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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
reitor
João Carlos Salles Pires da Silva
vice-reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira
assessor do reitor
Paulo Costa Lima
EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
DIRETORA
Flávia Goulart Mota Garcia Rosa
conselho editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo
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GABRIELA DOS REIS SAMPAIO
IVANA STOLZE LIMA
MARCELO BALABAN
(ORG.)
SALVADOR 
EDUFBA
2019
GABRIELA DOS REIS SAMPAIO
IVANA STOLZE LIMA
MARCELO BALABAN
(ORG.)
SALVADOR 
EDUFBA
2019
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2019, autores.
Direitos para esta edição cedidos à Edufb a.
Feito o Depósito Legal.
Grafi a atualizada conforme o Acordo Ortográfi co da 
Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
caPa e ProJeto GrÁFico
Larissa Vieira de Oliveira Ribeiro
Foto de caPa
Januário Garcia. Marcha contra a farsa da abolição, Rio de Janeiro, maio 1988. 
revisÃo
Hilário Mariano dos Santos Zeferino
norMaliZaÇÃo 
Sandra Batista
Sistema de Bibliotecas – UFBA
M313 Marcadores da diferença: raça e racismo na história do
Brasil / Gabriela dos Reis Sampaio, Ivana Stolze Lima, Marcelo 
Balaban, organizadores. Salvador: EDUFBA, 2019.
326 p. 
ISBN: 978-85-232-1949-9
1. Racismo – história - Brasil. 2. História social - Brasil. Etnicismo 
- Brasil. 4. Negros – Segregação. I. Sampaio, Gabriela. dos Reis. II. 
Lima, Ivana Stolze. III. Balaban, Marcelo. 
 CDU – 323.14:94(81)
Elaborada por Geovana Soares Lira CRB-5: BA-001975/O
Editora afi liada à
Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo
s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador – Bahia
Tel.: +55 71 3283-6164
www.edufb a.ufb a.br
edufb a@ufb a.br
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Sumário
 INTRODUÇÃO
GABRIELA DOS REIS SAMPAIO E MARCELO BALABAN
 CAPÍTULO  
Pretos, pardos e mulatos: 
cor e condição social no Brasil da segunda metade do século XVIII 
SILVIA HUNOLD LARA
 CAPÍTULO 2
“Infâmia dos mulatos” e “descendência dos pretos”: impedimentos e 
ascensão acadêmica na Universidade de Coimbra (1700-1771)
LUCILENE REGINALDO
 CAPÍTULO  
“Africanos de pequena fortuna”: discussões sobre raça relativas
 aos africanos no Brasil, fi nais do século XIX
GABRIELA DOS REIS SAMPAIO
 CAPÍTULO  
A beleza da raça: imagens de negros 
na imprensa ilustrada da Corte (1884-1886)
 MARCELO BALABAN
2 CAPÍTULO  
Teodoro Sampaio, “eminência parda” e a “cor não luzidia”: 
negócios da liberdade e racialização no tempo da abolição
 WLAMYRA ALBUQUERQUE
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 CAPÍTULO  
“Tijolo mal queimado”: mestiçagem e democracia racial
 IVANA STOLZE LIMA
 CAPÍTULO  
Um líder da raça negra na Câmara dos Deputados. 
Racismo, tensões raciais e mobilização
 política na capital da República (1909-1910)
 CAROLINA DANTAS
22 CAPÍTULO  
Músicos negros e racismo no mundo atlântico: 
o caso de Eduardo das Neves (1874-1919)
 MARTHA ABREU
 2 CAPÍTULO  
Conversa de boteco: 
o samba e o “lugar do negro” no Brasil do século XX
 MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA
2 CAPÍTULO  
“Sou Negro”: raça e racismo
 na perspectiva do movimento negro contemporâneo
 AMILCAR ARAUJO PEREIRA
 POSFÁCIO 
 IVANA STOLZE LIMA
2 SOBRE OS AUTORES
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7 
Introdução
GABRIELA DOS REIS SAMPAIO E MARCELO BALABAN
Quando se fala em raça, uma enorme quantidade de sentidos, termos, 
significados e vivências ligadas ao termo vem à mente. Esses significa-
dos variam de acordo com o local, com as pessoas e com as situações 
em que aparecem e, sobretudo, mudam ao longo do tempo. Por isso, 
lidar com a noção de raça é tarefa complicada: é da cor da pele que 
se fala? Do tipo físico? Dos cabelos? Da posição na sociedade? Ou da 
condição, ou aproximação com a liberdade ou escravidão? Quem pode 
falar sobre raça e racismo? Ou, mais importante, quem sabe falar so-
bre isso? Longe de querer buscar uma resposta ou um sentido único 
para um conceito, a ideia deste livro é pensar como a raça e o racismo 
aparecem e são vividos, sentidos, experimentados e enfrentados em 
diferentes períodos, pelos mais variados sujeitos. 
A dificuldade em lidar com a noção é um grande indicativo de 
que o tema é espinhoso; por isso mesmo, é preciso discuti-lo, dada a 
grande força e presença do racismo em pleno século XXI, que segue, 
infelizmente, firme e forte mais de 100 anos após abolida a escravidão 
em nosso país. Trata-se de uma questão tanto política quanto acadê-
mica. A opção dos(as) autores(as) deste livro, assumindo o risco dessa 
dupla abordagem, foi tratar do tema como fenômeno histórico.
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Isso porque o racismo, uma das principais formas de produção 
de desigualdade social, endêmico em nossa sociedade, possui carac-
terísticas e significados variados. Ao longo do tempo, são múltiplas, 
e muitas vezes surpreendentes, as formas que assume. Por ser fenô-
meno histórico, deve ser entendido como experiência que oscila no 
tempo, não cabendo, portanto, nenhuma definição conceitual única 
e acabada sobre ele.1 
Assim compreendido, explica-se porque a desconhecida Leonarda 
foi presa em fevereiro de 1861 “por suspeita de ser fugida”.2 Ela aparece 
na lista da polícia sem sobrenome e nenhuma outra informação adicio-
nal. Ainda assim, é enquadrada como escrava. Se ela era ou não cativa, 
não sabemos. Afinal, a dúvida de ser “fugida” embaça a conclusão a res-
peito de sua condição. O que sabemos, mesmo sem que essa informação 
conste do documento policial, é que Leonarda era negra. Isso bastou 
para a arbitrária conclusão da autoridade policial.
O racismo de que falamos ao descrever uma experiência daque-
les anos, entre tantas outras coisas, diz respeito à suspeição continua-
da; até prova contrária, uma pessoa de cor era potencialmente uma 
escrava. A cor da pele da desafortunada Leonarda constituía marca 
robusta de sua potencial condição social. É certo que não sabemos 
o destino da quiçá escrava Leonarda. Ela poderia ser livre ou mesmo 
liberta, mas a cor vinha antes aos olhos da polícia. Com alguma dose 
de sorte e muita astúcia, ela bem pode ter conquistado uma boa vida. 
De qualquer modo, a sua cor lhe rendeu, no mínimo, uma desagra-
dável noite na prisão e, provavelmente, inúmeras outras situações de 
violência e humilhação.
1 A esse respeito, ver: HOLT, Thomas C. The problem of race in the twenty-first century. Harvard 
University Press, 2002.
2 Arquivo Nacional, Serie Justiça, IJ 6 184.
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Como chegamos a esta determinação policial? Por que se as-
sumia a condição de escravo, se tantos negros eram livres ou libertos 
no século XIX? Para investigar o que mudou na maneira de designar e 
demarcar a condição das pessoas negras, os capítulos deste livro pas-
sam por diferentes momentos. No século XVIII, ser chamado de ne-
gro seria uma infâmia para um índio, segundo o Código Pombalino;3 
isso porque estariam sendo comparados aos “pretos da Costa da Áfri-
ca”, então “destinados para escravos dos brancos”. Ao mesmo tempo, 
os termos usados para designar a cor também indicavam a condição 
social dos indivíduos. Ao longo do século XIX, dadas as transforma-
ções políticas e sociais, vão mudando os sentidos e as práticas ligadas 
à cor e à condição dos sujeitos. Por outro lado, o racismo presente 
nos tempos da escravidão, não se restringia aos indivíduos submeti-
dos àquela forma de exploração,ou aos egressos do cativeiro. Se assim 
fosse, com o fim da escravidão, teria se dado, automaticamente, o fim 
do racismo, e os próprios livres e libertos não teriam sentido na pele 
a sua perversa presença, como aconteceu com músicos, advogados, 
engenheiros, trabalhadores dos mais variados – como veremos no caso 
de Eduardo das Neves e de Monteiro Lopes, entre tantos outros casos 
aqui contados. Isto significa afirmar que a escravidão não é a causa do 
racismo; ao contrário, há um racismo que é filho da liberdade: negros 
e negras livres precisaram, no pós-abolição, lutar cotidianamente por 
direitos e cidadania, já que seu lugar social não era mais marcado pela 
escravidão, mas pela cor. 
A forte presença do racismo em pleno século XXI e suas perver-
sas consequências na sociedade brasileira faz em com que a luta para 
combatê-lo seja de todos. 
3 Diretório dos Índios, 1755, consultado em: http://www.nacaomestica.org/diretorio_dos_
indios.htm, em 30 ago. 2017.
