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A TRAMA DO UNIVERSO 
Evolução e Euritmia 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Comitê Científico 
 
 
Ary Baddini Tavares 
Andrés Falcone 
Alessandro Octaviani 
Daniel Arruda Nascimento 
Eduardo Saad-Diniz 
Fransmar Barreira Costa Lima 
Isabel Lousada 
Jorge Miranda de Almeida 
Marcia Tiburi 
Marcelo Martins Bueno 
Miguel Polaino-Orts 
Maurício Cardoso 
Maria J. Binetti 
Michelle Vasconcelos de Oliveira Nascimento 
Paulo Roberto Monteiro Araújo 
Patricio Sabadini 
Rodrigo Santos de Oliveira 
Sandra Caponi 
Sandro Luiz Bazzanella 
Tiago Almeida 
Saly Wellausen 
 
 
 
 
 
Gildo Magalhães 
 
 
 
 
 
 
A TRAMA DO UNIVERSO 
Evolução e Euritmia 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1ª edição 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LiberArs 
São Paulo – 2019
 
 
 
A trama do universo. Evolução e euritmia 
© 2019, Editora LiberArs Ltda. 
 
Direitos de edição reservados à 
Editora LiberArs Ltda 
 
 
ISBN 978-85-9459-999-9 
 
 
Editores 
Fransmar Costa Lima 
Lauro Fabiano de Souza Carvalho 
 
Revisão técnica 
Cesar Lima 
 
Editoração e diagramação 
Editora LiberArs 
Nathalie Chiari 
 
Capa 
Fabio Costa 
 
 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Bibliotecária responsável: Neuza Marcelino da Silva – CRB 8/8722 
 
Todos os direitos reservados. A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, 
das páginas que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos, 
sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura. 
Foi feito o depósito legal. 
 
 
 
Editora LiberArs Ltda 
www.liberars.com.br 
contato@liberars.com.br 
 
PROCESSO ISBN 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
PREFÁCIO ...................................................................................................................... 9 
 
 
APRESENTAÇÃO DO AUTOR ................................................................................. 11 
 
 
CAPÍTULO 1 
Causalidade e acaso ................................................................................................. 17 
 
CAPÍTULO 2 
Evolução biológica: alguns debates e conflitos ............................................. 43 
 
CAPÍTULO 3 
Evolução darwinista das espécies – impasses conceituais ....................... 77 
 
CAPÍTULO 4 
Euritmia e evolução biológica .......................................................................... 111 
 
À guisa de Posfácio 
Para além das ciências da natureza: o bem comum ................................. 175 
 
 
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 181 
 
 
 
 
 
 
 
But history matters to science; historical knowledge 
is integral and essential to scientific knowledge. 
Jessica Riskin, The restless clock (2016) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para Ísis, com carinho, 
 e que representa todos 
 que amam estudar a vida 
 
9 
 
PREFÁCIO 
 
11 
 
APRESENTAÇÃO DO AUTOR 
 
Este livro surgiu em meio às discussões que mantenho há vários 
anos com colegas integrantes de pesquisas em torno dos fundamentos da 
física quântica, reunidos no Centro de Filosofia da Ciência da Universidade 
de Lisboa. Mais particularmente, ele responde ao desafio proposto por José 
Croca, mentor da chamada “Escola de Lisboa” da nova física desenvolvida 
em Portugal, de desenhar uma perspectiva diferente da evolução biológica, 
mais coerente com os princípios defendidos por uma visão causal da física 
quântica, que foi o motivo agregador daquele grupo. Eu apresentei diversos 
seminários desde 2006 junto ao Centro, criticando as hipóteses da evolução 
planteadas por Charles Darwin (1809-1882), e advogando outras bases para 
uma teoria da evolução. Estas ideias foram inicialmente esboçadas em pes-
quisas efetuadas na Universidade de São Paulo, ao longo de aulas de História 
da Ciência ministradas a alunos de graduação em Biologia no período de 
1998 a 2008. 
Cabe advertir que neste trabalho algumas palavras serão usadas li-
vremente, sem atentar para sua contextualização histórica. Por exemplo, 
“biologia”, “evolução”, “espécie” e outros conceitos surgiram em épocas dife-
rentes e têm tido um significado bastante variável e polêmico, mesmo quan-
do se lhes fixa uma janela temporal. Incorrendo possivelmente, portanto, em 
riscos de anacronismo, vamos nos prender mais em alguns dos significados 
atuais dessas palavras, mesmo quando referidas a teorias do passado. 
Não obstante, creio ser útil tecer algumas considerações etimológi-
cas pertinentes, começando pelo conceito de evolução. Acredito estarmos 
longe de possuirmos uma teoria que faça jus à complexidade desse termo. A 
palavra “evolução” vem do latim evolvere, significando desenrolar (um rolo 
de pergaminho, por exemplo), ou seja, abrir e mostrar algo que estava ocul-
to. Próximo a esta origem, a palavra adquiriu um sentido de “expandir”, 
“aumentar”.1 Dessa etimologia decorre uma acepção que é a de desvelar 
uma sequência e revelar a partir dela alguma ordenação. Uma evidência 
deste significado é a aplicação dessa palavra pelos matemáticos desde o 
 
1 Segundo o Oxford English Dictionary (Oxford: Oxford University, 1979), vol. I, p. 911. 
12 
 
século XVIII para designar a “evoluta”, o lugar geométrico ou a linha cons-
truída pelos centros de curvatura de uma outra curva dada. 
Um ponto fulcral das controvérsias em torno da evolução tem sido 
exatamente o da biologia, relacionando-se ao surgimento e modificação das 
espécies. A inspiração que veio há tempos das ciências da vida caracterizou 
o sentido de evolução como correspondente a uma transformação ordenada. 
Mesmo que posteriormente tenha havido uma reação dos biólogos a esta 
interpretação, foi com esta interpretação que a palavra se disseminou por 
variados campos do conhecimento. O aspecto particular da “evolução das 
espécies”, por sua vez, tem realimentado o tema da evolução em geral, mol-
dando a discussão dos mais variados temas, tais como, por exemplo, a evolu-
ção das armas, a evolução urbana, a evolução social, a evolução do 
conhecimento científico, a evolução das artes ou a evolução do universo 
como um todo.2 
É reconhecido que evolução e progresso se tornaram conceitos mui-
to próximos, por motivos que serão explorados nas páginas deste texto. Ba-
sicamente o progredior latim, que está na base de “progresso”, significa 
marchar para a frente, mas tem também uma acepção de processo de “cres-
cimento”. Não é difícil perceber como surgiu a associação de evolução com 
algo que não só apresenta uma transformação no tempo, mas no caso bioló-
gico também um aperfeiçoamento da resposta a desafios impostos pelo am-
biente. Naturalmente ocorreu também a questão de se tal aperfeiçoamento 
seria algo absolutamente necessário, ou meramente contingente. 
Evolução e progresso apontam ainda para muitos em uma direção 
de avanço material, cultural e moral.3 Assim, no linguajar comum admite-se 
em geral que uma pessoa “evoluída” “progressista” não seja excessivamente 
presa à fixidez de costumes do passado, posicionando-se a favor da moder-
nização e aceitando uma perspectiva de mudanças para o futuro. 
Para boa parte da biologia contemporânea, no entanto, evolução po-
de significar apenas uma transformação de espécies com a passagem do 
tempo, sem uma conotação de aperfeiçoamento, como o era, por exemplo, 
para o naturalista Georges Cuvier (1769-1832). A esta noção se acrescentou 
rapidamente a ideia de outro naturalista, Jean-Baptiste Lamarck (1744-
1829), de que as diferentes espécies têm algum ancestral comum. Esses 
proponentes se viram, porém, defrontados com um problema fundamental: 
como se daria a transformação evolutiva que leva de uma espécie a outra? 
 
2 Apenas a título de exemplos dessa abrangência vide Fabian (2005), Leroi-Gourhan (1984), 
Basalla (2001), Petroski(2007). 
3 Uma discussão histórica e filosófica muito abrangente e com respostas aos críticos da ideia 
de progresso se encontra em Nisbet (1998). 
13 
 
Uma única teoria tem tido a pretensão de apresentar uma resposta 
para esta questão da evolução como sendo aquela correta, em detrimento de 
outras, e esta teoria é o darwinismo. Suas principais bases assentam na hi-
pótese de que as mutações de uma espécie para outra dependem do acaso, e 
que a mutação vencedora é aquela que se demonstra fortalecida pela “sele-
ção natural”. 
A partir da segunda metade do século XX, em especial, uma versão 
de evolução baseada no darwinismo com seleção natural dos mais aptos se 
tornou praticamente um artigo de fé para a imensa maioria dos cientistas. 
Apóstolos fervorosos e de diferentes matizes e épocas se encarregaram de 
espalhar essa doutrina, como Julian Huxley, George Gaylord Simpson, Ri-
chard Dawkins.4 Esses darwinistas têm proclamado que seus oponentes são 
necessariamente fundamentalistas religiosos, apoiados em livros de revela-
ção divina, e não se qualificam como cientistas. Não admitem - e levam o 
público a não admitir - que possam existir outras teorias evolucionistas em 
bases científicas. Contraditoriamente e à maneira das seitas religiosas, não 
admitem controvérsias científicas à volta desse tema, porque entendem que 
existe uma guerra entre ciência e religião, e que para defender a ciência não 
se deve permitir duvidar da teoria darwinista, especialmente em suas ver-
sões mais atualizadas que incorporam a genética e a biologia molecular. 
Ora, ninguém com formação intelectual negaria que as espécies de 
vida terrestre se modificaram ao longo de bilhões de anos e que a espécie 
humana é decorrente de modificações ancestrais. No entanto, a história da 
ciência ilustra de forma contundente como a visão paradigmática extremista 
dificulta, ou mesmo faz estagnar, ou até retroceder o progresso científico. 
Se para os darwinistas e neodarwinistas de todos os tipos, que são a 
maioria dos biólogos, a sua é a melhor das teorias evolutivas, porque conse-
gue explicar tudo, para os discordantes, ao contrário, o darwinismo não ex-
plica, ele apenas constata. Os que divergem podem muito bem ser cientistas 
para os quais a evolução darwinista não é a única hipótese construída para 
explicar tais modificações, ela é apenas a mais aceita, inclusive por falta de 
conhecimento ou da admissão de que existem outras hipóteses evolutivas 
com poderes de explicação iguais ou quiçá melhores do que o darwinismo. 
O dogma darwinista será nesta obra apresentado de forma crítica, e 
não nos preocuparemos em abordar uma exposição historicamente sistema-
tizada dessa teoria, já que essas bases históricas se encontram amplamente 
disponíveis através da divulgação científica geral, além de reforçadas pelos 
livros-textos em vários níveis, explicações que são sempre relembradas na 
 
