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A SOCIEDADE FEUDAL, Marc Bloch 7. O FIM DO MUNDO ANTIGO E O PRINCÍPIO DA IDADE MÉDIA, Ferdinand Lot 8. O ANO MIL,Georges Duby 9. ZAPATA E A REVOLUÇÃO MEXICANA, John Womarck Jr. 10. HISTÓRIA DO CRISTIANISMO, Ambrogio Donini 11. A IGREJA EAEXPANSÃO IBÉRICA, C. R. Boxer 12. HISTÓRIA ECONÓMICA DO OCIDENTE MEDIEVAL, Guy Fouquin 13. GUIA DE HISTÓRIA UNIVERSAL, Jacques Herman 15. INTRODUÇÃO À ARQUEOLOGIA, Carl-Axel Moberg 16. A DECADÊNCIA DO IMPÉRIO DA PIMENTA, A. R. Disney 17. O FEUDALISMO, UM HORIZONTE TEÓRICO, Alain Guerreau 18. A ÍNDIA PORTUGUESA EM MEADOS DO SÉC. XVII, C. R. Boxer 19. REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA, Jacques Le Goff 20. COMO SE ESCREVE A HISTÓRIA, Paul Veyne 21. HISTÓRIA ECONÓMICA DA EUROPA PRÉ-INDUSTRIAL, Carlo Cipolla 22. MONTAILLOU, CÁTAROS E CATÓLICOS NUM A ALDEIA FRANCES A( 1294-1324), E. Le Roy Ladurie 23. OS GREGOS ANTIGOS, M. I. Finley 24. O MARAVILHOSO E O QUOTIDIANO NO OCIDENTE MEDIEVAL, Jacques Le Goff 25. INSTITUIÇÕES GREGAS, Claude Mossé 26. A REFORMA NA IDADE MÉDIA , Brenda Bolton 27. ECONOMIA E SOCIEDADE NA GRÉCIA ANTIGA, Michel Austin e Pierre Vidal Naquet 28. O TEATRO ANTIGO, Pierre Grimai 29. A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL NA EUROPA DO SÉCULO XIX, Tom Kemp 30. O MUNDO HELENÍSTICO, Pierre Lévêque 31. ACREDITARAM OS GREGOS NOS SEUS MITOS?, Paul Veyne 32. ECONOMIA RURAL E VIDA NO CAMPO NO OCIDENTE MEDIEVAL, (Vol. I), Geoges Duby 33. OUTONO DA IDADE MÉDIA, OU PRIMAVERA DOS NOVOS TEMPOS?, Phillippe Wolff 34. A CIVILIZAÇÃO ROMANA, Pierre Grimai 35. ECONOMIA RURAL E VIDA NO CAMPO NO OCIDENTE MEDIEVAL (Vol. II), Geoges Duby 36. PENSAR A REVOLUÇÃO FRANCESA, François Furet 37. A GRÉCIA ARCAICA DE HOMERO A ÉSQUILO (Séculos VIII-VI a. c.), Claude Mossé 38. ENSAIOS DE EGO-HISTÓRIA,Pierre Nora, Maurice Agulhon, Pierre Chaunu, Georges Duby, Raoul Girardet, Jacques Le Goff, Michelle Perrot, René Rémond 39. ASPECTOS DA ANTIGUIDADE, Moses I. Finley 40. A CRISTANDADE NO OCIDENTE 1400-1700, John Bossy 41. AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES - 1 OS IMPÉRIOS DO BRONZE, Pierre Lévêque 42. AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES - IIA MESOPOTÂNIA/ OS HITITAS, Pierre Lévêque 43. AS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES - III OS INDO-EUROPEUS E OS SEMITAS, Pierre Lévêque 44. O FRUTO PROIBIDO, Marcel Bemos, Charles de la Roncière, Jean Guyon, Philipe Lécrivain 45. AS MÁQUINAS DO TEMPO, Carlo M. Cipolla 46. HISTÓRIA DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL 1914-1918, Marc Ferro 47. A GRÉCIA ANTIGA, José Ribeiro Ferreira 48. A SOCIEDADE ROMANA, Paul Veyne 49. O TEMPO DAS REFORMAS (1250-1550) - Vol. I, Pierre Chaunu 50. O TEMPO DAS REFORMAS (1250-1550) - Vol. II, Pierre Chaunu 51. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA HISTÓRIA ECONÓMICA, Cario M. Cipolla 52. POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO, M. 1. Finley 53. O SÉCULO DE AUGUSTO, Pierre Grimai 54. O CIDADÃO NA GRÉCIA ANTIGA, Claude Mossé 55. O IMPÉRIO ROMANO, Pierre Grimai 56. A TRAGÉDIA GREGA, Jacqueline de Romilly 57. HISTÓRIA E MEMÓRIA-Vol. I, Jacques Le Goff 58. HISTÓRIAEMEMÓRIA-Vol.Il,JacquesLeGoff 59. HOMERO, Jacqueline de Romilly 60. A IGREJA NO OCIDENTE, Mireille Baumgartner 61. AS CIDADES ROMANAS, Pierre Grimai 62. A CIVILIZAÇÃO GREGA, François Chamoux 63. A CIVILIZAÇÃO DO RENASCIMENTO, Jean Delumeau 64. A GRÉCIA ANTIGA, José Ribeiro Ferreira A GRÉCIA ANTIGA r v ^ 1 / V ^ José Ribeiro Ferreira e Edições 70, 2004 Capa de José Manuel Reis Depósito Legal n.° 216465/04 ISBN; 972-44-1219-9 ISBN da 1“ edição: 972-44-0869-8 Era 0 número 47 da mesma colecção Paginação, impressão e acabamento: CASAGRAF para EDIÇÕES 70, LDA. em Setembro de 2004 EDIÇÕES 70, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2.° Esq.° - 1069-157 LISBOA / Portugal Telef.: 213 190 240 Fax: 213 190 249 E-mail: edi.70@mail.telepac.pt www.edicoes70.pt Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à Lei dos Direitos do Autor será passível de procedimento judicial. mailto:edi.70@mail.telepac.pt http://www.edicoes70.pt José Ribeiro Ferreira A GRECIA ANTIGA SOCIEDADE E POLÍTICA 4 : : ■X\ .VP â h U )) \ Y .edições 70 PREFACIO Endereçou-me o Museu Calouste Gulbenkian o convite para participar num ciclo de lições sobre A Grécia Antiga. Em torno da pólis: socie dade e moeda. De colaboração com o Dr. Mário de Castro Hipólito, com uma periodicidade semanal, as lições prolongaram-se de Outubro de 1991 a Janeiro de 1992: «A pólis grega: sistema de vida e mestra do homem» (24. 10. 1991); «A época arcaica: crises de crescimento» (31. 10. 1991); «A questão da origem da moeda: dados e problemas» (7. 11. 1991); «Amoeda na época arcaica: características gerais» (14.11.1991); «A democracia grega: a procura da igualdade» (21.10.1991); «A Simaquia de Delos e a hegemonia ateniense» (28.11.1991); «As moedas do século V: 0 triunfo do classicismo» (5. 12.1992); «Atenas durante a Guerra do Peloponeso» (12. 12. 1991); «A guerra e a paz na pólis grega» (19. 12. 1991); «As moedas dos finais da época clássica: tradição e inovação» (9.1.1992) ; «O período helenístico: uma época de refinamento, fusão e difusão cultural» (16. 1. 1992); «As moedas da época helenística» (23. 1.1992); «A influência da Grécia na Revolução Francesa: alguns aspectos» (30.1.1992) . Por amável anuência e colaboração da Fundação Calouste Gulbenkian, este ciclo foi depois repetido, em parte, no Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, de 9 de Março a 18 de Maio. Possui o Museu dessa instituição, como é sabido, uma numerosa e rica colecção de moedas gregas, de cujo catálogo saíra dois anos antes o II volume A Catalogue o f the Calouste Gulbenkian Collection o f Greek Coins (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989), distinguido com um prémio anual da Associação Internacional dosNumismatas Profissionais para o ano de 1990 - prémio que foi entregue no decurso dos trabalhos do XI Congresso Internacional de Numismática, reunido em Bruxelas, em Setembro de 1991. Pretendeu por isso o Museu realçar o facto e chamar ao mesmo tempo a atenção para o seu rico espólio numismático. Felicito-o pela iniciativa e agradeço o honroso convite para nela participar. A Grécia Antiga. Sociedade e Política tem por base as lições que então proferi, com excepção da última «A influência da Grécia na Revo- A GRÉCIA ANTIGA lução Francesa: alguns aspectos». Cada uma delas - com alterações ligeiras ou substanciais - passou a formar um capítulo do presente vo lume. Alguns deles já se encontram de momento publicados - caso de «A hegemonia de Atenas» {Conimbriga 28,1989, pp. 33-51), «O fascínio do poder: o paradigma de Atenas durante a guerra do Peloponeso» {Biblos 65,1989, pp. 267-292) e «A guerra e a paz na pólis grega» {Máthesis 1, 1992, pp. 69-87) - e outros aproveitam dados ou partes de trabalhos já editados. «A pólis grega: um sistema de vida e mestra do homem» retoma dados de Hélade e Helenos. 1 - Génese e evolução de um conceito (Coimbra, 1983); «A' época arcaica:crises de crescimento» aproveita parte de Da Atenas do século VII a. C. às reformas de Sólon (Coimbra, 1988), «A democracia ateniense: a busca da igualdade» baseia-se em «As reformas de Clístenes» {Biblos 63,1987, pp. \19-\99),Participação e poder na democracia grega (Coimbra, 1990), A Democracia na Grécia Antiga (Minerva, Coimbra, 1990). Nos tennos técnicos gregos optei pelo seguinte critério: os que se encontram já registados nos dicionários - como demo (de dêmos), no sentido de “circunscrição autárquica” de Atenas, heteria (de hetairia), “espécie de sociedade política secreta”,/»r/towe - usei-os em caracteres normais, sem qualquer distinção. Os restantes, transcrevi-os em itálico: caso de dêmos, no sentido de “povo”, Ecclesia (Assembleia), phyle (tribo), genos (estirpe), nomos (lei), entre outros. Daí o diferente trata mento que foi dado ao tenuo grego Sqpos, Para designar a magistratura mais importante da Atenas do século V a. C., usei a fonna estratégia, com a acentuação grega, por o tenuo estratégia designar hoje uma realidade bem distinta. A génese do livro - fruto da reunião de um conjunto de palestras - explica algumas das suas características, em especial a retoma em cada capítulo de assuntos e elementos já focados nos anteriores. Além do agradecimento à Fundação Calouste Gulbenkian que teve papel de relevo na gênese deste trabalho e às Edições 70 que o acolheram na sua colecção “Lugar da História”, desejo expressar a minha gratidão aos amigos que, por diversas vias, me ajudaram na construção do livro. De modo especial, à Professora Doutora M. H. Rocha Pereira agradeço as sugestões e observações que me ajudaram a aclarar questões e factos; ao Dr. Mário de Castro Hipólito, a colaboração prestada, as sugestões e sobretudo a nota sobre a origem da moeda, que vai em apêndice ao capítulo II. Coimbra, 14 de Setembro de 1992 10 PREFACIO à 2." Edição Esta segunda edição de A Grécia Antiga. Sociedade e Política mantém o fundamental da primeira. Apenas houve actualização relativa mente aos dados de novas descobertas arqueológicas ou às doutrinas entretanto surgidas, em relação à pólis e à democracia ateniense. O texto foi aclarado em um ou outro passo e teve-se em conta vária da abundante bibliografia que saiu desde 1992 até 2004. Procedeu-se também à correcção das gralhas e lapsos detectados na edição anterior. Coimbra, Julho de 2004 11 A POLIS GREGA Sistema de Vida e Mestra do Homem A Grécia antiga estava dividida num número considerável de pequenos Estados independentes, alguns de reduzido espaço territorial e de escasso volume populacional. Se Esparta e Atenas constituíam excepções - a primeira, caso único e especial, com cerca de 8400 km^ depois da conquista da