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Este livro investiga a história de muitas Leonardas. Homens e 
mulheres não brancos, anônimos ou bem conhecidos, que sofreram 
intensamente as agruras de viver em uma sociedade profundamente 
definida pelo racismo, em suas diferentes formas e sentidos, de acordo 
com as experiências dos indivíduos. Entre as personagens que povoam 
as páginas deste livro, algumas decerto souberam superar a força do 
racismo e, ainda que tenham alcançado certa situação social, nem por 
isso escaparam das marcas e da inerente violência sofrida por possuir 
a pele escura. Tal violência, modo fundante de estabelecimento das 
relações entre senhores e escravos, se expandiu para as relações so-
ciais e de trabalho, marcando profundamente a organização de toda 
a sociedade.
O racismo não atingia apenas gente como Leonarda. Para além 
da escravidão, serviu para pôr em questão a própria definição da na-
cionalidade brasileira. Foi questão central, por exemplo, durante os 
conflitos da Independência. Nesse período, marcado por intensas dis-
putas políticas, bélicas e sociais, não faltaram episódios nos quais a 
legitimidade da separação política era questionada por argumentos e 
razões flagrantemente racistas.4 
É o caso da denúncia encaminhada em maio de 1823 ao 
intendente da polícia pelo professor e cidadão francês Francisco Maria 
Piquet, residente no Brasil desde 1816. Nela, Piquet acusa o português 
José Batista de Souza Araújo de ser “incomparável inimigo carnívoro 
dos Brasileiros”. O denunciado se colocava contra a “santa causa da 
independência do Brasil”. Entendia, segundo o denunciante, que o 
4 Sobre as tensões raciais no processo da Independência, ver, entre outros, REIS, João José. 
O jogo duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na Independência da Bahia. In: REIS, João 
José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: 
Companhia das Letras, 1989. p. 79-98; RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: 
identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume 
Dumará, 2002; MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de 
Janeiro: Zahar, 2000. (Descobrindo o Brasil).
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país deveria ser “reduzido à colônia”. José Batista soltava impropérios 
para todos os lados. Aos Andradas, chamava de “déspotas”, “tiranos” e 
“ladrões”; os brasileiros, qualificou de “macacos”.5 
Na zoologia política do Brasil daquele tempo, como na de hoje, era 
esta injúria racial das mais violentas. Elas marcaram diferentes momen-
tos da história política do país. Em vários casos, colocavam em questão 
a própria nacionalidade ao definir uma identidade racialmente marcada 
para o país. O mesmo xingamento de macaco, facilmente escutado em 
partidas de futebol da atualidade,6 apareceu ainda, por diversas vezes, 
durante o mais longo e sangrento conflito externo do período imperial 
brasileiro. Nos anos da Guerra do Paraguai, virou piada de jornais ilus-
trados argentinos, como El Mosquito. Bem mais do que definir o destino 
de tantos homens e mulheres negras, o racismo era argumento político 
forte, capaz de envergonhar a nação.
Os textos aqui apresentados discutem os sentidos do racismo ao 
longo do tempo. Longe de naturalizar qualquer tipo de noção de raça, 
ou mesmo de defini-la como um conceito fixo e imutável ao longo do 
tempo, os textos vão revelando como, ao longo do processo histórico, 
diferentes sujeitos lidaram com os problemas de seu tempo que esta-
vam, diretamente, relacionados ao racismo. Nesse sentido, o livro busca 
se diferenciar de certa tradição das Ciências Sociais na qual autores, ao 
lidar com o “problema racial” ou mesmo as “relações raciais”, usaram 
conceitos genéricos que pouco atentavam para a historicidade e especi-
ficidades temporais, acabando por reificar noções da inferioridade dos 
negros ao explicar as desigualdades sociais do Brasil”.7
5 Arquivo Nacional, Série Justiça, IJ 6 163.
6 Sobre o racismo no futebol brasileiro do início do século XX, ver: PEREIRA, Leonardo Affonso 
de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 
Nova Fronteira, 2000. 
7 Ver, por exemplo, os trabalhos de Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique 
Cardoso e outros que fizeram parte do projeto Organização das Nações Unidas para a 
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O racismo não foi, tradicionalmente, um tema privilegiado pela 
historiografia; nesse sentido, este livro pretende promover um debate 
sobre o racismo a partir da perspectiva da história social, isto é, foca-
lizando a experiência de diferentes homens e mulheres, em tempos 
variados, em relação aos múltiplos sentidos assumidos pelo fenômeno. 
Isso significa observar como diferentes marcas da cor, inscritas em di-
ferentes realidades e aspectos – na língua, na noção de mulatice, nos 
desenhos, no samba, na ideia de bastardia, nos debates intelectuais e 
mesmo em tantos silêncios sobre a cor –, produziam distinções sociais, 
e quais foram seus significados. Cada tempo tinha marcas de exclusão 
que atuavam de formas específicas. Como os diferentes eram excluídos? 
Como a exclusão opera? Nem sempre ela se dava ou se dá pela “raça”. 
A cada momento, num determinado contexto político, num jogo de 
relações sociais, o racismo entra como um mecanismo de exclusão, usando 
os mais variados critérios – seja a cor, o nascimento, as características 
físicas, a linguagem, os hábitos culturais, entre outros. Daí a necessidade 
de abordagens que tratem de diferentes temporalidades e das variações das 
formas de exclusão no tempo. Por isso, neste livro, o racismo não é um con-
ceito unívoco, mas é definido como fenômeno histórico. Portanto, assume 
formas e sentidos variados ao longo do tempo, o que pode ser percebido 
nos capítulos aqui trabalhados. 
Começamos a reflexão pelo século XVIII. O texto de Silvia Hu-
nold Lara inicia o debate. A autora analisa como a cor funcionava, na 
Educação a Ciência e a Cultura (Unesco) nos anos 1940 e 1950. Para combater o chamado 
“mito da democracia racial” e denunciar o racismo, acabaram essencializando noções de raça 
e sobre os negros no Brasil. Sobre o projeto em questão, ver: MAIO, Marcos Chor. O Projeto 
UNESCO e a agenda das Ciências Sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de 
Ciências Sociais, São Paulo, v. 14, n. 41, p. 142-158, out. 1999. Um ótimo estudo de diversos 
autores sobre o tema da raça na perspectiva das Ciências Sociais está em: MAIO, Marcos 
Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: CCBB: Editora 
da Fiocruz, 1996. Sobre as maneiras pelas quaisos sociólogos usam o conceito de raça, ver: 
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com ‘raça’ em sociologia. Educação e 
Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, jan./jun. 2003. 
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segunda metade dos Setecentos no Brasil, como um critério impor-
tante de classificação social, em articulação a outras marcas de hie-
rarquia, como nascimento, honra e riqueza. Em um contexto de for-
tíssima presença da escravidão, a escolha de termos específicos como 
pardo ou mulato poderia definir posições, afastando ou aproximando 
indivíduos da liberdade. Em seguida, Lucilene Reginaldo reflete sobre 
a presença de estudantes mulatos, pretos e pardos na Universidade de 
Coimbra no século XVIII. Embora filhos de africanos pudessem ser 
aceitos no corpo discente, muitas vezes não recebiam os títulos ne-
cessários para o ingresso em carreiras, como a magistratura, e para a 
própria a ascensão social quando se tornassem bacharéis formados. 
A autora discute sobre como os registros da origem e da cor poderiam 
prejudicar a trajetória acadêmica e social dos estudantes. 
No século XIX, o critério da cor aparece em diferentes situações, 
como algo central em conflitos sociais.8 Marcelo Balaban analisa as 
imagens de negros livres, libertos e escravos publicados na impren-
sa ilustrada do Rio de Janeiro na época da implementação da lei dos 
sexagenários, mostrando formas de produção e reprodução de ideias 
racistas no Brasil daquele contexto. Sua intenção é mostrar o sentido 
político daquelas construções presentes nos jornais, diretamente 
ligadas ao debate sobre a abolição da escravidão da década de 1880. 
Já Gabriela dos Reis Sampaio discute algumas concepções a respeito 
da “raça africana” que circulavam nos meios intelectuais da segunda 
metade do século XIX, como as ideias do conde de Gobineau e do mé-
dico pernambucano Raimundo Nina Rodrigues. Reflete sobre seus 
significados a partir da experiência de alguns africanos libertos que 
viviam na Bahia e viajavam muito para a Corte engajados em ativi-
dades comerciais. Wlamyra Albuquerque, por sua vez, reflete sobre 
8 Mais algumas considerações sobre o século XIX foram objeto do posfácio de Ivana Stolze 
Lima, no final deste livro.
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identidades raciais no Brasil entre o final do século XIX e o começo do 
século XX por meio da história de Teodoro Sampaio, um engenheiro 
de prestígio que era filho de uma liberta, tinha irmãos escravos e lidou 
por toda a sua vida com os problemas trazidos por sua origem, apesar 
do destaque profissional e econômico conquistados. O texto de Ivana 
Stolze Lima analisa formulações intelectuais, políticas e estatísticas 
acerca de raça e mestiçagem entre fins do século XIX e a primeira me-
tade do século XX, discutindo criticamente a propalada imagem de 
democracia racial brasileira.
Dando continuidade às abordagens sobre o pós-abolição, temos 
diferentes autores abordando os múltiplos sentidos do racismo. Carolina 
Dantas reflete sobre os sentidos do racismo e do antirracismo na Primeira 
República por meio da trajetória de outro importante personagem negro, 
o advogado e político Monteiro Lopes. Eleito deputado federal em 1909, 
Lopes foi alvo das mais variadas manifestações de racismo, que enfren-
tou com diferentes estratégias, suas e de seus companheiros. Em seguida, 
mergulhamos no universo musical pelas mãos de Martha Abreu, que, por 
meio da trajetória do músico negro Eduardo das Neves, discute as noções 
de raça e racismo no começo do século XX. Seu texto promove, ainda, 
uma rica comparação entre experiências de racismo no Brasil e nos EUA, 
trazendo elementos do campo musical daquele país. 