4 Uma coletânea de diversos textos “clássicos” da doutrina, com ênfase na evolução humana, 
se encontra em Mussolini (1978). 
14 
 
mídia. O leitor interessado não terá dificuldades em encontrar trabalhos 
mais significativos dessa natureza pró-darwinista.5 Como a defesa do darwi-
nismo veio a significar para muitos a defesa da ciência contra a superstição, 
o difícil é encontrar uma literatura mais acessível que seja a favor da ciência 
e contra o darwinismo. 
Este livro se propõe a discutir o paradigma darwinista de que as mu-
tações ocorrem ao acaso, associado com a concepção de que a competição 
pela sobrevivência seja o motor da vida. Adotarei também um viés crítico 
para com a posição de que as mutações evolutivas nada têm a ver com o 
progresso, sendo absolutamente indiferentes ao mesmo. Procurarei menci-
onar como surgiram ideias opostas ao darwinismo, defendendo que a evolu-
ção é causal e que a cooperação mútua permanece sendo uma possibilidade 
geral e com muita força para explicar o comportamento da vida. Para isto, 
voltarei a uma ideia de unidade da natureza que se cristalizou entre os sécu-
los XVIII e XIX, de forma a se poder pensar em uma nova e mais abrangente 
teoria evolucionista, que cubra aspectos fundamentais tantos dos mundos 
chamados de inanimado quanto dos seres vivos. 
Reforçarei este argumento pela constatação de que há uma notável 
convergência da teoria neodarwinista da evolução biológica com a interpre-
tação indeterminista e não-causal da física quântica, tal como foi formulada 
na década de 1920. Elaboradas ambas a partir desta década, em seguimento 
ao final da Primeira Guerra Mundial e ao clima de desencanto reinante, o 
que as une é a mesma concepção de contingência na natureza, em que o 
acaso cego é tomado como fator da epistemologia intrínseca ao entendimen-
to da natureza. A biologia moderna, especialmente depois dos desenvolvi-
mentos da bioquímica molecular e da genômica, vem cada vez mais se 
tornando o centro das atenções científicas, lugar que já foi anteriormente 
ocupado pela física quântica como foco de interesse na divulgação pública 
da ciência, mas vou insistir nesta obra que ambas têm muito mais a ver do 
que a maioria das pessoas se dá conta. 
Para isto, vou expor a convicção contrária, de que este universo, em-
bora não seja pré-determinado em seus detalhes, é de certa forma previsi-
velmente ordenado. Na proposta apresentada nesta obra, a evolução tem 
sim a ver com uma certa ideia de progresso, ainda que não de forma estri-
tamente determinista e automática. Em contraposição, a hipótese darwinista 
e a teoria quântica ortodoxa não levam em conta que os seres são formados 
de partes solidárias e que sua interação se sucede de tal forma que o resul-
 
5 Como sugestão, citamos os seguintes títulos que resultaram de pesquisas históricas sérias, 
ainda que polarizadas por sua aceitação a priori do darwinismo: Bowler (1996); Larsson 
(2006). 
15 
 
tado não é a simples soma linear dessas partes. No melhor dos casos, a apro-
ximação que se pode fazer dos fenômenos naturais como sendo lineares 
possibilitou que ambas teorias baseadas na linearidade e no acaso apresen-
tassem alguns resultados úteis, levando a confundir uma aproximação com a 
realidade mais complexa. 
A posição que aqui defendo está embasada epistemologicamente na 
crença de que existe um mundo real e independente de nossa consciência 
sobre ele. Do ponto de vista ontológico, o universo como um todo segue uma 
estruturação que descreverei através de conjecturas, de algum modo verifi-
cáveis e de forma que nos convençamos que a realidade seja gradual e par-
cialmente compreensível por nós. O conhecimento que assim se adquire na 
história se exprime através da ciência, ele é sempre hipotético e transitório, 
mas vai em geral aumentando progressivamente com a passagem do tempo 
e do esforço dispendido nesse empreendimento. 
O livro apresenta quatro capítulos. No primeiro, coloca-se o traço de 
união que há entre as situações atualmente paradigmáticas envolvendo os 
campos da física fundamental (quântica) e a biologia (evolução), que é a 
adoção do acaso como o fator decisivo para o desenrolar dos acontecimen-
tos e para a compreensão da realidade. O conceito de euritmia será proposto 
para fazer uma contraposição adequada para essa situação. Algumas ideias 
do pensamento antigo são importantes para a discussão que será encetada 
posteriormente e são ainda neste capítulo sumariamente introduzidas. 
O segundo capítulo aborda a dificuldade para se fazer uma definição 
satisfatória do que é vida. A fronteira entre o inanimado e o animado apre-
sentou historicamente muitas controvérsias notáveis e acaba levando para 
uma problemática correlata que é a da origem da vida e, indiretamente, para 
questões cosmológicas. Do pano de fundo em todas essas discussões emerge 
a possível direcionalidade do universo, incluindo a vida, e colocações de 
ordem teleológica costumam ser desprezadas ou contraditadasporque se 
aproximam de fundamentações religiosas, embora não obrigatoriamente. 
Para o terceiro capítulo reservou-se uma exploração das bases epis-
temológicas e ideológicas do darwinismo, em suas diversas vertentes. Aten-
tando, como já mencionado preliminarmente, para o fato de que esta não é a 
única hipótese evolucionista aceitável, apontam-se suas contradições e limi-
tações, que de resto podem ser superadas adotando-se outras premissas, 
inclusive as lamarckistas. Por motivos que são indicados, infortunadamente 
o lamarckismo se tornou anátema na biologia contemporânea. 
Esse tema é mais completamente investigado no quarto capítulo, 
que é o mais alentado. Recordam-se alguns desenvolvimentos capitais da 
biologia no século XX, envolvendo a epigenética, o reconhecimento da com-
16 
 
plexidade crescente de seres vivos e o papel da coletividade para a evolução. 
Reservou-se um espaço para a discussão da entropia termodinâmica no 
contexto das restrições malthusianas, cuja apropriação ideológica só aumen-
tou com a prática do liberalismo econômico e suas variantes, repercutindo 
na teoria da evolução. 
Chega-se assim ao ponto capital desta obra, que é inverter o cami-
nho usualmente feito, de apreciar o fenômeno da vida e sua evolução a par-
tir do mundo da física e da química. São apresentados argumentos que 
permitem entender o conjunto cósmico do mundo natural da biologia para o 
inanimado, na verdade incluindo-se a física, a química e a biologia dentro de 
uma visão unitária de um universo onde reina o princípio da euritmia. 
Finalmente, um pequeno posfácio sugere a necessidade de continua-
ção dos esforços dispendidos e sua extensão aos fenômenos da sociedade 
humana, nomeadamente a economia e a arte. 
 
 
 
Gildo Magalhães, 
Professor Titular de História, Universidade de São Paulo 
São Paulo e Ubatuba, dezembro de 2018 
17 
 
CAPÍTULO 1 
 
CAUSALIDADE E ACASO 
 
1.1 Introdução geral ao problema 
 
Na primeira metade do século XX cristalizou-se na física uma visão 
cujas consequências não se deixam minimizar, pois se espalharam com 
grande força para diversos campos do conhecimento. Trata-se da formula-
ção da mecânica quântica desenvolvida no final da década de 1920 e conhe-
cida como interpretação da “Escola de Copenhague”, em referência à cidade 
de seu principal mentor, o famoso cientista Niels Bohr (1885-1962). Nessa 
teoria, os fenômenos na escala atômica e subatômica são considerados como 
decorrentes basicamente do acaso, recusando-se num nível que suposta-
mente seria o mais básico da matéria a tradição, milenarmente aceita até 
então pela ciência em geral e pela própria física em particular, de que todos 
os fenômenos naturais estão envolvidos numa cadeia causal, permitindo-nos 
pesquisar e possivelmente conhecer essa sequência de causas. 
Não estamos nos referindo à falta de conhecimentos exatos de cir-
cunstâncias que normalmente vivenciamos. Nem à dificuldade que é, por 
exemplo, conhecer uma geração em seus detalhes, pois o fato de que apenas 
um espermatozoide dentre milhões fecundará um óvulo torna extremamen-
te difícil que adquiramos o conhecimento necessário para inferir exatamen-
te a totalidade de quais gens serão transmitidos para o feto. O número de 
possibilidades é tão grande, que em geral se torna infrutífero aplicar um 
raciocínio causal para determinar todas as características que serão geradas, 
a menos que se estabeleçam condições delimitadoras das variações possí-
veis. 
Dessa forma, aquilo que comumente se chama “acaso” pode ser na 
verdade a expressão do desconhecimento de todos os fatores intervenientes. 
Pode-se naturalmente usar dados probabilísticos e, certamente, uma classe 
de fenômenos permite o uso de ferramentas estatísticas para um aperfeiço-
18 
 
