurotransmissor. Algumas doenças são seletivas mesmo dentro do neurônio, afetando apenas os elementos receptivos, o corpo celular ou o axônio. No Capítulo 14, descreve-se como o estudo da miastenia grave, uma doença causada pela falha do receptor para o transmissor na mem- brana muscular, gerou importantes descobertas sobre a transmissão sináptica. De fato, como possui tantos tipos ce- lulares e variações em nível molecular, o sistema nervoso é suscetível a mais doenças (sejam psiquiátricas ou neurológi- cas) do que qualquer outro órgão ou sistema do organismo. 32 Eric R. Kandel, James H. Schwartz, Thomas M. Jessell, Steven A. Siegelbaum & A. J. Hudspeth Apesar das diferenças entre as células nervosas, os me- canismos básicos da sinalização elétrica são surpreenden- temente similares. Tal simplicidade é bem-vinda, uma vez que a compreensão dos mecanismos moleculares de sinali- zação em um tipo de célula nervosa auxilia no entendimen- to desses mecanismos em muitas outras células nervosas. Modelos de redes neurais simulam o processamento em paralelo da informação no encéfalo O reflexo de estiramento ilustra como interações entre ape- nas alguns tipos de células nervosas podem constituir um circuito funcional que produz um comportamento simples, mesmo que o número de neurônios envolvidos seja grande (o circuito do reflexo de estiramento possui provavelmente algumas centenas de neurônios sensoriais e uma centena de neurônios motores). Será possível identificar neurônios individuais envolvidos em um comportamento complexo com a mesma precisão? Em animais invertebrados e em alguns vertebrados inferiores, uma única célula (chamada célula comandante) pode iniciar uma sequência comportamental complexa. No entanto, até onde se sabe, nenhum comportamento comple- xo humano é iniciado por um único neurônio. Em vez disso, cada comportamento é gerado pela ação de muitas células. De forma geral, conforme vimos, há três componentes do controle neural do comportamento: aferência sensorial, processamento intermediário e eferência motora. Em verte- brados, cada componente é possivelmente mediado por um único grupo ou vários grupos distintos de neurônios. Além disso, cada componente pode ter múltiplas rotas neurais que geram simultaneamente a mesma informação, ou uma muito similar. O envolvimento de vários grupos neurais ou rotas para transmitir uma informação similar é chamado processamento em paralelo. O processamento em paralelo também ocorre em uma única via quando diferen- tes neurônios nessa via executam ações similares simulta- neamente. O processamento em paralelo faz muito sentido como estratégia evolutiva para a construção de um encéfa- lo mais poderoso, uma vez que ele aumenta tanto a velo- cidade quanto a confiabilidade de uma função dentro do sistema nervoso central. A importância de conexões em paralelo abundantes e altamente específicas tem sido reconhecida por cientistas que tentam construir modelos teóricos do encéfalo. O cam- po da ciência computacional conhecido como inteligência artificial originalmente usou o processamento serial para simular os processos cognitivos do encéfalo – reconheci- mento de padrões, aprendizado, memória e desempenho Fuso muscular Estiramento Neurônio sensorial Neurônio motor Potencial de receptor graduado Potencial de ação Potencial de receptor Potencial sináptico graduadoPotencial sináptico graduadoPotencial sináptico Potencial sináptico Potencial de ação Potencial de ação Potencial de ação Potencial de ação Potencial de ação Potencial de ação Potencial de ação Sinal de entrada Estímulo Integração Condução Sinal de saída (liberação de neurotrans- missor) Sinal de entrada Integração Condução Sinal de saída (liberação de neurotrans- missor) Sinal de entrada Integração Condução Sinal de saída (comporta- mento) Músculo A Sinais sensoriais C Sinais muscularesB Sinais motores Contração C A B Figura 2-12 A sequência de sinais que produz uma ação reflexa. A. O estiramento de um músculo produz um potencial de recep- tor no receptor especializado (o fuso muscular). A amplitude do potencial de receptor é proporcional à intensidade do estiramen- to. Esse potencial espalha-se passivamente para a zona integra- tiva ou de gatilho no primeiro nodo de Ranvier. Se for suficien- temente grande, o potencial de receptor dispara um potencial de ação que, então, se propaga ativamente e sem alterações ao longo do axônio até o terminal axonal. Em locais especializados do terminal, o potencial produz um sinal de saída, a liberação de um neurotransmissor químico. O transmissor se difunde através da fenda sináptica entre o terminal axonal e o neurônio motor alvo que inerva o músculo estirado; ele, então, se liga a moléculas receptoras na membrana externa do neurônio motor. B. Essa interação começa um potencial sináptico que se espalha passivamente até a zona de gatilho do axônio do neurônio motor, onde inicia um potencial de ação que se propaga ativamente até o terminal do axônio do neurônio motor. O potencial de ação li- bera o neurotransmissor onde o terminal