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p. 48 ISOLAMENTO: O MERCADO DE BUNKERS. p. 62 COMO O BAIXO CRIOU A MÚSICA POP. p. 30 TEREMOS A MAIOR RECESSÃO DA HISTÓRIA? p. 70 HEHEHEHEHE: OS 80 ANOS DO PICA-PAU. r$ 18,00 A GRIPE ESPANHOLA Ela matou milhões de pessoas em 6 meses, e traz lições importantes para a Covid-19. p. 42 A ciência reinará, as fake news serão esmagadas, a polarização vai diminuir – mas seremos mais vigiados, e controlados, do que nunca. E esse processo já começou. p. 20 o mundo pós SI_415_capa.indd 1 15/04/20 14:41 1245768-VEJA NACIONAL-1_1-1.indd 2 14/04/2020 15:49:41 carta ao leitor e d i t o r i a l Para assinar a revista: www.assineabril.com.br Grande SP: 11 3347-2121 Demais localidades: 0800-775 2828 De 2a a 6a-feira das 8h às 22h Vendas Corporativas, projetos especiais e vendas em lote: assinaturacorporativa@abril.com.br Serviços ao assinante: www.abrilsac.com.br Grande SP: 11 5087-2112 Demais localidades: 0800-775 2112 De 2a a 6a-feira das 8h às 22h Para baixar sua revista digital: Acesse www.revistasdigitaisabril.com.br IMPRESSA NA ESDEVA INDÚSTRIA GRÁFICA LTDA Av. Brasil, 1405, Poço Rico, CEP: 36020-110, Juiz de Fora - MG Diretor de Redação: Alexandre Versignassi Editor: Bruno Garattoni Editor assistente: Bruno Vaiano Repórteres: Guilherme Eler, Maria Clara Rossini, Rafael Battaglia Designer-chefe: Juliana Krauss Designers: Anderson C.S. de Faria, Carlos Eduardo Hara, Maria Pace Estagiários: Bruno Carbinatto, Carolina Fioratti (texto) , Lucas Jatobá (arte) Colaboração: Alexandre Carvalho (revisão) Atendimento ao Leitor: Walkiria Giorgino Pool Administrativo: Mara Cristina Piola (coordenadora) . www.grupoabril.com.br www.superinteressante.com.br / superleitor@abril.com.br SUPERINTERESSANTE edição nº 415 (ISSN 0104-178-9), ano 34, nº5, é uma publi ca ção da Editora Abril 1987 G+J España S.A. “Muy Interesante” (“Muito In te res san te”), Es pa nha. Edições anteriores: Venda exclusiva em bancas, pelo preço da última edição em banca. Solicite ao seu jornaleiro. Distribuída em todo o país pela Dinap S.A. Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. SUPERINTERESSANTE não admi te publi ci da de reda cio nal. Redação e Correspondência: Av. Otaviano Alves de Lima, 4.400, Freguesia do Ó, CEP 02909-900, São Paulo, SP. Publicidade São Paulo e informações sobre representantes de publicidade no Brasil e no Exterior: www.publiabril.com.br, tel. 11 3037- 2528 / 3037-4740 / 3037-3485. Licenciamento de conteúdo: para adquirir os direitos de reprodução de textos e imagens contate: licenciamentodeconteudo@abril.com.br Fundada em 1950 VICTOR CIVITA (1907-1990) ROBERTO CIVITA (1936-2013) Publisher: Fábio Carvalho Hanover é uma graça, como qualquer cidade alemã. Mas em 1945 era diferente. O comandante britânico encarregado de adminis- trar a cidade após a Segunda Guerra descreveu o dia a dia ali como uma constante de “saques, brigas, estupros, assassinatos”. Um desses saques foi a uma loja de maçanetas de porta. “As pessoas chutavam e batiam com barras de ferro em quem tivesse roubado mais maçanetas do que elas”, contou o correspondente de guerra inglês Leonard Mosley (1913-1992). Tudo “numa cidade em que metade das portas não existia mais”. A luz só voltaria ao continente depois do Plano Marshall. Com medo de que uma Europa arrasada acabasse aliando-se à União Soviética em troca de comida, os EUA financiaram os governos de lá. A partir de 1948, passaram a injetar bilhões de dólares em 15 países. Era uma mão na roda. Naquele momento, com a economia baleada, praticamente só o dólar e o ouro eram aceitos em transações internacionais, mesmo quando o comércio era entre países europeus. Com a moeda forte do Plano Marshall no caixa, cada um conse- guiu importar um pouco do que precisava para recolocar a vida nos trilhos – comida, fertilizantes, combustível, maquinário para a indústria. A maior parte vinha dos EUA mesmo, que tinham mantido intacta sua capacidade de produção. Mas os dólares do Plano também bombaram a força produtiva da Europa. Com mais máquinas e insumos agrícolas, cada país pôde produzir mais e melhor, e vender eles mesmos seus produtos. Nisso, as moedas locais ganharam força. Os dólares se tornaram menos necessários. E em 1952, depois de ter transferido o equivalente a US$ 140 bilhões em dinheiro de hoje, o Plano Marshall fechou as torneiras. Dois terços do dinheiro tinha sido dado de graça, já que o propósito ali era mais político do que financeiro. O resto foi na forma de empréstimos, mas com prestações a perder de vista. Não é figura de linguagem: a Alemanha quitou sua última parcela só em 1971. O Reino Unido, em 2006. Agora, que o coronavírus criou uma situação de pós-guerra sem que houvesse uma guerra, fala-se na necessidade de um “novo Plano Marshall”. A diferença é que cada país terá de fazer o seu. Falo sobre isso na reportagem da página 30, como parte da nossa cobertura a respeito da realidade sob o corona- vírus, que permeia quase toda esta edição. A reportagem de capa, comandada pelo editor Bruno Garattoni, vai além, e mostra como a realidade pós-Covid-19 está sendo construída neste momento. Boa leitura. Boa sorte. E que a vida volte logo a ser uma graça. Cada um com o seu Plano Marshall Alexandre Versignassi Diretor De reDação AlexAndre.VersignAssi@Abril.com.br Foto Tomás Arthuzzi PUBLICIDADE E PROJETOS ESPECIAIS Marcos Garcia Leal (Diretor de Publicidade) (Alimentos, Bebidas, Beleza, Higiene, Moda, Imobiliár io, Decoração, Turismo, Varejo, Educação, Mídia & Entretenimento) , Marcelo Alberto Cohen (Financeiro, Mobilidade, Tecnologia, Telecom, Saúde e Serviços), André Marini (Regionais e Governo). DIRETORIA DE MERCADO Carlos Nogueira CRIAÇÃO E MARKETING MARCAS Andrea Abelleira BRANDED CONTENT, EVENTOS E VÍDEO Sandro Ferreira Rosa PRODUTOS E PLATAFORMAS Guilherme Valente DEDOC E ABRILPRESS Alessandra Collado ABRIL BIG DATA (BIG DATA + SEO + MKT DIGITAL + ADVERTISING) Sérgio Rosa SI_415_cartaaoleitor.indd 3 16/04/20 12:10 70 “E lá vamos nós!” O Pica-Pau chega aos 80 anos como um ícone da nostalgia nacional – mais popular por aqui do que nos EUA. M A I O d e 2 0 2 0cardápio essencial oráculo última páginasupernovas 6 uma imagem... Isolamento social em barracas nas Filipinas. 78 orifício cósmico Qual a diferença entre buraco negro e buraco de minhoca? 86 longo prazo Quantos anos cada vacina levou para ficar pronta? 83 Quando a crise vier Manual: como fazer um currículo certeiro. 10 555 milhões de anos Conheça o nosso ancestral direto mais antigo. 8 ... uma opinião Renda mínima: uma boa ideia tam- bém para tempos sem pandemia. 14 3 notícias sobre 19 você decide 12 enQuanto isso... 79 pá pum 16 pérolas do streaming 82 lost in translation 82 pensando bem... 81 só acredito vendo e se... 84 adeus, sétimo selo E se a Peste Negra nunca tivesse acontecido? Capa | Ilustração Felipe Del Rio Finalização Tomás Arthuzzi 79 cartório microscópico Quem dá nome aos vírus? 53 bunkers subterrâne� os privados estão escon� didos só no estado de são paulo. p.52 número incrível 12 números vs. corona As simulações matemáticas que movem o combate contra a Covid-19. 16 apocalipse nota 10 Organizamos filmes sobre o fim do mundo em um gráfico – dos mais verossímeis aos mais Michael Bay. 18 transformer Protótipo de celular chinês tem tela dobrável que fica do tamanho de um iPad. 62 Caso grave de injustiça Ninguém se lembra do baixista – mas o baixo elétrico mudou a história da música. 48 Em caso de fim do mundo Só no Brasil, há dezenas de bunkers subterrâneos embaixo de mansões. Por R$ 15 milhões, você pode ter o seu. 30 Economia de quarentena Podemos entrar na maior recessão desde a crise de 1929. E agora? 20 Capa o mundo pós- coronavírus Mais ciência, menos fake news, home office banalizado e vigilância do governo: vamos sair da pandemia num mundo diferente,melhor em alguns pontos, pior em outros. 42 Como foi a gripe espanhola As lições que a pandemia mais letal do século 20 deixou para o combate à Covid-19. 36 Criadouro de vírus Por que o mercado chinês de animais silvestres é uma bomba-relógio. 54 Zeus é brasileiro O Brasil é recordista mundial de raios: caem 77,8 milhões por ano. 300 atingem pessoas. SI_415_Cardapio.indd 4 16/04/20 01:24 1245767-CLAUDIA-1_1-1.indd 5 14/04/2020 15:48:55 essencial u m a i m a g e m . . . Foto Ezra Acayan / Getty Images6 super maio 2020 SI_415_Essencial.indd 6 15/04/20 18:17 Foto Ezra Acayan / Getty Images maio 2020 super 7 SI_415_Essencial.indd 7 15/04/20 18:17 essencial O conceito de pagar um salário para cada cidadão, mais polpudo que o Bolsa Família, é visto com bons olhos tanto por liberais como por socialistas. E a crise de agora pode ser um gatilho para viabilizar a ideia. OutuBrO dE 2000 foi um mês intenso na vida de Eduardo Suplicy. Marta, sua esposa na época, foi eleita prefeita da cidade de São Paulo no dia 29. Não foi o único acontecimento marcante daquele mês. Nos dias 6 e 7, em viagem a Berlim, Suplicy passou o fim de semana conversando com Milton Friedman, um dos economistas mais influentes da história. O encontro entre o cofundador do PT e o pai do neoliberalismo é ainda mais inusitado porque os dois se reuniram para concordar. Em comum, ambos defendiam que o Estado deveria garantir uma renda mínima a todos os cidadãos. “Há pessoas que têm resistência à renda mínima, dizendo se tratar de uma proposta neoliberal, pelo fato de Milton Friedman ter contribuído para conceituar e popularizar [a ideia]”, escreveu o . . . u m a o p i n i ã o renda mínima: uma boa ideia também para tempos sem pandemia na página anterior: Moradores de rua de Manila, nas Filipinas, fazem seu isolamen- to em tendas improvisadas pelo governo num ginásio da cidade.A área metropolitana da capital filipina