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HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO Edson Bareiro E d u ca çã o H IS T Ó R IA D O P E N S A M E N T O G E O G R Á F IC O E d so n B ar ei ro Curitiba 2016 Historia do Pensamento Geográfico Edson Bareiro ´ Ficha Catalográfica elaborada pela Fael. Bibliotecária – Cassiana Souza CRB9/1501 B248h Bareiro, Edson História do pensamento geográfico / Edson Bareio. – Curitiba: Fael, 2016. 184 p.: il. ISBN 978-85-60531-57-8 1. Geografia I. Título CDD 910 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Imagem da Capa Shutterstock.com/Triff Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Sumário Carta ao Aluno | 5 1. O Conhecimento Geográfico | 7 2. O Saber Geográfico e a Ação Humana | 19 3. Conhecimento Geográfico e Organização Social | 33 4. Idade Média - Contexto Geral | 47 5. O Conhecimento Geográfico na Idade Média: Renascimento | 65 6. Relação Homem e Desenvolvimento e os Pressupostos da Geografia como Ciência | 85 7. A Geografia de Humboldt e Ritter | 103 8. A Estruturação da Geografia como Ciência Acadêmica na Alemanha e França | 125 9. Os movimentos de Renovação da Geografia | 143 10. A Institucionalização da Geografia no Brasil | 159 Conclusão | 173 Referências | 175 Prezado(a) aluno(a), O conteúdo desta obra procura apresentar e ajudar na refle- xão de como a geografia como ciência contribuiu ao longo dos tempos para a interpretação e estudos do planeta em seus diversos momentos no tempo. O espaço geográfico é dinâmico e construído, desconstru- ído e reconstruído numa constância cada vez maior e numa veloci- dade assustadora, alterando comportamentos sociais, pensamentos e conceitos mundiais. Carta ao Aluno – 6 – História do Pensamento Geográfico O objetivo principal da disciplina de História do Pensamento Geográ- fico é o desenvolvimento da capacidade de utilizar os conhecimentos teóricos da geografia para refletir e debater a atuação dos homens sobre o meio e suas alterações, causas e efeitos, que resultam numa sociedade complexa, dinâmica e extremamente volátil. Para a formação do professor de geografia, é funda- mental o domínio dos conceitos e dos procedimentos da análise espacial, pois permite abrir espaços para a discussão de assuntos contemporâneos e suas origens no passado, buscando a formação crítica de alunos capazes de atuar na sociedade de maneira sustentável. Nas cidades ou na zona rural, os processos sociais, econômicos, políti- cos, culturais e ambientais de que participamos são cada vez mais globaliza- dos – um fato geográfico em outro continente ou hemisfério altera a produ- ção agrícola, os hábitos alimentares, a vida econômica e as relações sociais. A utilização da geografia como instrumento para encarar esse desafio metamórfico social e as noções geográficas aqui apresentadas podem enrique- cer a sua formação docente em Geografia. Bons estudos. Prof. Edson Bareiro 1 O Conhecimento Geográfico 1.1 Introdução Por que uma empresa realiza profundos estudos antes de deci- dir onde localizar uma nova filial? Como se explicam as desigualda- des de infraestrutura que observamos nos centros urbanos? Essas perguntas, dentre outras, remetem ao fato de que o espaço construído pelo ser humano exerce uma função nas suas condições de existência. O espaço geográfico condiciona a produ- ção industrial e a agrícola, a circulação das mercadorias, o exercício da política, a moradia, o lazer e todos os contextos da vida privada e coletiva. Além disso, o espaço também influencia a formação das identidades das pessoas e dos grupos, pois é no lugar onde vivemos e trabalhamos que incorporamos hábitos, atitudes, valores, lingua- gens e tudo o que constitui a nossa forma de ser. História do Pensamento Geográfico – 8 – Por isso, o espaço é a via geográfica de análise da sociedade. Seu estudo na escola pode ser muito enriquecedor se as práticas educativas levarem em consideração o espaço vivido pelos alunos. Utilizar os conhecimentos geográ- ficos na reflexão das vivências espaciais é uma condição para se formar como um sujeito crítico da construção do espaço. 1.1.2 A formação espacial através da interferência humana na natureza As sociedades contemporâneas dispõem em seu espaço ou território de inúmeras manifestações da evolução da paisagem ou espaço geográfico, principalmente equipamentos urbanos, como residências, edifícios, estradas, pontes, hospitais, escolas, campos de cultivo, fábricas, etc. – são construções que o ser humano realiza transformando a natureza. Uma bacia hidrográfica também constitui um elemento do espaço geo- gráfico quando o indivíduo o utiliza como meio de transporte ou como fonte de geração de energia. Da mesma forma, uma montanha, quando uma comu- nidade a transforma num local sagrado. Tanto as construções humanas como os elementos da natureza de que o indivíduo se apropria para uma finalidade são objetos geográficos. Cada objeto geográfico cumpre uma função determinada, variando de um período histórico para outro. Figura 1.1 - Rua 23 de Maio - São Paulo - SP Fonte: Shutterstock.com/Alf Ribeiro – 9 – O Conhecimento Geográfico Quando falamos de ações humanas, não nos limitamos às ações dos indivíduos, mas também observamos as que são executadas por empresas, ins- tituições, órgãos públicos, organizações políticas, entre outras. As ações visam à realização de intenções relacionadas à satisfação de interesses e necessida- des, que