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Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio Sandra Nancy Ramos F. Bezerra Arte e patrimônio SUMÁRIO 1. Apresentação .............................................................................. 51 2. A xilogravura chega ao cordel .................................................... 53 3. Os folhetos sem imagens ........................................................... 56 4. As ilustrações em zincogravura ................................................. 57 5. A introdução da xilogravura nos folhetos ................................. 58 6. Movimento folclorista, musealização e patrimonialização da xilogravura ........................................... 60 Referências ..................................................................................... 63 1. APRESENTAÇÃO o presente módulo, fare- mos uma reflexão sobre arte e patrimônio, to- mando como base a xilo- gravura popular produzida em algumas localidades do Nordeste e, em especial, no município de Juazeiro do Norte, Ceará. A fonte documental principal desse estudo é a coleção de xilo- gravuras que constitui o acervo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, o Mauc, em Fortaleza, adquirida entre fins dos anos de 1950 e início dos anos 1960. A xilogravura é uma expressão artística milenar, utilizada na Antiguidade para a es- tamparia de tecidos e, em seguida, usada no papel. Os testemunhos mais antigos de xilogravura em papel datam do século VIII, são orações budistas impressas no Japão. PARA OS CURIOSOS Você conhece a técnica de xilogravura? No seu estado ou cidade existem artistas que utilizam essa técnica ou museus e galerias que guardam coleções de xilogravura? Se não houver, busque na internet informações sobre a xilogravura brasileira, especialmente sobre “como” ela é executada. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 51 Na sua chegada à Europa, no século XII, a xilogravura trilhou o mesmo percurso dos antigos, ou seja, a estamparia de tecidos, para depois partir para imagens sacras e car- tas de baralho. No século XV contribuiu para os primeiros livros impressos da história. A partir daí foi sendo exercitada até alcançar altos níveis artísticos (COSTELLA, 1984). O ingresso da xilogravura no Brasil se deu no século XIX, com a implantação da Imprensa Régia, utilizada nos periódicos para torná-los mais atrativos quanto ao as- pecto visual. Em um dos três mais antigos jornais em circulação no Brasil, o Mossoro- ense, a xilogravura era utilizada para desta- car as notícias, a publicidade ou os artigos assinados mais importantes de sua edição. Contudo, é curioso e importante salien- tar que além do uso na imprensa, há evi- dências que apontam para o emprego da xilogravura em uma época anterior ao pe- ríodo mencionado, com outras finalidades, entre os indígenas. É possível que a técni- ca tenha sido repassada aos nativos pelos missionários portugueses, no século XVII, durante a realização da catequese. Essa evidência foi identificada pelo pin- tor italiano Guido Boggiani, no Mato Grosso do Sul, em 1892, entre os Kadiwéu. Eles, com apenas um pequeno pedaço de madeira en- talhada, carimbavam o corpo com sinais e figuras, além de estamparem raras peças de vestuários (COSTELLA, 1984, p.83). SE LIGA! Imprensa Régia. Editora lusitana, depois transferida para o Brasil, em 1808, com a vinda da Família Real. Nela foi editado o primeiro jornal da colônia, a Gazeta do Rio de Janeiro, periódico que permitiu a circulação de notícias, embora restritas, por ser um veículo usado para expandir a imagem que convinha à Corte Portuguesa. 