amento de nossos conhecimentos. À medida que aumenta o conhecimento, 
poderíamos ir eliminando esta noção de acaso. 
A restrição da formulação de Copenhague é de outra natureza, pois 
afirma que não é possível uma explicação causal. Esse entendimento radical 
do acaso afirma que não se pode chegar num grau de conhecimento adequa-
do, pois as causas intervenientes podem mudar de forma totalmente impre-
visível.6 É neste sentido de aleatório ou randômico que usaremos a palavra 
acaso, referida a fenômenos como a física quântica ou a evolução darwinista. 
Teremos oportunidade de voltar ao assunto quando discutirmos que a exis-
tência de fatores causais não implica em um determinismo fechado. 
Na visão causal tradicional que prevalecia até a consolidação das 
ideias trazidas pela física quântica de Copenhague, mesmo que uma causa 
fosse desconhecida, admitia-se que a ciência fosse encarada como processo 
organizado de investigação progressiva da natureza. Esta ação permitiria 
cada vez mais desvendar explicações, que acabariam por revelar, ainda que 
por aproximações sucessivas, algumas das causas dos fenômenos que expli-
cassem os motivos para sua manifestação, ou pelo menos seu funcionamen-
to operacional e não apenas sua descrição. O aperfeiçoamento gradual 
dessas explicações dentro de processos históricos definidos era chamado de 
“progresso da ciência”. 
A interpretação da Escola de Copenhague, formalizada a partir de 
1927, colocou um obstáculo aparentemente intransponível para esse avanço 
perene do conhecimento na escala do muito pequeno: nesse nível admitiu-se 
que predomina a aleatoriedade, e que mesmo podendo esta ser tratada por 
meio de leis probabilísticas, isto é, em termos de distribuições e médias esta-
tísticas, o acaso leva a um impasse no alcance possível e completo de uma 
conexão de causalidade entre os fenômenos. Isto se expressou de forma 
sintética no famoso Princípio da Incerteza (1927), formulado pelo também 
bastante conhecido cientista Werner Heisenberg (1901-1976). Se for dese-
jada, por exemplo, uma determinação bastante precisa da velocidade de um 
elétron, deve-se abrir mão de estabelecer com precisão sua posição, e vice-
versa, uma posição definida impede o conhecimento da sua velocidade exa-
ta. Determinações simultâneas para outros pares de grandezas físicas foram 
igualmente restringidas, de forma que o cientista deveria se conformar em 
conhecer previamente apenas algum grau de probabilidade quanto a even-
tos particulares. 
Como todo o universo é constituído de entidades igualmente sujeitas 
a um comportamento considerado aleatório, a determinação final de posi-
 
6 Jacquard (1988), p. 11-12. 
19 
 
ções e velocidades apenas de objetos macroscópicos, do tamanho da escala 
humana, seria aparente e válida, porque a indeterminação diminui com o 
tamanho desses objetos, mas não se poderia exigir um conhecimento dos 
componentes microfísicos desses objetos, restando a objeção de que um 
objeto macroscópico continua sendo feito de entidades muito pequenas. 
A construção teórica que descreve o arcabouço decorrente dessa 
concepção, dominada pela contingência incontornável do Princípio da Incer-
teza, se tornou paradigmática e ortodoxa na física, graças principalmente ao 
seu sucesso na previsão estatística do comportamento global e complexo de 
materiais e dispositivos da eletrônica baseada em semicondutores (ou física 
do estado sólido, hoje também chamado de “matéria condensada”), que pas-
saram a aproveitar novas propriedades que se tornaram características do 
nível quântico da matéria. 
Os bons resultados atingidos se apresentaram como justificativa su-
ficiente para uma teoria que privilegia o aleatório, argumentando-se com a 
evidência cada vez impactante do desenvolvimento extraordinariamente 
rápido da aplicação dessa teoria na eletrônica. Isso resultou na criação de 
dispositivos de uso generalizado no cotidiano atual e que funcionam muito 
bem, como telefones celulares, computadores e outros. Esquece-se assim, 
por motivo de conveniência e, como será discutido adiante, por motivos 
ideológicos em se tratando do acaso, quantas vezes na história das ciências 
bonsresultados foram atingidos mesmo com teorias que se mostraram in-
corretas. Um dos exemplos mais claros disso foi o bom funcionamento du-
rante séculos da teoria geocêntrica e dos epiciclos de Ptolomeu. 
Pode-se dizer que a interpretação probabilística da física quântica 
consagrou o abandono das explicações causais em favor de determinações 
aparentemente bem precisas, apoiadas na estatística, mas rejeitando-se o 
tipo de explicações realistas causais que foram apanágio das ciências, tro-
cando-as por “irrecusáveis” incertezas. Isso conduziu a uma série de para-
doxos e controvérsias entre os físicos, a tal ponto que as dissensões levaram 
à recusa desse modelo com base na aleatoriedade por uma parcela da co-
munidade científica (incluindo nomes respeitados como Albert Einstein, 
Max Planck e Louis de Broglie), que desde então não se conformou com isso, 
embora não tivesse conseguido formular uma teoria alternativa causal sufi-
cientemente convincente.7 
O abandono da causalidade na física quântica a partir da década de 
1920 se disseminou por universidades e instituições em geral, atingindo 
outras ciências naturais e chegando até as ciências humanas, e mesmo em 
 
7 Uma narrativa abrangente dessas controvérsias e de sua história está em Selleri (1990) e 
Selleri (1984). 
20 
 
certas manifestações artísticas, como na música e nas artes visuais.8 O uni-
verso nessa perspectiva deixou de ter o sentido de refletir um campo de 
pesquisas aperfeiçoadas pelo progresso científico e técnico e, consequente-
mente, o conhecimento passou a ser o resultado de oportunos sucessos prá-
ticos, contentando-se boa parte da comunidade científica com esses 
resultados. Viveríamos num universo caprichoso, onde a circunstância da 
existência do próprio ser humano é uma decorrência da inconstância da 
sorte. 
As premissas de um mundo considerado efetivamente inexplicável 
acabaram vindicando uma posição existencial praticamente niilista, ligando-
se à crise de valores civilizacionais que se destaca bastante no mundo con-
temporâneo, repercutindo inclusive em esferas que vão da economia à cul-
tura. A saída para o dilema de viver na incerteza, e apregoada como sendo 
aquela adequada nesse contexto, é a da realização mais rápida possível no 
plano do sucesso pessoal, para se usufruir apenas o breve momento de exis-
tência de cada vida humana. 
Encontram-se assim justificadas políticas imediatistas que deixam 
em primeiro lugar a vida individual e necessariamente transitória, relegan-
do à última prioridade ou negando qualquer sentido a valores permanentes 
associados à vida social, cooperativa e cobrindo uma perspectiva de muitas 
gerações. Amplos setores do espectro político, desde a esquerda mais aberta 
até a direita mais conservadora, foram afetados pelo clima de derrotismo 
que se tornou predominante. 
Neste sentido, a luta contra o pessimismo cultural e por um mundo 
mais justo e melhor para todos viverem tem sido vista como utopia infantil, 
um resquício de idealismo simplório e ultrapassado. Se o universo, como 
entendido pela física quântica ortodoxa, é o mero palco da roda da fortuna, 
este seria de fato um mundo sem sentido e sem possibilidade para que os 
homens sejam senhores de seu destino, pois na verdade não passam de jo-
guetes do azar.9 
As raízes sociais, econômicas e culturais da não-causalidade na física 
quântica da Escola de Copenhague se ligam às ideias pessimistas, decaden-
tistas e desesperançadas de pensadores como Friedrich Nietzsche (1844-
 
8 Um exemplo desse alcance está nas concepções do musicólogo e compositor alemão Hans-
Joachim Koellreutter, cf. Brito (2001). 
9 A roda da fortuna é um dos motivos predominantes na conhecida cantata Carmina Burana, 
de Carl Orff (1895-1982), baseada em manuscritos medievais beneditinos alemães. 
21 
 
1900) e Oswald Spengler (1880-1936), agravadas pela derrota da Alemanha 
na 1ª Guerra Mundial e pelo colapso subsequente da República de Weimar. 10 
A política progressista tradicionalmente associada com a visão cien-
tífica como condição de libertação e de realização das potencialidades hu-
manas foi substituída pelo ceticismo radical e, em última instância, pelo 
niilismo, que vem varrendo a sociedade contemporânea, desde os bancos 
acadêmicos até aos sindicatos e às ruas. A solidariedade e a necessidade de 
sonhar com utopias como condição de humanização progressiva deu lugar à 
acusação de que a ciência e o progresso científico e suas aplicações cada vez 
mais amplas na sociedade, assim como a consequente industrialização, são 
dos piores males que afligem a humanidade, culpando-se por esses males a 
filosofia do Iluminismo herdada do século XVIII. O progresso da ciência e da 
técnica não passaria de um mito sedutor propagado pelo modo de produção 
capitalista e desumanizador, para encobrir suas contradições. 
Apesar da interseção frequente das ideias de progresso e evolução, 
um estudo aprofundado da ideia de progresso está fora do escopo da pre-
sente obra. Importa aqui ressaltar o comprometimento de nossas propostas 
com o caráter iluminista geral e ligado com o desenvolvimento científico e 
social da humanidade, tal qual foi esboçado pelo filósofo e matemático Mar-
quês de Condorcet (1743-1794), mesmo quando acabava de ser vitimado 
pelo radicalismo na Revolução Francesa. Remetemos o leitor interessado 
para alguns estudos importantes sobre o assunto.11 
Entre as ciências naturais e ao lado da física e da química quântica, 
já indicamos que a biologia também consagrou um modelo em que o aleató-
rio é fundamental na compreensão dos seres vivos, consubstanciado na teo-
ria darwinista da evolução. Mais à frente se discutirá que, de forma mais 
apropriada e rigorosa, dever-se-ia falar em “hipótese” e não em “teoria” 
darwinista da evolução. De maneira análoga à queda dos valores coletivos 
como sendo os mais elevados, o darwinismo e seus seguidores enfatizam o 
plano individual e a competição entre indivíduos e coletividades (interespé-
cies e entre espécies) como fatores-chaves para o sucesso da formação e 
sobrevivência de formas de vida. 
As razões históricas para a gradual aceitação do primado da aleato-
riedade como princípio explicativo em ciências naturais fundamentais como 
a biologia e a física devem ser procuradas exteriormente a seus domínios de 
competência, pois são de natureza ideológica. Uma contribuição fundamen-
 