tem 3 milhões de sem-teto, para uma população de 13 milhões de habitantes – de cada quatro cidadãos, um não tem onde morar. E o lugar está sob uma quarentena severa. Até o transporte público fechou. p o r p e d r o m e n e z e s 8 super maio 2020 SI_415_Essencial.indd 8 15/04/20 18:17 Suplicy em artigo sobre aquele en- contro. “Ser contra a renda mínima só porque Friedman a defendeu é se- melhante a ser contra o imposto de renda só porque países capitalistas o aplicam”, completou. A proposta defendida por Friedman teve origem num artigo de George Sti- gler, outro vencedor do Nobel, que des- creveu ineficiências econômicas gera- das pelo salário mínimo. Na conclusão, sem muita ênfase, Stigler propôs outra política pública que geraria o mesmo efeito, mas sem os defeitos apontados. A ideia foi batizada como “imposto de renda negativo”. Friedman gostou e de- cidiu trabalhar em cima dela. O imposto de renda negativo é o exato oposto do IR comum. A ideia consiste em transferir dinheiro público para os pobres, de modo que nenhum cidadão tenha renda abaixo de certo valor. Três anos após o encontro de Su- plicy e Friedman, o imposto de renda negativo inspirou o Bolsa Família. O economista responsável pelo desenho do programa foi Ricardo Paes de Barros, ex-aluno de Friedman. O PT protestou. Maria da Conceição Tavares, economista histórica do petismo, tratava o programa como fruto de uma infiltração do Banco Mundial em seu partido. De lá para cá, a união entre liberais e socialistas em defesa da renda mínima ficou mais forte. Trata-se de uma das únicas políticas defendidas por duas tribos ideológicas que não se bicam. Por um lado, muitos liberais argu- mentam que a renda mínima é um pro- grama social extremamente eficiente. Como o governo se limita a repassar dinheiro para o cidadão, os custos com burocracia são pequenos e é o indiví- duo quem escolhe como gastar o valor recebido, em vez de deixar a decisão nas mãos do Estado. Da mesma forma, muitos no campo da esquerda enxergam a renda míni- ma como uma ferramenta eficaz no combate à pobreza e à desigualdade. Quando o trabalhador tem a garantia de que receberá algum dinheiro ao fim do mês, ele tem mais poder ao negociar com o patrão. Também aumentam os incentivos para estudar alguns anos a mais, evitando a entrada precoce no mercado de trabalho. Se diversos grupos conflitantes simpatizam com a ideia, por que ela ainda não é aplicada em larga escala? O motivo é simples: custa caro. O Bolsa Família é barato, mas um lar de quatro pessoas com renda mensal de R$ 1.500 é considerado rico demais para entrar no programa. E, mesmo para quem é miserável, o valor repassado dificil- mente ultrapassa R$ 300. Apesar de garantir que nenhum brasileiro tenha renda familiar abaixo de certo limite, o Bolsa Família tem pouco dinheiro e atinge poucas pessoas, em relação ao total da população. Por isso, muitos defensores da renda mínima propõem uma versão ainda mais radical e custosa: a renda básica univer- sal, conhecida internacionalmente pela sigla UBI, que consiste num pagamento destinado a todos os cidadãos. Ou seja, bilionários e miseráveis, crianças e ido- sos, todos receberiam o mesmo valor fixo, simplesmente por existir. Enquanto o mundo discute essa ideia ambiciosa, o Congresso Nacio- nal já aprovou uma política de renda básica universal. A lei, apresentada por Eduardo Suplicy, existe desde 2004, mas nunca foi implementada. O motivo é a sua inviabilidade prática. O projeto estabelece que o benefício pago deve ser “suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimen- tação, educação e saúde”. Caso o governo decidisse pagar mensalmente um salário mínimo para cada brasileiro adulto – R$ 1.045, valor que muitos julgariam insuficiente para cumprir os requisitos da lei –, o custo total superaria R$ 1,5 trilhão. Não dá, pois isso equivale ao total dos gastos federais hoje. Isso não significa que devemos des- cartar a renda mínima como uma ideia inviável. A expansão de um programa como o Bolsa Família é possível. E o espírito da proposta original de George Stigler merece ser lembrado: vale a pe- na substituir políticas públicas menos eficientes por uma renda mínima mais ampla e robusta. Mesmo os liberais, céticos com re- lação a qualquer aumento do Estado, precisam levar a ideia a sério. Quan- to menor o número de cidadãos sem condições básicas de alimentação e moradia, maior pode ser o espaço do livre mercado. Se todos tiverem uma garantia mínima de sobrevivência, não precisamos temer tanto o avanço da tecnologia e a substituição de empre- gos, por exemplo. A renda mínima é possível e viável, mas para chegar a ela precisamos rein- ventar o Estado. Esse é o desafio que muitos políticos adiaram por anos. Mas a sociedade civil tem pressionado – a Universidade Stanford até abriu um centro de estudos dedicado exclusi- vamente a essa ideia. Muitos defensores da renda mínima esperavam que o projeto continuasse travado numa longa luta, até que veio a pandemia. Conforme o novo corona- vírus se espalha e impede as pessoas de trabalhar, diversos países decidiram implementar garantias de renda em larga escala, incluindo Brasil e EUA. Essas políticas são temporárias, cla- ro, mas o simples fato de terem sido aplicadas já aumenta a viabilidade de novos programas de renda mínima no futuro, mais abrangentes. Vinte anos depois do encontro entre Friedman e Suplicy, nunca estivemos tão próximos de ver as ideias deles se transformarem em realidade, por todo o planeta. S Para liberais, ela traz mais poder de decisão aos cidadãos. Para socialistas, é fundamental para minguar a desigualdade. E d i ç ã o a l e x a n d r e v e r s i g n a s s i maio 2020 super 9 SI_415_Essencial.indd 9 15/04/20 18:17 supernovas E d i ç ã o : G u I L H e r M e e L e r d E s i g n : c a r L o s e d u a r d o H a r a os primeiros seres pluricelulares (feitos de mais de uma célula) apassear pela Ter- ra, como algas e esponjas, tinham formatos muito irregulares. Isso, evolutivamente fa- lando, é um problema: significa uma difi- culdade maior de locomoção e de organizar estruturas internas. Mas algo permitiu que a vida desse um salto: a simetria bilateral – ter um corpo divisível em duas partes iguais. Agora, cientistas encontraram na Austrália evidências do ser vivo mais antigo a ostentar essa característica. Batizado Ikaria wariootia, ele viveu há 555 milhões de anos no fundo de oceanos, tinha o tamanho de um grão de arroz e se parecia com uma espécie de verme rechonchudo – como você vê acima. Essa forma de dividir o corpo foi incorporada por todas as espécies animais que vieram após ele. O que significa dizer que o I. wariootia é nosso ancestral mais antigo já descoberto. Nosso parente mais antigo 1 10 super maio 2020 SI_415_novas.indd 10 16/04/20 01:02 sn. f a t o s Ilustrações (1) Alexey Voltolino (2) Denis Freitas Poucos voos, menos carros circulando, in- dústrias produzindo menos. Com o planeta focado em combater a pandemia de Covid-19, a poluição do ar caiu consideravelmente. Em Nova York, o tráfego diminuiu 35% desde a chegada do novo coronavírus. Isso cortou as emissões de monóxido de carbono por automóveis pela metade, em comparação a 2019. Na China, epicentro inicial da pandemia, as emissões de CO2 caíram 25% em apenas duas semanas, o que, segundo estimativas, po- de resultar numa redução de 1% em 2020. O total de NO2 na atmosfera também ficou menor de forma repentina no norte da Itália, um dos países mais afetados pela pandemia. Por lá, a queda foi de 40% – a diferença é tão grande que dá para ver a mancha de poluição diminuindo em imagens de telescópio. O mes- mo aconteceu em países como Reino Unido, Alemanha e Holanda. O Brasil não ficou de fora: segundo a Cetesb, houve queda de 50% na poluição do ar na cidade de São Paulo uma semana após o início da quarentena. A má notícia é que as reduções podem ser temporárias. Após o fim da crise financeira de 2008, por exemplo, as emissões subiram 5% repentinamente, como resultado dos estímulos financeiros ao setor de combustíveis. O receio é que os esforços para recuperar a economia joguem os ganhos atuais pelo ralo. BC quarentena diminui poluição do ar ao redor do mundo O novo coronavírus puxou o freio de atividades humanas. Quem agradece é o ambiente. Matéria-priMa para esponjas de cozinha, solas de tênis e bancos de carro, o poliuretano é um plástico difícil de reciclar, pois libera substâncias tóxicas ao ser degra- dado. Mas cientistas descobriram uma nova bactéria capaz de se alimentar dessas toxinas. O tal micróbio é do gêne- ro Pseudomonas e foi encontrado num aterro sanitário. A ideia é usar seu apetite para diminuir o rastro de plástico que humanos deixam na natureza – 300 milhões de tonela- das são produzidas todos os anos. Bruno Carbinatto a bactéria que come plástico tóxico Maior. É o quanto costuma ser a ex- pectativa de vida de fêmeas em compa- ração à de machos da mesma espécie, segundo um estudo europeu que anali- sou 101 mamíferos diferentes. Foi a conclusão de uM estudo que analisou a saúde da Grande Barreira de Coral da Austrália, o maior recife de corais do mundo. Estima-se que 60% dos corais tenham adquirido aspecto esbranquiçado em algum grau. É a maior área já afetada na história. Quem dá cor aos corais são algas que vivem presas a eles. Se a temperatura aumenta muito, as algas são expulsas – o que pode ser letal, já que elas são sua principal fonte de alimento. Trata-se do terceiro episódio de branqueamento em massa na região em cinco anos. 18,6 % “Os corais estão brancos como nunca” 2 maio 2020 super 11 SI_415_novas.indd 11 16/04/20 01:02 sn. f a t o s MateMática a serviço do coMbate ao coronavírus Um dos maiores desafios durante uma pandemia é comportar um grande nú- mero