52 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE SE LIGA! 2. AS XILOGRAVURAS CHEGAM AO CORDEL importante salientar que a xilo- gravura integrou o mundo das artes visuais brasileiras, no século XX, sendo praticada por Oswaldo Goeldi (1895-1961), natural do Rio de Janeiro, considerado o “pai da xilogravura brasileira”, entretanto, paralelamente ao itinerário da arte oficial, no Nordeste, prestou- -se às atividades utilitárias, servindo como rótulo de produtos, como também ilus- trações das capas dos folhetos de cordel, sobre o qual discutiremos com mais deta- lhes posteriormente. Muitos poetas escreveram e, ao mesmo tempo, ilustraram suas obras com a técnica que passou a ser considerada, de acordo com José M. Luyten, a verdadeira repre- sentação do espírito do cordel (apud CASCUDO, 2002, p.752). Nesse contexto de produção dos versos populares e ilustrações com a técnica, a Tipografia São Francisco, de propriedade de José Bernardo da Silva, em Juazeiro do Norte, Ceará, teve grande destaque, uma vez que assumiu a posição de maior editora de literatura popular do país. Com o desenvolvimento de novas tecnologias de impressão e a morte de José Bernardo, a Tipografia São Francisco entrou em decadência. Seu acervo e equipamentos foram adquiridos pelo Governo do Ceará, sob novo nome – Lira Nordestina – sugestão do poeta Patativa do Assaré. Hoje, a Universidade Regional do Cariri (Urca) responde por sua administração, que se tornou um espaço de produção de xilogravura, superando a publicação de cordéis. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 53 A partir dos anos de 1950, a xilogra- vura popular passou a ser observada por intelectuais em algumas localidades do Nordeste de modo independente dos fo- lhetos. Este novo olhar lhe conferia uma valorização como produção artesanal autônoma, iniciada em Alagoas, pelo folclorista Téo Brandão, em seguida, no estado de Pernambuco, por parte do co- lecionador de arte Abelardo Rodrigues, e pelo estudioso paraibano Ariano Suas- suna, que escreveu artigos sobre elas no Diário de Pernambuco. Ainda entre os anos 1950-1960, com o impulso da industrialização e dos novos meios de comunicação, como o rádio e a televisão, acreditava-se na morte ao cor- del e, consequentemente, junto com ele, a morte das xilogravuras. Na realidade, o cordel adaptou-se aos novos meios co- municacionais, passando a ser difundido amplamente pelos repentistas nas rádios, além de se articularem em feiras, espaços e equipamentos públicos, sendo reconhe- cidos por editoras de pequeno, médio e grande porte. Embora o estilo discursivo tenha permanecido, continuou a propaga- ção do desaparecimento da xilogravura. Nesse contexto, reverberava a visão fol- clorista que percebia a xilogravura como ex- pressão avessa à ideia de modernidade. No Ceará, a mesma ideia de desaparecimento foi abraçada por agentes fundadores do Mauc, inaugurado em 1961. Nos anos que antecederam à criação do Mauc, esses agentes recolheram os tacos de xilogravuras utilizadas nas capas dos fo- lhetos, livros de orações e rótulos de produ- Tacos São os pedaços de madeira que servem como matriz para o desenho e o entalhamento da gravura, a partir de objetos pontiagudos. Uma vez entalhados, os tacos recebem aplicação de tinta sobre a imagem a ser transferida para o papel. 54 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE PARA OS CURIOSOS Quer saber mais sobre a história do Museu de Arte da UFC (Mauc)? Acesse: mauc.ufc.br/sobre-o-mauc/ Mestre Noza: Inocêncio Medeiros da Costa ou Inocêncio da Costa Nick, como dizia chamar-se, nasceu em Taquaritinga do Norte-PE, em 1897. Mudou-se para o Juazeiro do Norte em 1912, onde exerceu diversas atividades, entre as quais a de funileiro. A partir da década de 1930, tornou-se conhecido como artista popular, pelas criações de esculturas em madeira. Sua primeira escultura foi um são Sebastião, mas depois resolveu esculpir uma imagem do padre Cícero, levando-a para apreciação do sacerdote, que achou graça e perguntou: “Eu sou assim?”. Desde então fez milhares de imagens do padre (proclamado santo por devotos de diversas localidades do Brasil). Na década de 1950, recebeu encomenda de José Bernardo da Silva para fazer xilogravuras, tornando-se gravador. SE LIGA! tosque pertenciam a algumas gráficas do Nordeste, como em Pernambuco, Paraíba e Ceará. Constituíram, assim, uma coleção do gênero que passou a ser revelada em exposições, guardada e conservada como acervo desse novo museu de arte. Esta recolha possibilitou a valorização da xilogravura vinculada ao cordel. Nossa cultura prevê como locais específicos onde a arte pode manifestar-se, os museu e galerias, que também conferem estatuto de arte aos objetos enobrecendo-os e garantindo- -lhes o rótulo “arte” (COLI, 2006, p.32). Em 1962, o artista cearense Sérvulo Es- meraldo, também ligado ao Museu e à Uni- versidade Federal do Ceará, residia em Paris. Por motivo de visita ao Juazeiro do Norte, acabou constituindo uma nova modalidade de criação popular para as xilogravuras. En- comendou uma série representativa da “Via Sacra” ao mestre Noza, publicando-as em 1965, na capital francesa, fundando assim a experiência inédita de criação de álbuns temáticos que passaram a ser comercia- lizados dentro da perspectiva do mercado de arte, com numeração de cada gravura e assinatura do artesão/artista. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 55 FO N TE : A CE RV O G EO VÁ S O BR EI RA / FO TO : L U CA S N U N ES (2 01 9) 3. OS FOLHETOS SEM IMAGENS omo já foi visto, a xilogravura esteve presente nas ilustra- ções dos jornais, mas os cor- déis que eram impressos nas gráficas, nas primeiras déca- das do século XX, não traziam ilustrações xilográficas em suas capas. Eles apresentavam apenas informações básicas, em formatação simples. Algu- mas capas continham ornamentos, como cercaduras e arabescos. Por não trazerem ilustrações, ficaram conhecidos como “fo- lhetos sem capa” (MELO, 2003, p. 113). A seguir, temos um modelo concebido pelos primeiros poetas-editores da litera- tura popular do Nordeste, como Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Ba- tista e João Martins de Athayde. SE LIGA! Leandro Gomes de Barros nasceu em 1865, em Pombal- PB. Faleceu em Recife-PE, em 1918. Durante sua infância, conviveu com violeiros. Em 1889 passou a publicar versos, tornando-se um dos pioneiros da literatura de cordel. Em 1906, adquiriu uma gráfica onde imprimiu seus os próprios trabalhos para comercializar. Com sua morte, a família vendeu os direitos da sua autoria para o editor e poeta João Martins de Athayde, que passou a publicar os textos sem lhe creditar a autoria. Estima-se que a sua obra tenha sido constituída de mais de 600 títulos. Francisco das Chagas Batista é um poeta paraibano nascido na Vila do Teixeira, no ano de 1882. Seu primeiro folheto intitulado, Saudades do sertão, foi produzido aos 20 anos de idade. A partir do ano de 1905, passou a vender cordéis em Recife. A sua afeição à leitura o fez entrar para o mercado de livros em 1911, em João Pessoa. Dois anos depois, fundou a Livraria Popular Editora, tornando-se um dos primeiros editores de cordel da época. Morreu aos 48 anos, em João Pessoa, no ano de 1930. João Martins de Athayde nasceu em 1880, no povoado de Ingá do Bacamarte-PB. Migrou para Pernambuco em 1898, por causa da seca, radicando-se no Recife. Poeta e proprietário de gráfica, tornou-se o maior editor de folhetos de seu tempo, entre os anos de 1920-1950. Além de seus trabalhos, editava obras de outros poetas, compradas ou adquiridas por meio de barganha. Foi uma figura controversa. Elogiado por Mário de Andrade e por Tristão de Ataíde, recebendo até votos para Príncipe dos Poetas Brasileiros, em eleição promovida por Guilherme de Almeida, ao mesmo tempo foi também acusado de comprar títulos originais de vários poetas populares e publicá-los sem mencionar seus autores, fato que ocasiona sérias dificuldades na identificação da autoria de alguns trabalhos. No entanto, este fato não reduz a importância da sua obra, tampouco sua contribuição para a poesia popular no Brasil. Faleceu em 1959, em Limoeiro-PE. Cordel de 1925 uma 56 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE m dos pioneiros a introdu- zir ilustrações nas capas dos folhetos dos cordéis foi João Martins de Athayde, com o intuito de torná-los mais atraentes para o públi- co consumidor. Para tanto, recorreu aos caricaturistas e desenhistas que faziam trabalhos para alguns jornais em Recife. A ideia conquistou o gosto dos leitores e logo passou a ser copiado por outros editores, inclusive os de centros distantes do seu, como em Juazeiro do Norte-CE. Athayde, para essa inovação, recorreu aos ilustradores que desenhavam cartazes de filmes para cinemas no Recife, aprenden- do a reproduzir o rosto dos artistas, como também dos heróis das revistas em quadri- nhos. Em meio aos processos criativos, de- correram as ilustrações impressas em zinco- gravura, que possibilitaram representações das imagens dos astros de Hollywood, o que acabou fazendo com que fossem emprega- das, definitivamente, nas