Maria Clementina Pereira Cunha, sem perder o ritmo, nos fala 
de sambistas e racismo. Parte da constatação de que o racismo foi um 
tema raro na produção de importantes figuras do samba e busca refle-
tir sobre o porquê de músicos negros e pobres ignorarem a discrimi-
nação racial em suas obras. O texto trata do período compreendido 
entre as décadas de 1930 e 1950, na conjuntura do Estado Novo, quan-
do o samba era identificado como uma música nacional-popular, e da 
conjuntura pós-1964, quando sambistas antes populares enfrentavam 
decadência e foram resgatados no movimento de oposição à ditadura. 
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Fechamos a coletânea com o trabalho de Amilcar Araújo Perei-
ra, que discute a perspectiva do movimento negro contemporâneo 
sobre a identidade negra e complexidade do combate ao racismo na 
história do Brasil.
Dessa maneira, apresentamos uma abordagem histórica sobre 
noções de raça. Ao longo da leitura dos diferentes autores, vai surgin-
do uma ampla variedade de denominações e categorias para lidar com 
o fenômeno – cor, raça, racismo, mestiçagem, entre outras – de acor-
do com os termos e significados que a questão assumiu e assume ao 
longo do tempo, pois, se ele muda, os termos envolvidos e os sentidos 
assumidos também variam. A profunda e minuciosa análise históri-
ca faz surgir, ao longo da leitura das diferentes pesquisas, uma ampla 
variedade de experiências, conflitos, categorias mentais e políticas, 
mecanismos de exclusão e segmentação. Para a história social, a expe-
riência dos sujeitos históricos ultrapassa e nega a compreensão de um 
conceito unívoco de racismo. Esperamos, assim, por um lado, contri-
buir para o debate, fornecendo textos ao mesmo tempo consistentes 
e acessíveis ao público em formação. Mas também, e principalmente, 
esperamos participar da luta contra essa violenta forma de opressão 
que subsiste, surpreendentemente, com tanta força no nosso país. 
Só com a conscientização de todos os setores da sociedade, a aplica-
ção de políticas públicas de reparação, a criminalização do racismo e 
a educação de todos os cidadãos podemos ter alguma esperança de 
mudar essa realidade. Como dissemos, essa é uma luta de todos.
Agradecemos a todos os que de alguma forma colaboraram com 
esse livro, e em especial a Januário Garcia pela cessão da fotografia uti-
lizada na capa, e a Ana Flávia Magalhães Pinto e Álvaro Nascimento, 
pela importante participação nas discussões.
 
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Referências
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com ‘raça’ em 
sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, jan./jun. 2003. 
HOLT, Thomas C. The problem of race in the twenty-first century. Harvard 
University Press, 2002.
MAIO, Marcos Chor. O Projeto UNESCO e a agenda das Ciências Sociais no 
Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 14, 
n. 41, p. 142-158, out. 1999.
MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (org.). Raça, ciência e 
sociedade. Rio de Janeiro: CCBB: Editora da Fiocruz, 1996. 
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de 
Janeiro: Zahar, 2000. (Descobrindo o Brasil).
PEREIRA, Leonardo Affonso de Mirand. Footballmania: uma história social do 
futebol no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 
REIS, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na 
Independência da Bahia. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e 
conflito: resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das 
Letras, 1989. p. 79-98.
RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos 
antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
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Pretos, pardos e mulatos: 
cor e condição social no Brasil 
da segunda metade do século XVIII1
SILVIA HUNOLD LARA
No Brasil, há váriostermos para designar a cor das pessoas. Essa di-
versidade indica que, entre nós, até as pequenas diferenças importam 
e podem ser usadas tanto para acentuar quanto para atenuar a distin-
ção entre os indivíduos. A ambiguidade é geralmente circunstancial 
e envolve certa dificuldade na escolha das palavras. Preto ou negro? 
Pardo ou mulato? A resposta não é única: o significado muda confor-
me quem chama alguém de algo, em cada situação. Mas isso também 
variou ao longo do tempo. A tensão que envolve nomear a cor das 
pessoas tem história e diz muito sobre os processos de exclusão social 
que são acionados em determinadas circunstâncias e contextos. 
Hoje em dia, os termos “pardo” e “mulato” podem parecer sinô-
nimos, mas tinham significados bem diferentes no Brasil da segunda 
metade do século XVIII. No primeiro dicionário da língua portuguesa, 
publicado no início dos Setecentos, as duas palavras tinham elemen-
tos em comum, eram definidas a partir de referências a animais, dadas 
1 Este texto está baseado no capítulo 3 de meu livro Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura 
e poder na América portuguesa, publicado pela editora Companhia das Letras em 2007.
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Si
lv
ia
 H
un
ol
d 
La
ra
como equivalentes e apareciam claramente associadas à mistura de 
cores. Mas não queriam dizer exatamente a mesma coisa.2
Pardo aparece ali como a “cor entre branco e preto, própria do 
pardal, donde parece lhe veio o nome”, e o homem pardo é simples-
mente definido como “mulato” – palavra que é claramente referida a 
seres humanos: “Mulata e mulato. Filha e filho de branca e negra [sic], 
ou de negro e de mulher branca. Esse nome de mulato vem de mu ou 
mulo, animal gerado de dois outros de diferente espécie”.3
Nessa descrição do significado do termo “mulato”, já aparece 
uma primeira diferença em relação a “pardo”: a ideia da geração de dois 
seres “de diferente espécie” é mais importante do que a referência ao 
pardal. Um é mistura de cores, outro é resultado da união de seres que 
não são iguais. Nas sociedades do Antigo Regime, o nascimento era 
um critério importante de classificação social. Por isso, a origem “hí-
brida” era considerada infamante. Os cargos da administração pública 
e da justiça em Minas Gerais, por exemplo, estavam vedados a qualquer 
negro ou “mulato, dentro dos quatro graus em que o mulatismo é impe-
dimento”.4 Isso significava dizer que o mestiço era considerado alguém 
de “baixo nascimento”, cujo “defeito de sangue” constituía evidência de 
que a origem da pessoa estava ligada a alguém de “ínfima condição”.5
2 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia 
de Jesus, 1712-1728. v. 6, p. 265.
3 BLUTEAU, 1712-1728. Verbetes “pardo” v. 6, p. 265 e “mulato” v.5, p. 628.
4 É o que determinava uma ordem de dom João V do final do primeiro quartel do século XVIII. 
Cf. RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Tradução Maria 
Beatriz Medina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 110-120. Vide também: BICALHO, 
Maria Fernanda Baptista. Mediação, pureza de sangue e oficiais mecânicos: as câmaras, as 
festas e a representação do império português. In: PAIVA, Eduardo França; ANASTASIA, Carla 
Maria Junho (org.). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver: séculos XVI a 
XIX. São Paulo: Annablume, 2002. p. 307-313. 
5 Mesmo assim, em regiões de ocupação recente ou mais afastadas dos grandes centros, 
indivíduos que não eram brancos ocuparam funções públicas, exercendo cargos nas câmaras 
ou sendo nomeados por elas para postos e funções. RUSSELL-WOOD, Anthony John. 
Ambivalent authorities: the African and Afro-Brazilian contribution to local governance in 
colonial Brazil. The Americas, Washington, v. 57, n. 1, p. 13-36, 2000. 
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Nos dicionários atuais, o significado das duas palavras é pareci-
do. “Pardo” ainda aparece como “cor escura, entre o branco e o preto”, 
ou uma pessoa “de epiderme escura ou muito morena”, enquanto “mu-
lato” é alguém “que descende de brancos e negros” ou que “apresenta 
traços físicos de negros e brancos”. Diferentemente do que acontecia 
no período colonial, a “geração híbrida” deixou de ser importante na 
definição de mulato, ficando remetida para observações sobre a etimo-
logia da palavra, sem qualquer presença nos seus sentidos usuais, como 
substantivo ou adjetivo.6
Ainda que, hoje em dia, o dicionário indique que, no registro 
informal, mulato possa significar um indivíduo “valente, desabusado, 
esperto”, no século XVIII a palavra podia ser eventualmente uma 
forma de xingamento. Encontrei 18 processos de injúria, produzi-
dos entre 1750 e 1800, 7 referentes à Bahia e 11 ao Rio de Janeiro.7 
Na maioria desses processos, as ofensas restringiam-se geralmente 
a “ladrão”, “corno”, “cachorro” e “filho da puta”.8 Um bom exemplo 
é o conflito entre dois ex-sócios no Rio de Janeiro. Um deles seguiu 
o outro da praia do Peixe até a rua da Cadeia, descompondo-o “[...] 
com altas vozes [...] chamando-lhe torto, filho da puta, cachorro, 
ladrão e cornudo e por fim desafiando-o para que saísse para a rua a 
contender com ele”.9
6 DICIONÁRIO Houaiss. Rio de Janeiro: Instituto Antônio Houaiss, [200-]. Disponível em: 
http://houaiss.uol.com.br/. Acesso em: 18 ago. 2016. 