axonal encontra a fibra muscular. C. O neurotransmissor liga-se a receptores na fibra muscular, disparando um potencial sináptico no músculo. Se for suficiente- mente grande, ou se combinado com sinais de outros neurônios motores, o potencial sináptico gerará um potencial de ação no músculo, causando a contração da fibra muscular. Princípios de Neurociências 33 motor. Esses modelos seriais executavam muitas tarefas de forma adequada, inclusive jogar xadrez. Entretanto, eram muito ruins em outras tarefas que o encéfalo faz quase ins- tantaneamente, como o reconhecimento de faces ou a com- preensão do discurso. Muitos neurobiólogos teóricos voltaram-se para tipos diferentes de modelos que incluem o processamento em paralelo, o que foi chamado redes neurais. Nesses modelos, elementos do sistema processam a informação simultanea- mente usando conexões de pró-ação e de retroalimentação. É interessante observar que, em sistemas com circuitos de retroalimentação é a atividade dinâmica do sistema que de- termina o desfecho do processamento, não as aferências ou condições iniciais. Modelos de redes neurais capturam bem a arquitetura altamente recorrente da maioria dos circuitos neurais reais e também a capacidade do encéfalo de funcionar na ausên- cia de uma aferência sensorial específica vinda de fora do corpo, como durante o pensamento, o sono e a geração de ritmos endógenos, algo com o que modelos determinísti- cos tradicionais têm dificuldade. Modelos de redes neurais também demonstram que a análise de elementos indivi- duais de um sistema pode não ser suficiente para decodi- ficar a mensagem dos potenciais de ação. De acordo com tal visão de redes neurais, o que faz o encéfalo ser um deslum- brante órgão que processa a informação não é a complexi- dade de seus neurônios, mas o fato de ter muitos elementos interconectados de várias formas complexas. A modelagem de redes neurais é discutida nos Apêndice E e F. Conexões neurais podem ser modificadas pela experiência A maior parte do aprendizado resulta em alterações com- portamentais que duram por muitos anos, porém mesmo reflexos simples podem ser modificados por um período breve. O fato de que o comportamento é aprendido des- perta uma questão interessante: como o comportamento se modifica se o sistema nervoso é conectado de forma tão precisa? Como podem ocorrer mudanças no controle neu- ral do comportamento quando as conexões entre as suas unidades sinalizadoras, os neurônios, são determinadas no início da vida? Várias soluções para esse dilema têm sido propostas. A proposta que tem se mostrado mais adequada é a hipótese da plasticidade, introduzida na virada do século XX por Ra- món y Cajal. Uma versão moderna dessa hipótese foi suge- rida pelo psicólogo polonês Jerzy Konorski em 1948: A aplicação de um estímulo leva a mudanças de duas formas no sistema nervoso [...] À primeira propriedade, pela qual as células nervosas reagem ao impulso aferente [...] chamamos excitabilidade, e denominamos as alterações provenientes dessa propriedade de alterações relacionadas à excitabilidade. À segunda propriedade, pela qual certas transformações funcio- nais permanentes surgem em sistemas de neurônios particu- lares como resultado de estímulos apropriados ou sua combi- nação, chamamos plasticidade, e as alterações correspondentes são alterações plásticas. Há atualmente evidências consideráveis para a plasti- cidade funcional em sinapses químicas. Essas sinapses com frequência possuem uma capacidade impressionante para alterações fisiológicas a curto prazo (durando de segundos até horas) que aumentam ou diminuem a efetividade si- náptica. Alterações a longo prazo (durando dias) podem gerar mudanças fisiológicas novas que levam a alterações anatômicas, inclusive à redução de sinapses preexistentes ou mesmo ao crescimento de novas. Como se verá em capítulos posteriores, as sinapses químicas são funcional e anatomicamente modificadas por meio da experiência e do aprendizado tanto quanto durante o desenvolvimento precoce. Alterações funcionais e mudanças fisiológicas são geralmente de curto prazo e resultam em alterações na efetividade das conexões sináp- ticas existentes. As alterações anatômicas são, em geral, de longo prazo e consistem no crescimento de novas conexões sinápticas entre neurônios. É essa plasticidade funcional dos neurônios que caracteriza cada um de nós como seres individuais. Eric R. Kandel Ben A. Barres A. J. Hudspeth Leituras selecionadas Adrian ED. 1928. The Basis of Sensation: The Action of the Sense Or- gans. London: Christophers. Gazzaniga MS (ed). 1995. The Cognitive Neurosciences. Cambridge, MA: MIT Press. Jones EG. 1988. The nervous tissue. In: L Weiss (ed). Cell and Tissue Biology: A Textbook of Histology, 6th ed., pp. 277–351. Baltimore: Urban and Schwarzenberg. Newan EA. 1993. Inward-rectifying potassium channels in retinal glial (Muller) cells. J Neurosci 13:3333–3345. Perry VH. 1996. Microglia in the developing and mature central nervous system. 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