impressões das ca- pas dos cordéis (MELO, 2003, p. 113-117). COSTELLA (1984, p. 65.) define Zincogra- vura como “uma técnica de gravura que uti- liza a placa de zinco como matriz. O trabalho é feito revestindo-se uma chapa metálica, com material fotossensível e, em seguida, a chapa é submetida a uma fonte de luz que atravessa um negativo fotográfico. O pro- cesso equivale a fazer uma cópia fotográfica em chapa de metal, em vez de fazê-la em papel. O revestimento fotossensível endure- ce as partes que recebem luz e essas partes correspondem àquelas em que o negativo 4. AS ILUSTRAÇÕES EM ZINCOGRAVURA é transparente. Leva-se a placa para remo- ver as partes moles do revestimento, isto é, aquelas que correspondem as áreas não iluminadas. Depois, a placa toma um banho de ácido. Este ácido ataca a placa nas áreas nuas e não afeta aquelas que permanecem cobertas pelo revestimento fotossensível en- durecido. Logo se tem uma matriz metálica toda produzida fotoquimicamente. O pro- cesso citado foi empregado pela primeira vez em 1870, mas aplicado comercialmente a partir de 1895.” Clichê de zinco FO N TE: ACERVO LIRA N O RDESTIN A/U RCA / FO TO : LU CAS N U N ES (2019) Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 57 5. A INTRODUÇÃO DA XILOGRAVURA NOS FOLHETOS Tipografia São Francisco, já citada, ocupou uma posição de destaque no mercado editorial no país. Como dis- semos, a editora pertenceu a José Bernardo da Silva, que de vendedor ambulante dos folhetos de cordéis nas feiras regionais, dedicou-se ao universo da poesia popu- lar adquirindo a anterior Folheteria Silva. Em 1949, esta Tipografia alcançou gran- de apogeu, a partir da compra dos direitos autorais dos folhetos de João Martins de Athayde. De posse desses direitos, José Ber- nardo aumentou a produção de cordéis e, consequentemente, suas vendas, ganhando o mercado nacional e tornando-se a maior produtora desse gênero literário no Brasil. A falta dos clichês de zinco para os fo- lhetos fez com que Bernardo optasse por introduzir a técnica já utilizada nos jornais, a xilogravura, a partir do final dos anos 1940, ciente das dificuldades encontradas para obtenção e elaboração da zincogra- vura, que se configurava um procedimento mais elaborado de ilustração e de aquisi- ção. Esta técnica só existia nos centros de- senvolvidos, sobretudo em Recife. A partir da introdução da xilogravura nos cordéis, esses folhetos passaram a contar com a aplicação dos dois gêneros de gravura: a zinco e a xilogravura (RAMOS, 2010). FO N TE: M USEU DE ARTE DA U N IVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ (M AU C) Capa de A história de Zezinho e Mariquinha, de Damásio Paulo (s/d), elaborada em xilogravura (Dimensão: 0,091 x 0,142 cm) Autor: Walderêdo Gonçalves (s/d). Dimensão 0,090 x 0,078 cm. FO N TE: M USEU DE ARTE DA U N IVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ (M AU C) 58 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Os primeiros xilógrafos buscaram imitar os clichês das zincogravuras e fizeram isso com grandemaestria. A maioria dos grava- dores procurados para confeccionar as ilus- trações dos folhetos foram iniciados por José Bernardo da Silva. Alguns exerciam ofícios de ourives, outros eram escultores em madeira, mas a maior parte pertencia às classes me- nos abastadas e suas criações eram feitas como um meio de sobrevivência. Contudo, o que esses gravadores faziam era arte, mesmo sem escolaridade artística ou acesso aos círculos dos artistas profis- sionais. A técnica por eles utilizada “encon- trou na ponta da faca sertaneja, no canivete de cortar fumo de rolo e até nas hastes de guarda-chuvas, uma perfeita adequação e tradução de todo um imaginário de prince- sas, dragões e mitos como Lampião e Padre Cícero” (CARVALHO, 2010, p.10). Alguns xilógrafos copiavam os clichês de zinco, o que não era problema entre eles. Outros elaboravam seus próprios desenhos a partir da própria criatividade. Um dos gra- vadores desse período, bastante admirado, foi Walderêdo Gonçalves. PARA OS CURIOSOS Nascido no Crato, no ano de 1920, Walderêdo se iniciou nas artes gráficas muito jovem, por meio de uma encomenda feita pelo editor José Bernardo, com a finalidade de compor a capa de um livro de oração. Seu primeiro