10 A análise desses fatores se encontra no trabalho já clássico de Forman (1983). De uma for-
ma mais abrangente, as motivações históricas e filosóficas para o niilismo decadentista estão 
expostas por Herman (1999). 
11 Condorcet (1993); Bowler (1989). 
22 
 
tal para o sucesso da adoção do acaso e o abandono do sentido da causalida-
de foi o fortalecimento de certos componentes da filosofia empirista britâni-
ca e da economia política do liberalismo, e mais especialmente a 
popularidade que tem gozado a teoria de economia política proposta por 
Thomas Malthus (1766-1834) ao fim do século XVIII em seu ensaio sobre a 
população.12 Este assunto será explorado, depois de se expor com mais deta-
lhe a crise dos paradigmas biológicos da atualidade. 
A teoria darwinista da evolução, baseada na aceitação do acaso co-
mo principal “motor” das transformações, foi fortemente influenciada pela 
citada visão pessimista e malthusiana sobre a escassez e finitude de recur-
sos para sobrevivência da espécie. A suposição de que o crescimento de re-
cursos é linear com o tempo foi tomada como um dogma absoluto, perante o 
qual o crescimento exponencial das populações levaria logicamente a crises 
de falta dos correspondentes recursos, acirrando a competição entre os in-
divíduos. 
A evolução não causal darwinista adquiriu peso cultural cada vez 
mais forte devido exatamente à sua inter-relação com teorias econômicas 
clássicas, notadamentea “mão invisível” do liberalismo econômico na pro-
posta de Adam Smith (1723-1790), e interpretações sociológicas como a 
defesa da iniciativa privada e o ataque ao Estado empreendido por Herbert 
Spencer (1820-1903), endossando a “sobrevivência do mais apto”. Além 
disso, suas bases epistemológicas, alicerçadas na aleatoriedade e na compe-
tição, se espraiaram para a literatura, notadamente para o naturalismo do 
final do século XIX, como nos romances de Émile Zola (1840-1902), reinci-
dindo como modelo para as ciências naturais e até mesmo para a filosofia 
das ciências, onde alguns falam com naturalidade em “seleção natural” de 
teorias vencedoras. Epifenômenos como a seleção de espécies mais favore-
cidas e tendências em si mesmas naturais, como as situações de competição, 
foram tomados como justificativas das transformações, enaltecendo-se seu 
caráter individualista e exclusivista como determinante para a evolução 
biológica. 
No entanto, contra essas tendências que se apoiam no acaso, defen-
deremos nas páginas que se seguem que a coletividade é mais determinante 
do que o indivíduo, sem tirar a importância deste, e que a sobrevivência da 
coletividade é que garante o sucesso dos indivíduos que a compõem. Mais 
ainda: todo esforço coletivo goza da propriedade básica da não-linearidade, 
em que o todo resulta maior do que a soma de suas partes, propriedade que 
 
12 Malthus (1996). 
 
23 
 
não se reconhece como determinante nas explicações de cunho individualis-
ta como o darwinismo. 
A esperança de superação do niilismo nas ciências humanas e natu-
rais teria, forçosamente, de enfrentar muitos paradoxos criados pela orto-
doxia científica, pois esta se escudou cada vez mais no manto da 
aleatoriedade. Como enfatizado atrás, o recrudescimento contemporâneo de 
visões não causais da natureza e da humanidade, que favoreceu o irraciona-
lismo e o pessimismo cultural, criou uma noção de falta de propósito na vida 
que passa do universo para as existências individuais. Contrariar essa ten-
dência fez com que cientistas e pensadores demandassem desde o início do 
século XX uma alternativa de concepção de uma teoria causal da física quân-
tica. Várias tentativas foram feitas neste sentido, mas que não foram sufici-
entemente fundamentadas para derrotar de forma cabal a formulação de 
Copenhague, mesmo quando se apelou para um enfoque unitário de vários 
campos do conhecimento. 
Felizmente, abriu-se uma fresta de luz neste assunto tenebroso, com 
a formulação alternativa de uma teoria quântica abertamente causal, que 
vem sendo ativamente perseguida desde o início do século XXI. Este é o tra-
balho desenvolvido inicialmente pelo físico José Croca e seus colegas do 
Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, aqui já referido 
como a “Escola de Lisboa”. 
Os fundamentos dessa reação em favor da causalidade situam-se na 
perspectiva lançada pelo físico francês Louis de Broglie (1891-1987) na 
década de 1920, já em franca contraposição às posições epistemológicas e 
ontológicas da Escola de Copenhague, liderada por Niels Bohr. 13 Essa alter-
nativa, no entanto, só começou a se completar e frutificar com o desenvol-
vimento recente de uma teoria matematicamente aplicável das chamadas 
“onduletas”, que permitiu sua utilização por Croca para o conceito formula-
do em 1924 por Louis de Broglie e chamado de “onda vazia”.14 Esta é uma 
onda física comparativamente com pouca energia, mas que é real, ao invés 
da “onda de probabilidade”, conceito puramente matemático e formal usado 
pela Escola de Copenhague. 
Associou-se então a teoria das ondas “vazias” de Louis de Broglie 
com a descoberta de possibilidades teóricas baseadas na causalidade para 
explicar as violações cada vez frequentes ao Princípio da Incerteza, de Hei-
 
13 Esses fundamentos estão detalhadamente expostos por Croca e Moreira (2007) e em Croca 
(2016). Vide também Croca (2003), bem como Croca e Araújo (2010). 
14 Aqui não se fará uso do instrumental analítico das onduletas. Os interessados na história do 
desenvolvimento e na formulação dessa ferramenta podem consultar uma obra que, sem perder 
o rigor matemático, ainda é bastante acessível: Hubbard (1998). 
24 
 
senberg, constatadas experimentalmente na detecção de objetos com reso-
luções cada vez menores do que as previstas por este princípio nos micros-
cópios de varredura eletrônica. A nova teoria alternativa da física quântica 
proposta pela Escola de Lisboa tomou a forma de uma ontologia de entes 
subquânticos (“ácrons”) e ondas vazias, a que se seguiu a adoção de um 
princípio epistemológico, denominado “princípio da euritmia”. 
Basicamente, o conceito de euritmia afirma que na natureza preva-
lece entre várias opções um caminho “ótimo”, determinado como se fosse a 
priori por critérios tais como os de tempo mínimo ou outros que minimizam 
os dispêndios de energia e maximizam os resultados obtidos. 
O conceito de euritmia teve antecedentes que se tornaram marcan-
tes na história natural durante os séculos XVIII e XIX. Esse período viu o 
surgimento ou fortalecimento de diversos princípios naturais de otimização, 
ainda nem sempre conhecidos com este nome, ligando o sucesso coletivo a 
uma expressão de harmonia surgida naturalmente, bem como sua manifes-
tação ao longo da história, como por exemplo a tendência para ser este o 
“melhor dos mundos possíveis”, conforme a conhecida expressão emprega-
da por Leibniz (1646-1716). Esses princípios admitem a existência de cami-
nhos otimizados para a atuação de forças da física como condição necessária 
e suficiente para a estabilidade dinâmica do mundo.15 
A motivação para a definição e escolha da palavra euritmia se deu 
em 2007 dentro das pesquisas da Escola de Lisboa, e veio inspirada pela 
ação das “ondas teta” (ou “ondas-guias”, equivalentes às “ondas vazias” na 
terminologia usada anteriormente por Louis de Broglie), associando-se à 
propriedade de frequência oscilatória dessas ondas (daí “ritmo”, “ritmia”) o 
prefixo grego “eu”, designando o que é harmonioso, belo, ótimo.16 Coinci-
dentemente, e de forma ignorada por nós na época citada, já havia este ter-
mo sido usado na década de 1920 em uma forma de dança na antroposofia, 
movimento de harmonia, embora com tons algo esotéricos, e desenvolvido 
pelo pensador austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), que se inspirou livre-
mente nas ideias de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Apesar de 
motivações diversas, naturalmente podem existir aproximações entre os 
dois usos do termo. De fato, veremos mais à frente como uma noção de rit-
mo vinda da época de Goethe influenciou o desenvolvimento da embriologia 
e da evolução biológica como um todo. 
Epistemologicamente estamos na presente obra assumindo que o 
princípio da euritmia permite-nos dar um passo além, propondo sua adoção 
 
15 Fitas (2012). 
16 Vide Gildo Magalhães, “A braquistócrona e o conceito de euritmia”, em Croca, Castro, 
Gatta (2017). 
25 
 
para fornecer uma solução para os impasses e paradoxos advindos da alea-
toriedade. A base é a mesma nos dois casos, tanto no da física e química 
quântica quanto no da evolução biológica, pois há uma aproximação entre 
esses campos que é, em geral, insuspeitada antecipadamente, mas que se 
torna cada vez mais evidente e que decorre de uma certa unidade da matéria 
viva e da não-viva, inapropriadamente chamada de “inerte”. A euritmia será 
encarada então como uma propriedade que intervém na formação de har-
monia no universo e desempenha um papel central numa teoria geral da 
evolução causal. 
A justificativa para a adoção do princípio da euritmia se reforça com 
a convicção de que ele se manifesta nos fenômenos ligados à emergência na 
matéria viva e não-viva, isto é, quando há o surgimento daquilo que é novo, 
de algo que não decorre da simples superposiçãode partes previamente 
constituintes. 
A emergência se aplica aos fenômenos físicos como no surgimento, a 
partir do meio subquântico, de entes que se denominam costumeiramente, e 
numa linguagem talvez já arcaica, como “partículas”. Há emergência também 
nos fenômenos químicos mais simples: por exemplo, o sal de cozinha tem 
propriedades diferentes de seus componentes, cloro e sódio. Num sentido 
mais amplo pode-se falar em emergência desde quando a partir dos entes 
quânticos surgem os elementos que compõem a tabela periódica dos ele-
mentos químicos até a formação de moléculas e cadeias moleculares extre-
mamente complexas, cujas propriedades não decorrem simplesmente ou 
linearmente da soma das características dos seus componentes. Em escala 
cósmica, novos entes emergem na forma de estrelas e seus planetas, galáxias 
e outros aglomerados com propriedades específicas e que superam as das 
entidades que os compõem. 
Os fenômenos vitais são igualmente manifestações emergentes, a 
partir do surgimento de diversos tipos de células vivas que agregam compo-
nentes químicos que não explicam diretamente as funções observadas da 
vida. A emergência continua a ser a tônica quando as células se agregam e 
formam órgãos, que por sua vez dão origem a indivíduos e espécies, entre as 
quais a nossa. Os indivíduos de uma espécie quando interagem entre si e 
com o ambiente formam novas entidades que emergem na forma de socie-
dades, que novamente se distinguem de seus integrantes quanto às novas 
propriedades que exibem. 
Para uma espécie em particular, a humana, a emergência se manifes-
ta também por meio da atitude inovadora do indivíduo em meio à sociedade 
em que vive, do que resulta o fenômeno da criatividade, expresso por ativi-
dades comumente chamadas de artísticas e científicas. O novo que emerge 
26 
 
