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uma visão do real capaz de estruturar o universo mental de seus fa-
lantes, a ponto de estes, a rigor, não falarem a própria língua, mas a
língua se falar através deles. Nessa concepção, a língua é que constrói
o real, divide-o em compartimentos, destaca certos aspectos, esquece
ou pouco discerne a outros, mostra-os existindo de um certo modo e
não de outro. Em suma, são as palavras que distinguiriam a natureza
dos entes: porque existe a palavra “a” é que se configura no real a
coisa “A” como sendo A e não B ou C. Já que, em outra língua, A’
corresponde a a’, B’ a b’, C’ a c’ etc., como, portanto, A’ é diferente de
A, B’ é diferente de B, C’ é diferente de C etc., pois a ≠ a’, b ≠ b’, c ≠
c’, então, a rigor, a tradução é impossível. Chega-se assim à fórmula
“traduttori, traditori”.
A terminologia lingüística corrente é idealista. Repetindo toda a
tradição metafísica ocidental, faz uma distinção entre a parte corpórea
e a espiritual do signo, fala de significante e de significado, mas, ao
separar radicalmente o significado da “coisa significada”, entende o
significado como a resultante de um jogo de diferenças entre elementos
do significante, como se a diferença entre pato, gato, rato e mato fosse
a diferença entre p, g, r, m. O próprio termo “signo” é idealista, pois
supõe que ele é que designa o que o ente é: ele é, de fato, mais designado
do que designa. Quando se concebe o significante como um jogo de
diferenças e esse jogo de diferenças como gerador do significado, con-
cebe-se o significante como anterior ao significado e, inclusive, à coisa
significada (da qual, aliás, é então prescindido em nome da ciência).
Cai-se na posição predileta do idealismo: de cabeça para baixo. Porque
existem os entes reais distintos é que se criam distinções verbais, o
que não quer dizer que distinções lingüísticas não auxiliam a distinguir
elementos do real. Ao contrário do que reza a terminologia corrente,
a coisa significada é que é significante, o significante é que é uma
coisa significada, tornada significativa, e o significado não só significa,
mas é basicamente significado (e não por um mero jogo de diferenças
entre elementos do significante).
Se o idealismo é a posição preponderante na “ciência lingüística”,
o materialismo vulgar é a posição do senso comum e, em parte, dos
dicionários. O pressuposto do materialismo vulgar, de que os entes
referidos pelas palavras das diferentes línguas sejam os mesmos, es-
barra na inexatidão do esquema a = A e a’ = A, pois não só não há
essa identidade absoluta de A, como também pode até ocorrer que —
como se mostra ao ter de se traduzir, num certo sentido, o termo
português “burro” pelo termo alemão correspondente a “camelo” —,
embora A ≠ B, se tenha a = b’. Ainda que, até certo ponto, isso cor-
responda ao processo de aprendizado, o idealismo se engana ao pres-
supor, de modo absoluto, que se tem primeiro a língua e depois, em
decorrência, o real. Acerta, porém — assim como o materialismo vulgar
acerta ao partir dos entes — quando insiste na não-correspondência
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