trabalho foi um Cristo crucificado e, após a encomenda, ele deu continuidade ao ofício de gravador, onde se destacou pelo traço e estilo próprio. Seus desenhos apresentavam formas realistas, muitos detalhes e efeitos únicos de luzes e sombras. Confira: acordacordel.blogspot. com/2011/06/mestres-da-gravura.html Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 59 6. MOVIMENTO FOLCLORISTA, MUSEALIZAÇÃO E PATRIMONIALIZAÇÃO DA XILOGRAVURA POPULAR or meio do Decreto-Lei nº 25/1937, é criado o Sphan (Ser- viço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que teve por objetivo propagar e defen- der o chamado patrimônio histórico e artístico nacional, como vimos no primeiro módu- lo de nosso curso. As manifestações artísticas, portanto, se consideradas a partir desse dispositivo normativo como patrimônio nacional, poderiam ser tombadas, nesse caso, no Livro de Tombo das Belas Artes. No entanto, durante décadas, esse e outros órgãos de preservação do patrimônio, em diversas esferas (municipal, estadual, fede- ral) priorizaram a chamada “pedra e cal”, ou seja, a patrimonialização de edificações e monumentos e, às vezes, por consequ- ência, os bens integrados a eles, como pe- ças de valor artístico, principalmente aque- las relacionados à memória das elites. 60 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Nesse sentido, se pensarmos a valoriza- ção da xilogravura popular como arte e pa- trimônio brasileiro, veremos que esse pro- cesso foi impulsionado menos pelo Sphan e mais pela Comissão Nacional de Folclore, uma entidade governamental brasileira. fun- dada em 1947, por Renato de Almeida, por meio de recomendação da Unesco (Organi- zação da Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). A Comissão foi vinculada ao Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, além da própria Unesco, e tinha como foco a preservação das manifestações culturais do Brasil, associando-as a um dis- curso de identidade nacional. Em 1958, com o título de Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, muitos intelectuais propuseram pesquisas para o levantamento de material de estudos, pro- teção e guarda das manifestações folclóri- cas, além do seu aproveitamento na edu- cação, a fim de garantir a eficácia definitiva dessa política (VILHENA, 1997, p.174). A relação entre “folclore e educação” teve como exímia defensora a poetisa Cecília Meireles, que considerava de suma impor- tância o papel dos museus nessa relação. Levando-se em consideração o pensamento da época, fica explícita a atmosfera propícia à criação do Mauc, em Fortaleza-CE, como espaço para elementos da cultura popular e, consequentemente, para a xilogravura. Nesse contexto de valorização dos museus e, sobretudo, da arte popular, os agentes culturais ligados à UFC, como o ar- tista Floriano Teixeira e o folclorista Lívio Xavier, respaldados pelo reitor da Institui- ção, Antônio Martins Filho, viajaram para as editoras do Nordeste a fim de recolher tacos e xilogravuras para o Mauc, convenci- dos da importância dessa expressão artís- tica como patrimônio brasileiro. A ação de patrimonializar, nesse aspecto, não ocorre pelo instrumento do tombamento, mas quando determinado objeto de cultura Folclore Conjunto de tradições populares transmitidas através das gerações, como lendas, mitos, folguedos, danças etc. A palavra tem origem inglesa: folk (povo) e lore (sabedoria). PARA OS CURIOSOS O trabalho da Comissão Nacional de Folclore, décadas depois, em 2003, resultou na criação do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, que passou a integrar a estrutura do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Entre suas atribuições está o gerenciamento do Museu de Folclore Edison Carneiro. Confira: www.cnfcp.gov.br/ Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 61 material, no caso a xilogravura, é musealiza- do, ou seja, entra para as vitrines do museu, perdendo o seu valor de uso e passando a ter outro que, em geral, é chamado de valor do- cumental ou simbólico, se afirmando pela operação do olhar (KNAUSS, 2016, p.21-22). A musealização da arte popular tam- bém tem o objetivo, entre outros, de inserir as comunidades no caminho do desenvol- vimento social e econômico do país. A partir