7 Na Seção Judiciária do Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb) há oito processos referentes 
às vilas de Cachoeira e Moritiba, no período entre 1750 e 1800, dos quais um está sem condição 
de leitura. No Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), há 11 processos de injúria 
referentes a sete conflitos ocorridos entre 1768 e 1774 naquela cidade. Destes, dois são 
motivados por acusações de feitiçaria, tomadas como injúria, e todos os outros incluem, entre 
outros xingamentos, epítetos de “ladrão” ou de um “roubo” cometido.
8 Nos sete processos baianos, o epíteto de ladrão é a principal injúria proferida em cinco deles, 
sendo que em um as palavras foram consideradas “tão injuriosas” que se fizeram “indignas” de 
serem escritas e colocadas diante do juiz. Em apenas dois dos sete processos “mulato” aparece 
como parte das injúrias proferidas. 
9 Cf. “Autos de um processo de injúrias intentado por Antonio Duarte contra Antonio de Faria 
Figueira, 1773”. AGCRJ, cod. 40-1-3.
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Nesse conjunto de documentos, muito raramente a injúria dizia 
respeito a um atributo físico ou à cor dos injuriados. Vejamos alguns 
casos em que tais características aparecem. Isso pode nos ajudar a ir 
além dos significados cristalizados nos dicionários, para entender os 
sentidos que esses termos adquiriam no cotidiano das relações sociais.
Em 1768, no Rio de Janeiro, um comerciante de gado que costu-
mava vender carne para o açougue da cidade entrou em conflito com 
um alferes, seu vizinho. Aparentemente, a briga derivava de uma longa 
rixa entre os dois.10 O alferes foi processado, acusado de ter xingado 
publicamente o comerciante de “cabrão, desavergonhado, velhaco, la-
drão e salteador de casa” e a sua mulher de “cadela e desavergonhada”, 
e de ter ameaçado ambos de morte.11 O conflito arrastou-se por pouco 
mais de dois anos na justiça, envolvendo também alguns escravos e 
agregados dos dois contendores. Na troca de acusações e nas réplicas, 
ambos reivindicaram foros de nobreza, discutindo o modo como as 
injúrias verbais entre “pessoas mecânicas, plebeias e sem qualidade de 
nobreza” deviam ser julgadas de modo distinto daquelas “entre pes-
soas nobres”. O comerciante esforçou-se então para demonstrar que 
o fato de ser um homem pardo não tinha qualquer significado, pois 
“o acidente da cor não tira[va] nobreza a quem a tem por seus pais”. 
No seu caso, ele reivindicavaessa condição por tê-la herdado do pai, 
o capitão Inácio Rangel de Azeredo Coutinho, e do avô, ilustres re-
presentantes de uma “das principais famílias do Rio de Janeiro”, que 
haviam sido almotacés e juízes em diferentes ocasiões e enobrecidos 
por terem servido em “cargos da República”.12
10 “Autos crime de injúrias: Antonio Rangel, autor contra o alferes Vicente Gomes da Silva, réu, 
1768-1770”, AGCRJ, cod. 45-1-1. 
11 Segundo Bluteau, “cabrão” é o mesmo que bode, somente. Mesmo assim, talvez o xingamento 
pudesse tanto insistir na animalização (reiterando o epíteto de “cadela” para a mulher), quanto 
ter sido utilizado em sentido pejorativo, como aumentativo de “cabra”. BLUTEAU, 1712-1728, 
v. 2, p. 21. Verbete “cabrão”.
12 “Autos crime de injúrias: Antonio Rangel, autor contra o alferes Vicente Gomes da Silva, réu, 
1768-1770”, AGCRJ, cod. 45-1-1.
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A sentença dada pelo juiz de fora da cidade, em junho de 1769, deu 
razão ao comerciante, multando o alferes em mais de 70 mil réis. Seis 
meses depois, a Relação do Rio de Janeiro anulou essa decisão, acatando 
o argumento que não se podia atribuir “nobreza alguma” à “qualidade 
do injuriado”. Mesmo assim, o fato é que em nenhum momento desse 
longo processo – e apesar da lembrança de vários conflitos e injúrias 
precedentes entre os dois querelantes – a bastardia ou a cor parda do 
comerciante foi utilizada como epíteto. Ao contrário, a sentença dada no 
nível local, talvez mesmo sob influência do poderio de seus familiares, 
chegou a reconhecer que, apesar do “acidente da cor”, o ofendido podia 
ser considerado nobre e, como tal, gozar de privilégios processuais.
Embora raro, o ponto de vista não era excepcional. Um padre 
pardo de Paracatu, no final do século XVIII, também achava que a cor 
tinha pouco significado, sendo incapaz de distinguir as pessoas. Escre-
veu um poema satírico criticando a preferência pela cor branca como 
marca de distinção. Um trecho diz: 
Onde está o ser branco então?
Não busques no exterior
que o acidente da cor
não é que dá distinção:
entra no seu coração;
vê se tem uma alma nobre,
gênio ilustre, ainda que pobre,
ações de homem de bem;
se nada disto ele tem,
é negro, por mais que obre.13
Exemplos como esses talvez possam nos levar a crer que, no 
Brasil colonial, a cor era um simples “acidente”: algo “que não é da 
substância das coisas”, como Raphael Bluteau definia o termo.14 Coisa 
13 CUNHA, Domingos Simões da. O que chamam branquidade. Revista do Arquivo Público 
Mineiro, Belo Horizonte, v. 14, p. 407-418, 1909. p. 414.
14 BLUTEAU, 1712-1728, v. 1, p. 70. Verbete “acidente”.
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sem importância? Ao contrário. Mesmo ao minimizar a aparência das 
pessoas, o poema do padre mineiro revela que, na segunda metade do 
século XVIII, a cor funcionava como um critério importante de clas-
sificação social. A sátira, ali, servia para criticar os que avaliavam o 
caráter das pessoas a partir do lugar ocupado por elas na sociedade.
Uma análise mais cuidadosa do conjunto de processos de in-
júria que localizei mostra que nenhum deles envolveu conflitos com 
escravos, mas apenas entre livres ou libertos.15 Na grande maioria, a 
disputa se dava entre gente que não se distinguia “naturalmente” por 
sua nobreza: homens e mulheres forros, pequenos comerciantes ou 
artesãos, soldados com postos medianos... Talvez por isso precisassem 
ser tão ciosos dos qualificativos com que eram tratados. Outra expli-
cação pode advir do fato de que, na justiça, poderiam eventualmente 
obter satisfações que compensassem situações em que eram destra-
tados pelos brancos sem possibilidade de revide, como no caso dos 
soldados pardos da Bahia. O professor de gramática Luís dos Santos 
Vilhena afirma ter testemunhado, por dois anos seguidos, uma des-
feita dessas. No dia de revista das tropas, os comandantes (brancos) 
dos regimentos de linha não haviam prestado a menor atenção e nem 
realizado as costumeiras “continências militares” diante do regimento 
dos pardos que desfilava no Terreiro de Jesus, com suas “bandeiras lar-
gas e batendo a marcha”.16 Se em situações formais e públicas como 
essa era quase impossível revidar ou reclamar, podiam ter mais chance 
de obter algum êxito ao recorrerem à justiça contra uma injúria profe-
rida por alguém mais próximo de sua condição social. 
15 As mesmas características são observadas por Marcos Magalhães Aguiar, na análise de 
processos de injúrias verbais na capitania de Minas Gerais no século XVIII. AGUIAR, Marcos 
Magalhães. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil colonial. 1999. 
Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. p. 144-149.
16 VILHENA, Luís dos Santos. Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas contidas em 
XX cartas. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1921. p. 254. O episódio é comentado por A. J. R. 
RUSSELL-WOOD, 2005, p. 138-139. 
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Podemos observar ainda que, em um ou outro caso registrado 
naqueles processos, mais que o predicado, era o diminutivo que apare-
cia como injurioso. Na correspondência entre o juiz ordinário da vila 
de Santo Antônio do Urubu e o governo da Bahia, há uma carta que faz 
uma consulta sobre os procedimentos a serem adotados em uma de-
vassa ex-ofício que tratava de palavras injuriosas proferidas contra Lu-
ciano Lopes de Brito, “homem de nação vermelha condutor das cartas 
citatórias” emitidas pelos juízes daquela vila. Em julho de 1763, Brito 
fora entregar uma destas cartas e o convocado para os depoimentos re-
solvera se vingar, mandando-o prender em cárcere privado e descom-
pondo-o com “palavras injuriosas chamando-lhe tapuinho e falando 
outras palavras injuriosas contra as ditas justiças”. Várias testemunhas 
haviam sido inquiridas, confirmando a ofensa e acrescentando que o 
réu era de fato um “homem soberbo e revoltoso”. Talvez por isso o juiz 
tenha se decidido por não concluir os autos, esperando que o corre-
gedor geral proferisse a sentença, por ocasião da correição – demora 
que deu origem àquela consulta.17 Traduzindo “nação vermelha” por 
“tapuio” e colocando o termo no diminutivo, a injúria atingia dois ob-
jetivos: desqualificava o oficial de justiça por compará-lo aos índios não 
domesticados18 e, mais que isso, por rebaixar sua condição, evidenciava 
desprezo e acentuava o tom pejorativo atribuído ao termo.19
17 Carta do juiz ordinário da vila de Santo Antonio do Urubu, de 5 de novembro de 1763. APEB, 
Correspondência recebida de autoridades diversas, maço 201-1, cx. 77, doc. 3.