pela ação humana criadora não se reduz às partes que o compõem, e essa 
transcendência do que é emergente e que parece em geral ser um mistério, é 
costumeiramente designada com o epíteto de “genial”, nada mais sendo do 
que a ação da propriedade universal da emergência em qualquer escala do 
que chamamos de “universo”, tomando ainda como base uma concepção 
expandida do princípio da euritmia. 
Faz parte da emergência para além do papel do indivíduo a atuação 
coletiva, em que a não-linearidade das respostas se intensifica e se revela 
mais fortemente ainda. Assim, a emergência nunca deveria ser encarada 
como um resultado puramente individual, ainda que o pareça, mas sim como 
resultante de um meio onde há outros indivíduos e que se modifica pela 
presença destes, de forma que a ação final é como que “guiada” pela coleti-
vidade. A otimização incorporada ao princípio da euritmia é, portanto, um 
resultado dessa interação de indivíduos com o meio e não uma propriedade 
ad hoc inserida extraordinariamente. 
O conceito de euritmia desenvolvido para a física do complexo não-
linear tem servido de suporte para superar paradoxos da formulação não 
causal e meramente probabilística dos fenômenos quânticos. Uma extensão 
desse conceito ao domínio biológico, em que a não-linearidade, complexida-
de e emergência se intensificam notavelmente, será aqui apresentada, colo-
cando em causa a visão tradicional da evolução darwinista, para substituí-la 
por uma teoria da evolução em que a cooperação se torna a principal carac-
terística responsável pela sobrevivência. 
Neste enfoque, parte-se da hipótese de que a cooperação entre indi-
víduos evidencia uma tendência para facilitar de forma continuada o cres-
cimento também exponencial de novos recursos, sendo a evolução não mais 
o resultado de processos do acaso, mas como que dirigida para a solução de 
problemas cada vez mais abrangentes em relação ao meio ambiente. O pro-
gressivo aumento e complexidade da encefalização nos mamíferos em geral 
reforça, no caso particular da espécie humana, a capacidade de a evolução ser 
eurítmica, evidenciada pela enorme dose de criatividade de nossa espécie. 
O âmago da controvérsia da evolução das espécies repousa na rela-
ção entre o todo e suas partes que, como enfatizamos, é não-linear. Por ra-
zões ideológicas, a teoria darwinista teve uma difusão triunfal entre o 
pensamento agnóstico e ateu, devido à sua hipótese capital de as mutações 
das espécies não seguirem um propósito teleológico e serem principalmente 
devidas ao acaso. A essa motivação juntaram-se as já citadas fundamenta-
ções teóricas com base no malthusianismo e no liberalismo econômico. A 
concepção teleológica de um sentido de “progresso” foi paulatinamente ba-
nida da biologia, desbancada pela crença na anomia e aleatoriedade da evo-
27 
 
lução. Adicionalmente juntou-se na guerra à teleologia uma forte trincheira 
representada pela adoção do reducionismo linear da biologia, mais recen-
temente localizado especificamente no campo da neurociência, aliada à teo-
ria de sistemas computacionais, quando se considera o cérebro apenas como 
máquina composta linearmente por partes. No entanto, a própria história da 
biologia contrapõe uma sutil demonstração de que o pensamento darwinista 
nunca triunfou completamente, mesmo sendo o paradigma dominante. 
Enfatizamos a convicção de que a não-linearidade identifica o mun-
do real, ao passo que para estudar a realidade, a tradição tem sido usual-
mente, e pelo contrário, a de tirar proveito da linearidade. Uma justificativa 
possível para isto é porque a linearidade utiliza aproximações até certo pon-
to úteis, dado que facilitam o tratamento dos fenômenos em causa, apesar de 
muitos terem a consciência de que a realidade é muito mais complexa do 
que os modelos passíveis de tratamento pela linearidade. 
Entre parênteses, a esse respeito também em nosso caso é no senti-
do de aproveitar uma aproximação útil que utilizamos a palavra “progresso”, 
como por exemplo em “progresso da ciência”, um conceito reconhecidamen-
te polêmico e que aplicado aqui neste contexto permite-nos superar um 
certo nível inescapável de determinismo unindo-o com a liberdade criativa. 
O progresso certamente é um processo igualmente não-linear. 
A evolução das espécies, seja no sentido biológico, seja no sentido 
epistemológico, ou ainda mais amplamente ao se tratar da humanidade, será 
considerada uma evolução com direção, porém igualmente não-linear, per-
mitindo tanto etapas de avanço quanto de retrocesso. Não tememos identifi-
car a análise que faremos como uma defesa da busca do sentido causal de 
transformações sociais e culturais.17 Essa teleologia vem sendo negada por 
muitos historiadores e pensadores contemporâneos, que decidiram abolir 
essa busca de sentido nos processos históricos, analogamente à renúncia da 
causalidade nas ciências naturais. 
É, portanto, um dos propósitos desta obra apresentar justificativas 
para uma teoria da evolução geral, não-linear, causal e eurítmica, que se 
contraponha à evolução darwinista aleatória das espécies, e enfatize ainda a 
importância da coletividade, sem cair em mecanismos deterministas. Alme-
ja-se também poder oferecer uma explicação de forma unificante para um 
devir em que a emergência de entidades químicas e físicas, de espécies bio-
lógicas, de formações sociais e de processos econômicos, assim como o sur-
gimento de conceitos noéticos e práticas técnicas, científicas e artísticas, 
 
17 “A crença no progresso significa não uma crença no processo automático ou inevitável, mas 
no desenvolvimento gradativo das potencialidades humanas”, como bem nos lembra o histori-
ador Carr (1989), p. 100-101. 
28 
 
adquiram um sentido definido pela própria dinâmica da evolução, sem ape-
lar para um deus ex machina. A emergência ou criação do novo (poiesis) ex-
pressa em decorrência uma característica fundamental dessa evolução, 
contribuindo para seu condicionamento como processo coletivo. Como fina-
lidade maior colocamo-nos a busca dos princípios de uma filosofia natural 
que possam explicar o universo, a seremvalidados dentro de uma certa es-
cala, que é certamente mutável com o tempo. 
Retomando esta posição, entendemos que o ser subsiste com mais 
vitalidade se seguir o caminho eurítmico e escapar assim dos desvios que, 
negando a solução eurítmica, levam a resultados inferiores para a existência 
e, em casos extremos, à aniquilação do próprio ser. Enfatizamos mais uma 
vez que não se trata de impor um determinismo rígido, tal como o laplacia-
no, pois se preserva a liberdade, que pode até mesmo ser deletéria, ao mes-
mo tempo que parece haver uma preferência que se diria natural em busca 
dos melhores resultados, que não são decididos numa escala individual, mas 
decorrem de interações coletivas. 
Para conseguirmos essa finalidade será preciso ter em conta o forte 
e temível componente ideológico de sentido contrário à euritmia menciona-
do atrás. O pessimismo se manifesta de forma visível contemporaneamente 
em aspectos onipresentes, como no movimento ambientalista radical, que 
por sua vez remete de volta à falácia da teoria malthusiana, reforçada na 
segunda metade do século XIX pela termodinâmica, quando esta postulou a 
entropia crescente do universo. Isto nos levará a considerações sobre uma 
termodinâmica peculiar para a vida em que, ao contrário da entropia a “ne-
guentropia” é que se associa às coletividades. 
As teorias que foram centralizadas no comportamento individual de 
entes, como as “partículas” fundamentais na física, os seres vivos na biologia, 
os consumidores na economia etc., não respondem à complexa interação 
não-linear dos indivíduos, que apenas para fins de simplificação podem ser 
considerados isoladamente, mas em realidade formam sempre um conjunto 
em que a cooperação reforça a vantagem de comportamentos coletivos. É 
certo que a antiga conceituação de “história natural” estava mais perto de 
uma visão unitária da natureza e de um desenvolvimento histórico do todo 
acima das partes. Acreditamos que a euritmia permite um retorno a esta 
visão, aplicando-a à evolução, em suas vertentes de ciências naturais como a 
cosmologia, física, química, geologia ou biologia, ao mesmo tempo que per-
mite uma reabertura de questões fundamentais nas ciências humanas. 
 