variam conforme a sociedade e a época histórica em que vivemos. No entanto, essas ações causam outros problemas, como podemos perceber na figura 1.1, a dinâmica espacial exige cada vez mais planejamento, porém como planejar se a complexidade e a velocidade das ações são assustadoras? Os interesses e as necessidades da população mundial há dois séculos com certeza não são os mesmos da sociedade atual. Naquele momento histó- rico, a sociedade mundial ainda lutava pela estruturação territorial de diversos países, e atualmente esse cenário mudou completamente, já que o que se busca é o fortalecimento econômico e social e principalmente a influência no espaço mundial, tudo isso no mesmo espaço geográfico, porém com a confi- guração de características diversas no passado e no presente. Sociedades diferentes também se diferenciam quanto às características espaciais. Como podemos distinguir o espaço geográfico rural do industrial ou de países localizados em hemisférios diferentes com acidentes naturais e interferência destes no seu território? Convém buscar o passado e rememorar que, nos primórdios, o espaço geográfico era construído principalmente a partir do trabalho humano, rea- lizado diretamente sobre a natureza primitiva. Isso ainda ocorre. Assistimos aos efeitos das ações humanas sobre florestas, rios, mares, solos, atmosfera e demais elementos naturais. Contudo, nos tempos atuais, as atividades huma- nas recaem acima de tudo sobre a natureza já transformada. Como resultado disso, ocorre a predominância da população urbana em detrimento da popu- lação rural. A produção econômica no Brasil, por exemplo, tem como prin- cipal produto os advindos do campo, porém a concentração populacional está nos grandes centros urbanos do país, ou seja, essa população concentrada atua sobre uma nova configuração espacial que não é mais a natureza pura. Logo, o meio sobre o qual o ser humano exerce, na atualidade, a maior parte das suas ações é o meio construído, não o natural. Se as relações sociais ocorrem no presente, sobretudo por meio dos obje- tos construídos, a ciência geográfica procura revelar as formas de interação entre a sociedade e o espaço. As relações entre a sociedade e a natureza primi- História do Pensamento Geográfico – 10 – tiva, quenão deixaram de existir, constituem apenas um capítulo dos estudos e investigações geográficas. Podemos, então, entender que a geografia não se ocupa somente da des- crição do mundo e de suas manifestações nos diferentes lugares – e muito menos somente as relações entre o indivíduo e a natureza. A geografia estuda o espaço geográfico, uma produção humana ao longo do tempo, componente da sociedade que interfere em todos os seus contextos. SER HUMANO SOCIEDADE AÇÕES SOCIAIS E PRODUÇÃO DE EQUIPAMENTOS NATUREZA ESPAÇO GEOGRÁFICO O espaço geográfico integra a sociedade da mesma forma que a econo- mia, a cultura e a organização sociopolítica; estão ligados intrinsecamente e de maneira indissolúvel, e a geografia estuda essas conexões, sejam físicas ou humanas, e o resultado dessas interações. Por isso, não podemos pensar o espaço simplesmente como um palco onde as atividades humanas se desenvolvem. O espaço é o meio formado por interações humanas na natureza, isto é, onde aparecem as interações humanas e suas conexões em forma do que se denomina paisagem, por meio da qual a dinâmica social se realiza. Nesse contexto, a dinâmica fundamental da vida em sociedade culmina com a produção em busca de diversos objetivos, seja por melhorias no con- forto, saúde, bem-estar, seja principalmente pela dinâmica comercial ou capi- talista. Trata-se de uma atividade indispensável à sobrevivência de todos, que se desenvolve sempre coletivamente. Pela produção, buscamos satisfazer às nossas necessidades e criamos uma vida em comum, repleta de tensões, contradições e conflitos. É a partir da produção coletiva, realizada pelo trabalho social, que a natureza se transforma em espaço geográfico. As características espaciais decorrem, portanto, dos objetivos e da maneira como a produção ocorre. Quando a produção visava – 11 – O Conhecimento Geográfico principalmente à sobrevivência, as interações humanas geravam menos desi- gualdades, os instrumentos de trabalho eram simples, a transformação da natureza era pouco intensa e o espaço de vida era predominantemente natural. Em nossa sociedade, a produção visa principalmente o acúmulo de capi- tal pelo lucro, produzindo as desigualdades sociais e várias formas de exclu- sões. Nesse contexto, as técnicas são crescentemente decisivas na construção do espaço, que passa a ser cada vez mais tecnológico, e tornam essas transfor- mações mais velozes do que anteriormente, como as cidades e os campos de cultivo, refletindo o grau de transformação da natureza. Atualmente, a produção de um bem envolve a descentralização das peças ou semiprodutos, que são feitos por diversos ramos produtivos e em vários lugares ao mesmo tempo, sendo essa atividade mais viável financeiramente. É o que se denomina divisão do trabalho. As atividades produtoras que existem em um lugar são um elo do circuito produtivo que hoje se estende em nível mundial. Por isso, muitas modificações que observamos em nosso espaço de vivência decorrem de decisões e necessidades originadas em outras partes do país e até em outros continentes. O que temos como cenário atual é a fabricação de peças e componen- tes de