de pacientes nos hospitais e UTIs simultaneamente. Pensando nisso, o ma- temático Osmar Neto, que vive em São José dos Campos (SP), investe na criação de modelos matemáticos que tentam prever o avanço da Covid-19 no Brasil. Como os modelos funcionam? Costuma- mos seguir um fluxo de situações. Primei- ro a pessoa está suscetível, exposta. De- pois ela pode ou não se infectar, precisar de um hospital e aí seguir ou não para a UTI. Para cada uma dessas etapas existe uma equação diferente em que você pode mudar as variáveis, como na matemática de colegial. Como essas simulações podem ajudar a reduzir o número de mortes? É possível estimar qual vai ser o dia que a prefeitura vai precisar de mais leitos para poder se preparar. Se a demanda fosse espalhada ao longo do ano, como uma gripe, o sis- tema de saúde conseguiria dar conta. Quando começou a crise, São José dos Campos só tinha um leito disponível, porque não deixam de existir pessoas que buscam os hospitais por outras razões. Se não houver leito suficiente para cuidar de todo mundo, a mortalidade cresce muito. Por que previsões podem dar resultados tão diferentes? Existem variações nos modelos, mas são as variáveis que mudam mais. Depende da severidade das medidas de contenção, da velocidade de propaga- ção, do tempo que a pessoa fica infecciosa. O site da OMS, por exemplo, diz que o período de incubação do novo coronaví- rus pode ser de 2 a 21 dias. Isso é terrível para um modelo matemático. Dependen- do do número que você coloca, aconte- cem situações totalmente diferentes. O pico [de casos] pode variar desde junho deste ano até fevereiro do ano que vem. Maria Clara Rossini Fontes (1) OMS (2) Universidade Stanford (3) Perth Museum and Art Gallery (4) Nature Por Carolina Fioratti e Carlos Eduardo Hara enquanto isso... A internet foi do- minada por lives de famosos. Simulações podem ajudar cidades a se preparar melhor para a pandemia. Ilustração Denis Freitas Novas mortes por ebola no Congo impediram que a OMS decretasse oficialmente o fim da epidemia no país. (1) Cientistas descobriram que lulas de Humboldt brilham no escuro para se comunicar durante a caça. (2) Arqueólogos encontraram pintura de deusa egípcia den- tro do caixão de uma múmia de 3 mil anos. (3) Pesquisadores descobriram que existiam florestas tropicais na Antártida há 90 milhões de anos. (4) 12 super maio 2020 SI_415_novas.indd 12 16/04/20 01:02 Quanto dura o coronavírus? O ponto branco mar- ca o tempo em que a carga viral se mantém grande o bastante para infectar. Após 4h, há tão poucos vírus no cobre que ele não oferece mais perigo. No aço e no plástico, o vírus fica ativo até 24h após a contaminação. Logo após a contaminação, o plástico é o meio que retém uma carga viral maior. No de vírus por ml de secreção Horas 10.000 1.000 100 4 8 24 48 1 Depende da superfície. Se um infectado espirrar em algo de plástico, demora mais de um dia para a carga viral cair abaixo da linha do perigo. Já no papelão, oito horas são suficientes. papelão cobre 64 mil É o número de pessoas feridas ou mortas no Camboja por minas terrestres que não explodiram durante a Guerra do Vietnã. Mas cientistas da Universidade de Ohio encontraram uma forma de mapear o local exato onde as minas estão – e evitar novos acidentes. Eles criaram uma inteligência artificial capaz de identificar, via imagens de satélite, as áreas dos campos minados – incluindo aquelas que ficaram tomadas pela vegetação, passando despercebidas na paisagem. O novo método foi testado em uma área de 100 km²em Kampong Trabaek, no Camboja, que foi alvo de bombardeios entre 1970 e 1973. A ferramenta cravou com sucesso a localização de bombas não detonadas em 86% dos casos. Carolina Fioratti Fonte Aerosol and Surface Stability of SARS-CoV-2 as Compared with SARS-CoV-1 plástico aço inoxidável maio 2020 super 13 SI_415_novas.indd 13 16/04/20 01:02 sn. f a t o s “Remédios” para Covid-19 3 notícias sobre 1. 2. 3. santococô Que a vaca é sagrada na Índia, você já sabe. Mas tem outra: há quem use a urina e o esterco do animal para curar doenças. Recentemen- te, um deputado do país sugeriu que eles poderiam servir ao combate do novo coronavírus. Um grupo nacionalista hindu, inclusive, organizou um evento em Déli para beber xixi de vaca e provar sua suposta eficácia. (1) Prata da casa Jim Bakker é um apresentador de TV dos EUA que passou anos preso por fraude. Mas isso não o impediu de divulgar a Silver Solution – fórmula à base de prata, “perfeita” para eliminar o novo coronavírus. Por sorte, os anúncios foram banidos, e Jim está sendo processado outra vez. O acú- mulo de prata no corpo pode causar intoxicações graves e problemas de pele.(3) abraço de urso A lista de tratamentos aprovada pela China conta com clássicos da medicina tradicional do país. Entre eles, uma injeção de bile de urso. Embora ela possa mesmo diminuir inflamações, não há eficácia comprovada para Covid-19. Além disso, a reco- mendação é contraditória: em 2020, o país decidiu banir o comércio de animais selva- gens para consumo. (2) Dejetos sagrados, uma receita da vovó e um tônico picareta . Rafael Battaglia Assim como anéis no tronco revelam a idade de árvores, mo- mentos da vida humana – como a gestação ou a menopausa – po- dem deixar mar- cas permanentes no sorriso. Um estudo da Univer- sidade de Nova York analisou a dentição de 15 pessoas usando microscopia de luz polarizada. A equipe detectou que a espessura do cemento, camada que cobre a raiz, muda se a pessoa viveu episódios com grande carga de estresse. O cemento ajuda na fixação do dente. Ou seja: passar por episódios de estresse é algo que, por si só, pode levar à perda de dentes. Seu passado está nos dentes Fonte Sitema Deter-B, do Inpe Cresce número de alertas de desmatamento na Amazônia ToTal de deTecções no primeiro TrimesTre de 2020 é o maior dos úlTimos 5 anos. 2016 796 km² 643 km² 233 km² 685 km² 525 km² 2017 2018 2019 2020 14 super maio 2020 SI_415_novas.indd 14 16/04/20 01:02 Ilustrações Denis Freitas Fontes (1) BBC (2) National Geographic (3) NPR A notíciA Presos monito- ram a população em pontos de ônibus durante a pandemia o que elA diziA O governo do Pará teria escalado detentos para garantir que as pessoas permaneçam a uma distância mínima umas das outras. A medida valeria em pontos de ônibus, locais que costumam ter grande aglomeração. A verdAde É comum que a mão de obra de presos sirva a funções como limpeza urbana ou pequenos reparos. Foi isso que aconteceu na capital Belém: a função dos detentos era pintar no chão dos pontos de ônibus faixas intercala- das um metro entre si. E só. As marcas ajudam as pessoas a saber qual distância ficar para evitar o contágio pelo novo coronavírus – uma medida recomen- dada por autoridades médicas do mundo todo. Nada a ver com detentos deixando suas celas para cobrar “um passinho para trás” dos usuários de trans- porte coletivo que aguardam na fila. Não é bem assim... Notícias que bombaram por aí - mas não são verdade Respiradores automá icos têm custo alto de produção, são difíceis de operar e não existem em número suficiente para a pandemia. A demanda criada pela Covid-19 fez produtores firmarem parcerias com mon- tadoras de carro, empresas de tecnologia e até equipes de F1 para aumentar o estoque. E também incentivou cientistas a pensar em versões mais baratas e acessíveis. Pesquisa- dores da UFPB criaram recentemente um modelo que custa R$ 400 – 37 vezes mais em conta que a versão disponível no mercado brasileiro. O equipamento teve sua licença liberada para a produção por empresas, mas ainda deve passar por uma série de testes do Inmetro antes de ser usado em hospitais pelo País. O que se discute agora é exata- mente isso: o quanto essas novas versões são seguras e podem substituir máquinas caríssimas. Existem hoje cerca de 65 mil respiradores no Brasil, e cada paciente grave de Covid-19 precisa de um. t A corridA pArA produzir respirAdores mAis bArAtos No Brasil, a UFPB criou um modelo de R$ 400 (o convencional custa R$ 15 mil). Uma supernova é o úl imo ato da vida de uma estrela. A explosão em que ela distribui seus átomos pelo Cosmos. Recentemente, astrônomos de Harvard flagraram o maior evento desse tipo já avistado. A supernova em questão, a SN206aps, tinha massa entre 50 e 100 vezes maior que a do Sol. É muito: supernovas comuns costumam ser seis vezes menores que isso. De tão grande, a explosão ofuscou toda a luz da galáxia onde ela vive. A SN206aps está a 4,5 milhões de anos-luz daqui. Além de ser a maior, ela é a mais duradoura: enquanto explosões de supernovas normais duram meses, esta segue explodindo após quatro anos. CF t Astrônomos avistam supernova mais poderosa de todos os tempos 2 maio 2020 super 15 SI_415_novas.indd 15 16/04/20 01:03 CANAL Cymye YouTube A brasileira Cyntia Midori mora na China e costumava postar vídeos sobre gadgets e a vida em Shenzhen, sua cidade. Com o coronavírus, tudo mudou: o canal passou a apresentar o dia a dia do confinamento, e agora mostra como a cidade, vizinha de Hong Kong, está saindo dele. Fotos Reprodução/Divulgação CANAL VFX Express YouTube Não parece, mas 90% das cenas do filme Dois Papas têm computação gráfica – que permitiu recriar digitalmente o Vaticano sem que ele tivesse de ser fechado ao público. Este canal mostra como foi, e revela os segredos de centenas de filmes e comerciais: sempre em vídeos rápidos, de 3 minutos. Pérolas do streaming 25 Veja quais são os melhores (e os piores) filmes sobre pandemia. Demos as notas de acordo com a porcen- tagem de críticas positivas no Rotten Tomatoes (85%, por exemplo, vale aqui uma nota 8,5). Texto Rafael Battaglia Design Maria Pace 2,0 3,0 4,0 5,0 6,0 7,0 8,0 9,0 A vida imita a arte Fo to s D iv ul ga çã o 9,0 8,7 Um vírus modifi- cado para curar o câncer dá errado – e os infectados se transformam em zumbis. O mundo é tomado por um vírus da raiva, que acabou com o Reino Unido em 28 dias. Sobreviventes de uma pandemia en- viam um prisionei- ro ao passado para buscar a cura. 6,6 Um funcionário da ONU procura os pri- meiros infectados em busca de uma cura para o apoca- lipse zumbi. 