do momento em que se agrega, além do va- lor simbólico e econômico a determinada referência cultural, espera-se que essa refe- rência produza o reconhecimento e a valori- zação da população produtora do bem, com sua história e sua cultura singular, como tam- bém possa gerar emprego, trabalho e renda. Após a recolha de vasto material e com ele a organização de uma exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), em 1960, onde se apresentaram ao Sudeste as matrizes e as xilogravuras do Nordeste, com grandes elogios dos críticos de arte e folcloristas, foi a vez dos museus e galerias da Europa e dos Es- tados Unidos conhecerem a xilogravura. O artista Sérvulo Esmeraldo acompa- nhou as exposições no estrangeiro e, a partir daí, teve a ideia de adotar para as gravuras populares um modelo já vivenciado pela gravura artística oficial: o álbum. Como vi- mos, o artista encomendou uma série de xilogravuras ao mestre Noza, apresentando ao gravador imagens com representações da Via Sacra para que, com base nelas, ele produzisse a sua leitura na madeira. O resul- tado final do trabalho atendeu às expectati- vas deste agente cultural, que resolveu levá- -las para a França e lançá-las em Paris, em 1965, pelo importante editor Robert Morel, em formato de livro em edição de luxo. Essa interferência rendeu reconheci- mento para os trabalhos do mestre Noza como artista, possibilitando a sua participa- ção em diversas exposições, além de ter o seu trabalho musealizado. Estimulado pelo resultado exitoso dessa primeira encomenda, Noza ocupou-se de ou- tros temas já bastante conhecidos e ao gosto do público que iria consumir (BEZERRA, 2017). PARA OS CURIOSOS Para saber mais sobre o mestre Noza e a sua arte, leia o texto do pesquisador Renato Casimiro: mestrenoza.blogspot.com/p/ biografia.html Pensando na patrimonialização das manifestações artísticas na atualidade, o que será que permaneceu e o que se modificou nas políticas públicas voltadas para a sua valorização e preservação? SE LIGA! REFERÊNCIAS BEZERRA, Sandra Nancy Ramos Freire. A xilogravura do mestre Noza. Identidades tecidas na madeira. Disponível em: https://www.editorarealize.com.br/revistas/ coprecis/trabalhos/TRABALHO_EV077_ MD1_SA13_ID1066_20082017152930.pdf. Acessado em 23/1/2020. 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Desenvolve pesquisa sobre Xilogravura, Arte e Cultura Visual e Memória e Patrimônio Cultural. Atuou como coordenadora executiva da Comissão que elaborou o projeto e implantou os cursos de Artes Visuais e Teatro da Urca em Barbalha-CE. Coordenou o Projeto do Registro da Festa do Pau da Bandeira de Barbalha Urca/Iphan como Patrimônio Cultural Nacional. É membro do Comitê e da Comissão de estudos para tornar a Chapada do Araripe Patrimônio da Humanidade. ILUSTRADOR Daniel Dias é ilustrador e artista gráfico, com extensa produção em projetos editoriais, sendo a maior parte destinada ao público infantil e infantojuvenil. Seu trabalho tem como base a pesquisa de materiais e estilos, envolvendo estudo de técnicas tradicionais de pintura, desenho, fotografia e colorização digital. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 63 Este fascículo é parte integrante do projeto Formação de Mediadores de Educação Patrimonial, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza, sob o nº 02/2019. Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 fdr.org.br fundacao@fdr.org.br EXPEDIENTE: FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Marcos Tardin Gerente Geral Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos Emanuela Fernandes Analista de Projetos UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Viviane Pereira Gerente Pedagógica Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos Joel Bruno Designer Educacional Thifane Braga Secretária Escolar CURSO FORMAÇÃO DE MEDIADORES DE EDUCAÇÃO PARA PATRIMÔNIO Raymundo Netto Coordenador Geral, Editorial e Revisor Cristina Holanda Coordenadora de Conteúdo Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico Miqueias Mesquita Diagramador Daniel Dias Ilustrador Thaís de Paula Produtora ISBN: 978-85-7529-951-7 (Coleção) ISBN: 978-85-7529-955-5 (Fascículo 4) Realização Apoio
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