determinado produto em lugares diferentes, às vezes bem distantes uns dos outros. Essa fragmentação da atividade produtiva permite que as empresas aproveitem as vantagens locais, que podem ser os baixos salários dos trabalhadores, a presença de matéria-prima, a oferta de benefícios feita pelos governantes ou os baixos custos com os cuidados ambientais. Um produto com grande aceitação de consumo no mercado interna- cional provoca uma integração entre os lugares pelos meios de transporte e comunicação, e estes acabam por se conectar para que o produto final real- mente seja de qualidade e efetivamente se concretize. É possível identificar vantagens aproveitadas por uma ou mais empresas no município ou na região onde você mora? Considerando os recentes even- tos esportivos, como a Copa da FIFA de 2014 e as Olimpíadas de 2016, pode- mos identificar muitas mudanças espaciais relacionadas ao desenvolvimento das atividades produtivas em sua região ou que tenham causado reflexos nela. Tais mudanças podem ser objeto de interessantes trabalhos interdisciplinares na escola. O setor agrícola, a indústria e a mineração, a geração de energia, História do Pensamento Geográfico – 12 – o comércio e a circulação de produtos, os vários serviços são atividades que transformam o espaço e as condições de vida do lugar onde se desenvolvem. Essas transformações podem ser observadas diretamente nas cidades, na zona rural, nas vias de acesso, na natureza, na vida cotidiana, complemen- tando-se com pesquisas nas diversas fontes de dados e informações e con- tando com o suporte dos conhecimentos da ciência geográfica. Todos nós somos atingidos pelos efeitos dessas mudanças, e estudá-las é importante porque nos permite identificar os interesses e as formas de ação dos agentes produtivos e do poder público, tornando possível o nosso posi- cionamento crítico como cidadãos e como agentes participantes da produção do espaço. 1.2 Primórdios do conhecimento geográfico A geografia é uma ciência que foi sistematizada nos meados do século XIX, porém cabe aqui ressaltarmos que o conhecimento geográfico acompa- nhou a humanidade desde seus primórdios por diversas razões, inicialmente pela sobrevivência, pela necessidade de fixação do ser humano ao solo, pela necessidade de defesa do grupo, até mais recentemente abrir os horizontes para o conhecimento de novas fronteiras comerciais. O conhecimento por novas áreas e por novas civilizações teve como pro- pulsor a busca por conhecimentos geográficos que culminaram com a siste- matização da nova ciência. 1.2.1 A busca pela sobrevivência e o conhecimento geográfico Grupos humanos sofreram essa transformação em momentos diferentes, com intensidade diversa, em diferentes locais. Já se discute, sob a ótica da antropologia, se a felicidade de um grupo depende do gado confinado e da terra domada. Frequentemente, imaginamos que o indivíduo fica mais tran- quilo por ter uma plantação que lhe pertença em contraste com o “selvagem coletor”, que tem que sair “procurando” raízes ou frutos. Na verdade, é de se acreditar que, na cabeça do coletor, raízes e frutas lá estão para serem colhidas, e não como um acidente, uma eventualidade. O – 13 – O Conhecimento Geográfico domínio que os coletores tinham do seu ambiente lhes dava um grau de segu- rança bastante grande para saberem, em determinadas épocas do ano, quais os locais que ofereciam determinados alimentos, como constatamos até hoje na região amazônica e outras regiões do globo. A coleta e a caça seriam atividades primitivas porque inseguras, enquanto a agricultura e a criação engendrariam forte sentimento de segurança mate- rial. Devemos também observar que a agricultura, como atividade que tenta submeter a natureza, corre riscos naturais, como secas, pragas e enchentes. Por se constituir em riqueza concentrada, a agricultura atraía a cobiça de vizinhos mais preocupados em atividades de guerra do que de organização agrícola. A passagem de um tipo de organização social “primitivo” para outro tipo de organização social mais evoluído ocorre em situações concretas que pre- cisam ser estudadas particularmente, assim como o significado histórico das transições e onde elas de fato ocorreram. O que não se pode é simplesmente atribuir ao “primitivismo” de um grupo, ou ao seu caráter “pré-civilizado”, a não ocorrência da passagem de coletor a agricultor. 1.2.2 Agricultura como fator de evolução do conhecimento Mesmo quando transumante1, o grupo agrícola tinha de se fixar num local tempo suficiente para que sua plantação produzisse ao menos uma vez. A área plantada ficava bem próxima do acampamento, propiciando trabalho com menos locomoção por parte das mulheres – as crianças relativamente pequenas eram utilizadas pelo grupo como força de trabalho. Assim, com menor necessidadede locomoção e as crianças na agricultura, e não tendo limites tão rígidos no suprimento alimentar, os indivíduos passaram a se reproduzir mais, causando um crescimento demográfico notável. Esse crescimento demográfico denota uma necessidade maior de organi- zação social e, em consequência, de evolução do conhecimento. 