8,5 Vírus com origem num morcego sai da China, se espalha e obriga o mundo a ficar em casa. Familiar? 5,9 EPIDEMIA (1995) Um macaco contrabandeado da África carrega o vírus Ebola que infecta uma cida- de na Califórnia. 5,1 Jovens precisam es- capar de um labirinto – um experimento de uma sociedade pós-apocalíptica. 3,6 Uma parte de Seul é isolada após a descoberta de um vírus que mata em 36 horas. A GRIPE (2013) NOTA (-) REALISTA 6,7 Um satélite cai nos EUA e traz um vírus desconhecido, que começa a matar as pessoas da cidade. O ENIGMA DE ANDRÔMEDA (1971) (+) REALISTA CONTÁGIO (2011) GUERRA MUNDIAL Z (2013) EU SOU A LENDA (2007) 6,8 OS DOZE MA- CACOS (1995) EXTERMÍNIO (2002) 1,0 SAGA MAZE RUNNER (2014-2018) p l a y l i s tsn. 16 super maio 2020 SI_415_Playlist.indd 16 17/04/20 11:55 E d i ç ã o B r u n o G a r a t t o n i filme Vida Netflix A Estação Espacial Inter- nacional descobre vida alienígena. É um micróbio marciano, que os astronau- tas da ISS resolvem cultivar para estudar. E isso se mostra uma péssima ideia. Releitura moderna, e ainda mais assustadora, do clássico Alien. Série I Am Not Okay With This Netflix Sydney tem 17 anos e proble- mas típicos da idade. Briga com a mãe, vai mal na escola, tenta encontrar seu lugar no mundo. Tudo normal, exceto por uma coisa: a menina descobre que tem um poder sobrenatural, que se manifesta quando ela está com medo ou raiva. “ Meus irmãos e eu sempre fazíamos a mesma pergunta: quando ela vai surtar?", eScreve aamericana Eileen Garvin neste livro sobre a vida com a irmã mais velha, Margaret, portadora de autismo severo. Margaret é um terror: quebra coisas, bate em pessoas, arranca a roupa em público. Mas há uma lógica escondida sob todo esse caos – que, aos poucos, Eileen vai conseguindo desbravar. Eu, Minha Irmã e seu Universo Particular. R$ 30. Histórias da Gente Brasileira: República (1951-2000). R$ 60. O humorista Beppe Grillo foi banido da TV italiana por ridicu- larizar o primeiro-ministro Silvio Berlusconi. Então ele criou um par- tido político, o Cinque Stelle, que se tornou o maior do país. Mas Beppe era só um fantoche. Quem inventou tudo, e escrevia os discursos dele, era Gianroberto Casaleggio: um enge- nheiro de software com caracterís- ticas de gênio do mal. Uma história real, mas que chega a parecer ficção. Os Engenheiros do Caos. R$ 45. O palhaço e o cientista A física do impossível Prédios, favelas e restaurantes Por quilo O holandês M.C. Escher ficou famoso pelas "cenas impossíveis": desenhos de situações insó- litas, como uma escada infinita (que ele criou em 1960 baseado em cálculos do matemático Roger Penrose). Neste game, você atravessa cenários como os de Escher, só que em escala gigantes- ca – resolvendo puzzles e tentando sobreviver a situações que distorcem a lei da gravidade. O Brasil já foi um país de casinhas, com capitais harmo- niosas e ritmo de vida tranquilo. Neste livro, a historiadora Mary Del Priore explica como e por que tudo mudou, dando origem ao pior e ao melhor das cidades – como o rodízio de carnes, inventado sem querer por um garçom de Jacupiranga, e o pri- meiro quilão do mun- do: o Isto e Aquilo, inaugurado em Belo Horizonte em 1986. Quando foi lançado, em 2009, o jogo Call of Duty: Modern Warfare 2 chocou o público. Foi por causa de uma fase em que você pode (ou não) assumir o papel de terro- rista. Isso colocou o game, que também tem uma missão ambientada em uma favela do Rio de Janeiro, sob a mira da censura em vários países. Uma década depois, ele está de volta, agora com gráficos 4K e o mesmo enredo politi- camente incorreto – em que milícias, espiões e políticos detonam uma guerra global. A polêmicA em ultrA hd Modern Warfare 2 Remastered. Para PS4, Xbox One e PC. US$ 20. Manifold Garden. Para PC, iPad e iPhone (Apple Arcade). A partir de R$ 10. maio 2020 Super 17 SI_415_Playlist.indd 17 17/04/20 11:55 sn. t e c h Fo to s D iv ul ga çã o Os primeiros celulares dobráveis, como o Galaxy Fold e o Moto Razr, não conquistaram o mercado. É que, além de caros, eles não apresentam grandes vantagens práticas (quando estão abertos, ficam do tamanho de um smartphone comum). O protótipo da TCL é diferente. Quando ele é desdobrado, sua tela cresce para espantosas 10 polegadas, o tamanho O celular desdobrável Protótipo da chinesa TCL tem dois eixos dobráveis; quando está aberto, se transforma em um tablet do tamanho do iPad. Texto Bruno Garattoni transFOrmer O smartphone roda o sistema operacio- nal Android, e sua tela tem resolução total de 3K (3.000 x 2.000 pixels). A data de lançamento ainda não foi definida. de um iPad. Dá para ver vídeos, ler livros e revistas e navegar na internet usando a tela inteira, ou usar dois apps ao mesmo tempo, um em cada lado (você pode consultar a agenda enquanto escreve um email, por exemplo). O único porém é que, quando o smartphone está fechado, ele fica mais grosso do que um celular comum – parece uma carteira de couro. 18 super MAiO 2020 SI_415_Tech.indd 18 15/04/20 17:01 Cartão localizador o orbit (US$ 35) parece um cartão qualquer, mas é um localizador GPS: se você perder a carteira, pode encontrá-la por meio de um app (o cartão transmite a própria localização para o celular via Bluetooth). Ele também toca um alarme de 80 decibéis, bem alto, para ajudar. Sua bateria é recarregável, e dura três meses. você decide Os projetos mais interessantes (e surpreendentes) do mundo do crowdfunding Sem contato manual kickstarter.com Projeto Hygiene Hand O que é Um chaveiro que permite abrir portas, apertar botões e interagir com touchscreens sem tocá-las, reduzindo o risco de pegar coronavírus. O gadget é feito de cobre, material em que o SARS-CoV-2 sobrevive por menos tempo (4h). Meta US$ 5 mil Chance de rolar bbbb Esteira doméstica indiegogo.com Projeto WalkingPad O que é Uma esteira dobrá- vel para usar em casa. Ela serve para andar ou correr (a até 10 km/h), tem motor elétrico, amortecedor de impacto e um lugar para você colocar o smartphone. Tudo como as esteiras de academia. Mas com uma diferença: quando está fechada, a esteira fica com apenas 15 cm – dá para guardar atrás da porta. Meta US$ 20 mil Chance bbbb E d i ç ã o b r u n o g a r a t t o n i Elétrico e a álcool Em 2019, o Nike Vaporfly dominou as maratonas: 31 dos 36 atletas mais bem colocados, nas seis corridas mais importan- tes do mundo, usavam esse tênis – e, com ele, o recorde mundial de maratona caiu abaixo de 2h pela primeira vez. O Vaporfly era tão bom que acabou sendo banido. Seu segredo estava na sola, que tinha 40 mm de espessura e uma placa de fibra de carbono. O sucessor, que se chama Alphafly (US$ 250), tem “apenas” 39,5 mm. Está dentro do regulamento – por muito pouco. O Koenigsegg Gemera tem três motores elétricos, que somados produzem 1.100 cavalos de po- tência. Mas não para aí: também tem um propulsor de três cilindros movido a etanol, que gera mais 600 CV. O computador do carro, que alcança 400 km/h e acelera de 0 a 100 km/h em 1,9 segundo, coordena todos os motores. O Gemera tem 1.000 km de auto- nomia, e vai custar US$ 1,7 milhão. Os aparelhos de RV ainda têm pouca resolução: o Oculus Rift S, por exemplo, exibe 2.560x1.440 pixels, o que não é suficiente (a imagem fica meio granulada, como se houves- se uma rede de pesca na frente dela). Como as telinhas ficam muito perto dos seus olhos, precisam ter mais resolução. A Panasonic diz que chegou lá, e conseguiu criar os primeiros óculos 4K: eles exibem 3.840x2.160 pixels, mais que o dobro dos rivais. O preço e a data de lançamento não foram divulgados. Um tênis qUase ilegal Realidade viRtual mais Realista MAiO 2020 super 19 SI_415_Tech.indd 19 15/04/20 17:01 Muita coisa não será como antes. A ciência reinará, as fake news serão esmagadas, a polarização deve dimi- nuir; mas seremos mais vigiados, e controlados, pelos governos. Veja como a pandemia deve mudar a história – e os sinais de que esse processo já começou. O mundO pós- cOrOna- vírus Texto Emanuel Neves, Ricardo Lacerda e Bruno Garattoni Ilustração Davi Augusto Design Carlos Eduardo Hara c a p a 20 super maio 2020 SI_415_vidaposcorona.indd 20 16/04/20 00:20 Winston acorda, levanta da cama e liga a TV para fazer uma aula de ginástica. Depois do alongamento, a professora pergun- ta quem consegue tocar a ponta dos pés sem dobrar os joelhos. “Só a cintura. Um-dois! Um-dois!”, diz. Smith tenta, mas fracassa. Do outro lado da tela, a mulher o adverte: “Smith! Incline-se mais, por favor. Você pode fazer mais do que isso. Mais baixo. Assim está melhor. Agora, todo mundo, descansar!”