Messénia, e a segunda a rondar os 2650 km^ - , todos os outros Estados não atingiam o milhar de quilômetros quadrados e alguns nem sequer a centena. Destaco Delos - constituído pelas ilhas de Delos e de Reneia - que rondava os vinte e dois quilômetros quadrados (‘). Quanto à população, apesar de serem falíveis e oscilantes as cifras e estatísticas para essa época, o seu número era sempre relativamente reduzido. A esse Estado autônomo e autárcico davam os Helenos o nome de pôlis, que de modo geral aparece traduzido nas várias línguas ora por “cidade-estado”, ora por “cidade” apenas 0 . Nenhuma destas desig nações corresponde, no entanto, exactamente ao sentido do tenno grego e, tanto uma como outra, pode gerar, além disso, confusão. A pôlis não se refere apenas ao Estado e, quase sempre uma povoação de reduzidas dimensões, de modo algum entra no nosso conceito moderno de cidade como grande aglomerado urbano. Como veremos, a pôlis não se reduz à urbe apenas, mas implica algo mais amplo que, num todo homogêneo. (') Alguns exemplos elucidativos quanto à reduzida extensão da maioria dos Estados gregos (os números dados indicam quilômetros quadrados); a Beócia, com 2 580, comportava dez pólels e mais tarde vinte; a Fócida, com uma superfície de 1 575, tinha 22 cidades, cada uma a rondar os cerca de 70; Corinto, uma grande pôlis, com cerca de 880; Sícion com 360; Fliunte com cerca de 175; Egina com 85; Meios com 152; a Eubeia possuía oito cidades, o que dava uma média de 460 para cada uma; em Lesbos, uma ilha com 1750, havia 6 pôleis; Ceos, com 24 km de comprimento e 13 de largura, esteve dividida em três pôleis independentes, durante grande parte da sua história. Vide V. Ehrenberg, L ’état grec, Paris, Maspero, 1976), pp. 59-66. (̂ ) City-state, em inglês; Stadt-staat, em alemão; cité, em francês; città, em italiano. O português oscila entre cidade-estado e cidade apenas. 13 A GRÉCIA ANTIGA além da parte urbana, abrange também terras de cultivo e bosques ou zonas de pastoreio: a chamada terra cívica. Segundo Snodgrass, a pólis constituía uma unidade política autônoma que incorporava um aglomerado urbano e seu território como partes inseparáveis dessa unidade (̂ ). Em face do que acabo de expor, vou servir-me por sistema do termo grego. Os exemplos que vou dar são, intencionalmente, de épocas diferentes, já que as póleis (plural de pólis), apesar de uma transformação considerável sobretudo ao longo da época arcaica, apresentam traços comuns até que desaparecem nos fins do século IV a. C. com a formação dos reinos helenísticos. 1 A pólis era o concreto dos cidadãos, todos, e não o Estado como entidade jurídica abstracta - noção que, como se sabe, não estava ainda formada. Os Gregos não a designavam, como actualmente, pelo nome do país - por exemplo Esparta, Atenas, Corinto - , mas pelo concreto dos que nele viviam e o formavam: os Espartanos ou Lacedemónios, os Atenienses, os Coríntios. É o etnónimo que aparece consignado nos textos e nos tratados e não o topónimo. Para o Grego, os cidadãos é que interessavam; eram eles que constituíam o cerne da pólis e não o aglomerado urbano. Alceu, um poeta da segunda metade do século VII e primeira do VI a. C., afmna claramente que não são as muralhas e as casas que constituem a pólis, mas os homens (Fr. 426 Lobel-Page). Não menos significativo é um passo de Tucídides (7.77.7). Atenas decretara a conhecida expedição à Sicília (415-413 a. C.), de trágicas consequências. Passados cerca de dois anos de confrontos, as operações não corriam de feição para a cidade e seus aliados. As forças encontravam-se desmoralizadas e a expedição caminhava para o fracasso. É nessa circunstância que Nícias, chefe das forças atenienses, se dirige aos soldados antes da batalha decisiva, lembrando-lhes a necessidade de serem valentes, porque não encontram na vizinhança lugar onde possam escapar, se fraquejarem, e porque se lhes oferece a possibilidade, se vencerem, de restaurar o poderio da pólis, por enfraquecida que esteja. E conclui o discurso nestes termos elucidativos: E que a pólis são os cidadãos e não as muralhas nem os barcos viúvos de homens. (b Archaeology and the rise o f the Greek State (Cambridge University Press, 1977), p. 7. 14 A POLIS GREGA O aglomerado urbano e o território apareciam apenas como o local em que os homens construíam uma comunidade de hábitos, normas e crenças. Daí admitir-se que a pólis seja transferível para outro sítio. Heródoto conta um episódio esclarecedor a tal respeito. Decorria a segunda invasão persa, comandada por Xerxes, - que, como é sabido, se verificou de 480 a 479 a. C. Os Estados gregos, não na sua totalidade, mas na maioria, perante tal ameaça haviam constituído uma aliança, para enfrentarem em conjunto o invasor. Discutia-se, no momento, qual a melhor táctica a seguir. Pretendiam os Espartanos que as forças aliadas se retirassem para o Peloponeso, construíssem uma muralha no Istmo de Corinto e, desse modo, tentassem impedir a progressão do poderoso exército persa. Alegavam que só assim conseguiriam evitar a derrota e a consequente perda da liberdade. Mas uma decisão dessas equivaleria a entregar a maior parte da Hélade aos Persas,incluindo a Ática. Temís- tocles, dirigente de Atenas na altura e comandante das suas forças, discordava dessa estratégia e queria que se enfrentasse Xerxes na parte continental e no mar, por entender que os Gregos tinham mais possibilidades num confronto naval ('*). Para fazer valer a sua táctica, ameaça abandonar a causa grega e transferir a pólis ateniense para outro lugar. Nestes ter mos se dirige ao rei espartano que comandava as forças gregas (6. 82): Se tu permaneces aqui, serás um homem de bem, mas se não o fizeres arruinarás a Hélade, já que todas as nossas possibilidades nesta guerra se encontram nos navios. Vá, segue o meu conselho. Se não atendes ao que te digo, nós recolheremos as nossas famílias e nos transferiremos para Siris, na Itália. Daqui se deduz que a pólis tinha também o sentido de povo, com ou sem associação política. Dos numerosos exemplos {e. g. Tucídides 2. 39. 1 e 4), vejamos dois tirados á-àAntígona e do Rei Èdipo de Sófocles. Na primeira das referidas tragédias, Creonte vem expor o seu programa de governo e anuncia o édito que proibia as honras fúnebres a Polinices e condenava à morte quem, contra tal determinação, lhas prestasse. O rei expressa-se deste modo (vv. 203-205): Foi proclamado à pólis que ele as honras fúnebres não recebería nem pessoa alguma o lamentaria, mas seria deixado insepulto... f ) Sobre Temístocles vide os capítulos “A democracia ateniense: a busca da igualdade” e “A Simaquia de Delos e a hegemonia ateniense”. 15 A GRÉCIA ANTIGA Ou seja “foi feita uma proclamação pública, a todo o povo”, a toda a população. No Rei Éáipo, o protagonista, ao tentar descobrir o assassino de Laio, sabe por Jocasta que este foi morto por ladrões num cruzamento de três caminhos, segundo contara um escravo que acompanhava na altura o rei (vv. 715-716). Edipo então, como também matara mas sozinho — um homem na mesma encruzilhada, enche-se de receio e pede que lhe tragam o escravo, para que este confirme se Laio fora morto por uma ou mais pessoas. Ao que Jocasta responde (w . 848-850): Fica sabendo que desse m odo foi feito o relato e não lhe é possível agora desdizê-lo: toda a pólis o ouviu, não apenas eu. Ou seja: Jocasta pretende dizer que não foi ela sozinha a escutá-lo, mas “toda a população”. Se nestes dois exemplos o termo designa povo, como entidade que se distingue do Estado, em outros passos surge com o sentido de entidade política. Dou um exemplo de Tucídides e outro de Demóstenes. Na “Oração fúnebre” em honra dos Atenienses mortos nos primeiros anos da Guerra do Peloponeso que o historiador coloca na boca de Péricles, este estadista faz o elogio da constituição ateniense e refere que o poder da pólis, em virtude das suas qualidades, corresponde à verdade dos factos: é a única que, posta à prova, se mostra superior à fama que possui e não provoca irritação ao inimigo, quando invadida, nem censura aos que submete. (2. 41. 2-3). Demóstenes, no discurso Contra Mídias 45, elucida que todo o acto de violência ou insolência é passível de uma acusação pública apresentada por alguém que o queira, visto a lei considerar que quem recorre à violência comete uma injustiça contra a pólis e não apenas contra a vítima. E assim temos que a pólis aparece primordialmente como os cidadãos concretos e pode apresentar o sentido de povo, entendido simplesmente como o conjunto das pessoas que a habitam ou como entidade política. Mas a pólis englobava ainda a vida econômica e não se concebia desligada da religião. Segundo Péricles, no discurso acima referido, que lhe atribui Tucídides, devido à grandeza da pólis - ou seja à sua riqueza e prospe ridade - , afluern a Atenas produtos da terra inteira, o que permite que os habitantes desfrutem tanto dos bens locais como dos de outros países. Hoje tende-se a aceitar o princípio de que o Estado deve estar separado da religião, matéria que pertencería ao foro íntimo e à consciência de cada um. Tal ideia era impensável para os Gregos, que consideravam a 16 A POLIS GREGA religião - embora não em todas as suas formas (̂ ) - parte integrante e nuclear na pólis e as cerimónias e actos do culto funções da alçada dos governantes. Se os deuses olímpicos eram adorados por todos os Gregos e tinham carácter pan-helénico, cada pólis prestava com frequência cultos privados a esses deuses, distintos dos das restantes; tinha os seus heróis que eram objecto de culto e possuía uma divindade políade ou protectora: caso da deusa Atena para Atenas e de Hera para Argos. Como não havia sacerdotes, no sentido que hoje damos ao termo, os rituais do culto e os sacrifícios eram executados pelos governantes. A ligação da religião à pólis era tão íntima que os Gregos pensavam que as divindades protectoras a abandonavam no momento em que ela era conquistada. A partir de então deixava de ser um Estado autónomo e ficaria subjugado a uma pólis com outra divindade protectora. Se os aspectos até agora enumerados constituíam traços importantes da pólis, esta dava primazia à lei e era o meio pelo qual esta se realizava e satisfazia, quer se tratasse do thesmos, quer do nomos - dois tenuos que significavam lei, mas que, embora com sentidos idênticos, designavam realidades diferentes, pelo menos quanto à origem e autoridade (®). A pólis estava baseada na aceitação absoluta das leis no sentido lato - incluindo nelas o que nós chamamos a constituição, o conjunto de regulamentações e normas que enformam a vida da cidade - e de uma administração despersonalizada. Para o Grego, o agir de forma emocional, violenta, excessiva e pela força é próprio de um Bárbaro e está em desacordo com o modo de actuar de um Heleno que sabe dominar-se e molda o seu comportamento P) Além da religião oficial da pólis, havia uma religião pessoal e os Mistérios em que a intervenção do Estado não existia ou era menor. Sobre o assunto vide A. J. Festugière, Personal religion among the Greeks (Sather Classical Lectures, University o f California Press, 1954); M. H. Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica. I - Cultura Grega (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003), pp. 306-320. (®) Vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos. I - Gênese e Evolução de um Conceito (Coimbra, 1992), pp. 155 sqq. Segundo M. Ostwald, Nomos and the beginnings o f the Athenian democracy (Oxford, 1969), p. 19 (citado a partir de agora: M. Ostwald, Nomos ), thesmos era “a thing imposed by a higher power upon those for whom the authority o f the imposing agency makes the deagcx; an obligation”. Nomos, por sua vez, significava “decreto”, “lei escrita” da pólis, produto da votação da vontade da maioria dos cidadãos, ou seja, não é uma doação de uma entidade superior, mas uma criação da própria pólis. 17 A GRÉCIA ANTIGA pela medida e moderação, quer no domínio político quer na actividade privada C). No primeiro caso, essa razão ou medida, pela qual os Helenos pautavam o seu procedimento, estava simbolizada na lei que sentiam como um privilégio que os opunha aos Bárbaros. Para o Grego, deve apenas obedecer-se à lei e por ela deve a pólis reger-se e cada um mo delar 0 seu comportamento, quer seja governante ou simples cidadão. É o que nos mostra um diálogo de Tíndaro com Menelau no Orestes de Eurípides. Quando o segundo procura ajudar o protagonista mesmo contra a lei e a vontade do povo reunido em assembleia, sob a alegação de que é filho do seu próprio irmão, o primeiro manifesta a sua estranheza (vv. 485-489): Tíndaro: Barbarizou-te o tempo passado entre os Bárbaros. Menelau: É de um Grego honrar sempre os do seu sangue. Tíndaro: Também o é não querer nunca estar acima das leis. Menelau: Tudo 0 que vem da obrigação é uma servidão para os sábios. Tíndaro: Age tu então desse modo; eu não o farei. Para Tíndaro, ajudar alguém que se serve da violência e, sem recorrer às leis, se vinga e faz justiça por suas próprias mãos não é próprio de um Grego. Por isso, considera que o tempo passadopor Menelau entre os não Gregos - os Bárbaros que não têm por soberano a lei, mas obedecem a um homem e são por isso seres inferiores - o transformou num deles, visto que pretende ajudar um criminoso contra a justiça e a vontade da pólis. À justificação deste de que é um traço do Grego honrar sempre os do seu sangue, mesmo contra as decisões da justiça e da pólis, replica que também o é não querer estar acima das leis. A resposta de Menelau de que a obrigatoriedade {ananké) imposta pelas leis é uma escravidão, considera-a Tíndaro um juízo que não merece a sua aprovação f ). Está (9 Sobre a noção de Bárbaro entre os Gregos vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos I, pp. 191 sqq. Q) Este passo tem recebido várias interpretações. Vide Grube, The drama o f Euripides (London, 1941), pp. 382-383; M. ?oh\enz, Die griechische Tragoi/Ze I (Göttingen, ̂1954), p.415;F. Chapoutier e L. Mérlákr, Euripides VI. I-Oreste, (Paris, 1959), p. 52, nota 1; D. Lanza, “Unità e significato delF OrestQ euripideo”, Dionisio 35 (1961) 60-62; V. di Benedetto, Euripidis Orestes (Firenze, 1965), ad 485-488 e 489; W. Biehl. Euripides: 18 A POLIS GREGA aqui subjacente o conhecido tópico da oposição entrephysis “natureza” e nomos “lei”, muito do agrado dos sofistas (̂ ). O Grego era cioso de ter por único soberano a lei e isso o distingue proflindamente dos Bárbaros. Daí a estranheza do rei persa, ao saber que os Lacedemónios não tinham senão a lei por senhor (Heródoto 7. 107) e a de Atossa, nos Persas de Ésquilo, por os Atenienses não obedece rem a um chefe. A rainha pretende saber quem mandava nos Atenienses, contra os quais o filho se propõe combater, e quem era seu chefe; quando o Coro lhe responde que De nenhum homem são escravos nem súbditos a soberana então estranha e duvida que sejam capazes de enfrentar os Persas (w. 241-243). Por outro lado, não obedecer à lei e derrogá-la era um acto bárbaro e condenado pelos Gregos. Por isso, responde Demarato a Xerxes que os Lacedemónios estão sujeitos à lei que temem mais do que os Persas ao seu soberano (Heródoto 7. 104). Péricles, na “Oração fúnebre” que lhe atribui Tucídides, põe em realce a obediência dos Atenienses em relação às leis, especialmente as que protegiam o oprimido (2.37.3). Uma actividade criadora inspirada pela liberdade e assegurada pela lei constituía precisamente, como mostra Bowra, o ideal que esse dirigente pretendia para Atenas ('“). Boa parte da força da cidade radicava no facto de os seus cidadãos, apesar de gozarem de grande liberdade, permanecerem observantes da lei, por terem a consciência de que a desordem ou anarquia favorecia os que odiavam 0 regime ateniense e o queriam destruir. Daí a afirmação de Atena nas Eiunénides de Ésquilo (w. 696-699): Uma forma de governo intermédia entre a anarquia e o despotismo, eis o que eu recomendo aos cidadãos que pratiquem e venerem, e ainda que não expulsem completamente o temor da sua cidade. Quem observará a justiça, se nada tiver a recear? (") Orestes (Berlin, 1965), ad 485,486,487 e 488; Augusta F. de Oliveira e Silva, Euripides: Orestes (Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Univ. de Coimbra, 1982), pp. 20-23. (®) Sobre a oposição nomos/physis vide F. Heinimann, Nomos und Physis (Basel, 1945); W. K. C. Guthrie, History o f Greek philosophy. Ill - The fifth-century enlighten ment (Cambridge University Press, 1969), pp. 55-134; J. de Romilly, La loi dans la pensée grecque (Paris, Les Belles Lettres, 1971), pp. 73-114. ('“) Vide C. M. Periclean Athens (London, 1970; trad. esp. 1974), pp. 121-128. (") Ésquilo, Oresteia, tradução de Manuel O. Pulquério, (Lisboa, Edições 70,1990), p. 220. 19 A GRÉCIA ANTIGA e a sua longa e persistente tentativa de persuadir as Erínias - divindades que castigam os crimes de sangue e haviam ficado derrotadas no julga mento de Orestes - a não castigarem a cidade e a ficarem em Atenas, transformadas em Euménides, como protectoras da justiça e guardiãs das leis e do seu cumprimento (w. 778 sqq.). Sem nada recear, qual dos mortais seria justo? - proclama Atena. Mesmo os governantes tinham de obedecer à lei e por ela conformar a sua actuação - sobretudo eles, porque, como observa e bem Creonte na Antígona de Sófocles, não se conhece o temperamento e carácter de um homem antes de se exercitar no poder e na legislação (vv. 175-177). Esse poder e lei vêm da participação dos cidadãos, sendo nestes que reside a pólis. Expressamente o declara Nícias no discurso, já referido, que dirige aos soldados durante a campanha na Sicília: a pólis são os cidadãos e não as muralhas e os barcos viúvos de homens (Tucídides 7. 77.7). Afirma-o também não menos poderosamente o jovem Hémon na mQsm .̂ Antígona, num diálogo significativo com o pai, em que lhe anuncia que Tebas o não aprova na decisão de condenar Antígona (vv. 733-739): Hémon: Não o afirma o povo todo de Tebas. Creonte: E é a pólis que me vai dizer o que devo ordenar? Hémon: Vês que respondes como se foras uma criança? Creonte: É pois outro, e não eu, que deve governar este país? Hémon: Nenhuma pólis é pertença de um só homem. Creonte: Não se considera que a pólis é de quem manda? Hémon: Sozinho, numa terra deserta, é que governarias bem. De estruturas mentais diferentes, pai e filho têm concepções antagó nicas de governação e autoridade, pelo que reagem, em conformidade, de modo distinto. Naturalmente despótico, Creonte não aceita que algo ou alguém se lhe oponha ou se sobreponha à sua vontade nem que a pólis lhe vá ditar o que deve fazer: para ele, esta é de quem manda. No pensar de Hémon, pelo contrário, nenhuma pólis é pertença de um só homem: por isso, se o pai não quer ter em conta a opinião dos cidadãos e deseja proceder de modo ditatorial, devia governar numa terra deserta. Para Hémon, o poder autocrático é o destruir da pólis. Constitui, de facto. 20 A POLIS GREGA a negação de tal estrutura aquele que actua como tyrannos, de forma irresponsável, e baseia o seu agir na própria vontade, sem ter em conta os costumes tradicionais ou a opinião dos outros, quer de um conselho, quer de todos os cidadãos ( ’̂ ). Ora a tirania era o regime em que os Bárbaros viviam. Por isso se forma a já referida oposição entre o sistema de pólis dos Helenos, que tinha por único soberano a lei, e o dos não Gregos. Povos subjugados a um soberano que tinha sobre eles poder absoluto, constituíam grandes dynasteiai (Heródoto 7. 