1 A transumância é o deslocamento sazonal de rebanhos para locais que oferecem melhores condições durante uma parte do ano. Pode ainda se referir às migrações sazonais dos pastores ou de populações inteiras que se dedicam à pastorícia, que acompanham os animais transumantes. História do Pensamento Geográfico – 14 – O fato é que a economia simples de produção de alimentos provocou grande transformação no grupo. Surge um excedente que necessitava de armazenamento e que aos poucos foi desenvolvido, a partir de observação principalmente das condições climáticas, já que naquele período era fator determinante para todas as atividades, e da própria realidade ditada pela natu- reza: os grãos produzidos ficam maduros de uma só vez numa certa época e não ao longo do ano, devendo ser consumidos lentamente, em refeições distribuídas pelo ano todo. Além disso, parte da colheita deveria servir de semente na próxima semeadura. O grupo precisa mudar sua atitude com relação ao alimento: começa a planejar e a poupar; a construir silos, depósitos adequados para armazena- mento dos grãos. Entre as construções mais antigas que sobreviveram até hoje estão os silos de Faium, no Egito, e Jericó, na Cisjordânia, comprovando uma mudança na organização econômica e na mentalidade dos grupos neolíticos2. A produção de um excedente agrícola, somada à atividade criadora (o que equivaleria ao excedente de carne), serviria para atender às necessidades da comunidade em períodos mais duros, propiciando o crescimento da popu- lação e o surgimento posterior de um comércio incipiente. No início da orga- nização social, a comunidade é autossuficiente, uma vez que coleta ou produz todo o alimento de que necessita, utiliza matérias-primas da região para os equipamentos necessários (madeira e palha, argila e pedra, ossos e chifres) e fabrica suas próprias ferramentas e utensílios. 1.2.3 Surgimento das cidades e expansão do conhecimento Vimos que, a partir da necessidade de sobrevivência, o ser humano busca e consegue, com restrições, naquele recorte histórico, utilizando os recur- sos da natureza, imprimir a eles forma útil a vida humana. Então, o espaço 2 Também conhecido como Nova Idade da Pedra e Idade da Pedra Polida, o Período Neolítico teve início por volta de 8000 a.C., após as mudanças climáticas que criaram me- lhores condições de vida para os homens e animais. Com as geleiras, os portentosos animais foram extintos, dando lugar a uma fauna mais parecida com a que temos hoje, e rios, deser- tos e florestas tropicais foram formados, o que possibilitou o contato humano mais intenso com a natureza. – 15 – O Conhecimento Geográfico geográfico foi sendo visto como uma segunda natureza (cidades, agricultura, estradas instrumentos de trabalho, etc.). Os mapas elaborados pelos povos da antiguidade tinham a função de delimitar fronteiras, localizar água, terras férteis, rotas de comércios, entre outros. Inicialmente, havia a concepção de que a Terra tinha a forma de um disco com massa continental que flutuava na água. As primeiras civilizações da antiguidade desenvolveram atividades rela- cionadas ao espaço natural que ocupavam. No vale dos grandes rios, como o Nilo e o Eufrates, a economia baseava-se na agricultura. Já os povos que viviam próximos ao mar, dedicavam-se à pesca, à navegação e ao comércio marítimo. Nesse sentido, os povos da antiguidade – egípcios, mesopotâmicos, fenícios, hebreus e persas – desenvolveram-se em geral às margens de grandes rios. A partir da contribuição dos gregos, o conhecimento geográfico recebeu grande impulso na antiguidade. Tais contribuições decorrem do posiciona- mento geográfico da Grécia, que possibilitou a navegação, o comércio e o domínio sobre os povos do mediterrâneo. Além do desenvolvimento social, político, econômico e cultural, dominavam grande parte da região do Mar Mediterrâneo, principalmente o leste, buscavam novos territórios para seu domínio e para ampliar seu comércio. Para tanto, era preciso que eles conhe- cessem os aspectos naturais e físicos do ambiente, e com a observação de elementos naturais, como as chuvas, as cheias dos rios, os ventos, o céu, os gregos puderam detalhar certas características do espaço geográfico. Os gregos realizaram estudos sobre sistemas agrícolas, sistemas de mon- tanhas, técnicas de uso do solo, os rios com variados regimes, a distribuição das chuvas, a sucessão das estações do ano, o relacionamento entre campo e cidade, entre outros. O conhecimento geográfico era produzido pelo senso comum e filo- sófico, pois era possível a um filósofo realizar estudos de cunho geográfico, além de médicos, astronômicos e matemáticos e, naquele momento histórico, ainda não existiam as ciências de maneira fragmentada como atualmente. A seguir estão listados alguns estudiosos da geografia grega. 2 Tales de Mileto (640-558 a.C.) – além de ser filósofo, era consi- derado matemático, astrônomo, físico e realizou estudos de inte- História do Pensamento Geográfico – 16 – resses geográficos. Ele concebia a Terra como um disco boiando sobre a água. 2 Anaxímenes de Mileto (610-547 a.C.) – filósofo e meteorologista, contribuiu para a distinção dos planetas e estrelas e nos princípios do geocentrismo. 2 Hipócrates (460-350 a.C.) – para ele, era necessário localizar e conhecer cada lugar para fazer uma correta avaliação de hábitos, cos- tumes e aspectos físicos de cada lugar, além de vários outros estudos. 