18 R. Bluteau, em seu Vocabulário, define “tapuia” como “o mais bravo e bárbaro gentio do Brasil”, 
dando várias explicações sobre seus costumes. BLUTEAU, 1712-1728, v. 8, p. 47. Por outro lado, 
é bom lembrar que a associação com os indígenas poderia ter um sentido infamante. Pelo 
menos é o que se conclui da leitura da lei de 4 de abril de 1755, que promove o casamento entre 
os vassalos portugueses e as índias, e fez questão de afirmar que os que assim procedessem 
não ficariam “com infâmia alguma”, fazendo-se antes “dignos da real atenção” e “preferidos 
para aqueles lugares e ocupações que couberem na graduação das suas pessoas”. Cf. Alvará de 
lei de 4 de abril de 1755. AGCRJ, Senado da Câmara, Vários Registros, 1749-1759, fls, 111-112. 
19 A precariedade da condição dos indígenas integrados à sociedade colonial e o modo como 
foram sistematicamente confundidos com os vários mestiços, sendo chamados muitas vezes 
também de pardos, bastardos, mulatos, forros etc., foram detalhadamente estudados por: 
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Dentreos vários casos de injúria examinados, em apenas dois a 
palavra “mulato” aparece como xingamento. Por isso mesmo, merecem 
análise mais detalhada. Um deles, ocorrido em Cachoeira em 1757, en-
volveu um alferes das ordenanças da vila e dois pardos forros, Matias 
Pereira e Sebastião Correia. O alferes havia ido visitar Antônia, preta 
forra, que morava nas terras de uma fazenda nos lados do Peruaçu. No 
começo da noite, Matias e Sebastião apareceram e começaram a de-
safiar o alferes, chamando-o para “que saísse para fora da dita casa” e 
xingando-o com palavras injuriosas, como “ladrão, filho da puta e mu-
lato”. Ao acusar os réus, o alferes se defendeu afirmando que é
[...] homem branco, filho legítimo de Gaspar Ribeiro Barbosa e de 
sua mulher Maria Madalena de Jesus, com irmãos sacerdotes e é 
alferes da Ordenança da companhia do capitão Francisco Pires 
Lima, e como tal goza de vários privilégios e, pelo contrário, os 
réus que são uns mulatos forros de ínfima e baixa condição.20
Ainda que os autos não explicitem o motivo da contenda entre 
os três homens, é evidente que o termo foi utilizado como um epíteto 
injurioso. Mas não deixa de ser sintomático que isso tenha ocorrido 
quando um homem branco decidiu pernoitar em casa de uma preta 
forra e que, em sua “defesa”, o ofendido tenha recorrido a sua origem 
para demonstrar a distância social que o separava de seus ofensores, 
considerados por ele de “ínfima e baixa condição”. Ou seja, o contexto 
leva a crer que, mais que uma simples questão de “cor” ou de um juízo 
de valor que, nos termos de hoje, poderia ser chamado “racista”, o que 
RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Gentios Brasílicos: índios coloniais em Minas Gerais 
setecentista. 2003. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. Ver especialmente cap. 3. Sobre o tema, 
vide também: NAZZARI, Muriel. Vanishing Indians: the social construction of race in colonial 
São Paulo. The Americas, Washington, v. 57, n. 4, 497-524, 2001
20 Libelo crime e cível de injuria atroz, autor Antonio Ribeiro Barbosa, homem branco, contra os 
réus Matias Pereira e Sebastião Correia, pardos forros. Cachoeira, 1757. APEB, Seção Judiciária, 
est. 38 cx. 1344 doc. 21.
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estava em causa aqui era a posição, alta ou baixa, ocupada por aqueles 
homens na hierarquia social. O alferes até pode ter se defendido afir-
mando a legitimidade de seu nascimento, mas o que estava em jogo era 
seu status e o xingamento visava rebaixar sua condição social.
No segundo caso, o mesmo procedimento parece se repetir. 
Trata-se de uma briga ocorrida em 1793 entre dois moradores da vila 
de Cachoeira. No entrevero, sobraram bofetadas até para a mulher de 
um deles, que estava próxima, e muitos xingamentos, entre eles o de 
“mulato”. No libelo de defesa, o ofendido dispôs-se a provar que “não 
[era] mulato, mas sim branco bem-nascido e de boa família e não fo[ra] 
jamais infamado de mulatismo, senão pelo réu”.21 Também aqui, os au-
tos e o contexto parecem indicar que a “infâmia” dizia respeito mais a 
um nascimento de “baixa qualidade”, nos termos da hierarquia do An-
tigo Regime, do que a um prejuízo ou preconceito inerentes ao termo. 
Mesmo assim, o mau nascimento implicava uma desvalorização social. 
É significativo que, em todos esses documentos, o termo uti-
lizado com sentido pejorativo tenha sido “mulato”, e não “pardo”. As 
determinações que limitavam o acesso aos postos eclesiásticos ou ad-
ministrativos distinguiam negativamente os “mulatos” ou o “mulatis-
mo”. Foi com este epíteto que, nos processos de injúria, se tentou di-
minuir a condição social de alguém. Foi essa, também, a palavra usada 
pelo dicionarista Raphael Bluteau para indicar que os brancos até na 
cor se diferenciavam dos escravos, “de ordinário [...] pretos e mulatos”. 
Assim, ainda que no dicionário “pardo” e “mulato” apareçam como 
equivalentes, na prática, havia uma evidente diferença de conotação 
entre os dois termos. Talvez por ter uma acepção mais descritiva e ser 
associado a uma cor situada “entre branco e preto”, o termo “pardo” 
21 Libelo cível e crime de injurias verbais: autor Francisco Gomes da Costa; réu Vicente Ferreira 
de Moraes. Cachoeira, 1793. APEB, Seção Judiciária, est. 37 cx. 1325, doc. 4.
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pudesse ser tomado de forma mais neutra. Nos usos coloniais, ele ga-
nhava um significado bem menos pejorativo que mulato.
Foi como pardo que o filho bastardo de uma família senhorial se 
definiu ao solicitar o privilégio de usar uma espada para fazer valer sua 
condição de “filho de homem branco e senhor de engenho”.22 Intitula-
vam-se pardas muitas irmandades que, majoritariamente compostas 
por não brancos, desejavam se diferenciar das suas congêneres que 
aceitavam escravos e negros livres.23 Eram pardos também os vários 
terços militares que se formavam e cresciam em número ao longo do 
século XVIII, distinguindo-se do antigo terço dos Henriques.24 Como 
mostra Larissa Viana, ao longo do século XVIII, pardo começava a 
aparecer como uma identidade reivindicada: gente que queria se di-
ferenciar do universo da escravidão, cobrar privilégios e tratamento 
específicos e, mesmo, constituir-se em corpo social separado.25 Podia 
se revestir, portanto, de uma positividade.
O termo “mulato”, ao contrário, era geralmente usado para 
desqualificar ou inferiorizar e parece que foi adquirindo maior carga 
pejorativa, especialmente por enfatizar de forma negativa o “baixo 
22 Cf. PETIÇÃO de Manoel de Carvalho e Melo ao vice-rei, despachada em 19 de setembro de 
1752 apud FEYDIT, Julio. Subsídios para a história dos Campos dos Goitacases. 2. ed. Rio de 
Janeiro: Esquilo, 1979, p. 255. 
23 Cf., para o caso de Minas Gerais, SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a irmandade de 
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século. São Paulo: Companhia 
Editora Nacional, 1976. p. 115-129; para o caso do Rio de Janeiro, vide VIANA, Larissa Moreira. 
O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas: Ed. 
Unicamp, 2007.
24 Há poucos estudos sobre a história militar que atentem para este dado. Sobre o terço dos 
Henriques, ver, por exemplo, os artigos de SILVA, Luiz Geraldo. Negros patriotas: raça e 
identidade social na formação do Estado nação (Pernambuco, 1770-1830). In: JANCSÓ, 
István (org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: HUCITEC: Ed. UNIJUÍ, 2003. 
p. 497-520. (Estudos Históricos, 50); KRAAY, Hendrik. Identidade racial na política, Bahia, 170-
1840: o caso dos Henriques. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do estado e da nação. 
São Paulo: HUCITEC: Ed. UNIJUÍ, 2003. p. 521-546. Para uma análise mais geral das milícias de 
negros e pardos, vide RUSSELL-WOOD, 2005, cap. 5.
25 VIANA, 2007, cap. 4. 
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nascimento”. É o que se depreende das passagens ácidas usadas por 
Luís dos Santos Vilhena ao criticar a devassidão proporcionada pela 
facilidade de acesso dos senhores às mulheres cativas. Segundo ele, 
com essa proximidade, criava-se “uma tropa de mulatinhos e crias 
que depois vêm a ser perniciosíssimos nas famílias”, já que eram estes 
bastardos e “mulatos presunçosos, soberbos e vadios” que acabavam 
herdando “muitas das mais preciosas propriedades do Brasil”.26 Além 
do desperdício econômico, esta “paixão de ter mulatos” oferecia riscos 
políticos, pois “todas as crias, sejam mulatas ou negras, são criadas 
com mimo extremoso, motivo por que são todos vadios, insolentes, 
atrevidos e ingratos, por culpa dos senhores e falta de governo po-
lítico”.27 Aqui, os adjetivos e o diminutivo reforçam característicasnocivas, denunciando o perigo que essa “tropa de mulatinhos” ofere-
cia para os critérios de classificação social na Colônia.