135), um regime que, segundo Platão, procura evitar nos súbditos pensamentos de ousadia ou amizade e uniões dura doiras (Symp. 182b) (‘̂ ). Como, por outro lado, os Persas nas suas cam panhas contra a Grécia pretenderam restaurar as tiranias (Heródoto 6. 102; 7. 6), não admira que os Helenos associem sistematicamente esse regime aos Bárbaros e que os Atenienses, à proposta do rei macedónico Alexandre, aliado dos Persas, de pactuar com Xerxes, respondam que anseiam pela liberdade e se defenderão até que possam Ĉ )̂. Os Gregos, nota-o Aristóteles, eram feitos para viverem em póleis, enquanto os Bárbaros viviam em ethne {Política 5, 1303a 20-25; 7, 1324a 23-25 e 1326a 2-5 e 22-24). É natural, por isso, que na literatura grega apareça amiúde a oposição entre o regime político grego e o dos Bárbaros, mesmo à custa de anacro nismos vários. Nas Suplicantes de Ésquilo, em passo citado no capítulo “A democracia ateniense: a busca da igualdade” (p. 91), Pelasgo refere não poder socorrer as Danaides sem consultar o povo, já que as conse quências recairão sobre toda a cidade. Considera ele que se a pólis inteira se contamina, deve ser o povo em comum a procurar a solução, pelo que tem de ser consultado (’̂ ). Cf. H. D. F. Kitto, The Greeks (London, 1951, repr. 1957), pp. 71-72. (' )̂ Demócrito, fr. 251 Diels, à apregoada felicidade nas dynasteiai considera preferível a pobreza na democracia, como a liberdade à escravidão. C f ainda fr. 30 Diels. Oh C f Heródoto 8. 143. Aliás a obra de Heródoto narra oconfronto entre Gregos e Bárbaros a que se associa a antítese liberdade/tirania — tirania que incorre em hybris e é castigada pelos deuses. Ch Vv. 366-369. Sobre aposição constitucional do rei e possíveis implicações políticas do passo, vide P. Podlecki, The political background o f Aeschylean tragedy (Michigan, 1966), p. 46; P. Burian, “Pelasgus and Politics in Aeschylus’ Danaid Trilogy”, Wiener Studien, N. F. 8 (1974) 7; A. S. Garvie, Aeschylus’ Supplices: play and trilogy (Cambridge, 1969), pp. 150-154; H. F. Johansen and E. W. Aeschylus: The Suppliants II (Copenhagen, 1980), ad 365-369. 21 A GRÉCIA ANTIGA Pelo contrário, as filhas de Dânao, que não são gregas, supõem que o rei tem poderes de senhor absoluto: Tu és a pólis, tu és o povo. Prítane que ninguém controla, és senhor do altar, lar comum do país. O aceno da tua fronte por único sufrágio, ceptro único em teu trono, tudo decides. (‘̂ ) Nestes dois passos, procura-se um contraste entre o sistema de pólis e 0 governo de um senhor despótico, de um soberano absoluto. Essa dico tomia é poderosamente acentuada pela linguagem: Pelasgo, que se revela um rei “democrático”, a “meu lar” (v. 366) e a “eu” (v. 368) contrapõe “pólis inteira” (v. 366), “povo em comum” (v. 367) e “todos os cidadãos” (v. 369). Em contraste, as Danaides, com palavras semanticamente ade quadas, insistem no poder soberano de Pelasgo, procurando identificá-lo com o próprio corpo político e repetindo os compostos em que entra o elemento mono (*’). No mesmo sentido vai a afirmação de Demofonte, nos Heraclidas de Eurípides, que, por mais explícita, se toma mais significativa. O rei de Atenas quer ajudar os filhos de Héracles, mas diz-lhes não o poder fazer contra a vontade da pólis e de modo a expor-se às suas censuras e acusações (vv. 423-424): Não governo em tirania como fazem os Bárbaros. Por isso, se agir com justiça, com justiça serei tratado. E, pois, comum a constatação de que se não deve governar de modo tirânico, mas de acordo com a vontade dos cidadãos, ou seja, com justiça. Ciosos da sua liberdade e de não obedecerem senão à lei da pólis, os Gregos viam nesta a garantia e o símbolo daquela. Participar na vida e no governo da pólis constituía para eles o penhor máximo de liberdade e nisso residia o viver de acordo com a razão. Em contraste com isso, os Bárbaros estavam sujeitos à vontade de um homem e eram súbditos de um soberano (cf Heródoto 7. 103). Viver desse modo era para o Grego uma vida de escravo. O poder absoluto dos soberanos dos Bárbaros consideravam-no eles tirania, escravidão a sujeição dos súbditos. (' )̂ Vv. 370-375. Para a insistência, visível no passo, na ideia de monocracia a nível linguístico, prosódico e semântico, vide Johansen-Whittle, Aeschylus: The Suppliants II, pp. 295-297. CO Vide Johansen-Whittle, The Suppliants II, ad 368-369 e 370-375. 22 A POLIS GREGA Num passo da Helena de Euripides, encontramos explicitamente expressa a noção de que a tirania é um regime que transforma em escravos quantos nele vivem. Aí, a dada altura, a esposa de Menelau, exilada entre os Egípcios, ela que era livre, lamenta a sua vida actual de escrava longe da Hélade, já que os Bárbaros são todos escravos com excepção de um ("®). Em oposição aos Bárbaros o Grego vivia, pois, no sistema de pólis que tinha por único soberano a lei. A liberdade significava o reinado da lei e a participação no processo de tomada de decisões; não residia na posse de direitos inalienáveis. Como observa Finley, não havia o reconhe cimento da existência de direitos e de um domínio privado intangíveis para o Estado (‘®). A esse propósito são significativas as afinuações de Sócrates no Críton de Platão, no episódio da “Prosopopeia das Leis” (50a sqq): quando Críton, na noite anterior à execução do mestre, lhe propõe fugir, Sócrates recusa como argumento de que as Leis o acusariam de, com tal acção, as deitar a perder, a elas e a toda a pólis, porque nenhum Estado pode subsistir quando as sentenças proferidas não têm poder. Não se pode alegar que a pólis foi injusta, porque ela não é outra coisa senão o conjunto dos cida dãos e, por isso, é senhora plena de cada um: graças às suas leis, normas e costumes ele nasce, é educado e cresce. Por isso as Leis insistem: E depois de teres nascido e teres sido criado e instruído, poderás afirmar que não és nosso, nosso filho e nosso escravo, tu e os teus antepassados? E, se isto é assim, pensas acaso que são iguais os nossos direitos e que te é lícito fazer-nos, a nós, aquilo que tivermos empreendido contra ti? Ninguém deve recuar, fiigir ou abandonar o seu posto (51b-c): mas, no combate, no tribunal, em toda a parte, tem obrigação de executar o que ordena a pólis e a pátria ou então convencê-la por processos que sejam justos. Do que aqui fica exposto, conclui-se que a pólis é uma entidade multiforme que não se reduz ao Estado, nação ou povo, mas é mais ('*) V. 276. Vide R. Kannicht, Euripides: Helena (Heidelberg, 1969), II, ad 275-276. C’) Democracy, ancient and modern (London, ^1973), p. 78. Q̂ ) 50e. Tradução de Manuel O. Pulquério, Platão: Apologia de Sócrates - Críton (Lisboa, Edições 70, 1997) p. 77. Sobre o passo vide J. Burnet, Plato’s Euthyphro, Apology o f Socrates and Crito (Oxford, 1924, repr. 1967), pp. 199 sqq. 23 A GRÉCIA ANTIGA ampla. Péricles, na “Oração fúnebre” que lhe atribui Tucídides e a que já aludi por mais de uma vez, ao louvar a pólis, como nota Kitto, mais do que exaltar um povo ou um Estado, faz o elogio de um sistema de vida que considera a “escola da Hélade” (Tucídides 2. 41. 1) ( '̂). Atenas, uma pólis democrática, evoluíra consideravelmente no domínio cultural, económico e político: criara uma constituição avançada que privilegiava a igualdade entre os cidadãos, tinha uma vida cultural pujante e intensa, gozava de grande prosperidade. As suas realizações culturais, as suas festas religiosas, a sua prosperidade e poder atraíam cidadãos de outras póleis. Daí que Péricles considere que Atenas possa servir de paradigma aos outros Helenos. Desde que nasce, o habitante habitua-se ao modo de vida da pólis, às suas leis e costumes, às normas que regulam os actos mais comezinhos, às cerimónias religiosas e crenças. Comunidade viva, nela o convívio com os outros, a actividade nas diversas instituições, a participação nos actos públicos e cerimónias religiosas aos poucos conformavam o jovem a uma maneira de ser e de viver. Desse modo, a pólis educa o cidadão e modela-o, a ponto de ser um produto e escravo seu, como demonstra Sócrates no passo do Críton acima referido. Daí compreender-se a afirmação de Simónides (fr. 15 West) de que A pólis é mestra do homem. A pólis era, portanto, uma entidade activa, formativa, que exercitava o espírito e formava o carácter dos cidadãos. Constituía uma preparação para a aretê— excelência ou virtude —, Einção de que o Estado moderno se desliga quase por completo. Daí que se compreenda a afimiação de W. Jaeger de que descrever a pólis é descrever a vida total dos Gregos. Como diz Aristóteles, a pólis é a comunidade perfeita, nascida de várias aldeias, que atinge então o nível de autarcia completa: a pólis forma-se por necessidades da vida e existe para se ter uma vida digna (Política 1. 2. 8, 1252b 27-33). A sanção divina dava autoridade às leis da pólis que desse modo representavam como que a vontade dos deuses. No entanto, as leis da cidade-estado não podiam contrariar os ditames dos deuses, sob pena de graves consequências. Segundo Heraclito, os cidadãos devem combater pela lei (o nomos) da pólis tanto quanto pelas muralhas (fr. 44 Diels- -Kranz) e a pólis deve apoiar-se no nomos, já que as leis dos homens tiram a sua força da divina (fr. 114 Diels-Kranz). É uma insistência no (-') H. D. F. Kitto, The Greeks, p. 75 (trad. port. Coimbra, 1960, p. 120). 