2 Heródoto (485-425 a.C.) – contribuiu bastante para o conheci- mento geográfico, foi o primeiro a fazer um elo entre história e geo- grafia, estudou as populações e suas características e é considerado o “pai da história”. Figura 1.2 – Estrabão numa gravura do Século XVI Estrabão, geógrafo e historiador grego, afirmou: “A maior parte da geografia satis- faz a necessidade dos Estados. A geografia em seu conjunto tem um vínculo com as atividades dos diri- gentes. [...] Até mesmo um caçador terá mais êxito se conhecer a natu- reza e a extensão do bosque e, além do mais, só aquele que conhece uma região pode escolher o melhor local para acampar, para fazer uma emboscada ou para dirigir uma campanha militar”. Síntese A atividade geográfica, desde suas origens mais remotas, sempre foi plu- ralista, tanto em sua temática quanto em suas abordagens. Essa pluralidade, – 17 – O Conhecimento Geográfico apesar das dificuldades e perplexidades que, inevitavelmente, proporcionou para os praticantes da geografia, é um dos principais motivos da continui- dade, da utilidade, da riqueza e do prazer ligados a essa atividade intelectual tão antiga. Inicialmente, temos que todo o conhecimento nasce de uma necessidade de sobrevivência, já que na Pré-História esse era o principal objetivo daquelas sociedades ainda nômade. Depois de sua fixação no espaço, fato que teve a agricultura como grande contribuinte, as necessidades foram se modificando em razão das novas características que surgiram. Nesse contexto, em relação ao conhecimento geográfico, convém lem- brar ainda que a geografia como ciência e disciplina acadêmica se institucio- nalizou no século XIX e foi se estabelecendo principalmente pela observação e pela dependência da natureza. A organização do espaço e a distribuição de funções e divisão de tarefas foram sendo mais e mais fragmentadas de modo a servirem de base e exemplo para as sociedades que surgiram. Buscando esse viés, houve a organização do espaço, que, somada ao conhecimento geográfico, produz o espaço geográfico, e o que vemos hoje é fruto de alteração e atuação dessa sociedade no espaço geográfico, agora mais intenso e muito mais dinâmico e assustadoramenteveloz, causando assim heterogeneidades no espaço, que causam crises e principalmente enorme dife- rença social. 2 O Saber Geográfico e a Ação Humana 2.1 Elementos do saber geográfico Ressaltamos inicialmente a necessidade de acompanhar a evolução dos elementos que compõem o saber geográfico. A dis- cussão desde sua origem e sua evolução é mais que conveniente para que o futuro professor aplique seus conhecimentos e aborde os conteúdos de acordo com um espaço temporal adequado. Convém refletir sobre a seguinte citação: o ponto culminante do estudo geográfico é a descrição da Terra em ordem geográfica. A chave para tal ordem está no conceito locacional de lugar. Enfatizar o relativo, o cultural, a experiência histórica da humanidade, em relação aos atri- butos físicos da área, é fazer o estudo completo da geografia – o estudo dos lugares. (LUKERMANN, 1964, p. 172). Nesse contexto, as proposições dos estudos geográficos se basearam em observação e relações que abordaremos mais adiante, porém alguns elementos ficaram marcados, e estes variam no tempo, mas são sempre importantes para a análise geográfica. História do Pensamento Geográfico – 20 – 2.1.1 Posições e contornos O ser humano, ao longo de sua trajetória, enfrentou dificuldades cruéis para poder se situar e ter uma ideia da forma, dos contornos e da articulação entre os continentes, além da tentativa de conhecimento da Terra. Os nave- gadores foram os principais descobridores dos limites das terras e dos litorais. Sobre seus barcos, guiados pelo fio condutor das costas, impulsionados pelos ventos e pelas correntes, esses homens empreenderam viagens e expedições em direção a terras míticas, imaginárias ou reais, e desenharam os contornos das costas. Depois, com seus barcos, mediram as distâncias, a duração das navegações e identificaram as posições topográficas. A exploração de mares e rios, na tentativa de descobrir o surreal, para aquele momento histórico, proporcionou a descoberta de novos fenômenos naturais, como cachoeiras, novas civilizações e novas crenças, o que ajudou no desenvolvimento de técnicas de orientação e descrição. As viagens de explo- ração por via terrestre – mais difícil – foram raras e tardias. As configurações de continentes e oceanos necessitavam da resolução de três problemas: 1) o conhecimento da forma da Terra; 2) o conhecimento de suas dimensões; 3) a definição das coordenadas de um lugar. A esfericidade da Terra foi admitida, e suas dimensões foram medidas desde a Antiguidade. Em suma, orientar-se constitui uma das bases de todo saber geográfico. 2.1.2 Identificação e registro dos lugares Com o descobrimento de novas terras e a curiosidade de conhecer outras, seja para conquistar ou explorar, é despertada a necessidade de registrar terras a conquistar, impérios a dominar, riquezas a se apropriar, populações para descobrir, rios e fontes, montanhas e lagos entre outros. O ser humano se sentiu instigado a conhecer, e assim a variação e a escala tenderam a aumentar, ou seja, variar em razão da distância e do afastamento dos lugares que se quer conhecer, e, nesse caso, conhecer significa criar itinerá- rios, que são identificados e registrados pela observação dos traços da topogra- fia próxima e longínqua, memorizar cores da vegetação, nuanças do relevo etc. Para melhor inventariar e identificar, primeiramente, fixaram-se os fenômenos mais remarcáveis ou que fornecem os melhores marcos e sinais: o traçado dos rios, os obstáculos montanhosos, os desfiladeiros, os vulcões, os