Assim, “pardo” e “mulato” tinham significados bem distintos e 
podiam ser empregados em situações diversas, para valorizar ou in-
feriorizar as pessoas. Carregadas de significados, essas palavras indi-
cavam que alguém, ao usá-las, tensionava ou distendia as hierarquias 
sociais e qualificava ou desqualificava o lugar nelas ocupado por cada 
um. O mesmo acontecia com “preto” e “negro” – que também não 
eram termos sinônimos. 
“Negro”, segundo o dicionário do início do século XVIII, defi-
nia-se por critérios que associavam ao mesmo tempo cor, origem e 
26 VILHENA, 1921, p. 138-139. Este é, segundo o autor, um problema grave, que pede a real 
atenção, “porque a não se obviar o virem os engenhos e grandes fazendas a cair nas mãos 
destes pardos naturais, homens comumente estragados e que estimam aquelas incomparáveis 
propriedades em tanto quanto lhes custam elas, pelo decurso dos tempos lhes hão de vir a 
cair todas nas mãos e por consequência a perder-se”. O assunto já havia sido discutido pelo 
Conselho Ultramarino em agosto de 1723, a partir de um pedido do governador das Minas, 
para que os mulatos não pudessem herdar seu pai, mesmo que não tivessem outro irmão 
branco. Cf. AHU, cod. 233, fls. 284-286.
27 VILHENA, 1921, p. 139.
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nascimento: trata-se de alguém “natural da terra dos negros” ou “filho 
de pais negros”.28 Ainda que o termo pudesse ter um de seus sentidos 
vinculado à desventura, à tristeza e à desgraça,29 quando referido a um 
homem, mulher ou rapaz, aparecia ligado a uma origem geográfica 
precisa: a “vastíssima região da África entre o Saara e o [sic] Guiné”.30
“Preto”, por outro lado, era um termo claramente associado à 
condição escrava. Ainda que no dicionário ele apareça como equivalente 
a “negro”, também aqui há nuances importantes. O dicionarista afirma 
de modo explícito que “pretinho vale o mesmo que pequeno escravo” e 
que “preto também se chama o escravo preto”.31 Diferentemente de “ne-
gro”, portanto, o termo parece ter sido de qualquer forma relacionado 
à condição escrava, sem margens para dúvidas, sem considerações de 
nascimento ou qualquer referência à África.
Foi neste registro estrito que o alvará de 19 de setembro de 1761, 
por exemplo, utilizou o termo, ao determinar que dos “portos da Amé-
rica, África e Ásia [...] se não possam em algum deles carregar nem 
descarregar nestes Reinos de Portugal e dos Algarves, preto ou preta 
alguma”, sob pena de ficarem eles “libertos e forros, sem necessitarem 
de outra alguma carta de manumissão ou alforria nem de outro algum 
despacho”.32 Como se vê, o termo “preto” é sinônimo de escravo e, nes-
se texto legal, apenas uma única vez a palavra “escravo” é utilizada sem 
28 BLUTEAU, 1712-1728, v. 5, p. 702-703. Verbetes “negra” e “negro”.
29 “Negro. Infausto. Desgraçado. Da cor negra, que é a mais escura de todas, tomamos motivo 
para chamarmos negro toda a coisas que nos enfada, molesta e entristece, como quando 
dizemos negra ventura, negra vida, etc. Nesta expressão imitamos aos latinos, que usam do 
adjetivo ater, atra, atrum quando falam em coisas funestas e tristes”. BLUTEAU, 17/2-1728, v. 5, 
p. 703, p. 703. Verbete “negro”.
30 Não deixa de ser interessante observar que o verbete remete para uma diferenciação entre 
os negros do “sertão” e os africanos (que teriam perdido “sua natural braveza”). O verbete 
“africano”, no entanto, apenas indica que o termo se refere àquele que é “natural da África”. 
BLUTEAU, 1712-1728. Verbetes “negro”, v. 1, p. 161. e “africano”, v. 5, p. 702-703.
31 BLUTEAU, op.cit., v. 6, p. 727. Verbete “preto”. É interessante observar que, neste caso, não há 
o verbete “preta”.
32 BLUTEAU, 1712-1728, v.6, p. 727.
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qualquer qualificativo.33 Tanto é que foi preciso um aviso oficial, emi-
tido pouco mais de seis anos depois, para alertar que o alvará de 1761 
aplicava-se não só aos “pretos e pretas”, como devia também “ampliar-
-se a favor dos mesmos mulatos e mulatas”, justificando “não ser justo 
que, ficando os pais e mães, sendo pretos, livres e forros, por benefício 
do mesmo alvará, fiquem os filhos escravos”.34
Aqui, de maneira explícita, a cor foi usada no lugar da condição 
social. Ainda que a maioria das pessoas pudesse entender que a proibição 
do tráfico se aplicava a todos os escravos, os comerciantes utilizaram a 
substituição de um termo pelo outro para tentar prolongar o envio de 
gente escravizada para Portugal. Longe das definições aparentemente fi-
xas dos dicionários, havia, portanto, uma multiplicidade de fatores que 
determinava o sentido das palavras que associavam cor e condição social.
Além de interesses econômicos ou de rivalidades entre grupos so-
ciais, outros elementos também estavam presentes na escolha dos ter-
mos. A distância entre as definições dicionarizadas e os usos e acepções 
mais correntes também podia derivar das diferenças entre a sociedade 
metropolitana e a colonial – os chamados domínios portugueses no ul-
tramar. Nesse sentido, é expressivo que, embora possamos encontrar 
termos como “cafuzo” e “cabra” com certa abundância em documentos 
coloniais, essa nomenclatura não tenha recebido a mesma atenção no 
dicionário de Raphael Bluteau. “Cafuzo” não chegou sequer a ser men-
cionado em seu Vocabulário e “cabra” ali aparece com significado asso-
ciado apenas aos índios,35 afastando-se bastante do uso que encontra-
33 ALVARÁ de 19 de setembro de 1761. Cf. LARA, Silvia H. Legislação sobre escravos africanos na 
América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (coord.). Nuevas aportaciones a la historia 
jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera: DIGIBIS, 2000. CD-ROM.
34 Aviso de 2 de janeiro de 1767. Cf. LARA, 2000.
35 Segundo Bluteau, “cabra” é um nome dado pelos portugueses “a alguns índios porque os 
achavam ruminando como cabras a erva Betel que quase sempre trazem na boca”. BLUTEAU, 
1712-1728, v. 2, p. 21. Verbete "cabra".
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mos para esta palavra em fontes coloniais setecentistas, nos quais está 
ligada à mestiçagem. Uma acepção bem distante da que vimos há pou-
co, no caso do xingamento feito por um alferes que chamou de “cabrão” 
um comerciante do Rio de Janeiro, em 1768, usando o aumentativo para 
insistir na animalização e nas implicações deletérias e pejorativas que 
queria imputar ao negociante e sua mulher.
Durante todo o período colonial, os registros indicam uma 
flutuação de significados muito grande para termos como “pardo” e 
“mulato”, “cafuzo” e “cabra”, “preto” e “africano”. Ainda que possamos 
delimitar, por meio de dicionários e do cruzamento de fontes, os sen-
tidos preferenciais para os diversos termos, eles muitas vezes podiam 
ser também empregados de forma bastante ambígua, designando su-
cessivamente uma mesma pessoa.
A oscilação entre “preto” e “negro”, quando se tratava de escra-
vos, era muito comum e pode ser observada em diversos processos re-
ferentes a fugas de escravos, por exemplo. Quando um escravo fugitivo 
era preso e, ao invés de ser devolvido a seu senhor, era levado à cadeia, 
o tesoureiro dos Defuntos e Ausentes precisava adotar vários procedi-
mentos. Antes de vender o cativo em praça pública, por exemplo, ti-
nha que publicar um edital ou examinar os pedidos de justificação para 
identificar o dono do fugitivo. Em vários desses processos, é comum 
que a nomenclatura para referir o escravo alterne ao longo dos papéis, 
nomeando ora o “preto”, o “negro” ou o “escravo”. Mas há casos em que 
as alterações são maiores, como no de uma “escrava parda por nome 
Francisca”, presa como fugida na cadeiade Cachoeira em 1788, que 
aparece designada também como “uma negra por nome Francisca de 
nação Angola”.36 Podemos encontrar alternâncias algumas vezes mais 
variadas, como no caso de Apolinário, que foi acusado de ter matado 
36 Cf. Autos de justificação de embargo, Cachoeira, 1788. APEB, Tribunal da Relação, est. 37, cx. 
1317, doc. 19.