24 A POLIS GREGA respeito do nomos, e fundamenta-se no facto de as leis humanas serem sustentadas pela lei divina universal,fonte e origem de todas as nornias, a ordem do universo e lei fundamental da hamonia invisível de que fala o fr. 54 Diels-Kranz; a lei está em consonância com o Logos, constituinte e regulador do cosmos (̂ )̂. Por seu lado, a Antígona de Sófocles, onde se verifica uma oposição entre leis humanas e leis divinas, proclama que as leis positivas, decretadas pelos homens, devem hannonizar-se com as leis dos deuses. Creonte, rei de Tebas, por não o fazer é duramente casti gado. Publicara um édito que, sem ter em conta as normas divinas que determinavam a obrigatoriedade de serem prestadas honras fúnebres aos mortos (̂ )̂, estipulara que Polinices fosse deixado insepulto e estabe lecia a pena de morte para quem não cumprisse tal detemiinação. Antígona, surpreendida a lançar uma fina camada de pó sobre o corpo do irmão e interrogada por Creonte por que, conhecedora das suas leis, as ousou transgredir, responde com estas palavras célebres (w. 450-455): E que essas não foi Zeus que as promulgou, nem a Justiça, que coabita com os deuses infernais, estabeleceu tais leis para os homens. E eu entendi que os teus éditos não tinham tal poder, que um mortal pudesse sobrelevar os preceitos, não escritos, mas imutáveis dos deuses. No estásimo primeiro o Coro, depois de cantar o progresso da humani dade, conclui que o engenho do homem tanto o pode levar ao bem como ao mal e que uma pólis só subsiste e prospera, se as suas leis estiverem de haraionia com os ditames dos deuses (vv. 367-371): Se da terra preza as leis e dos deuses na justiça faz fé, grande é a cidade; mas logo a perde quem por audácia incorre no erro. C'*) 6^) Cf. G. S. Kirk, J. E. Raven e M. Schofield, The presocratic philosophers. A criticai history with a selection of texts (Cambridge University Press, ^1983), pp. 211- -212; T. A. Sinclair, A history o f Greek political thought (London, ^1967), pp. 29-31. K. Reinhardt, Parmenides (Frankfurt am Main, 31977), pp. 215-216 integra o fr. 114 na oposição nomos/physis. M. Ostwald, Nomos, pp. 26-28 e 30 considera que, no fr. 44, nomos tern mais o sentido de eunomia “boa ordem” e “defines the value to this condi tion”, e que, no fr. 114, os anthropoi nomoi “as leis humanas” se referem a um “way o f life or mores o f city as whole” (citações das pp. 30 e 27, respectivamente). (^h Os cadáveres insepultos podem originar pestes. Como os Gregos não as sabiam explicar, atribuíam-nas a um castigo dos deuses. (^h A tradução dos dois passos áa Antígona é de M. H. Rocha Pereira, in Sófocles, Tragédias (Coimbra, 2003), p. 324. 25 A GRÉCIA ANTIGA À mesma conclusão de origem divina do nomos nos conduz um passo do Contra Aristogíton I. 15-16 de Demóstenes. Considera o orador que a vida dos homens, quer habitem numa pólis grande, quer pequena, é regulada pela natureza e pelas leis - aphysis e os nomoi. Em sua opinião a natureza, irregular e particular a cada pessoa, se é vil, deseja com frequência o que é inferior e pode conduzir as pessoas a cometer erros; as leis, pelo contrário, são algo de comum, fixo e o mesmo para todos, uma dádiva dos deuses e uma descoberta dos homens sábios. Passo a ler a tradução do passo: As leis desejam o que é justo, belo e útil, e procuram-no; logo que o encontram, proclamam-no ordem comum, igual e a mesma para todos. Eis o que é o nomos. A ele devem todos obedecer, por numerosos motivos e sobretudo porque toda a lei é uma criação e um dom dos deuses, uma decisão dos homens sábios, um correctivo para os erros, voluntários ou involuntários, um contrato comum da pólis, segundo o qual todos devem viver nessa sociedade. Embora a pólis apresente um tipo estrutural genérico, no seu interior há variações mais ou menos substanciais, em extensão territorial, em número de habitantes, em instituições constitucionais e governamentais, em grau de duração e estabilidade, em costumes e modos de vida. Nela encontramos um grupo de cidadãos, ora restrito, ora mais alargado, que, como veremos, se bate com as realidades materiais e sociais da época e as transforma. Essa luta com os condicionalismos de cada pólis origina sociedades diferentes, com constituições e modos de vida diferentes, criando instituições novas e alterando mais ou menos substancialmente as existentes. O caso de Atenas, como veremos nos próximos capítulos, é um exemplo típico de tais alterações. No entanto, apesar dessas trans formações, todas as póleis surgem com um núcleo comum de instituições, com funções idênticas de início em todas elas, que se manterão ao longo dos tempos mais ou menos modificadas até ao declínio do sistema na segunda metade do século IV a. C. Estou a referir-me à Assembleia do povo, ao Conselho e aos Magistrados. Estes vários órgãos institucionais podem tomar nomes diferentes conforme a pólis. Assim, para dar o exem plo das duas mais poderosas cidades gregas do século V a. C., Atenas e Esparta, temos respectivamente Ecclesia (Assembleia) e Apela, para a Assembleia; Areópago e Gerúsia, para o Conselho; e Arcontes e Éforos, para os Magistrados. 26 A POLIS GREGA Aos órgãos institucionais tinham acesso e neles participavam activa- mente apenas os cidadãos, sempre uma parcela reduzida da totalidade dos seus habitantes que, não obstante, incluía indistintamente pobres e ricos, num leque que se estendia dos abastados aos que nada tinham e viviam do salário do seu trabalho do dia-a-dia, como veremos em próximo capítulo. A população de uma pólis era constituída por pessoas livres e não livres. Eram livres os cidadãos e os estrangeiros com autorização de residência, cujo nome mais usual é o de metecos. Entre as não livres incluem-se os habitantes que estão submetidos a qualquer grau de depen dência e não podem dispor da sua pessoa: desde os considerados animais ou coisas - os escravos-mercadoria, algo que se compra e se vende - até aos que, obrigados a trabalhar a terra de outrem, os servos, tinham de entregar uma parte do produto e, de acordo com o estatuto, estavam numa situação melhor do que a dos anteriores (̂ )̂. Numericamente, a soberania dos cidadãos era a de uma minoria, tanto nas oligarquias como nas democracias. Apesar da falibilidade e insegu rança das cifras e estatísticas para essa época, tudo indica que o seu número não teria ultrapassado os quinze por cento da totalidade da popu lação, mesmo nas democracias mais evoluídas e abertas, como é o caso de Atenas (̂ )̂. Portanto, a obtenção da cidadania (politeia) é essencial. É ela que concede ao seu possuidor a qualidade depolites que lhe permite intervir activamente na pólis, ou seja na sua constituição {politeia) que, para um grego, abrangia as leis, as instituições e seu funcionamento, os costumes, crenças e hábitos, enfim toda a vida económica, política, social e religiosa. Como teria surgido esse sistema social e político entre os Gregos? Nos textos literários mais antigos que possuímos, os Poemas Homéricos - a Ilíada e a Odisséia, que geralmente se julga assentarem em poesia de improvisação oral e terem atingido, no essencial, a forma em que f Note-se que uma coisa é o estatuto e outra a situação real. Pode acontecer que numa pólis os não livres possuam um estatuto mais benéfico do que os de outra, mas se encontrem numa situação real inversa. É o que se passa com Atenas e Esparta: na primeira, os escravos, embora estatutariamente considerados uma mercadoria, têm uma situação real incomparavelmente melhor do que os hilotas de Esparta que, pelo estatuto, são servos. (“ ) Em Atenas, de autor para autor, a variabilidade no número de habitantes ultrapassa com frequência os cinquenta por cento, como se verá no capítulo “A democracia ateniense: a busca da igualdade” (p. 104). 27 A GRÉCIA ANTIGA chegaram até nós no decurso do século VIII a. C. e que devem transmitir elementos e instituições de tempos anteriores nos textos mais antigos, dizia, a referência à pólis ainda não existe ou não aparece com clareza. Já neles encontramos a presença deum conselho de anciãos - um conselho regular, formado pelos reis ou por nobres, que havia a obrigação de consultar, por direito ou por tradição, nos assuntos de interesse comum (cf Ilíada 19. 303; Odisséia 6. 53-55 e 8. 387-395) e que, ao tomarem a palavra nos debates, detinham o ceptro, símbolo da autoridade (cf Ilíada 18. 505-506); encontramos indícios da Assembléia do povo, convocada por qualquer dos reis e consultada - sempre na companhia do Conselho - em alturas importantes (cf Ilíada 1. 54 sqq.; 18. 497-503). Mas o que predomina nos Poemas Homéricos é o palácio - o oikos - que é gover nado por um rei, apesar de apresentar características que o aproximam da pólis: ser uma célula social organizada, uma unidade humana e econô mica que tem por ideal a independência e a autarcia. Não há unanimidade quanto ao facto de os Poemas Homéricos reflec- tirem ou não já o aparecimento da pólis. Nesta matéria são diversas as posições dos estudiosos (̂ ’). Recorde-se, no entanto, o passo das duas cidades - uma em paz e outra em guerra (vv. 490 sqq.) - do célebre episódio da descrição do escudo de Aquiles {Ilíada 18. 