lagos, os ani- – 21 – O Saber Geográfico e a Ação Humana mais e também as cidades. Além disso, outros elementos podem ser elenca- dos, como as relações de troca, tipos de organização social, religiosidade etc. É importante frisar que um bom inventário leva em consideração também os lugares habitados, rotas, construções religiosas, riachos, paradas etc. As cidades, os portos, as redes de rotas representam nós e linhas de fun- cionamento das sociedades humanas e são reveladoras de dados essenciais. Lembrando que os lugares são compostos principalmente por sua caracterís- tica e pela sua denominação – a toponímia (o estudo da origem do nome dos lugares) é uma etapa indispensável do conhecimento da superfície da Terra. Todo lugar nomeado pelo ser humano é importante pelas suas características termo. Nomear o local ou o terreno e cobri-lo de uma camada de nomes transforma o conhecimento dos lugares em saber coletivo. Desde o instante em que os lugares têm um nome, eles são integrados a uma grade social de localização. Seu conhecimento geográfico deixa de ser fechado no círculo estreito das pequenas comunidades e se socializa para além do local. Ouvimos e lemos sobre vilarejos, cidades, montanhas, reinos que jamais vimos e que não veremos nunca por diversos motivos, sejam financeiros ou simplesmente por não atraírem a nossa curiosidade. Além do que é pessoal- mente conhecido, a existência de uma esfera muito mais ampla e que existe apenas como um universo de palavras, tem efeitos múltiplos: ela suscita, para alguns, uma fascinação por aqueles lugares dos quais ouviram falar; alimenta sua imaginação; faz nascer uma necessidade de evasão. A camada de nomes que constitui a toponímia alarga a esfera dos deslocamentos e das trocas para além do que foi percorrido pelo indivíduo. 2.1.3 Localização e distribuição Se o saber geográfico descreve, então, por conseguinte, também localiza, ou seja, uma coisa está atrelada a outra, o conhecimento se particulariza por sua primazia com os dados de localização. É importante salientar que, além de coletados por meio de critérios rigorosos, é necessário que eles sejam car- tografados. O que o geógrafo procura ver na paisagem não é a simples loca- lização deste ou daquele objeto geográfico particular (fazenda, cidade, capela e outros), mas a distribuição de todos os objetos de uma mesma espécie (as História do Pensamento Geográfico – 22 – casas, as cidades, as vilas, a vegetação, as florestas) e as diversas fisionomias de conjunto que revelam o meio. 2.1.4 Relação ser humano – natureza Durante o decorrer dos séculos e no desenvolvimento das civilizações, foi e ainda é normal que, inseridos em meios naturais diversos, os seres humanos tivessem de retirar desses meios o seu sustento, os materiais para construir suas casas, as matérias-primas para sua produção, entre outras coisas, bem como que se interrogassem sobre as influências desse meio no seu comportamento. 2.1.5 Saber geográfico como totalizador da superfície terrestre No século XIX, com o advento do Mercantilismo e o desenvolvimento de técnicas1 que posteriormente se transformaram em tecnologia2, já se conhecia e se dispunha de registros sobre superfície da Terra, que podiam proporcionar uma visualização de sua totalidade e também uma ideia geral de sua dinâmica espacial. Além das descrições de lugares particulares, de inventários sobre as diversas partes da Terra, o saber geográfico segue na direção de compreender os conjuntos de elementos naturais e humanos e a solidariedade entre seus componentes, numa dimensão totalizante. 2.2 Princípios da geografia Antes de prosseguirmos, é interessante que entendamos como se estuda e como se consolidou a ciência geográfica a partir de autores clássicos e que ajudaram a concretizar a geografia como ciência, aceita em toda comunidade 1 Conjunto de procedimentos ligados a uma arte ou ciência. No caso a navegação e a cartografia, foram evoluindo a ponto de ser possível um conhecimento aprofundado dos lugares e da navegação. 2 Conhecimento técnico e científico e a aplicação deste por sua transformação no uso de ferramentas, processos e materiais criados e/ou utilizados a partir de tal conhecimento. – 23 – O Saber Geográfico e a Ação Humana científica, é o que chamamos de princípios da geografia: princípio da exten- são, princípio da geografia geral ou da analogia, princípio da causalidade, princípio da conexidadee princípio da atividade. No século XIX, depois do surgimento da geografia como ciência, era necessária a fixação de princípios metodológicos, que confeririam à ela o devido caráter científico. Os princípios formulados são os seguintes. 2 O princípio da extensão, concebido por Friedrich Ratzel (1844- 1904), reza que é preciso delimitar o fato a ser estudado, locali- zando-o na superfície terrestre. 2 O princípio da analogia, também chamado geografia geral, foi exposto por Karl Ritter (1779-1859) e Paul Vidal de La Blache (1845-1918). Esses autores mostraram que é preciso comparar o fato ou área estudada com outros fatos ou áreas da superfície terres- tre, em busca de semelhanças e diferenças. 2 O princípio da causalidade, formulado por Alexander von Hum- boldt (1769-1859), diz respeito à necessidade de explicar o porquê dos fatos. 2 O princípio da conexidade ou interação, apresentado por Jean Bru- nhes (1869-1930), segundo o qual os fatos não são isolados, e sim inseridos num sistema de relações, tanto locais quanto interlocais. 