 
 
29 
 
1.2 Antecedentes de ideias evolutivas da história natural 
Algumas ideias de evolução nos pensadores gregos antigos 
 
Iniciaremos com um panorama rápido e não especializado do co-
nhecimento atingido na antiga Grécia, restrito àquilo que possa ter maior 
relevância para a discussão que empreenderemos sobre a evolução e a cau-
salidade. 
Notamos que antes da filosofia se estabelecer como forma de pes-
quisa os mitos procuraram dar uma resposta racional a uma questão fun-
damental: por que existe algo de preferência ao nada? A resposta mitológica 
pressupõe um tipo de causalidade, ainda que operando de forma fantástica. 
Assim, na mitologia grega o Caos, segundo Hesíodo (por volta do sé-
culo VIII a.C.), não era o equivalente ao aleatório, pois representava o espaço 
que estava no começo de todo universo. Surgiram nesse espaço então Gaia, a 
Terra, que deu um sentido ao Caos, limitando-o, e a Noite. Gaia por sua vez 
criou Urano, o céu estrelado, e a Noite criou o Éter, a luz das alturas, e o Dia, 
que se alterna com sua mãe Noite. No Caos existia também Eros, o amor 
universal. Gaia, a Noite e Eros surgiram por ação espontânea, mas a partir de 
Eros, as demais divindades surgiram pela fecundação, isto é, exercendo uma 
ação intencional e causal.18 
No Caos estavam, portanto, latentes todos os elementos da natureza, 
embora desorganizados, apenas quando se organizaram surgiu o cosmos 
que conhecemos. Para que essa ordem se manifestasse foi preciso atribuir 
ao Caos as oposições e os contrastes dos quais tudo se origina: os céus e a 
terra, o dia e a noite, frio e calor, o seco e o úmido, e finalmente o amor que 
opera em pares para a geração, e o par fundamental, constituído por espírito 
e a matéria. 
A História começou a existir e se desenrolar a partir do nascimento 
do filho dos Céus com a Terra, Cronos, o tempo, ensejando um processo de 
oposição entre ordem e desordem, como narrado nos conflitos entre os titãs 
e os deuses olímpicos, e entre estes e o homem, raça que é resultado final 
desse processo, um ser criador de uma nova ordem, possível a partir da 
conquista da técnica (o fogo) e do conhecimento (a ciência). Ao final de cada 
era que foi se sucedendo, prevalece uma nova ordem ante a desordem, e a 
vida representa a vitória constante da ordem, em meio aos cataclismos na-
turais e, mais tarde, à luta entre os próprios humanos. 
A filosofia sucede a essa indagação causal primitiva apelando para 
um conhecimento mais realista. O interesse ainda atual pelos filósofos gre-
 
18 Hesíodo (1981). 
30 
 
gos antigos, inclusive os pré-socráticos, deriva de como foram por eles colo-
cadas questões que justificadamente continuaram a ser elaboradas até nos-
sos dias. Evidentemente a sua ciência pode parecer parca em comparação 
com o desenvolvimento posterior, suas limitações derivavam tanto do está-
gio incipiente do conhecimento sobre a natureza quanto de injunções de 
ordem religiosa, cultural ou social do seu meio. No entanto, suas intuições 
eram bastante acuradas para conseguirem identificar relações entre fenô-
menos naturais, bem como entre o homem e o restante da natureza. 
Em termos de ideias sobre a evolução do universo, é oportuno re-
lembrar o pensamento de alguns desses filósofos, destacando Empédocles, 
Epicuro e Lucrécio. 
Empédocles (492-432 a.C.) nasceu em Agrigento, colônia grega na 
Sicília, onde foi médico e político. Dele interessa-nos sua obra Da Natureza, 
da qual nos chegaram alguns fragmentos e que revela a influência de Par-
mênides (aproximadamente 530-460 A.C.) e dos filósofos pitagóricos.19 Nela 
Empédocles introduziu uma explicação física e causal, a conhecida teoria da 
constituição do mundo por quatro “elementos” básicos imutáveis (terra, ar, 
fogo, água) que misturados produzem a pluralidade de coisas. Os movimen-
tos que levam às combinações dos elementos seriam produzidos por duas 
forças sempre presentes: o amor, responsável pela atração, e a discórdia, 
que ocasiona repulsão. 
De acordo com essa teoria, os seres sujeitos a essas combinações se 
transformam em seu devir, num ciclo cósmico sem fim que resulta na oscila-
ção permanente entre criação e destruição. Tal ciclo por sua vez produz uma 
evolução das criaturas, num percurso que percorre quatro estágios: inicial-
mente os elementos estão completamente misturados numa esfera homogê-
nea; depois, uma transição vai separando cada vez mais os elementos por 
ação da discórdia; surge então uma separação total; e finalmente ocorre uma 
nova transição, em que o amor vai criando as coisas que existem. Nesse pon-
to há um retorno para a fase inicial do ciclo. 
Empédocles pensava que a humanidade estava vivendo provisoria-
mente nesta última fase do ciclo, em que novas formas não ocorrem mais 
diretamente a partir dos elementos fundamentais. Em seu sistema, a partir 
do estágio inicial e de forma absolutamente causal teriam surgido o céu e os 
astros, o ar e a luz, o mar e a terra. Através da reprodução tiveram origem as 
plantas, sendo que nos homens e animais superiores o amor age através da 
geração sexual, e a derivação de descendentes se deve às contribuições de 
ambos os pais. 
 
19 Empédocles (1973), p. 219-254; Reale (1993), p. 133-142; Chauí (2002), p. 107-113; Kirk e 
Raven (1979), p. 331-374. 
31 
 
Na sua teoria da percepção, Empédocles acreditava que é preciso 
usar com cuidado os sentidos e que todas as coisas têm algum grau de “pen-
samento”, possibilitando uma relação entre o homem e elas. Creditado como 
sendo um defensor da utilidade da experiência empírica, Empédocles se 
interessou como médico em estudar a respiração e argumentou que o ar não 
é um espaço vazio,mas uma substância, embora seja invisível. 
Já Epicuro de Samos (341-270 a.C.), que lecionou filosofia no “Jar-
dim”, escola por ele fundada em Atenas, vivenciou a grave crise moral e exis-
tencial da sociedade ateniense da metade do século IV a.C., depois da morte 
de Alexandre Magno e da repartição de seu espólio territorial. As repúblicas 
gregas e o ideal de Estado haviam desaparecido e, nesse contexto, a ética 
epicurista levava a um certo conformismo com a situação social e econômi-
ca, preconizando que a melhor alternativa existencial que sobrava neste 
caso seria apenas o desfrute dos prazeres da mesa e o culto do intelecto. 
Epicuro foi influenciado pelas teorias dos “atomistas”.20 Ao invocar o 
conceito de princípios invisíveis e eternos constituintes da natureza, assimi-
láveis aos átomos dos pensadores gregos Leucipo e Demócrito (ambos de 
Abdera, viveram no século V a.C.), Epicuro diz que os referidos entes atômi-
cos têm uma tendência a se afastar minimamente de suas trajetórias isola-
das, fazendo com que se choquem, posteriormente se agrupando (formando 
uma espécie de “pacto”) ou se dissolvendo. O efeito é chamado de clinamen, 
que designa um desvio ou inclinação de suas trajetórias. Esse desvio seria a 
causa de turbulências que mudam o destino prefixado e assim possibilitam a 
formação de coisas novas; com isto se evitaria a repetitividade e a mesmice, 
de forma que o universo pode-se renovar contínua e eternamente. O clina-
men introduziria assim um elemento de livre-arbítrio na natureza, possibili-
tando o escape do determinismo, mas ao mesmo tempo sem ser expressão 
de um simples acaso, pois sua ação se desenrola de forma causal, ainda que 
os resultados possam resultar em um impasse ou mesmo em um desenvol-
vimento abortado. 
É preciso, portanto, sublinhar que em Epicuro o desvio do clinamen 
não é uma expressão do acaso, mas sim uma condição resultante de peque-
nas irregularidades ou desequilíbrios que, se por um lado afastam o movi-
mento dos elementos da natureza de um determinismo absoluto (e onde, 
consequentemente, nada existiria, pois não seria possível mudar a pré-
disposição dos elementos), por outro lado não é uma entrega ao cego acaso, 
onde tampouco nada aconteceria. 
 
20 Epicuro (1973), p. 21-28. 
32 
 
A liberdade no sistema de vida epicurista é individual, mas sua pro-
posta de entendimento da natureza tem um grão de liberdade como produto 
de um fenômeno social: dos desvios de trajetória surgem as turbulências 
construtivas que abrangem coletividades de “átomos”. Desse modo haveria 
um processo lento do qual decorre a formação de espécies biológicas e, no 
caso humano, da própria civilização. A distinção entre liberdades coletivas e 
as liberdades individuais faz parte da dissertação doutoral de Karl Marx 
sobre Demócrito e Epicuro, apresentada na Universidade de Jena em 1841, 
mas onde não se aprofunda o exame das diferentes filosofias atômicas en-
quanto ideias sobre a filosofia natural.21 
Já a obra do poeta e membro da aristocracia romana Tito Lucrécio 
Caro (99-55 a.C.), Da natureza das coisas, surgida em 52 a.C., também reflete 
os ensinamentos de Epicuro, em quem se inspirou. Nela se descreve como os 
elementos chamados de “átomos” estão em movimento e porque se combi-
naram criando tudo o que há. A Terra é comparada por Lucrécio a uma fê-
mea grávida de todos os tipos de organismos, tanto os sadios quanto os 
monstruosos - estes, igualmente como em Empédocles, são os que não tive-
ram continuidade no processo de aperfeiçoamento cósmico.22 
Taxativamente, Lucrécio expõe que a natureza se comporta obriga-
toriamente de modo causal, invalidando as explicações miraculosas ad hoc, a 
intervenção de deuses e as ilusões da ignorância e da religião então vigentes, 
tais como a imortalidade da alma e o temor da morte. Para Lucrécio, o obje-
tivo na vida humana deveria ser o de se evitar a dor e aumentar o prazer, 
como na visão epicurista, mas praticando uma ética do amor. O encanto mais 
profundo da vida surgiria com o amor do saber, pela vontade de conhecer 
como são feitas e como funcionam as coisas do mundo. 
Para o filósofo francês Michel Serres, o projeto da física de Lucrécio 
tinha se relizado na prática com os trabalhos desenvolvidos por Arquimedes 
de Siracusa (287-211 a.C.).23 No século XV houve o resgate e a redescoberta 
do poema de Lucrécio feito no âmbito do humanismo renascentista, de onde 
sua divulgação pela impressão de livros viria a influenciar decisivamente o 
desenvolvimento da ciência da época.24 
 
 
 