478-608). Aí, na cidade em paz, faz-se alusão a um julgamento - ou melhor, um esboço de julgamento - , onde, além da Assembléia do povo e do Conselho dos anciãos, aparece também um ‘magistrado’. Portanto - sem nunca esquecer que se trata apenas de um esboço de julgamento - já estão presentes os três órgãos caracterís ticos da pólis. Teríamos, pois, um indício dos começos do sistema. Estes e outros aspectos levam os comentadores a considerar a descrição do escudo de Aquiles como um episódio de composição mais recente da Ilíada (̂ )̂. (-9 Para uns encontramos já póleis do tipo clássico na Ilíada e na Odisséia e os Poemas implicam uma nova concepção da vida cívica em que cada cidadão tem a sua missão: por exemplo, J. M. Cook, The Greeks in Ionia and the East (London, 1962), pp. 37-38. Para outros, a Ilíada não mostra traços da existência da pólis, mas esta já aparecería na Odisséia: e. g. V. Ehrenberg, “When did the polis úsq7”, Journal o f Hellenic Studies 57 (1937) 155 e The Greek state (Oxford, 1960), p. 242. Para outros ainda, nenhum dos Poemas apresenta traços da pólis no sentido político clássico; Finley, The world o f Odysseus (London, Chatto & Windus, 1956), p. 35 (trad, port., Lisboa, Presença, pp. 43-44). (̂ *) É certo que ístor do v. 501, como pretendem alguns comentadores, pode ser apenas um árbitro; outros dizem que se trata de um dos gérontes do v. 508. De qualquer modo exerce aqui as funções que mais tarde estarão a cargo dos magistrados. Sobre o 28 A POLIS GREGA Em Hesíodo - um poeta cuja datação oferece dificuldades, mas se tende a colocar nos finais do século VIII, embora continue a haver quem a situe na primeira metade do VII a. C. - o sistema ainda não está total mente definido. A leitura dos Trabalhos e Dias deixa perceber que, na Beócia, por volta de 700 a. C., a união do campo e da cidade, característica essencial da pólis arcaica e clássica, não se havia ainda processado ple namente. Para Hesíodo, que vive em Ascra, uma aldeia do território de Téspies, na Beócia, aquele aglomerado urbano é um mundo distante onde vivem os nobres - ou os reis, como diz o poeta - “devoradores de presen tes” (w. 38-39). Parece dar-nos então um indício de que a pólis começava a ganhar forma. Aos dados literários juntam-se os testemunhos arqueológicos. A. Snodgrass, num curto mas sugestivo estudo, analisou as descobertas das eseavações de algumas das cidades gregas e chama a atenção para o aparecimento - primeiro nas cidades da Ásia Menor e ilhas adjacentes - de fortificações a defenderem as povoações e de um templo: as muralhas construídas na segunda metade do século IX e ao longo do VIII a. C., e o templo de data ligeiramente mais tardia. Conclui que, se o aparecimento de muralhas não é a garantia de se ter atingido uma pólis independente, a existência de templo, ao reconhecer e eleger uma divindade protectora, será uma prova físiea de que a emergência da pólis se verificou ou está em curso (̂ ®). O processo de cristalização da cidade-estado escapa-nos, mas a colo nização grega - um fenómeno que, como veremos no próximo capítulo, se inicia ainda na primeira metade do século VIII a. C. e espalha os Helenos pelas margens do Mediterrâneo - funda cidades que são todas (com excepção dos emporia) póleis independentes que imitam as institui ções da metrópole. O aparecimento do sistema era, portanto, anterior ao iníeio da colonização. Hoje a tendência é para aceitar que a pólis teria surgido no século VIII a. C. - primeiro na Ásia Menor, mas em breve espalhada por toda assunto vide H. Hommel, “Die Gerichtsszene auf dem Schilde des Achilleus”, in Politeia und Respublica (Wiesbaden, 1969) pp. 11-38. Outras obras mais recentes encaram o escudo de Aquiles sobre o ponto de vista literário ou arqueológico: W. Marg, Homer über die Dichtung. Der Schild des Achileus (Münster, ̂1971); K. Fittschen, “Der Schild des Achlleus” in Archaeologia homerica II (Göttingen, 1973); R. S. Shannon, The arms of Achilles and Homeric compositional technique (Suppl. 36 Mnemosyne, Leyden, Brill, 1975). Archaeology and the rise ofthe Greek state (Cambridge University Press, 1977), p. 24. 29 A GRÉCIA ANTIGA a Hélade - , se bem que H. Berve apenas considere a sua existência no século V a. C. Ultrapassado o período conhecido como Época Obscura grega (do século XI à primeira metade do VIII a. C.), já não encontramos os reinos relativamente extensos dos tempos micénicos e dos Poemas Homéricos; os reis tinham desaparecido e, no seu lugar, deparamos com oligarquias aristocráticas. Explica-se, por vezes, a origem da pólis pelas características físicas do solo grego, muito compartimentado por montanhas e vales e penetrado pelo mar em enseadas e golfos. A pólis apareceria assim, a bem dizer, como uma consequência dos traços geográficos. A teoria, embora pareça atraente, motiva objecções várias: o sistema de pólis não se desenvolveu em outras regiões tão ou mais acidentadas; mesmo na Grécia, apareceu tardiamente, se tivermos em conta que os Micénios já eram gregos, e é lícito perguntar por que não actuou mais cedo a causa geográfica; a pólis desenvolveu-se primeiro na Ásia Menor e floresceu em zonas onde as comunicações eram relativamente fáceis - Ásia Menor, Peloponeso, costa oriental da Grécia continental: havia cidades vizinhas, sem barreiras entre elas, que permaneciam independentes, enquanto outras regiões montanhosas e muito fraccionadas geograficamente - Arcádia, Etólia, zona ocidental da Grécia central e a do noroeste - nunca ou só em época tardia atingiram ou adoptaram o sistema ( '̂). Estes dados parecem permitir deduzir que a teoria, embora atraente, não deve ser verdadeira e que as razões geográficas não foram as determinantes. É evidente que o surgir de tal sistema se pode perfeitamente explicar por razões históricas, com a ajuda das condições geográficas do solo e de factores económicos. Com o declínio micénico no século XII a. C., verifica-se uma acentuada e longa movimentação populacional que pro voca um grande fraccionamento e uma busca afanosa dos locais mais (30) “Fürstliche Herren zur Zeit der Perserkriege”, in Gestaltende Kräfte der Antike (München, 1966), pp. 232-267, limita a pólis ao século V a. C.: embora aceite a sua existência desde Sólon, reconhece que, até às Guerras Pérsicas, luta desesperadamente por se afirmar. ( '̂) A Ática, muito dividida geograficamente, só formava uma pólis - Atenas - , em consequência de um sinecismo que se deve ter verificado nos fins do século IX ou inícios do VIII a. C. Vide A. Snodgrass, Archaeology and the rise o f the Greek state {CsmhvxàgQ University Press, 1977), pp. 16-21; J. Ribeiro Ferreira, X democracia na Grécia antiga (Coimbra, Minerva Coimbra, 1990), pp. 20-21. A Beócia, mais unificada geograficamente, tinha várias, de que sedestacam Tebas e Platéias. Pequenas ilhas, como Céos e Amorgos, dividiam-se em várias póleis, enquanto outras substancialmente maiores - caso de Quios e Samos - constituíam apenas uma pólis. 30 A POLIS GREGA propícios e férteis. As lutas são intensas e os habitantes, dadas as con dições pouco favoráveis e a ameaça constante a que estavam sujeitos e visto não terem um poder centralizado forte que os protegesse, tentam defender-se em pequenas comunidades, acolhendo-se à protecção de antigas cidadelas micénicas ou refugiando-se nas regiões menos aces síveis, de modo geral no alto de colinas que rodeavam de muralhas, locais a que davam o nome de acrópole. A partir de deteraiinada altura, para melhor resistirem aos ataques constantes, essas pequenas comunidades agrupam-se em unidades mais amplas, através de sinecismo. Contribuem, desse modo, para a formação das póleis que se fecharam sempre num individualismo orgulhoso, sem nunca atingirem uma unidade política; apesar de várias tentativas e passos nesse sentido, o particularismo foi sempre mais forte. Ora isso é que já se toma mais difícil de perceber - a manutenção de tal sistema por vários séculos até que, anêmico, se vai diluir aos poucos ao longo do século IV a. C. p ) . A pólis era a unidade natural e justa da sociedade humana, que constituía o desenvolvimento normal da família e da aldeia; e de uma e de outra possuía as vantagens, sem as limitações. Era um sistema de vida e existia para que se vivesse melhor. Ainda no século IV a. C., procurando talvez argamassar uma realidade que ele sentia já a derruir, Aristóteles {Política 1,1252 b 27-32) assim a considera. Justifíca-a por ser a comunidade perfeita que existe por natureza. É uma célula política que concede direitos a todos os cidadãos e deles exige deveres. O Grego queria exercitar pessoalmente esses seus direitos: como observa Finley, na pólis os cidadãos, através dos votos - como um todo ou, nas oligarquias, como um sector do todo - , participavam direc- tamente e não por representação como num parlamento moderno Q̂ ). A participação directa de todos no governo condiciona a extensão do território e, em especial, o número de cidadãos Esta foi sempre uma preocupação dos políticos, quer governantes, quer teorizadores. Segundo a maioria deles, dez mil seria o número ideal - a polis myriandros de Hipodamo (Aristóteles, Po//fíca 2 ,1269b 30-31; 3 ,1280b 21-22). Para (^9 Sobre a pólis e significado de tal sistema, vide Ehrenberg, The Greek state, pp. 88-192. 6 )̂ Authority and legitimacy in the classical city-state (A. J. C. Jacobson Memorial Lecture, Kobenhavn, 1982), p. 7. Sobre o assunto vide também J. Ribeiro Ferreira, Participação e poder na democracia grega (Coimbra, Faculdade de Letras, 1990), pp. 69-76. (^h Sobre o território e sua extensão, vide Ehrenberg, The Greek state, pp. 28-32. 31 A GRÉCIA ANTIGA Platão a cidade ideal deve possuir cerca de 5 000 cidadãos {Leis 5, 737e-738ae6,771a-772d). Segundo Aristóteles, não deve ter um número demasiadamente diminuto, porque não lhe permitiría ser auto-suficiente, nem elevado em excesso, porque se tornaria ingovernável {Ética a Nicómaco 9 ,1170b 31-32): Nem dez homens constituem uma pólis, nem com cem mil existe já pólis. e num outro passo, este agora da Política {Política 7, 1326a 34-35, 1326b 2-5 e 22-24): A pólis que combina com uma adequada extensão o justo limite de que falámos é necessariamente a mais perfeita... A pólis que se compõe de demasiadamente poucos habitantes não é autárcica, e uma cidade tem de ser autárcica: por sua vez, a que se compõe de uma quantidade excessiva, se bem que capaz de se bastar nas suas necessidades, será como que um ethnos e não uma pólis, já que dificilmente tem uma constituição... É manifesto, por conseguinte, que o limite ideal da população para uma pólis é o número mais elevado compatível com a autarcia da vida e susceptível de ser abarcado na totalidade. O Estagirita, portanto, considera a pólis como uma exigência natural e rema em sentido contrário ao que se designa por nacionalidade grega, para ele inexistente. O govemo.directo exige o limite de cidadãos e leva, por consequência, ao particularismo. Só o sistema representativo o perfnitiria abandonar e ultrapassar, mas os Gregos não concebiam tal tipo de governo que se lhes afigurava coarctador da liberdade e da autonomia. A pólis era por natureza particularista e cada uma velava zelosamente pela sua liberdade e autono mia. A participação directa dos cidadãos no governo da pólis só é possível em Estados de reduzida dimensão, quer quanto ao número de cidadãos, quer quanto ao território - alguns eram mesmo estranhamente minúsculos, como acontecia com Delos, Egina, Meios, com os da Beócia (à excepção de Tebas), os da Fócida, os de Creta, de Ceos, de Amorgos (̂ )̂. No seu âmbito de contacto, por outro lado, os Estados extensos eram monarquias. Cf. Ehrenberg, The Greek state, pp. 28-30. Segundo Finley, in The Legacy of Greece (Oxford, 1981), p. 12, o número da população total (incluindo livres e escravos, homens, mulheres e crianças) no começo da guerra do Peloponeso, se paraAtenas rondava os 250-275 mil, para Corinto os 90 mil e para Tebas, Argos, Corcira e Agrigento os 40-60 mil, já na maioria das outras cidades-estado não devia ir muito além dos 5 mil e em algumas até nem chegaria a esse número. Vide também Kitto, The Greeks, pp., 65-67; R. J. Littman, The Greek Experiment. Imperialism and Social Conflict 800-400 BC (London, 1974). pp. 31-33. 