. Em meio à pandemia de coronavírus, muita gente começou a fazer exercí- cios em casa com vídeos do YouTube. Mas o episódio acima tem mais de 70 anos. Foi escrito por George Orwell em 1948, quando surgiam as primeiras TVs, muito antes da internet. No romance 1984, o Estado usa “teletelas” para trans- mitir propaganda política (e, também, aulas de ginástica) o dia inteiro – e mo- nitora seus cidadãos 24 horas por dia. Quando a pandemia de coronavírus for superada, nascerá um novo mundo. Política, economia, saúde, ciência, rela- ções humanas: muita coisa não será co- mo antes. É bem provável, por exemplo, que você seja monitorado em tempo real pelo Estado, que usará dados para determinar o que você poderá ounão fazer. É algo que nem a fértil imaginação de Orwell pôde conceber – mas tem tudo para acontecer. Inclusive porque já está acontecendo. A vida em números Em 2009, o governo chinês começou a desenvolver um projeto chamado W maio 2020 super 21 SI_415_vidaposcorona.indd 21 16/04/20 00:20 “Sistema de Crédito Social”. Ele entrou no ar, em versão limitada, em 2014 – e ganhou contornos mais amplos, com regras mais duras, a partir de 2019. Funciona assim: cada cidadão recebe uma pontuação inicial, que aumenta ou diminui conforme sua conduta. Ganha pontos quem vai bem nos estudos, doa sangue ou faz serviço voluntário, por exemplo. Perde pontos quem atravessa a rua fora da faixa, passeia com o cachorro sem coleira ou atrasa o pagamento de impostos. A China usa 200 milhões de câmeras de vigilância, conectadas a um sistema de reconhecimento facial, para coletar dados sobre o comportamento de cada cidadão. “Lembra um pouco a cultura dos escoteiros, com seus valores sociais. Mas, no mundo digital, eu diria que é a gamificação da vida”, afirma Gil Giardelli, professor da ESPM e membro da Federação Mundial de Estudos do Futuro (WFSF), sediada em Paris. Um escore alto facilita a vida para financiar um imóvel, alugar um carro, conseguir melhores empregos ou entrar numa boa universidade. Uma pontua- ção baixa pode restringir o acesso a serviços públicos e proibir a pessoa de viajar – até junho de 2019, segundo o governo chinês, 26 milhões de passa- gens aéreas e 6 milhões de passagens de trem foram negadas a pessoas que tinham baixa pontuação (elas possuíam dinheiro para adquirir os bilhetes, mas foram impedidas de comprá-los). Atualmente, há vários sistemas de crédito social, que são gerenciados por empresas e governos locais da China e adotam critérios diferentes – mas eles deverão ser unificados. “A ideia é que o governo central faça um estudo e pense numa política que se expanda ao resto do país de maneira uniforme”, diz Evan- dro Carvalho, coordenador do Núcleo de Estudos Brasil-China da FGV Rio. Em 2018, um estudo online feito por pesquisadores alemães com 2.209 chi- neses revelou que 80% deles aprovavam os sistemas de crédito social que utili- zavam. Detalhe: todos eram sistemas privados, criados por empresas. Entre Na China, 6 milhões de pessoas foram impedidas de viajar de trem nos últimos anos. Motivo: possuíam baixo escore em um dos sistemas de crédito social empregados no país. 22 super maio 2020 SI_415_vidaposcorona.indd 22 16/04/20 00:20 os mais populares está o Sesame Cre- dit, da gigante varejista Alibaba, que usa algoritmos para determinar quem pode ou não pegar um empréstimo – ao menos essa é a proposta. Mas apenas 11% dos chineses sabiam que o gover- no também tem seu próprio sistema de pontuação social. Para Carvalho, o conceito de crédito social liderado pe- lo Estado está mais ligado a aspectos econômicos do que ao cerceamento das liberdades individuais. “A estabilidade é fundamental na vida dos chineses, e o sistema de crédito social tem a ver es- pecialmente com a produtividade”, diz. Mas observadores internacionais, co- mo a ONG americana Human Rights Watch (HRW), dizem que o crédito social pode ter um lado mais sinistro: o governo chinês, que já monitora for- temente a internet, poderia aumentar ou abaixar a pontuação dos cidadãos conforme os sites que eles acessam, com quem se comunicam e o que postam. Seria uma forma de controlar, implaca- velmente, a ideologia da população. “Por enquanto, critérios políticos não estão incluídos no sistema, mas falta pouco para que isso seja feito”, diz Kenneth Roth, diretor da HRW. E a coisa vai além: no futuro será possível utilizar até mesmo sinais biométricos, como a frequência cardíaca e a temperatura corporal, para monitorar as pessoas. No futuro não. No presente mesmo. O coronavírus acelerou e aprofundou o processo de monitoração. Em diversas cidades da China (e do resto do mundo), a entrada e saída de pessoas em prédios é controlada: fiscais tiram sua tempera- tura, e você não pode entrar se estiver com febre (que é um sintoma comum da infecção pelo SARS-CoV-2). O acesso a locais públicos, como supermercados, também está sendo regulado, com da- dos fornecidos por plataformas como WeChat e Alipay. Com mais de 1 bilhão de usuários, esses superaplicativos já faziam parte da rotina dos chineses, porque servem para quase tudo: para pagar compras (substituindo cartões de débito ou crédito), pedir delivery, como rede social e para transferir e receber dinheiro. Com o surgimento da pandemia, os cidadãos foram obrigados a baixar um novo app, o Alipay Health Code, que mescla dados do seu histórico de saúde e dos lugares onde você esteve para avaliar o seu risco de estar infectado. Ele atribui um QR code, e uma cor, a você – que tem de mostrar o código antes de pegar transporte público, entrar em lojas ou, em alguns casos, até sair do seu apartamento. Se o status for verde, você tem permissão para circular em locais públicos. Amarelo indica contato com indivíduos ou regiões de risco, e limita os lugares onde você pode en- trar. Já o vermelho significa que você pode estar contaminado, e deve se isolar imediatamente. Tudo isso tem ajuda- do a conter a pandemia. Mas também cria uma rotina orwelliana, no melhor estilo Grande Irmão, a figura que re- presenta o totalitarismo absoluto em se a sua “pontuação social” for baixa, você será barrado em locais públicos. maio 2020 super 23 SI_415_vidaposcorona.indd 23 16/04/20 00:20 1984 – mesmo porque o governo chinês não explicou detalhadamente como o seu sistema calcula a cor atribuída a cada pessoa. E isso abre espaço para arbitrariedades: num futuro pós-pan- demia, pessoas com baixa pontuação social poderiam ser punidas com um equivalente à cor vermelha, e ter sua circulação restrita, por qualquer motivo. A Coreia do Sul, apontada como re- ferência no enfrentamento da pandemia, também está monitorando fortemente seus cidadãos: o governo utiliza SMS para informar onde há pessoas poten- cialmente infectadas e os locais em que elas estiveram recentemente. Quando um caso positivo é registrado, o pacien- te precisa responder um questionário dizendo por onde andou e com quem esteve. E não só as pessoas que tive- ram contato com ele são avisadas, mas também desconhecidos que possam ter cruzado seu caminho – como o caixa do mercado ou o motorista do aplicativo de transporte. Isso só é possível porque as respostas fornecidas pelos infectados são cruzadas com dados de cartão de crédito, do GPS do celular e, claro, de câmeras de vigilância – também co- muns nas ruas coreanas. Isso também tem sido eficaz no combate à pandemia. Mas é um padrão de vigilância inédito, e que não será “desinventado” quando a poeira do vírus baixar. O fato é que a vigilância está, sim, se espalhando pelo mundo. No dia 10 de abril, Apple e Google anunciaram que estão desenvolvendo um novo sistema de rastreamento para o iOS e o Android. Ele utiliza a tecnologia Bluetooth Low Energy para mapear a proximidade en- tre as pessoas, e irá registrar todos os indivíduos de quem você se aproximou fisicamente – e, se algum deles testar positivo para coronavírus, você será in- formado. O sistema será implantado por meio de uma atualização, que chegará a basicamente todos os smartphones do mundo nas próximas semanas, e servirá como base para aplicativos desenvol- vidos pelos governos (Apple e Google não farão o rastreamento; só fornecerão a infraestrutura para que ele ocorra). A Rússia também está na ciranda. Já começou a desenvolver um aplicativo, de uso obrigatório, que usará um QR code para armazenar dados sobre seus cidadãos. Alemanha e Itália estão usan- do dados fornecidos pelas operadoras de celular, que permitem saber onde cada pessoa esteve. E o governo brasi- leiro anunciou que adotará um sistema similar, monitorando 220 milhõesde celulares. Segundo o SindiTelebrasil, grupo que reúne as operadoras, os da- dos serão anonimizados e fornecidos com 24 horas de atraso, ou seja, não revelarão a identidade das pessoas nem sua localização em tempo real. A ideia é utilizar as informações para entender melhor como a população, de modo ge- ral, está se deslocando. Em Israel, o monitoramento de ce- lulares acabou dando margem a medi- das mais agressivas. O primeiro-mi- nistro Benjamin Netanyahu anunciou a saúde de cada pessoa poderá ser monitorada pelo go- verno em tempo real. 24 super maio 2020 SI_415_vidaposcorona.indd 24 16/04/20 00:20 o monitoramento da localização dos cidadãos. Em seguida, fechou todos os tribunais do país e passou a governar por decreto. “O coronavírus matou a democracia em Israel”, escreveu o his- toriador israelense Yuval Noah Harari. Ele está acostumado a lidar com o tema. Em seu livro 21 Lições para o Século 21, lançado em 2018, dedicou um capítu- lo inteiro ao que chamou de ditaduras digitais. “Nas mãos de um governo be- nigno, algoritmos de vigilância podem ser a melhor coisa que já aconteceu ao gênero humano. Mas também podem dar poder a um futuro Grande Irmão”, escreve. Para Harari, é muito provável que os palestinos já estejam sendo mo- nitorados pelos israelenses. Sim. É comum que, em momentos de crise, os países aprovem leis aumen- tando o poder do Estado. O problema, como dissemos, é que algumas dessas medidas podem se tornar eternas. Foi o que aconteceu nos EUA após o 11 de Setembro, em 2001. À época, o Con- gresso aprovou a Patriot Act, uma lei que autoriza o governo a espionar qual- quer cidadão americano. Originalmente, ela teria validade até 2005 – mas está em vigor, com pequenas alterações, até hoje. E o coronavírus já provocou uma nova pancada do Estado nos direitos civis. Em março, o Departamento de Justiça (DOJ) procurou lideranças do Congresso dos EUA, sugerindo um pa- cote com ações drásticas. As medidas, que ainda não foram aprovadas, permi- tem