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Maria Angola a facadas em Cachoeira em 1785 e que aparece designado 
no processo ora como “o escravo Apolinário”, como “um preto chamado 
Apolinário”, “um crioulo” ou ainda um “preto escravo”.37
Embora tais oscilações permanecessem, na maior parte das vezes, 
restritas a um mesmo universo, podemos também encontrar algumas 
situações em que uma pessoa foi identificada ora como “mulata” ora 
como “branca”. É o caso, por exemplo, de um homem que permaneceu 
preso na cadeia de Salvador por dois anos. Em 1785, ele reclamou ao ou-
vidor geral do crime sobre sua situação, identificando-se como Gonçalo 
de Jesus, “homem pardo forro”, que lá estava preso por uma falsa denún-
cia de bigamia. Várias certidões foram juntadas ao processo, sem que se 
conseguisse determinar se ele se chamava Gonçalo de Jesus, Gonçalo da 
Silva ou Gonçalo Francisco da Silva, se era “branco ou pardo” e se tinha 
ou não alguma culpa no cartório...38 Exemplar nesse sentido também é 
o caso do padre Jesuíno do Monte Carmelo, de grande importância na 
vila de Itu, na capitania de São Paulo, que foi tido como mulato e como 
branco, conforme as circunstâncias.39
Tais ambiguidades não deixam de ser reveladoras. Ao invés de 
indicar pouca atenção ao descrever as pessoas, elas mostram que, ge-
ralmente, a cor da pele estava associada à condição que separava a 
liberdade da escravidão: nesse sentido, “negros”, “cafuzos”, “pardos”, 
“pretos” e “crioulos” eram termos próximos e implicavam um afasta-
mento dos “brancos”. Incorporada à linguagem que traduzia visual-
mente as hierarquias sociais, a cor branca podia funcionar como sinal 
37 Processo crime sobre a morte de Maria Angola, escrava de Miguel Pereira de Brito, por causa 
de facadas dadas pelo escravo Apolinário do mestre de campo Jerônimo da Costa. Cachoeira, 
1785. APEB, Seção Judiciária, Tribunal de Justiça, est. 27, cx. 1001, doc. 03. 
38 Cf. Requerimento de Gonçalo de Jesus... de novembro de 1785 e documentos anexos. APEB, 
Correspondência recebida de autoridades diversas, Ouvidoria Geral do Crime, 1785-1798, cod. 177. 
39 RICCI, Magda M. de Oliveira. Nas fronteiras da independência: estudo sobre os significados da 
liberdade na região de Itu, 1750-1821. 1993. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de 
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993.
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de distinção e liberdade, enquanto a tez mais escura indicava uma as-
sociação direta ou indireta com a escravidão. 
Por isso mesmo, quando alguém que não era branco pretendia 
algum cargo ou obter alguma distinção, tratava de buscar maneiras 
para que sua ascendência africana e até mesmo a escravidão materna 
fossem esquecidas ou ocultadas. Um bom exemplo é o do filho mais 
velho de Chica da Silva, a famosa liberta de Minas Gerais. Quando 
ele quis ser agraciado com o título de cavaleiro da Ordem de Cristo, 
geralmente concedido a pessoas de grande distinção no Império por-
tuguês, teve que esconder com muita habilidade sua condição de filho 
ilegítimo de uma ex-escrava com seu senhor.40
Como se pode verificar, era possível designar uma pessoa de 
modos diferentes, em especial quando sua condição social era clara-
mente identificada. Em determinadas circunstâncias, alguns homens 
e mulheres conseguiam manipular essas ambivalências em seu favor. 
O mais comum, porém, era escolher palavras com significados ligeira-
mente diferentes para promover ou desqualificar alguém. Na segunda 
metade do século XVIII, essa desqualificação tinha a ver, cada vez 
mais, com a escravidão.
Não é à toa que a multiplicidade de termos existia para os não 
brancos, como a indicar gradações, diferenciar proximidade ou afas-
tamento em relação à liberdade. Ainda que não se pudesse afirmar 
que todos os negros e mulatos fossem ou tivessem sido necessaria-
mente escravos, a cor era um importante elemento para identificar 
as pessoas. No mundo colonial, em que a escravidão era estrutural, 
as referências à cor da pele eram entendidas como marcas distintivas 
da classificação social. Preto era praticamente sinônimo de escravo; 
branco, de gente livre. Para os que estavam em situação intermediária 
40 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 58-72.
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entre a escravidão e a liberdade, entre o preto e o branco, a escolha das 
palavras implicava nuances e ambiguidades cheias de tensão e confli-
to. Em diversas situações, muitos pardos e mulatos, livres ou forros, 
foram empurrados para longe da condição da liberdade, apartados de 
um possível pertencimento ao mundo senhorial. Podiam ter nascido 
livres e até possuir escravos, mas, ao serem chamados de mulatos, por 
exemplo, eram identificados com o universo da escravidão.41
A liberdade não era condição fácil para aqueles que não eram 
brancos. Muitos pardos e negros, forros ou livres, foram presos sob 
suspeita de serem escravos. Vários libertos tiveram dificuldade para 
“provar” sua liberdade e alguns casos chegaram a dar origem a proces-
sos de justificação, como no caso de Dionísio Ferreira, que, em 1796, 
foi preso como fugitivo pelo filho de seu antigo senhor sob “o falso 
pretexto de ser cativo”. Como a carta de alforria havia queimado em 
um incêndio, Dionísio acabou ficando dez dias na cadeia. Precisou 
levar testemunhas diante do juiz de fora para atestar que vivia em li-
berdade há “mais de 30 anos [...] [sem] título algum de escravidão ... 
estando publicamente casado com mulher e filhos”. Mesmo assim, o 
juiz solicitou mais provas; ele conseguiu apresentar uma certidão de 
sua carta de liberdade (na verdade passada em 1782) e finalmente ob-
teve do juiz o alvará de soltura.42
O mesmo aconteceu com Inácia. Ela havia sido escrava de um 
pardo chamado Félix, fora por ele libertada e vivia na casa da mãe de 
Francisco Rodrigues da Costa. Quando esta faleceu, sua liberdade foi 
posta em dúvida, pois várias pessoas diziam que a carta de alforria não 
tinha validade (embora estivesse guardada com um capitão amigo da 
41 Sobre este tema, vide LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 
1988. Especialmente cap. 10.
42 Justificação crime de escravo [sic]. Cachoeira, 1796. APEB, Tribunal da Relação, est. 37, cx. 1317, 
doc. 3.
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mãe de Inácia), e a história foi parar na justiça. O libelo em favor de 
Inácia é uma bela peça judicial, defendendo não apenas a sua condição 
de mulher livre, mas a liberdade em geral. Infelizmente, no entanto, 
os autos estão inconclusos e o resultado da contenda não pode ser 
conhecido por nós.43
Nos dois casos, a ruptura de laços herdados na escravidão, mais 
especificamente do elo entre os ex-escravos e seus ex-senhores, que, de 
certo modo, protegia a liberdade conquistada, parece ter sido crucial 
para estes libertos. Dionísio fora libertado sem ônus, sob justificativa 
de ser “cria” de uma escrava da casa e “afilhado” do senhor. Sua morte 
e a abertura do inventário devem ter criado a possibilidade de o filho 
herdeiro interessar-se em reaver a propriedade, do mesmo modo que 
no caso de Inácia. Mas algumas vezes bastava deslocar-se um pouco 
no espaço para que aqueles laços fossemrompidos.
Manuel da Silva, por exemplo, era filho legítimo de um casal de 
forros. Considerava-se um “ingênuo, nascido de pais livres e por tal 
sempre foi tido, havido e reconhecido nesta vila [de Cachoeira] de onde 
é natural, sem fama nem rumor em contrário, gozando de sua liberdade 
desde o seu nascimento”. Em 1791, quando foi à vila de Cairu tratar de 
seus negócios, acabou sendo preso sob “pretexto de ser escravo e andar 
fugido”. Teve que juntar várias testemunhas para provar sua liberdade e 
conseguir ser solto.44 O fato de ter-se afastado do local, onde era conhe-
cido como homem livre, fez com que fosse confundido com um escravo 
fugitivo: a cor de sua pele o colocava sob suspeição.45
43 Pedido de certidão de carta de liberdade. Cachoeira, 1798. APEB, Tribunal de Justiça, 1798, est. 
13, cx. 441, doc. 3.
44 Justificação de escravo [sic], Cachoeira, 1791 APEB, Tribunal de Justiça, est. 37. cx. 1317, doc. 25. 
45 Para outros exemplos de homens negros e pardos forros presos como escravos fugitivos, vide 
“Justificação de liberdade de Luís Pinto, Cachoeira, 1784” APEB, Tribunal da Relação, est. 37 cx. 
1317, doc. 23; e “Justificação de Manuel da Silva, Cachoeira, 1791”. APEB, Seção Judiciária, Autos 
Crimes, est. 37, cx. 1317, doc. 25. Não é demais lembrar mais uma vez a história do pardo Lino 
de Souza, soldado de capitão-do-mato que chegou a ser preso duas vezes, uma sob suspeita 
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Apesar disso, o dispositivo que identificava cor e condição social 
nem sempre era empregado de forma mecânica. Russell-Wood men-
ciona o caso de Agostinho Pereira, canarim nascido em Goa que, aos 
14 anos, indo para Minas Gerais depois de passar por Lisboa, acabou 
sendo vendido como escravo. Levou cerca de 40 anos para conseguir 
provar sua liberdade: só em 1765, depois de uma “inspeção visual” feita 
pelo próprio governador da capitania, que considerou que ele tinha o 
“cabelo corredio” e merecia, portanto, o benefício da liberdade dado 
aos “índios ocidentais”.46 Como observa aquele historiador, o governa-
dor das Minas não levou em conta em sua decisão nem a pigmentação 
da pele ou sua fisionomia, mas sim o fato de Agostinho ter os cabelos 
lisos – por isso a lei da liberdade dos “índios de cabelo corredio” podia 
ser aplicada também para os “índios orientais”.47
Sem critérios rígidos, mas superpondo várias possibilidades 
de classificação, a sociedade colonial permitia diversas alternativas a 
cada momento. A decisão entre elas dependia do jogo de forças entre 
as pessoas envolvidas. Como já observei, o grande número de termos 
empregados para designar e classificar as pessoas não brancas é um 
bom indicativo da variedade de nuances possível. Além disso, pode-
mos detectar na documentação uma relativa abertura em relação aos 
pardos, como a concessão de isenções e de alguns privilégios, em prol 
da liberdade.48 Como vimos, também é possível encontrar negros e 
de ser um cativo em fuga e outra por trazer armas que eram proibidas para escravos. Cf. 