32 A POLIS GREGA como acontecia no caso da Macedónia e da Pérsia, que, para os Gregos, como já dissemos, constituía uma tirania, em que os súbditos viviam em servidão. Na sua perspectiva, o sistema de pólis era o único que pemiitia a liberdade e a autonomia. Assim se compreende que a lónia nunca tenha feito uma tentativa para se constituir em Estado. A dificuldade não teria sido grande, já que os alicerces os tinha no Paniónion, em que as doze cidades celebravam anualmente as festas comuns em honra de Posídon Em vez disso, vemos que, segundo tudo indica, nem quando a sua salvação esteve em perigo - ao serem atacados e conquistados pelos Persas - actuaram em conjunto. Pelo contrário, rejeitaram mesmo uma proposta de Tales de Mileto para que as cidades se unissem e constituíssem um Buleutérion único, com sede em Teos (cf Heródoto 1. 148 e 170). Do mesmo modo se compreende que também a Beócia nunca tivesse chegado a constituir uma verdadeira unidade política, apesar de ela possuir igualmente o suporte dos laços de uma anfictionia (̂ ’). Todos os débeis ensaios nesse entido esbarraram contra tal sentimento e esboroaram-se. Quando começaram a ganhar uma certa consistência, já a Grécia caminha para o ocaso político, em adiantado século IV a.C., ao longo do qual se verifica, como acentua Kitto, uma mudança no tem peramento do povo e a emergência de uma atitude diferente para com a vida (̂ )̂. O fulgor de que ainda vai gozar ficará a devê-lo íundamentalmente à acção dos Macedónios de Filipe e Alexandre, que nunca foram aceites como Gregos, pelo menos por uma boa parte. A unidade política nunca foi uma coisa desejada e construída por eles e adveio-lhes sempre como algo imposto do exterior: pelos Macedónios primeiro e depois pelos Romanos. Em vez de passos no sentido da união, as cidades-estado gregas agiam de modo inverso: passaram o tempo da sua história, quase na totalidade, desavindas; combatiam-se amiúde com empenho feroz. Pretendiam dessa forma afinuar a sua independência, uma caraterística dos Gregos bem vincada. Como observa Pohlenz, a sensibilidade política dos Helenos constituía o mais grave obstáculo à concreta unificação, já que exigia o exercício imediato dos direitos políticos e a existência do sistema de pólis. Cada uma destas velava zelosamente pela sua autonomia - era por natu reza particularista (̂ )̂. Constituía um traço muito forte, a ponto de, como acabámos de ver, nema ameaça persa ter levado a que os lónios aceitas- Vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos, pp. 140-141. (” ) Vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos, p. 142. The Greeks, pp. 158-169. f L ’ iiomo greco, pp. 196 e 248-249. 33 A GRÉCIA A N TIG A sem a proposta de Tales para se unirem e formarem um Estado único. A independência é quase objecto de culto por parte dos Gregos; foi esse sen timento que sempre se opôs a qualquer tentativa de ultrapassar o sistema de pólis em que gostavam de viver e que amavam profundamente Consideravam a pólis a única base possível de uma existência civilizada, como foi acentuado com vigor por Platão e Aristóteles: o primeiro toma a pólis como modelo do seu Estado ideal, o segundo ocupa-se em especial do assunto no livro I da Política. No Críton 50a sqq. e Leis 625e de Platão vemos quanto a pólis era apaixonadamente sentida. No primeiro passo, já atrás citado, ocorre a célebre prosopopeia das Leis: segundo estas, 0 cidadão recebe tudo da pólis, pelo que esta, que é ainda mais santa do que a família, tem também o direito de lhe exigir tudo, e ele não deve esquivar-se, mas tem a obrigação de fazer o que ela lhe ordenar C“). Nas Leis (1 ,625e), a propósito das instituições de Creta e da Lacede- mónia, Clínias justifica a imposição das refeições em comunidade, susten tando que, desse modo, o legislador condena a insensatez da maioria que ignora que a todos, enquanto durar a existência, toca uma guerra contínua contra todas as outras cidades. Para o Grego, ser livre era exercer ele próprio, pessoalmente, os seus direitos civis, sem os delegar em outros. Foi esse desejo o maior óbice a uma unidade política. Seria impossível reunir toda a Hélade numa única pólis. Ser agente activo na governação era realmente fundamental para os Helenos. Não concebiam um cidadão que, alheado, não vivesse e partici passe interessadamente no governo e na condução dos destinos da sua pólis. Nessa atitude encontraram mesmo um dos fundamentos que os fazia sentirem-se diferentes dos Bárbaros e em que cimentavam a sua superioridade em relação a eles Era do temperamento do Grego viver em pequenos Estados indepen dentes, em cuja vida e organização fazia questão de participar. Só assim se considerava em plena liberdade. O estudo da pólis grega põe-nos pe rante uma tendência para a regionalização e o gosto de viver em pequenos espaços, em oposição às actuais centralização e formação de Estados P“) Mesmo a formação de simaquias, que parece contradizê-lo, é, no fundo, motivada por esse apego à independência. Cf. V. Martin, La vie internationale dans la Grèce des cités (VI-IVs. av. J. Ch.) (Paris, 1940), pp. 98-101. (‘") Vide supra p. 23-24. Vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos, pp. 232 sqq. 34 A POLIS GREGA cada vez mais vastos. A pólis constitui desse modo uma experiência his tórica cuja meditação tem importância e interesse para o mundo de hoje a balancear entre tendências contraditórias: por um lado, paradoxalmente, apontam-se as vantagens da regionalização e debate-se a necessidade de uma maior centralização; por outro, buscam-se uniões políticas mais amplas, mas assiste-se a um surto de fraccionamentos nacionalistas. 35 EPOCA ARCAICA Crises de Crescimento Aparecida a pólis por meados do século VIII a. C., nela um grupo de cidadãos, ora restrito, ora mais alargado, bate-se com as realidades mate riais e sociais que vai encontrando e transfonna-as. As diversas cidades- -estado evolucionam mais ou menos significativamente, cada uma com as dificuldades, os condicionalismos e as oposições que encontra, até nos oferecerem o quadro característico da época clássica. E à evolução da época arcaica que vou dedicar a minha análise, que se vai basear com mais insistência em Atenas, por ser dela que possuímos mais dados e infomiações. Terei de ser sucinto e deixar na sombra alguns factos, dada a extensão temporal que me proponho tratar e a quantidade de fenómenos e acontecimentos significativos que marcaram o período. A época arcaica - cujas datas de início e final é costume situar entre 776 e em 480 a. C., respectivamente a data tradicional dos primeiros Jogos Olímpicos e o ano da batalha de Salamina - é um período de grande vitalidade, de inovações, crises e transfonnações. A pólis modi- fica-se sensivelmente, a ponto de, nos começos do século V a. C., se apresentar em muitos aspectos diferente da que encontramos nos seus inícios. Vamos tentar surpreender algumas dessas transformações através das obras de três poetas, distanciados entre si um século: Hesíodo, dos fins do século VIII e inícios do VII; Sólon que viveu no trânsito do VII para o VI; e Teógnis na segunda metade do VI e primeira do V a. C. Embora pertençam a regiões diferentes - Hesíodo à Beócia, Sólon à Ática e Teógnis a Mégara - os dados que nos fornecem podem ser apli cados a outros locais, sem grande receio de erro, já que todas as póleis, com pequena variabilidade temporal de umas para outras, passaram por fenómenos semelhantes. Hesíodo, nos Trabalhos e Dias, fala da labuta dura e difícil do lavrador numa terra pouco fértil e muito dividida que quase não dá para alimentar uma família. Aconselha, por isso, o camponês a não ter mais do que um filho para, de acordo com as normas de então relativas à herança, se não 37 A GRÉCIA ANTIGA verificar um fraccionamento maior da terra. É que, para agravar a situação, esse camponês estava na dependência total da vontade dos nobres. O poeta fala dos nobres que se deixam peitar e praticam a justiça que lhes convém (vv. 30-41): Nós dividimos o nosso património, e tu de muitos dos bens, por roubo, te apoderaste, peitando bem os reis, devoradores de presentes, que praticam uma tal justiça. Dirige-se ao innão Perses que, na divisão da herança, já lhe tirara a melhor parte, por corrupção dos juízes, os nobres, e agora ainda se quer apoderar da parte que lhe coube. Mais elucidativo é o apólogo do gavião e do rouxinol (vv. 202-218), em que Hesíodo põe na boca do primeiro, que representa os poderosos, este modo de discorrer insolente (vv. 207-211): Insensato, por que gritas? Nas garras de