2 O princípio da atividade, formulado também por Brunhes, afirma que os fatos têm caráter dinâmico, mutável, o que demanda o conhecimento do passado para a compreensão do presente e previ- são do futuro. O objeto material da geografia é a Terra, a superfície terrestre, e seu objeto formal são as relações aí processadas. Com outras palavras, o objeto formal da geografia é o estudo das relações locais de fatores que diferenciam um lugar de outro, e das relações entre os lugares ou áreas. A seguir, temos um exemplo da aplicação dos princípios da geografia retirado de uma aula da Professora Carmen Rivas, do Colégio Nossa Senhora das Mercês, na qual é abordado com padrão de excelência didática os princí- pios geográficos. História do Pensamento Geográfico – 24 – Exemplo aplicação príncípios. Professora Carmen Rivas do Colégio Nossa Senhora da Mercês. 2.3 Transformação do espaço pela atividade humana As transformações que ocorrem na natureza sempre acontecem em rit- mos distintos ao longo do tempo, seja pelas próprias ações das forças inter- nas ou externas de sua própria dinâmica, seja pela ação humana a partir do momento em que o indivíduo consegue se apropriar do conhecimento e aplicá-lo a seu favor. O ser humano habita a Terra há cerca de 160 milhões de anos, tendo alterado a fisionomia do planeta de maneiras diferenciadas. Tais alterações resultam de criação, incorporação, difusão e alteração dos meios e instrumentos de extração e produção de riquezas, responsáveis por efetuar o estudo da complexidade das relações entre o indivíduo e o espaço vivido. O espaço geográfico é um conceito muito amplo, pois requer para sua análise outros conceitos ou categorias analíticas, dos quais alguns já foram relacionados e definidos. O território é uma das noções que auxiliam na aná- – 25 – O Saber Geográfico e a Ação Humana lise do espaço geográfico. Ele também é amplo e diverso e, em alguns casos, muito semelhante ao conceito de espaço geográfico. As necessidades inerentes ao ser humano de sobreviver, num primeiro momento, criaram possibilidades de melhorar suas próprias condições de bem-estar e conforto. Elas foram se materializando e implementando com a dinâmica das condições objetivas da produção que, na medida em que se adaptam ou se concedem condições de melhoria, proporcionam um alarga- mento das necessidades atreladas a outros bens e consumos, estabelecendo uma relação de reciprocidade, em que se perde a dimensão do que é real- mente necessário. Assim, sobrevivência institui-se em um intenso descobri- mento de saberes e observações para que se atue no espaço e este seja um elemento dialógico entre a sociedade e a natureza. O indivíduo, nesse processo de “produção” das condições de sua sobrevi- vência, participa cada vez mais ativamente e, atualmente, como fator princi- pal e intenso na relação ser humano-trabalho-técnica-natureza. O indivíduo passa a transformar a natureza a partir de um conjunto de necessidades que inicialmente eram individuais, depois coletivas e no atual momento parece haver uma força dominante economicamente que sobrepõe as anteriores. O trabalho, uma das forças motrizes no processo, vai se especializando, separando o ser humano da natureza. “A ação do homem deixa de estar sub- metida à natureza, à medida que evolui com o meio natural circundante. Alguns instrumentos passam a ser descobertos e apropriados, sua submissão à natureza vai diminuindo, o espaço começa a ser produzido.” (ROSSINI, 1996, p. 2) O trabalho institui-se como uma ferramenta de transformação da natu- reza, cuja sofisticação técnica acelera a diferenciação e as especializações entre as funções dos homens na relação com a natureza. O trabalho, suas conexões e seus produtos fazem surgir condições de sobrevivência. O trabalho pode ser definido como a ação humana articulada a estratégias refletidas para transformar objetos em outros objetos ou a primeira natureza em outra natureza. A expressão “o ser humano conhece a natureza para dominá-la” assume relevância em uma sociedade e, desta feita, podemos considerar momen- História do Pensamento Geográfico – 26 – tos em que houve uma ação mais direta do ser humano sobre a natureza, enquanto em outros o processo de mediação técnica se tornou mais relevante. Assim, temos que compreender o trabalho em um processo que rela- ciona desenvolvimento técnico e força humana intervindo na transformação da natureza. Quanto mais desenvolvimento técnico, menor a ação direta do ser humano, quanto menor o desenvolvimento técnico, maior sua ação sobre a natureza. Podemos, então, dizer que o sentido da relação ser humano-natu- reza não se define a priori, mas se revela no contexto histórico de sua produ- ção. É dessa relação que emerge o meio geográfico ou espaço geográfico. 