à polícia prender qualquer pessoa por tempo indeterminado, sem direito a julgamento. Na Hungria, o primeiro- ministro Viktor Orban obteve poder absoluto: agora, ele pode criar e extin- guir leis, sem passar pelo Congresso. O Parlamento britânico aprovou um pacote de leis, com nada menos do que 327 páginas, que aumenta radicalmente o poder policial e jurídico do Estado. As medidas foram apelidadas, pejora- tivamente, de “poderes de Henrique 8o” – referência a esse rei inglês, que no século 16 governou o país por decreto, seguindo apenas as próprias decisões. Num futuro possível, informações que hoje são privadas, como quais doenças você teve durante a vida, podem estar até em aplicativos de encontro. maio 2020 super 25 SI_415_vidaposcorona.indd 25 16/04/20 00:20 Num artigo escrito em março, Yuval Harari afirma que a Covid-19 pode se revelar um divisor de águas na história da vigilância. Primeiro, por normalizar seu uso em países democráticos, como vimos aqui. Segundo, por representar uma transição dramática da vigilância sobre a pele para uma vigilância sob a pele. O coronavírus vai passar, mas o trauma que ele deixa não; por muito tempo, a sociedade conviverá com o medo de novos vírus. E isso poderá ser usado para adicionar uma nova camada de monitoramento. No futuro, poderemos ser conven- cidos a usar uma pulseirinha digital, ou um smartwatch, que medirá nossa temperatura corporal e batimentos cardíacos e enviará essas informações para o governo, que as utilizará para analisar quem está ou não doente. Is- so tem um lado muito positivo: ajuda mesmo a conter eventuais epidemias. A maioria das pessoas tenderia a aceitar, ignorando o lado sinistro da coisa – se o governo monitora os seus batimentos cardíacos e a sua navegação na internet, consegue saber quais notícias e textos deixam você tranquilo ou irritado. E a partir daí pode inferir, em certo grau, sobre o que você pensa. Essa capacidade, combinada com os sistemas de pontua- ção social, daria aos governos um poder realmente orwelliano sobre os cidadãos. Esse cenário, que hoje soa meio exa- gerado, pode se tornar tão comum quan- to usar máscaras para ir ao supermer- cado – coisa que ninguém fazia mesmo quando o vírus já tinha começado a circular, e virou norma. As grandes catástrofes têm o poder de acelerar a história e tornar corriquei- ras coisas que antes pareciam inima- gináveis. Mas, na era pós-coronavírus, a sociedade não irá mudar apenas “de cima para baixo”. Ela também será transformada em outro plano: como nos relacionamos uns com os outros. Hands off O aperto de mãos é um hábito milenar: os registros mais antigos remontam à Babilônia, atual Iraque, por volta do século 9 a.C. Mas, durante a maior parte da história, esse era um gesto relativamente raro, usado em situações específicas (como fechar um negócio ou checar se a outra pessoa estava ar- mada). Apertar as mãos de todo mundo, como cumprimento universal no dia a dia, surgiu com os Quakers, um grupo religioso protestante, na Inglaterra do século 17. Para eles, o aperto de mão simbolizava a igualdade entre as pesso- as, independentemente da classe social. A moda foi parar nos livros de etiqueta do período vitoriano, e acabou adota- da pela maioria das pessoas. Mas nem todas. No Japão e na China, as pessoas saúdam umas às outras curvando leve- mente o tronco. Na Índia e na Tailândia, fazem um meneio de cabeça com as mãos sobre o peito. O aperto de mãos não é tão universal quanto se imagina. E quando a pan- demia for superada, talvez seja ainda menos. “Já é assim em outras culturas. O coronavírus tende a reforçar isso”, diz o psicanalista Christian Dunker, pro- fessor da USP e autor de A Reinvenção da Intimidade. Também pode ser que, passada a 26 super maio 2020 SI_415_vidaposcorona.indd 26 16/04/20 00:20 pandemia, todo mundo volte a apertar as mãos e pronto (foi o que aconteceu após a gripe espanhola de 1918, afinal). Mas a vida não voltará ao normal tão cedo, pois dificilmente alguém sairá do isolamento com a saúde mental intacta. A questão é que o ser humano evoluiu para ser intensamente social, pois isso era (e é) uma questão de sobrevivência. O confinamento é uma surra diária que damos nesse instinto. E a mente não gosta de apanhar todo dia. No começo de março, cientistas da Universidade de Xangai publicaram o primeiro grande estudo sobre o impacto psicológico do coronavírus. Entrevista- ram 52 mil chineses, de 36 províncias e cidades. Nada menos do que 35% apresentaram transtornos psicológicos como ansiedade, depressão, compulsões e fobias (incluindo agorafobia, medo de espaços abertos). É muito acima da média clássica, que fica entre 5% e 10%. Especialistas têm previsto uma explosão nas taxas de doenças psíquicas durante a pandemia. E depois. Vamos sair dessa bem diferentes do que entramos. Mas não apenas para pior. A pós-mentira Em 2016, o Dicionário Oxford elegeu “pós-verdade” como a palavra do ano. Nunca se mentiu tanto, sobre tudo. As o home office não será visto como pri- vilégio, mas como um modelo de trabalho. Antes da pandemia, 45% das empresas brasileiras já permitiam algum grau de home office. Isso só deverá crescer – e, possivelmente, se tornar o novo normal. maio 2020 super 27 SI_415_vidaposcorona.indd 27 16/04/20 00:20 fake news infestaram o mundo por um motivo simples: elas funcionam. “As pessoas se identificam com aquela informação, mesmo sem fundamento. É quase uma torcida”, diz Diogo Rais, professor da Universidade Mackenzie e fundador do Instituto Liberdade Digital. A pandemia vem tendo seu quinhão de notícias falsas, mas há sinais de que a onda está começando a virar. As redes sociais deram o primeiro passo. Em março, Twitter, Facebook e Instagram excluíram posts que continham men- tiras sobre o coronavírus – incluindo mensagens publicadas por chefes de Estado, como os presidentesJair Bol- sonaro e Nicolás Maduro, e o ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani. Essa censura das redes sociais, mesmo com intenção protetiva, abre um precedente arriscado. “Como sociedade, aceitamos esse controle, dada a gravidade da situ- ação. Mas pode ser um caminho sem volta”, diz Pablo Ortellado, professor de gestão pública da USP. Também há outro fator envolvido: uma certa “pressão evo- lutiva”. Os indivíduos que acreditarem em mentiras, e não se protegerem contra o SARS-CoV-2, correrão maior risco de ter Covid-19 – e os sintomas pesados da doença poderão forçá-los a aceitar, na própria pele, as verdades científicas. A primazia da ciência, por sinal, deverá ser outro eixo do mundo pós- coronavírus. Em condições normais, uma decisão ou política equivocada pode levar décadas até mostrar seu efeito negativo. Agora, não é assim: a conta chega rápido, e pode ser altíssima. “A crise pode representar uma derrota a quem se coloca como antagonista da ci- ência e das universidades”, diz Ortellado. Essa mudança poderá reduzir outro elemento central da última década: a polarização ideológica. É o que acredita o psicólogo Peter Coleman, professor da Universidade Columbia e especia- lista em resolução de conflitos. Ele se baseia em duas premissas. A primeira é histórica: pela primeira vez em cem anos, desde a gripe espanhola, a hu- manidade tem um inimigo comum – o coronavírus, contra o qual todos são iguais. A outra é estatística: números mostram que eventos graves tendem a unir os povos. Uma análise feita pela Universidade de Michigan, que analisou 850 conflitos políticos ocorridos entre 1816 e 1992, constatou que 75% acaba- ram após o surgimento de um grande choque. Coleman cita como exemplo a política americana após a Primeira Guerra Mundial (1918), que estabeleceu uma convivência mais pacífica entre democratas e republicanos até 1980. As eleições vão mudar, até na forma: a médio prazo, têm grande chance de acontecer online. Eleições pela internet exigiriam um período maior de vota- ção, de uma semana ou até um mês: é a única forma de evitar que falta de energia elétrica, congestionamentos na rede (eleições online não são como votação do Big Brother, demandam sistemas parrudos de segurança) ou outros problemas técnicos impeçam a médio prazo, as eleiçÕes serão online – mas isso poderá banalizá-las. As votações do Congresso Nacional já estão sendo feitas pela internet – e isso pode ser um primeiro passo para o uso da rede nas eleições gerais. 