 
 
21 Marx (s/d). 
22 Lucrécio (1974), p. 29-143; Chauí (2010), p.252-287. 
23 Serres (2003), p. 11-18. 
24 Greenblatt (2012). 
33 
 
O uno e o múltiplo 
 
Autor de famosos diálogos, Platão (428-348 a.C.) construiu um sis-
tema de pensamento grandioso, que tem balizado toda a história da filosofia 
ocidental. No dizer do filósofo e matemático Alfred North Whitehead (1861-
1947), “a caracterização mais segura da tradição filosófica europeia é que 
ela consiste numa série de notas de rodapé a Platão”.25 
Focalizaremos muito brevemente apenas alguns de seus diálogos, 
aqueles que contêm temas que parecem mais fundamentais para as teorias 
da evolução. O diálogo Timeu é dedicado a uma cosmologia em que se admi-
te que o mundo é sujeito a leis e planos arquitetados por um demiurgo.26 
Embora a essência perfeita das coisas seja imutável (e inalcançável), o mun-
do tal como o vivenciamos está em constante metamorfose, os seres vivem 
em movimentação, e poder-se-ia considerar que este é um mundo evolutivo, 
ou variável, em que o ideal é chegar perto da perfeição, por meio de alguma 
aproximação que desenvolva a apreciação do belo e do bom usando-se a 
filosofia. 
Já no Parmênides, Platão trata do problema de como podem existir 
multiplicidades de coisas a partir de uma mesma ideia (a do “uno”).27 O uno 
seria equivalente ao todo, do qual conhecemos, no entanto, apenas suas ma-
nifestações singulares, ou partes individuais. Essa multiplicidade se eviden-
cia na forma de diferenças, ou seja, na divisão do todo em individualidades. 
Pelo mesmo processo, a totalidade do espaço e do tempo parecem aos nos-
sos sentidos como partes, o que estaria implícito na noção matemática de 
números que desenvolvemos. 
Aristóteles (394-322 a.C.), que tem dificuldade em admitir a existên-
cia do infinito real, tropeça na discussão entre o todo e suas partes, embora 
concedendo que o todo possa ser maior do que suas partes.28 Com a teoria 
dos conjuntos e, em especial com a elaboração dos números transfinitos 
pelo matemático e filósofo Georg Cantor no século XIX, reapareceu na teoria 
dos números o problema do todo e de e sua relação com as partes, voltando-
se à noção de que o todo é maior do que a soma das partes, e a distinção 
aristotélica entre infinito potencial e infinito real ganha novos contornos. O 
todo é uma soma, necessariamente maior do que qualquer conjunto múlti-
plo que dele derive e que possamos conhecer.29 
 
25 Whitehead (1979), p. 39. 
26 Platão (1981). 
27 Platão (1974). 
28 Aristóteles (1933-35), Livro 8, 1043a e seguintes. 
29 Gildo Magalhães, “On a possible contribution of transfinite mathematics towards eurhyth-
my”, in Croca, Alves e Gatta (2014), p. 85-102. 
34 
 
O todo na concepção platônica seria na verdade ainda mais comple-
xo, já que os homens não conseguem experimentar sensorialmente o todo, 
mas apenas as suas partes. O único acesso ao todo seria olhar através da 
janela da mente para o que Platão chama de mundo das ideias. A verdade 
total é igualmente inacessível, mas os homens por meio do reflexo do mundo 
das ideias em nosso próprio mundo poderiam se aproximar da verdade, e a 
busca dessa verdade é um ato de amor ao conhecimento. Não é aquele amor 
que é a expressão do meramente erótico, mas o amor que se manifestano 
plano do ágape, na comunhão entre o que é terreno e o ideal, como detalha-
do por Platão em seu diálogo O Banquete.30 
Embora o idealismo platônico tenha sofrido e ainda seja objeto de 
pesados ataques contemporaneamente, não há dúvida de que esses elemen-
tos de sua filosofia terão importância fundamental para uma teoria coeren-
temente causal da evolução. A ideia sobre o todo e as partes se revelaria de 
enorme influência. O neoplatonismo, através do filósofo helênico Plotino 
(204-270 d.C.), assimilou essa discussão entre o uno e o múltiplo, enfatizan-
do e detalhando uma ética humana em que o desejo de procurar o bem seria 
uma aproximação com o uno.31 É também importante observar que Plotino 
ressalta que estão muito distantes da ideia do uno aqueles que acreditam 
que as coisas são conduzidas pelo acaso. 
Ecos dessa visão de Plotino se encontram em alguns renomados lei-
tores seus na tradição cristã (como Ambrósio, Agostinho, Boécio, Tomás de 
Aquino e outros), no pensamento medieval literário (Dante Alighieri) ou 
matemático (Nicolau de Cusa), na filosofia judaica (Mestre Eckhard) ou is-
lâmico (Avicena), bem como no humanismo renascentista (Marsílio Ficino, 
Pico della Mirandola). Na época moderna, podem-se citar outras influências 
platônicas notáveis dentro dessa linha em filósofos como Giordano Bruno, 
Baruch Espinosa, Gottfried Leibniz, e mais contemporaneamente em Frie-
drich Schelling (no diálogo Bruno) ou Henri Bergson, dentre outros. 
 
O pensamento oriental monoteísta e as transformações 
 
Uma investigação da ordem causal do mundo naturalmente pressu-
põe que exista essa ordem e que seja possível, senão o seu encontro, pelo 
menos a sua procura. Se o mundo for aleatório, ou mesmo se exibir uma 
alternância não previsível entre caos e ordem, no máximo se poderia conjec-
turar a existência de alguma tendência, não determinista nos detalhes, mas 
inexorável dado um tempo e uma amplidão adequados para a revelação da 
 
30 Platão (1972). 
31 Plotino (2000). 
35 
 
tendência. Esses pressupostos apareceram no pensamento oriental sobre a 
natureza, dentro de algumas das mais conhecidas visões filosófico-
religiosas.32 Que essas ideias tenham sido formuladas em diferentes lugares, 
e num grau de relativa simultaneidade em torno do século VI a.C., na mesma 
época em que o pensamento filosófico grego se intensificava e libertava de 
uma tradição fortemente panteísta e mítica, pode ser uma indicação de co-
municações e influências recíprocas, apesar das distâncias envolvidas. Lem-
bre-se, no entanto, que desde o século VIII a.C. a “Rota da Seda” interligava 
vastas áreas em que vicejaram algumas das mais impactantes concepções 
religiosas monoteístas, incluindo a Pérsia, China, Índia, Israel, Egito e parte 
da África, a Grécia e o sul da Europa, viabilizando uma intensa troca de mer-
cadorias e, possivelmente, de ideias também. 
Os povos chineses e gregos, como outros, enfrentaram mais ou me-
nos na mesma época o problema de minimamente estabilizar suas socieda-
des em meio a tumultos e guerras contínuas. A ação humana em relação aos 
diversos grupos sociais que se constituem em comunidade apresenta então 
e desde sempre um desafio que se pode considerar de certa forma como 
paralelo ao da compreensão da natureza. Trata-se das barreiras para enten-
der e dirigir esforços para superar problemas individuais (as partes) e lutar 
pelo bem-estar coletivo (o todo). 
No final do período Zhou, antes da unificação da China, os “Estados 
Combatentes” (século V-III a.C.) se digladiavam continuamente, criando um 
clima de grande instabilidade social e individual. O pensador chinês Confú-
cio (551-479 a.C.) expressou de modo influente a ideia de ciclos aos quais o 
homem devia se adaptar, para que a ordem moral e social refletisse a ordem 
cósmica. Em seu sistema filosófico-político, é enfatizado que o homem vive 
em coletividade, precisando prover as necessidades sociais através de pla-
nejamento e administração adequados. Na história chinesa, o confucionismo 
esteve em geral associado ao conhecimento na astronomia e, mais geralmen-
te, ao maior desenvolvimento científico e tecnológico, bem como ao cresci-
mento econômico. 
Por outro lado, e ainda na China, Lao Tsé (604-531 a.C.), o principal 
proponente do taoísmo, concebeu a ordem do mundo como um fator miste-
rioso que não pode ser apreendido, cabendo apenas sua contemplação pas-
siva, através das oposições que se manifestam ao ser humano. Seus 
ensinamentos se voltam para o indivíduo e recomendam sua indiferença ao 
mundo, enfatizando os momentos de revelação em meio a transes e ao po-
der mágico dos xamãs.33 Há em sua doutrina, ao contrário do confucionismo, 
 
32 Jaki (1974), p. 25-48; Smith (1965). 
33 Vide Eliade (2011), vol. II, p. 15-48. 
36 
 
uma desconfiança em relação ao conhecimento e à habilidade técnica arte-
sanal. Em tal sistema a causalidade pode ser negligenciada em favor da acei-
tação de um universo oscilando continua e eternamente entre aspectos 
contrastantes da realidade, entre o bem e o mal, representados pela oposi-
ção entre os princípios Yin e Yang. Houve, portanto, motivos ideológicos que 
opuseram o confucionismo ao taoísmo, com consequências históricas na 
economia política e na vida social chinesa.34 
É interessante que tenha surgido no século XX uma clara associação 
do taoísmo com a defesa do acaso na citada interpretação da física quântica 
pela Escola de Copenhague - e seu mentor Niels Bohr foi um adepto do tao-
ísmo, tendo escolhido exatamente os símbolos do Yin e Yang para confeccio-
nar seu escudo de armas. Por outro lado, já foram detectadas as raízes do 
irracionalismo de Bohr na filosofia existencialista dinamarquesa que o influ-
enciou, a partir de Søren Kierkegaard (1813-1855), mas principalmente 
transmitida diretamente por Harald Høffding (1843-1931).35 Houve tam-
bém uma aproximação da física quântica com o irracionalismo e até com o 
ocultismo através da colaboração do físico Wolfgang Pauli (1900-1958), 
também integrante do círculo de Copenhague, com o psiquiatra Carl Gustav 
Jung (1875-1961). 
Isto vem à baila, porque como já adiantamos, o principal aspecto que 
se opõe a uma visão causal tanto da microfísica quanto da evolução biológica 
é a aceitação de um universo sujeito à indeterminação arbitrária subjacente 
ao acaso. 
Apesar de um desenvolvimento considerável da ciência e técnica da 
civilização chinesa, pouco a pouco reveladas ao Ocidente por pesquisas co-
mo as de Joseph Needham, continua sendo intrigante que não tenha nela 
havido um progresso científico e tecnológico comparável ao que a Europa 
experimentou entre os séculos XV e XVIII. O uso pioneiro na China de inova-
ções como a bússola, imprensa e pólvora, não redundaram em universidades 
ou outras instituições capazes de fazer o conhecimento crescer em propor-
ção comparável. As raízes desse descompasso têm sido procuradas nas ba-
ses sociológicas e culturais da sociedade chinesa, certamente passando por 
suas instituições mais conservadoras como o mandarinato, que freavam o 
desenvolvimento de uma burguesia pujante. De toda forma, apesar de um 
 