quem é muito mais forte, irás para onde eu te levar, por bom cantor que sejas; se me apetecer, refeição farei de ti ou te deixarei ir em liberdade. Louco 0 que pretende medir-se com os mais poderosos: vê-se privado da vitória e à vergonha associa sofrimentos ('). Enfim, 0 pequeno está completamente à mercê do poderoso e de nada lhe vale protestar e falar de justiça. O nobre talha por onde quer e decide como entende. Sólon, um século mais tarde, acusa os que enriquecem por processos injustos - o roubo e o saque. Na Eimomia (fr. 4 West), Sólon mostra uma profunda relação com a sua cidade. Manifesta preocupação pelo destino de Atenas, faz um diagnóstico da sua situação nos fins do século VII e inícios do VI a. C. e aponta as respectivas causas: eram os próprios cidadãos que punham em perigo a pólis, em especial os excessos e acções injustas dos dirigentes e dos ricos que nem os bens dos templos e dos santuários poupavam (vv. 5-12). Sem respeitar os veneráveis alicerces da Justiça, tudo roubam a saque e a sua rapina desperta a revolta, as lutas civis e a guerra. Sólon fala da servidão, que se pode abater sobre a cidade, e dos pobres lançados na escravatura. Pressagia que a ambição dos homens, a guerra civil e as conspirações em breve provocarão a ruína da pólis que ninguém conseguirá evitar (w. 13-25). Quer mostrar (') Sobre o sentido de basileiis no primeiro passo vide West, Hesiod: Works and Days (Oxford University Press, 1978, repr. 1982) ad 38; J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos I, p. 56. Para uma análise do apólogo vide A. Bonnafé, “Le rossignol et la justice en pleurs (Hésiode, Traveaux 203-212)”, Bulletin de V Association Guillaume Biidé, 1983, pp. 260-264. 38 EPOCA ARCAICA (vv. 30-39) como a “Desordem” {dysnomia) causa a desgraça à pólis e como a “Boa-ordem” {eimomid) a salvada ruína e torna tudo bem orde nado e disposto; “endireita a justiça tortuosa”, “abaixa a insolência” e “tenuina com a discórdia” e com os ódios; como, sob o seu influxo, todas as acções são justas e os actos humanos são sensatos e prudentes (̂ ). No fr. 34 West Sólon recusa a partilha das terras que então os campo neses reclamavam, pois considera que não lhe agrada usar da violência nem que da terra fértil da pátria possuam igual porção os bons e os maus (vv. 13-21) (3). No fr. 36 West, ao fazer uma resenha da sua obra de legislador e governante, fala da libertação da “terra escrava”, pela surpressão dos horoi (Q, e dos que no país estavam reduzidos a uma humilhante escrava tura; da repatriação, trazendo-os do exílio, de três categorias de Atenienses - os que tinham sido vendidos legalmente, os que tinham sido vendidos ilegalmente e os que tinham fugido por medo (vv. 5-15). Portanto, Sólon fala de nobres que se apoderaram de muitas terras, roubando a saque, fala de pequenas propriedades hipotecadas e de cam poneses que, além de perderem as terras, se tornaram escravos e foram vendidos. Veriflcara-se uma transferência das terras para a posse dos (-) A bibliografia respeitante à “Eunomia” é vasta. Cito, entre outros, W. Jaeger, Paideia (trad, port., Lisboa, Aster, s. d.), pp. 165-169; V. Ehrenberg, Aspects o f the ancient world (Oxford, 1946, repr. New York, 1973), pp. 81 -86; H. Frankel, Early Greek poetiy and philosophy (trad, ingl., Oxford, Blackwell, 1975), pp. 220-222; A. W. H. Adkins, Moral values and political behaviour in ancient Greece (London, Chatto and Windus, 1972 (de futuro: Adkins, Moral values), pp. 47-51. (b Era um preconceito aristocrata que já se encontra nos Poemas Homéricos e informa toda a época arcaica, deixando marcas na linguagem e na literatura, a ideia de que os nobres eram os agathoi “os nobres”, os aristoi “os melhores”, enquanto os das classes baixas eram os kakoi, “os maus” ou “vilãos”. Vide Adkins, Moral values, pp. 10-57. (b Os horoi que Sólon diz ter removido são comummente interpretados como “marcos de hipoteca”. Como, no entanto, não foi encontrado na Ática nenhum destes marcos que fosse anterior ao século IV a.C., têm-se levantado dúvidas quanto ao verdadeiro significado da palavra no fr. citado. Para certos autores, os marcos a que se refere Sólon certificariam os direitos de um senhor sobre os trabalhadores da terra e sobre as colheitas dessa terra. Vide L. Beauchet, Histoire du droit privé de la république athénienne III (Paris, 1897, repr. New York, 1976), pp. 193-194; L. Gernet, Anthropologie de la Grèce antique (Paris, Maspero, 1976), pp. 363-364; J.V.A. Fine, Horoi. Studies in Mortgage, Real Security, and Land Tenure in Ancient Athens {Hesperia, Suppl. 9, Athens, 1951 (citado a partir de agora: Fine, Horoi)-, F. Cassola, “Solone, la terra, e gli ectemori”, Parola del Passato 19 ( 1964) 30-32 e 42-46; M. Manfredini e L. Piccirilli, Plutarco: La vita di Solone (Fondazione L. Valla, 1977), pp. 194-197 (de futuro: Manfredini-Piccirilli, Solone). Tenha-se, contudo, em atenção a falibilidade do argumento exsilentio, que depende afinal das contingências das recuperações arqueológicas. 39 A GRÉCIA ANTIGA nobres e ricos e a pequena propriedade quase tinha desaparecido. Aris tóteles {Constituição de Atenas 2.1-2) corrobora esta situação: para a época em questão, menciona o longo conflito que opunha os nobres à maioria (plêthos) e alude à “terra nas mãos de poucos”; refere que os pobres, com seus filhos e mulheres, “eram escravos” dos ricos e traba lhavam nos campos destes, mediante o pagamento de uma determinada renda (misthosis). O Estagirita especifica que, devido a essa misthosis, recebiam o nome de pelatas e hectêmoros e que, se a renda não fosse paga, os insolventes poderíam ser vendidos como escravos (̂ ). Mas Sólon também nos infonna de nobres que tinham empobrecido e de elementos das classes inferiores enriquecidos: no fr. 15 West, w . 9-16 refere que os vilões {kakoi) estão ricos e os nobres {agathoí) indigentes. Portanto temos já nesta altura um divórcio entre as noções de riqueza e nobreza (̂ ). Esta alteração social acentuara-se consideravelmente, cerca de um século depois, no tempo de Teógnis, e muitos nobres casavam-se com quem não era da sua raça. Daí estas palavras, um tanto amargas, em que 0 poeta acusa os nobres de prestarem culto ao dinheiro (vv. 189-192): Prestam culto ao dinheiro: o nobre desposa a filha do vilão, e 0 vilão a do nobre; a riqueza mistura a raça. Não te admires, Polipaides, de que feneça a linhagem dos nossos concidadãos: o bom está a unir-se ao mau Ç ) . Verificara-se afinal o que é frequente em épocas de crise: empobreci mento de umas famílias - por acomodação, negligência, falta de dinamismo ou dissipação - e enriquecimento de outras. (b Embora o texto de Aristóteles fale em pobres que eram escravos {douleuo) dos ricos, não devemos tomar esse verbo à letra, já que os escritores dos fms do séc V e do século IV empregavam doidos e douleuo não apenas com o significado estrito de “escravos”, mas com sentido mais lato - para indicar qualquer forma de sujeição. Vide Beauchet, Histoire du droit II, p. 540; M.I. Finley, “The servile statuses o f ancient Greece”, RIDA, 3 ser. 7 (1960) 165-189 = Economy and society in ancient Greece (London, 1984), pp. 133.149. Podem levantar-se dúvidas quanto à verdadeira forma do termo que aportuguesei como hectêmoros, já que as fontes antigas nos oferecem duas: Aristóteles, Constituição de Atenas 2 .2 , dá-nos hektêmoroi e Plutarco, Sol. 13.4 hektemorioi. Embora seja difícil dizer qual a melhor, parece preferível a forma aristotélica, aliás, analógica do termo geomoroi. (®) Ora Aristóteles, Constituição de Atenas 3. 1 e 6, elucida que, antes de Drácon, os arcontes - de que depois saíam os membros do Areópago - e outros magistrados eram recrutados nas famílias nobres e ricas. Ç) Tradução de M. H. Rocha Pereira, Hélade (Porto, ^2003), p. 171. 40 EPOCA ARCAICA Mas a alteração, nessa época, era mais profunda. Teógnis refere que a cidade vive na insolência, que os chefes corrompem o povo e absolvem os injustos, na busca de proveito próprio e de poderio (w. 45-46). Consi dera que os nobres - “os bons” agathoi - nunca arruinam uma pólis, mas agora governam elementos das classes inferiores - “os maus” kakoi - , a quem agrada serem insolentes e procurarem o proveito próprio e o poder com público prejuízo (vv. 43-44 e 49-50). É esse tipo de actuação e de ambições que acabará por causar a destmição da pólis: embora pa reça repousar numa calma profunda, não pennanecerá tranquila por muito tempo. Em breve nascem a guerra civil, os massacres dos cidadãos; não tardará muito que não surja a tirania (vv. 51-52). E a concluir, Teógnis - dirigindo-se ao seu amigo Cimo, a que em outros passos chama Polipaides - lamenta as alterações sociais verificadas e que já não seja a nobreza a governar a cidade, mas os que outrora não conheciam as leis e andavam vestidos como escravos (vv. 53-57): Cimo, esta pólis é ainda uma pólis, mas os habitantes são outros: outrora não conheciam nem regras nem leis, mas em tomo dos flancos cingiam peles de cabra e, como veados, andavam fora da cidade; agora são eles as pessoas de bem, Polipaides, e os bons de outrora são agora os vilões. Os versos de Teógnis deixam bem claro que, nos fms do século VI a. C., a situação social e política da pólis se havia alterado substancialmente. Os que antes não tinham acesso às leis e viviam nos campos vestidos de peles de animais - portanto a eles equiparados - são agora os governantes da pólis (®). É esta a situação que Teógnis considera intolerável. Quais os vectores das profundas transformações desses cerca de dois séculos e meio - segunda metade do VIII, VII e VI a. C.? Desaparecida a monarquia, os inícios da pólis apresentam-nos o domí nio da aristocracia que detém todos os poderes: político, judicial, militar, religioso
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