Arquivo do Cartório do Segundo Ofício de Campos (RJ) – “Traslado de uns autos crimes de 
Lino de Sousa cabra que vão remetidos deste Ofício Ordinário para o Tribunal da Relação da 
cidade do Rio de Janeiro” [1800]. Extraordinária é também a história da parda livre Caetana 
Franca, nascida na Madeira, que foi vendida como escrava nas Minas Gerais. Cf. RUSSELL-
WOOD, Anthony John R. Colonial Brazil. In: COHEN, David W.; GREENE, Jack P. Neither slave 
nor free. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1972. p. 92.
46 RUSSELL-WOOD, 2005, p. 48.
47 Ibid., p. 48, 210.
48 Segundo Perdigão Malheiro, o alvará de 31 de janeiro de 1775 declara livres os expostos de cor 
preta ou parda “por ser privilégio da ingenuidade e favor da sua liberdade”. Cf. MALHEIRO, 
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pardos ocupando cargos e funções públicas, ainda que em certas oca-
siões a nomeação destas pessoas tenha suscitado discussões ou tenha 
decorrido de contingências específicas.49 Mas nem sempre isso acon-
tecia. Ao contrário: dependendo da situação, pardos, negros e mulatos 
podiam ser rapidamente empurrados para o mundo da escravidão.
Na maior parte das vezes, o portador de uma tez mais escura 
precisava recorrer a outros elementos da linguagem visual das hie-
rarquias sociais para fazer pender a balança para o lado da liberdade. 
Por isso, não causa espanto que aquele pardo, filho bastardo de uma 
família senhorial, precisasse solicitar o privilégio de usar uma espada 
para fazer valer sua condição de “filho de homem branco e senhor de 
engenho”. Do mesmo modo, muitos outros pardos precisaram recor-
rer a diversos artifícios para se afastar do cativeiro. Muito provavel-
mente esse era o motivo para serem tão ciosos a respeito do modo 
como eram chamados pelos outros e recorrer à justiça por se sentirem 
injuriados se tratados como mulatos.
Se os brancos podiam ser indiscutivelmente associados à liber-
dade; para os pretos, presumia-se geralmente a condição de cativo. 
Para todas as outras gradações na cor da pele, a ambiguidade imperava 
e a presença da escravidão ou a passagem por ela em tempo não muito 
remoto era uma suposição que podia ser acionada como arma de com-
bate – entre iguais ou entre gente socialmente diferente. 
A associação entre cor e condição social não era evidente nem 
imediata, podendo estar associada, como bem observou Russell-Wood, 
a uma “miríade de fatores ou percepções”, que além da cor incluía a 
Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. 2. ed. Petrópolis: Vozes; 
Brasília, DF: INL, 1976. v. I, p. 98. No final do século XVII, há cartas régias e provisões mandando 
que os religiosos da Companhia de Jesus não excluam de suas escolas os “moços pardos”; uma 
delas, datada de 20 de novembro de 1686, pode ser encontrada em DORNAS FILHO, João. 
A escravidão no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1939. p. 240-241.
49 RUSSELL-WOOD, 2000.
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riqueza, o nascimento, a ocupação, o grau de crioulização, o modo de 
apresentar-se publicamente etc.50 Contudo, ela representava um in-
dicador suficiente para demarcar diferenças e permitir inferências. 
Ao longo do século XVIII, estes termos foram sendo empregados cada 
vez mais de modo genérico, amalgamando escravos e libertos (ou 
mesmo livres) numa massa indistinta, socialmente inferior e, sobretudo, 
apartada da liberdade. 
Pode-se concluir, portanto, que os significados atribuídos à cor 
decorrem da presença estrutural e dos sentidos mais amplos da hege-
monia da escravidão no mundo colonial. Mas é preciso cuidado para 
não fazer generalizações precipitadas. Como vimos, a tensão e o con-
flito estavam situados, sobretudo, na associação entre cor e condição 
social dos que não eram brancos nem escravos. Dito de outro modo, 
era na liberdade dos não brancos que, num mundo estruturado pela 
escravidão, residiam os embates sociais mais acirrados.
Sem dúvida estamos longe do racismo, tanto do modo como o 
termo é definido atualmente, quanto daquele vigente no século XIX, 
que associava a cor preta ou mulata a uma origem (africana) conside-
rada “inferior” ou que adotava critérios científicos para diferenciar e 
hierarquizar as “raças”. No século XIX, a escravidão estava em declínio 
e deixou de ser legal em 1888, e os mecanismos de desqualificação es-
tavam essencialmente assentados numa verdade que se queria inexo-
rável por estar apoiada na ciência. Não havia ambiguidades.
O modo como as palavras designativas da cor das pessoas eram 
usadas no século XVIII seguia critérios classificatórios constitutivos 
da hierarquia social do Antigo Regime que valorizavam honra e nas-
cimento. No mundo colonial, tais critériosandavam cruzados com 
as marcas derivadas da escravidão. É somente no interior desse con-
50 RUSSELL-WOOD, 2005, p. 15-16.
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texto que os significados sociais dos vários termos empregados para 
desqualificar, discriminar, rebaixar e excluir indivíduos ou grupos 
sociais podem ser compreendidos – como mecanismos para restringir 
(ou eliminar) a conquista da liberdade. Ou, em sentido contrário, para 
qualificá-la e (re)afirmá-la. 
Longe de indicar qualquer distensão, a escolha de termos para 
designar a cor das pessoas, no século XVIII, implicava opções social-
mente direcionadas. Como hoje. Mas com sentidos bem diferentes – 
apesar de as palavras serem praticamente as mesmas.
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os significados da liberdade na região de Itu, 1750-1821. 1993. Dissertação 
(Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993.
RUSSELL-WOOD, Anthony John. Ambivalent authorities: the African and 
Afro-Brazilian contribution to local governance in colonial Brazil. 
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Tradução Maria Beatriz Medina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 
SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a irmandade de Nossa Senhora do 
Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século. São Paulo: Companhia 
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formação do estado e da nação. São Paulo: HUCITEC: Ed. UNIJUÍ, 2003. 
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VILHENA, Luís dos Santos. Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas 
contidas em XX cartas. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1921. 
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 “Infâmia dos mulatos” 
e “descendência de pretos”: 
impedimentos e ascensão acadêmica 
na Universidade de Coimbra (1700-1771)1
LUCILENE REGINALDO 
Os debates em torno das cotas raciais na atualidade costumam tomar 
como pressuposto a ausência histórica dos negros nos espaços acadê-
micos, sobretudo nos de maior prestígio. É certo que há muita verdade 
nesse suposto, mas a história dos estudantes pretos, pardos e mulatos 
na Universidade de Coimbra, apresentada neste texto, além de questio-
nar a naturalização do pressuposto, trata dos mecanismos de exclusão 
que contribuíram para o silenciamento de sua presença na história da 
prestigiosa universidade. A história de Antonio de Souza Falcão, mulato 
natural de Lisboa, será nosso ponto de partida e primeiro guia. 
No dia 6 de fevereiro de 1706, o monarca português D. Pedro II 
mandou a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra con-
ceder o grau de doutor a Antonio de Souza Falcão. A concessão, que 
contrariou diretamente a direção da faculdade, foi o desfecho de uma 
1 Uma versão revista e ampliada deste capítulo foi publicada na Revista de Estudos Ibero- 
-Americana, em 2018.
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séria contenda que, além do drama pessoal de Falcão, nos apresenta os 
limites impostos à ascensão dos homens de cor na carreira acadêmica 
em Coimbra e, por conseguinte, nas instituições de prestígio e poder 
em Portugal no início do século XVIII.2 Nesse contexto, é possível per-
ceber, por vezes de forma nuançada, a convivência dos novos critérios 
de classificação das gentes – impostos pela modernidade – com anti-
gas hierarquias do Antigo Regime nos países ibéricos. 
Antonio de Souza Falcão, filho de Lourenço de Souza, foi apro-
vado nemine discrepante, ou seja, por todos os avaliadores, em exame 
privado realizado em 30 de janeiro de 1705, na Faculdade de Medicina 
da Universidade de Coimbra. Foram muitos anos de estudo, pelo me-
nos nove, de acordo com os estatutos da universidade, para chegar às 
portas de acesso ao grau mais alto da carreira acadêmica.3 De partida, a 
licenciatura ou bacharelado em Artes, obtido nos primeiros dois anos, 
era pré-requisito indispensável para cursar as matérias específicas do 
curso de Medicina. Feito isso, no fim do terceiro e do quarto ano, o 
estudante submetia-se a exames específicos de avaliação, as Tentati-
vas. Sendo bem-sucedido nos ditos exames, no fim do quinto ano, o 
estudante poderia receber o título de bacharel. Após a formatura, era 
preciso ainda fazer três cursos de prática no hospital da cidade e, no 
fim do sexto ano, um exame final, “um ato de prática, com o qual po-
derão curar, e sem ele não”.4 A partir daí, o bacharel médico, de acor-
do com seus recursos financeiros e ambição acadêmica, poderia ou 
2 Utilizo o termo “homens de cor” incorporando a categoria de época e também reconhecendo 
que no período em estudo a cor era uma marca de diferenciação definida em termos

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