34 Billington (1994), p. 76-97. 
35 Rui Moreira, “Ciência e irracionalidade”, em Chitas e Serrão (2004), p. 75-128; vide tam-
bém Moreira (2011). 
37 
 
relativamente maior engajamento científico do confucionismo, a civilização 
chinesa deu pouca atenção à busca de princípios e leis naturais.36 
Na Pérsia, Zaratustra ou Zoroastro (possivelmente também no sécu-
lo VI a.C.), transformou antigas tradições religiosas locais e deu origem ao 
sistema filosófico do zoroastrismo, ou masdeísmo. Nesta concepção, que é 
também religiosa, há um princípio monoteísta, em que convivem a criação 
(bem) e a destruição (mal). Este último é um princípio caótico, enquanto que 
o princípio criativo é imanenteà humanidade, apesar de que o homem tem a 
possibilidade de escolha entre ambos, graças ao seu livre arbítrio. Há uma 
convicção escatológica de que ao final de muito tempo a criação triunfará 
sobre a desordem, facilitando a assimilação de que a sabedoria deve se ali-
nhar com o pensamento criador da ciência.37 
Da Índia, a influência mais poderosa em termos filosófico-religiosos 
veio na mesma época, por meio da pregação de Sidarta Gautama (558-478 
a.C.), que mais tarde se tornou o “Buda” (o “desperto”) e que recomendava a 
ascese e a meditação como meios de se libertar do sofrimento. No budismo, 
a eliminação dos apetites que trazem o prazer permite chegar a um desejado 
estado de bem-aventurança, o “nirvana”. Apesar do alto grau de escapismo 
inerente a essa visão de mundo, pode-se destacar um aspecto ético impor-
tante desse sistema: o amor universal e a compaixão por todos os seres.38 
Apenas o exercício constante dessa virtude pode trazer a redenção final, sem 
o que o homem estará condenado a sempre renascer, para vir então nova-
mente a sofrer. Ou seja, dentro da crença budista, se uma alma não lograr 
atingir a ascese, após a morte haverá de sofrer uma nova reencarnação e um 
eterno retorno à experiência da dor. 
Dentro da tradição budista tem grande valor o chamado “caminho 
do meio”, para destacar que Sidarta, após uma vida de excessos de luxúria e 
consumo, resolveu viver o oposto e se tornou asceta. No entanto, nesta fase 
de extrema mortificação do corpo, Sidarta quase morreu de inanição, perce-
bendo que deveria procurar um equilíbrio entre os excessos. É interessante 
que, em mais um paralelismo temporal, os pitagóricos gregos também enfa-
tizavam um caminho do meio, ilustrado pela “proporção áurea”, uma relação 
conhecida em várias culturas e que expressa a continuidade entre o exterior 
e o interior, com múltiplas possibilidades metafóricas, que foram utilizadas 
 
36 Este é o enunciado do chamado “problema de Needham”, expresso em seus muitos escritos 
de história externalista da ciência sobre o assunto, como por exemplo em Needham (1981), p. 
107-131; e Needham (1973), p. 9-55. 
37 Eliade (2010), vol. I, p. 289-317. 
38 Eliade, op. cit. (2011), p. 89-102. 
38 
 
em diversas épocas nas artes visuais e em outras aplicações estéticas, bem 
como na filosofia e na observação da natureza.39 
A religião do povo israelita oferece um contraste marcante com di-
versas tradições filosófico-religiosas à sua volta no Oriente Próximo.40 Já no 
relato bíblico dos princípios do mundo o primordial não é o caos, mas a exis-
tência de uma divindade criadora, que procede na criação por etapas (“di-
as”). Há nessa ação divina a preocupação de uma otimização de resultados, 
pois uma etapa só permite a passagem para a seguinte se o resultado daque-
la etapa de criação for reconhecidamente “bom”. Pela tradição judaica, no 
mundo apenas o homem e a mulher foram feitos à imagem desse Deus cria-
dor, e o mundo é o local em que eles podem desenvolver as potencialidades 
que os distinguem do restante da criação animal. A natureza não poderia, 
consequentemente, ser um amontoado de processos caprichosos, mas forço-
samente é algo em que as partes se coordenam para formar um todo har-
monioso. Os céus, a terra, as águas, a luz, o sol, a lua e as estrelas são 
manifestações do amor daquele Deus para com suas criaturas-imagens.41 
Não há para os hebreus, portanto, uma natureza em que dominam 
forças caprichosas do caos, e a rigor não existe para eles nem um dualismo 
entre bem e mal, pois o mundo exibe indubitavelmente o princípio maior da 
ordem e finalidade, que é um bem. É notável a transformação por que pas-
sou a escrita dos livros que compõem a Bíblia ao longo dos tempos, desde o 
surgimento paulatino de uma aliança entre o criador e suas criaturas. A lei-
tura do Velho Testamento pode ser feita de modo que é possível interpretar 
como essa aliança vai sendo reforçada e renovada pelo homem, o que impõe 
uma ordem ao próprio criador. Isto fica patente na promessa que o homem 
arranca de Deus, de que não haveria mais punições catastróficas, como foi o 
exemplo terrível do dilúvio universal. O pacto selado pelo criador com suas 
criaturas nessa ocasião ficou simbolizado na forma do arco-íris. 
Toda a literatura dos profetas bíblicos pode então ser lida como a da 
progressiva humanização da divindade, e ao mesmo tempo da conquista da 
liberdade responsável, sem determinismo, como uma recompensa previsível 
desde que o homem se proponha a fazer sua parte no contrato da “aliança”, 
que é justamente o de ser justo e se dirigir para o bem, abominando as de-
mais religiões, posto que estas não obedeceriam esses princípios.42 
 
39 Doczi (1990). 
40 Jaki, op. cit. (1974), p. 138-160. 
41 Esta é a descrição poética da Bíblia feita no Salmo 136. Vide também Irwin (1986), p. 38-
41. 
42 Fromm (1967). 
39 
 
Em complementação à ordem divina, no judaísmo o próprio mundo 
foi dotado de causalidade e propósito. A regularidade do curso das estrelas 
ou das marés do mar resulta do “amor divino”, ressaltando o paralelo entre 
a ideia de um Deus que é movido pela razão e as propriedades da natureza. 
O homem é passível de aperfeiçoamento e a perspectiva hebraica em geral é 
a da esperança e do otimismo. O sofrimento e a infelicidade são contingên-
cias que servem para colocar à prova a disposição humana de absorver esses 
golpes e reforçar sua fé em tempos melhores. A evolução da humanidade se 
dará com a passagem do tempo, pois o povo hebreu bíblico assumiu uma 
escatologia que aponta para um futuro onde se dará a bem-aventurança 
completa, ao mesmo tempo em que há uma perspectiva de ocupação do pla-
neta pelas gerações e pela descendência numerosa dos que forem “justos”. 
A tradição hebraica, como de resto as demais culturas orientais 
mencionadas, não faz nenhuma menção específica à evolução no sentido 
biológico, exceto por uma vaga adesão à ideia de herança de caracteres ad-
quiridos. Esta noção pode ser ilustrada pela conhecida história bíblica da 
esperteza do pastor Jacó para com seu futuro sogro Labão para ficar com as 
mais fortes ovelhas e cabras geradas dentro do rebanho entregue à guarda 
de Jacó, que explora para seu proveito as propriedades da reprodução.43 
Nesse aspecto, tanto o Velho Testamento quanto o já referido poema 
Da natureza, de Lucrécio, apresentam ideias contraditórias pois, de um lado, 
assumem que houve alterações nos organismos no passado, e de outro, pos-
tulam uma fixidez das espécies dos seres vivos. A dificuldade poderia estar 
associada à falta na Antiguidade de um conceito de unidade fundamental da 
vida, representada pela noção de “célula”.44 A teoria celular só conseguiu se 
desenvolver a partir da invenção do microscópio no século XVII, até atingir 
maior aprimoramento teórico, geralmente associado com os alemães Mathi-
as Schleiden (1804-1881) e Theodor Schwann (1810-1882), entre diversos 
outros, ao final da década de 1830.45 Em contraste, para a natureza não viva 
já os gregos antigos chegaram a formular um conceito primitivo de unidades 
fundamentais, os átomos, como recapitulamos mais atrás. 
O encontro da tradição monoteísta judaica com a cultura grega se 
deu através da ação proselitista do apóstolo cristão Paulo de Tarso (5-67 
d.C.) e das repercussões das discussões teológico-filosóficas no mundo hele-
nístico concentrado em Alexandria, já no âmbito da formação judaico-cristã. 
Esse amálgama foi possível graças a aproximações da interpretação do cris-
 
43 Papavero et al. (2000). 
44 Cf. Barbieri (1987), p. 16-19. 
45 A controvérsia sobre os iniciadores da teoria celular inclui se Schleiden e Schwann apoiari-
am o conceito de núcleo celular como veio a ser conhecido. Vide Sapp (2003), p. 75-81 
40 
 
tianismo com características do idealismo platônico, bastante influente

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