28 super maio 2020 SI_415_vidaposcorona.indd 28 16/04/20 00:20 as pessoas de participar. Votar sem sair de casa poderia banalizar as eleições e gerar polêmica, já que não há como recontar os votos. A solução pode estar em tecnologias como o Blockchain, um banco de dados praticamente impos- sível de fraudar. Ele já foi usado para que militares americanos que estavam fora dos EUA votassem nas eleições de 2018. A Estônia, um pequeno país do Leste Europeu, adota o voto onli- ne desde 2007. No Brasil, o primeiro passo nessa direção veio do Congresso Nacional, que tem votado remotamente durante a pandemia. Nossos deputados e senadores estão em home office. Eles mais seis em cada dez brasilei- ros. Essa é a massa que estava traba- lhando de casa em março, de acordo com a empresa de monitoramento Hi- bou. E muitos continuarão assim. Em 2019, 45% das empresas já permitiam alguma espécie de home office, segundo a Sociedade Brasileira de Teletrabalho. Mas isso era visto como um privilégio. “Agora, passará a ser considerado um modelo de trabalho”, diz Leonardo Ber- to, da consultoria de RH Robert Half. As empresas irão repensar a necessidade de manter escritórios grandes e caros – o que deve diminuir o trânsito, a poluição e o consumo de energia. Mas o trabalho não será totalmente remoto. Encontros e feiras de negócios terão ainda mais força. “Serão oportunidades para a cria- ção das redes de relacionamento, algo que o mundo virtual não oferece da mesma maneira”, afirma Berto. Vamos sair da pandemia machucados, mas também evoluídos. E o período de isolamento extremo, paradoxalmente, pode acabar tendo o efeito contrário: reforçar a comunhão social. Foi o que aconteceu na China, primeiro país a conter a crise. Em 4 de abril, primeiro dia sem quarentena, multidões lotaram os parques, pontos turísticos e espaços públicos das cidades. As pessoas es- tavam desesperadas para sair de casa. Mas também celebrar, numa apoteose coletiva, o único desfecho aceitável: a vitória da humanidade sobre o vírus. S maio 2020 super 29 SI_415_vidaposcorona.indd 29 16/04/20 00:21 Só tem um jeito de evitar que a Covid-19 cause a Grande Depressão do século 21: o governo ligar as im- pressoras de dinheiro e encontrar uma forma eficiente de fazer a grana chegar aonde ela deve. Entenda como o jogo econômico funciona. E veja os caminhos possíveis. Texto Alexandre Versignassi Ilustração Denis Freitas Design Lucas Jatobá como salvar a economia B r a s i l SI_415_Economia.indd 30 16/04/20 13:45 o episódio conhecido como Grande Depressão consistiu numa queda de 26% no PIB dos EUA entre 1929 e 1933. O Goldman Sachs, um banco americano, prevê um baque de 24% por lá só neste trimestre (que vai de abril a junho). O UBS, um banco suíço, imagina algo na mesma linha para o Brasil: tombo de 20% no PIB. É isso. A queda agora deve concentrar em três meses os quatro anos da maior crise econômica que o mundo já viu em tempos de paz. Até o fechamento desta edição, não havia dados concre- tos sobre o aumento no desemprego no Brasil em março, o mês em que o coronavírus começou a fechar o País. Mas as pre- visões eram feias – uma subida dos 11% de feve- reiro para mais de 16%. Nos EUA, idem: a maior economia do mundo viu 16 milhões de vagas eva- porarem em três semanas. 10% da força de trabalho deles foi para a rua da noite para o dia. Danou-se, então? C a l m a . A G r a n d e Depressão só virou o que virou porque o governo dos EUA fez o favor de ficar de braços cruzados. Aquela crise começou com o Crash de 1929, uma queda abrupta de 23% em dois dias no valor das ações mais negocia- das na Bolsa de Nova York (o fundo do poço O maio 2020 super 31 SI_415_Economia.indd 31 16/04/20 13:45 Bancos centrais têm o poder de imprimir dinheiro. Mas seu papel não é pagar os gastos do governo. para evitar a queda. A justificativa era quase religiosa: não haveria ajuda do Estado porque a ideia era justamente fazer uma “faxina”. Tirar do jogo os “especuladores”. “Isso expurgará o sis- tema, que está podre”, disse Andrew Mellon, então secretário do Tesouro (equivalente a ministro da Fazenda) dos EUA. “Os padrões de vida serão reduzidos. As pessoas trabalharão mais, levarão uma vida mais de acordo com a moralidade. Os valores se ajustarão, e os empreendedores recolherão os destroços dos menos competentes.” Deu ruim. A economia parou de cair em 1934, mas o desemprego continuaria roçando na casa dos 20% por vários anos. “O que realmente pôs um fim na Grande Depressão foi um programa massivo de obras públicas chamado Segunda Guerra Mundial”, disse certa vez o Nobel de economia Paul Krug- man. De fato. A produção de aviões, navios de combate e a logística brutal das operações de guerra na Europa e no Pacífico criaram uma situação de pleno emprego nos EUA – com o índice de pessoas sem trabalho caindo para míse- ros 1,2% em 1944, no auge do conflito. Esse boom na produção fez o PIB americano crescer severamente durante a Guerra – entre 1941 e 1943, admiráveis 15% ao ano. Mas de onde vinha a grana para pagar o pessoal que fazia os aviões, os encouraçados, a comida e o cigarro dos soldados? Vinha da grande casa de papel americana: o Federal Reserve (Fed), que é o Banco Central deles. Bancos centrais têm o poder de impri- mir dinheiro, e fazem parte do governo. Mas seu papel nas economias não épagar os gastos do governo. O que eles só viria em 1932, com uma queda acumulada de 89%). A queda não teve uma razão. Não havia guerra, pandemia nem nada parecido à espreita. Foi basicamente um tombo forte do mercado depois de anos de subida incessante. Acontece. Esse baque inicial, porém, criou um efeito dominó. Bancos que tinham dinheiro demais investido em ações fali- ram. Com menos bancos, muitas empresas ficaram sem ter como tomar dinheiro emprestado para as despesas do dia a dia. Quebraram. Com menos empresas, come- çou a faltar emprego. Sem emprego, o consumo bai- xou. E mais empresas quebraram, retroalimen- tando o círculo vicioso. A crise se espalharia pelo mundo, pois já havia uma economia global – e os EUA já eram o jogador principal ali. O governo de lá pode- ria ter dado uma força. O Estado tem o poder de criar moeda. De imprimir dinheiro. E quando falta dinheiro em circulação, o governo tende a mate- rializar esse dinheiro mágico, para evitar que seus cidadãos acabem se estapeando no meio da rua por maçanetas de porta ou por comida. Mas não. O governo dos EUA não fez nada fazem no dia a dia é controlar o volume de moeda que circula pela economia. Se os índices de inflação começam a subir, significa que tem dinheiro demais na praça. No caso, mais dinheiro em circulação do que coisas que exis- tem para comprar com esse dinheiro. Então os preços sobem. Inflação. E aí quem perde o valor é o dinheiro. Um Banco Central (BC) existe para manter o valor da moeda. Para evitar tal perda de valor, o Banco Central age para tirar dinheiro da economia. Então ele chega nas insti- tuições financeiras, ou seja, nos bancos normais, pedindo dinheiro emprestado. Não que ele precise (ele tem o poder de fabricar moeda do nada, afinal). Ele só pega emprestado dos bancos para que os bancos não possam emprestar esse dinheiro para o público, para nós. Para que os bancos topem empres- tar, ele oferece juros mais gordinhos. Quando você vê no noticiário que “os juros subiram”, é isso que aconteceu. Mas tem um outro lado nessa moeda. Se os índices de inflação estão caindo, o que acontece? O BC fica lá parado estourando champanhe para come- morar a valorização da moeda? Não. Inflação é ruim. Mas deflação, queda generalizada nos preços, é pior. Sig- nifica que a economia está deixando de funcionar, que ninguém mais está comprando nada. Nos EUA da Grande Depressão, os preços caíam 15% ao ano, por pura falta de demanda. No mundo pós-coronavírus, vale adiantar, é o que já está acontecendo. Então o que é o ideal? Uma inflação absolutamente zero? Também não. Se nenhum preço jamais sobe, significa que a economia congelou. Preços em ligeira alta, num setor específico, são um bom sinal. Se o preço da pizza no seu bairro está subindo, isso pode sig- nificar que há espaço para você criar uma pizzaria. E isso é bom. O que os governos fazem, então, é estabelecer uma meta de inflação para o ano. No Brasil, ela está em 4% para 2020. E isso significa o seguinte: se os índices de inflação estiverem abaixo de SI_415_Economia.indd 32 16/04/20 13:45 É o quanto a economia brasileira pode cair no terceiro trimestre. 20% maio 2020 super 33 SI_415_Economia.indd 33 16/04/20 13:45 Os EUA dArãO dinhEirO A pEqUEnAs EmprEsAs pArA pAgA- mEntO dE sAláriO. E não vão cobrar dE volta. 4%, o Banco Central tem a obrigação de imprimir dinheiro – mais exatamente, de criar moeda eletrônica, já que nin- guém mais usa dinheiro de papel. Então ele cria essa moeda e faz o quê? Depo- sita na nossa conta? Infelizmente não. Ele pega e dá emprestado, a juros baixi- nhos, de pai para filho, para os bancos. Quando você vê no noticiário que “os juros caíram”, foi isso que aconteceu. Com mais dinheiro na mão, os ban- cos tendem a emprestar mais. É assim no mundo inteiro. O nome dessas joga- das entre o Banco Central de um país e os bancos normais que operam ali é “política econômica”. É ela que determina o valor do dinheiro e dá forças para a economia crescer quando esse dinheiro está devidamente valorizado. No Brasil, o BC só pode imprimir dinheiro para fazer a tal política econô- mica. A Lei de Responsabilidade Fiscal, editada no ano 2000, tem um ponto importantíssimo: proíbe a impressão de dinheiro para financiar o Estado. Isso é ótimo, já que nos livrou de qualquer nova ameaça de hiperinflação. Para sempre. Se o governo quiser construir está- dio, hidrelétrica ou hospital, vai ter de arranjar o dinheiro por conta própria. Que se vire cobrando mais impostos ou pegando emprestado na rua. E é o que ele faz mesmo. Ele pede emprestado “na rua” lançando títulos públicos. Um título público é como se fosse um vale que diz “Obrigado por emprestar R$ 1.000 ao seu maravilhoso governo. Pro- metemos pagar R$ 1.100 de volta daqui a três anos”. Aí o governo paga ou com o dinheiro que entrar de impostos lá na frente ou fazendo uma dívida nova, com outra pessoa, para não te dar um calote. Rola a dívida. O nome do montante que o governo deve é “dívida pública”. A do Brasil, como a de qualquer outro país, vem sendo rolada desde o Pré-Cambriano. Está hoje em quase R$ 6 trilhões (ou 80% do PIB, que é como os técnicos medem as dívidas de cada país). O resto é igual na sua vida: quanto maior a dívida, maior o risco de calote, então o governo precisa pagar juros maiores para continuar rolando. Se o Banco Central pudesse imprimir dinheiro para comprar títulos públi- cos, estaria financiando o governo por magia. É isso que a nossa Lei de Responsabilidade Fiscal proíbe. E a compra nem precisa ser direto do governo. Se um banco tem uma tonelada de títulos públicos em seu poder (e todos têm), o BC vai lá, imprime dinheiro e compra. Nisso, o governo ganha uma folga: deixa de ter dívida com o banco. O dinheiro que o Estado usaria para rolar essa dívida fica livre para ele gastar como bem entender. Na prática, é exatamente como se o BC tivesse imprimido o dinheiro e dado de presente para os cofres da União. A Lei de Responsabilidade Fiscal, então, não permite que o BC compre títulos – a não ser para fazer a tal política econômica. Nos EUA é diferente. Não existe uma lei assim. O Fed pode criar dinheiro para comprar títulos públicos. Tem licença para imprimir dinheiro. E agora o Bra- sil segue pelo mesmo caminho. A PEC do “Orçamento de Guerra”, aprovada em abril pelo Congresso, permite a compra de títulos públi- cos com dinheiro novo, pelo menos enquanto vigorar o estado de cala- midade pública. Isso dá poder de fogo ao governo para ban- car medidas anticrise, como aquela ajuda de R$ 600 por três meses e as liberações de seguro- desemprego a quem tiver o salário reduzido ou suspenso. E não menos importante: vai deixar os bancos com muito mais dinheiro para emprestar. 34 super maio 2020 SI_415_Economia.indd 34 16/04/20 13:45 O grande riscO de ligar as impressOras de dinheirO é criar inflação – e destruir o valor da moeda. amplo e barato, principal- mente para os pequenos comércios. Se não signi- ficar, uma injeção direta de dinheiro novo, à la Fed, será urgente. Medidas assim, de qualquer forma, tendem a gerar inflação. Haverá mais dinheiro na praça do que a capacidade que temos de produzir coi- sas para serem compra- das com esse dinheiro. Quando os índices de inflação subirem, os governos terão de drenar moeda das economias – aumentando os juros. Aí que a porca torce o rabo. Aumento de juros man- tém o valor da moeda, mas reduz a atividade econômica. E não pode- mos nos dar a esse luxo nos próximos meses, sob pena de entrarmos numa Grande Depressão. A melhor forma de agir, então, é usar as impresso- ras, mas com moderação. Com que grau de mode- ração? Ninguém sabe. Será na tentativa e erro. Porque a economia pode até ser a mais exata das ciências humanas, mas também é a mais humana das ciências exatas. S previsões são de umaretomada firme já no terceiro trimestre (julho- setembro), com subidas de mais de 15% no PIB, seja aqui, seja lá fora. O ano fecharia ainda numa recessão brava, mas administrável: na casa de 5% negativos. Mesmo assim, o Fed radicalizou. Decidiu fazer ele mesmo certos empréstimos, para não ter de se ajoelhar para os bancos. O BC dos EUA criou um programa de resgate a pequenas e médias empresas. Eles imprimem os dólares e emprestam para você, empresário. Os juros são de 1% ao ano. E tem um plot twist aí: se você provar que gastou 75% com paga- mento de salários, e os outros 25% em aluguel, água, luz, eles perdoam a dívida. Fica por isso mesmo. Não é juro zero. É amortização zero. Dinheiro de graça para pagar salário. Isso vai cobrir metade da força de trabalho dos EUA. No Brasil, as fichas estão com os bancos. As compras de títulos públicos e privados pelo BC colocará mais de R$ 1 trilhão no colo deles. Espera-se, então, que isso signifique crédito Além disso, a PEC permite que o BC compre títulos privados em poder dos bancos. Ou seja: se a Petrobras deve R$ 1 bilhão para o Bradesco, o BC pode dar esse bilhão ao Bradesco, e aí assume para si o risco de a Petrobras não pagar. É o que os EUA estão fazendo também. A ideia principal é encher os bancos de dinheiro novo e pedir pelo amor de Deus para que eles emprestem mais, e a juros menores. Se esses títulos privados forem de companhias menores, melhor ainda. Você mata dois coelhos: enche o caixa dos bancos e desafoga a rola- gem de dívidas das pequenas empresas – ainda mais levando em conta que elas respondem por 54% das vagas formais no Brasil. A fé de que esse tipo de medida dê resultado é grande. Tanto que as maio 2020 super 35 SI_415_Economia.indd 35 16/04/20 13:45 M U N D O SI_415-wet-markets.indd 36 16/04/20 14:03 WET MARKETS A criação e venda de animais exóticos empregam 14 milhões de pes- soas na China. Entenda por que esse hábito é uma bomba-relógio de pandemias – e o que o país tem feito para impedi-lo. Texto Guilherme Eler Ilustração Sapo Lendário Design Maria Pace Edição Bruno Vaiano SI_415-wet-markets.indd 37 16/04/20 14:03 Fotos: Getty Images Da fome à peste O consumo de animais selvagens na China, que surgiu em tempos de escassez, hoje é sinal de status – e fonte de vírus peri- gosos para a humanidade. Grande fome (1958) Governo de Mao Tsé- Tung passa a controlar terras dos agricultores. Entre 1958 e 1961, 40 milhões morrem de inanição na China. Gripe de HonG KonG (1968) Gripe H3N2 sofre mu- tação em aves (talvez na China, talvez em Hong Kong, não se sabe). redistribuição das terras (1978) Reforma agrária redistribui as terras. Pequenos produtores passam a criar animais exóticos para venda. EnTRE 1958 E 1961, toda a agricultura e pecuária da China foram “coletivizadas” pela ditadura comunista de Mao Tsé- Tung. A propriedade privada se tornou ilegal. Pequenas e grandes fazendas se tornaram estatais; a produção de grãos era recolhida por agentes do governo e então redistribuída. Além de perder a posse de suas terras, os camponeses recebiam em troca do trabalho uma parcela minúscula da produção. Com os produtores rurais completamen- te desmotivados a investir para as safras futuras, a produção caiu. Mas oficiais fal- sificavam os dados para dar a impressão de que havia mais grãos – e ficar bem na fita com o poder central. Grandes quantidades de alimento eram remetidas às cidades. Os camponeses que produ- ziram esse alimento pagavam o pato e ficavam com cotas ainda menores que as normais (ou cota nenhuma). Adicione a esse cenário alguns desastres naturais, nenhuma imprensa para fazer denúncias e opressão violenta, e o resultado foi a fome. Dos 900 milhões de habitantes que a China tinha na época, 40 milhões morreram de inanição. Em 1978, teve início um processo de re- forma agrária e as terras voltaram a ser privadas. Logo de cara, as criações mais tradicionais (porcos, frangos e bois) aca- baram concentradas nas mãos de gran- des proprietários. Com a expansão da economia e empresários centralizando a produção, as propriedades familiares perderam espaço. Os preços caíram e os produtores de subsistência já não conseguiam mais competir. e SI_415-wet-markets.indd 38 16/04/20 14:03 A criAção de AnimAis exóti- cos gerA Us$ 70 bi AnUAis. Muitos, então, passaram a apostar na criação de animais exóticos. De início, o governo chinês fez vista grossa à prática. Apesar de ser um desas- tre ambiental e sanitário, a criação desses bichos em cativeiro garantia empregos e fazia girar a economia, evitando outra crise de fome. Veja bem: as espécies selvagens não eram fonte de alimento para os pobres, e sim fonte de renda. Elas eram ven- didas a pessoas com mais dinheiro – como acontece com as criações de lagosta no Nordeste brasileiro. Uma década depois, em 1988, o governo deu bên- ção à prática, baixando uma lei que considerava animais exóticos recursos naturais – cuja exploração, portanto, era autorizada. Negócios de fundo de quintal se expandiram e viraram verdadeiras linhas de produção de cobras, tartarugas, pavões etc. Essa lei, desde então, foi revisada quatro vezes. Até 2019, 400 espécies de animais eram protegidas. Não podiam ser caçadas ou vendidas. Mas outras 1.480 espécies ainda eram legalizadas, desde que os produtores seguissem certas normas. E centenas de espécies exóticas, algu- mas comuns nos merca- dos, não são mencionadas. Estima-se que 14 milhões de pessoas trabalhem em atividades ligadas a ani- mais exóti- cos na Chi- na. Em 2016, um relatório da Academia Chinesa de Engenharia calculou o valor dessa i n d ú s t r i a em US$ 73,3 bilhões. A demanda por couro e pelagem, principalmente de doninhas, raposas e guaxinins, corresponde à maior porcentagem des- se valor (US$ 55 bilhões). Outros US$ 17,6 bilhões são gerados pela venda de carnes exóticas. Répteis são o tipo preferido: mo- vimentam US$ 9 bilhões ao ano. Por fim, US$ 700 milhões são gerados pela criação de animais pela ob- tenção de matérias-primas consideradas terapêuticas ou estimulantes sexuais pela milenar medicina chinesa, como bile de ur- so e escamas de pangolim. Consumir esses produ- tos se tornou símbolo de status a partir da década de 1990 (ainda que, hoje, pouca gente mantenha o hábito – como veremos adiante). O impacto positivo na economia, anos mais tar- de, causaria problemas de saúde pública em escala internacio- nal. Afinal, d i ve r s o s vírus que afetam hu- manos fa- zem a festa também em a n i m a i s . Porcos po- dem transmitir ebola, hepatite e gripe. Bois e vacas foram os primeiros hospedeiros do vírus do sarampo. E a Mers chegou aos humanos de carona em camelos. Dos 1.415 patógenos que infectam humanos, 61% têm ori- gem em outras espécies. É por isso que o consu- mo de carnes exóticas é tão arriscado: se animais que convivem conosco há milênios já carregam sur- presas, imagine que tipo de micróbio nos aguarda em espécies que não fa- zem parte do cotidiano. Os wet markets Não precisa imaginar. Isso já aconteceu. Nas cidades chinesas, existe uma du- radoura tradição de mer- cadões com dinâmica de feira livre – similares aos que vendem frutas, legu- mes e carnes em qualquer cidade do mundo. São os chamados wet markets. Wet significa “molhado” ao pé da letra. Na práti- ca, a palavra se refere a produtos perecíveis, em oposição aos não perecí- veis, chamados dry goods (os “secos”). Antigamen- te, era comum que arma- zéns tivessem na porta placas com a expressão “secos e molhados” – daí o nome da banda de Ney Lei de proteção à vida seLvagem (1988) Na prática, fez o contrário do que diz: autorizou a criação de animais exóticos. sars (2002) O coronavírus Sars- CoV, transmitido por civetas – vendidas nos wet markets –, infecta mais de 8 mil pessoas pelo mundo. pós-sars