2.4 Relação entre ser humano e natureza como princípio do espaço geográfico Nas mais diversas situações ou discussões em que estamos envolvidos, temos o conceito de espaço: meu espaço, nosso espaço, espaço econômico, social, entre outros, fazem parte de ambientes acadêmicos, sociais e do coti- diano. O espaço parece ser transversal a diferentes experiências de vida. Nessa perspectiva, a ciência geográfica também dispõe de sua especificidade com relação ao espaço. A geografia como ciência está preocupada em problematizar a relação ser humano-natureza, mediatizada pelo trabalho. Nessa relação, o indivíduo desenvolve ações/intervenções no meio, alterando as feições pré-existentes, criando novas formas espaciais. Dessa relação, emerge a singularidade do espaço geográfico. De acordo com Milton Santos (1978, p. 119), “O espaço geográfico é a natureza modificada pelo homem através do seu trabalho”. A concepção de uma natureza natural, onde o indivíduo não existisse ou não fosse o seu centro, cede lugar a ideia de uma construção permanente da natu- reza artificial, sinônimo de espaço humano. [...] O espaço por suas características e por seu funcionamento, pelo que ele oferece a alguns e recusa a outros, pela seleção de localização feita entre as atividades e entre os homens, é o resultado de uma prá- xis coletiva que reproduz as relações sociais, [...] o espaço evolui pelo movimento da sociedade total. (SANTOS, 1978, p. 171) A partir da definição apresentada, podemos compreender a relação intensa entre natureza e ser humano na produção do espaço geográfico, a – 27 – O Saber Geográfico e a Ação Humana interdependência entre eles e a influência de acordo com as limitações e obje- tivos. Em qualquer época e lugar, o espaço humano é conhecido como o resultado da produção que se realiza de acordo com uma dada organização social, como vemos na figura 2.1. Figura 2.1 – Espaço urbanizado Fonte: Shutterstock.com/Alejsabdar Todorovic Produzir significa tirar da natureza os elementos indispensáveis à repro- dução da vida. A produção, pois, supõe uma intermediação entre o ser humano e a natureza pormeio das técnicas e dos instrumentos de trabalho inventados para o exercício desse intermédio. (SANTOS, 1978, p. 161-162). O espaço deve ser considerado como uma totalidade, a exemplo da própria sociedade que lhe dá vida [...] o espaço deve ser considerado como um conjunto de funções e formas que se apresentam por pro- cessos do passado e do presente [...] o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que se manifestam através de processos e funções (SANTOS, 1978, p. 122). O espaço geográfico é, portanto, uma produção humana, produto do tra- balho humano, modificando a natureza. Apresenta uma feição própria e uma História do Pensamento Geográfico – 28 – estrutura organizacional que diz respeito às condições em que ocorre a relação do indivíduo com a natureza e o estágio em que se encontra a sociedade em termos de conhecimento, técnicas e formas de interação socioespacial. 2.5 Conceitos e categorias da geografia A geografia defronta-se assim com a tarefa de analisar o espaço geográfico como uma categoria para compreender a realidade. Com essa abordagem, a geografia confere ênfase ao estudo do meio como resultante da ação do sujeito social responsável pela construção do lugar, da paisagem e do território. Considerando o ensino da geografia na realidade em que vivem os alunos, é importante que eles sejam estimulados a considerar as diferentes ações sociais e culturais, sua dinâmica social e espacial, os impactos naturais que transformam o mundo e as marcas que identificam os diferentes luga- res. Conhecimentos oriundos da experiência pessoal dos alunos, do senso comum, da produção de especialistas ou da pesquisa sobre tecnologia e ciên- cia contribuem para essa leitura processual, que propicia a construção e a reconstrução dos conhecimentos geográficos. Nesse sentido, cabe ao profes- sor orientá-los no processo de reflexão, que envolve noções e conceitos cen- trais da geografia, como lugar, região, território, escala geográfica, paisagem e mobilidade socioespacial. O conceito de espaço geográfico está intimamente ligado à relação entre natureza e sociedade. Na busca dessa articulação, a geografia tem que tra- balhar, de um lado, com os elementos e atributos naturais, procurando não só descrevê-los, mas entender as interações existentes entre eles, e, de outro, verificar a maneira pela qual a sociedade está administrando e interferindo nos sistemas naturais. Para perceber a ação da sociedade, é necessário aden- trar em sua estrutura social, procurando apreender o seu modo de produção e as relações socioeconômicas que estão mais intensas no momento e que na geografia e na sociedade atual são muito dinâmicas. Quando nos deparamos com o que chamamos de lugar, temos que levar em consideração as percepções, as vivências e a memória dos indivíduos e grupos sociais, uma vez que estas impulsionam a construção de projetos individuais e coletivos, que transformam os diferentes espaços em diferentes – 29 – O Saber Geográfico e a Ação Humana épocas. Essa leitura incorpora o movimento e a velocidade, os ritmos e a simultaneidade, o objetivo e o subjetivo, o econômico e o social, o cultural e o individual, propiciando ao aluno condições de construir e reconstruir as noções e os conceitos de lugar, paisagem, região, território. “[...] lugar signi- fica muito mais que o sentido geográfico de localização. Não se refere a obje- tos e atributos das localizações, mas a tipos de experiências e envolvimento com o mundo, a necessidade de raízes e segurança.” (RELPH, 1979, p. 156) A leitura da espacialidade da sociedade inclui o ponto de referência para a estruturação dos conteúdos, que é, sem dúvida, o conjunto de noções e conceitos necessários para desvendar geograficamente a realidade. Sob essa interpretação, o lugar é diferente do espaço. O primeiro é fechado, íntimo e humanizado, ao passo que o segundo seria qualquer porção da superfície terrestre, ampla e desconhecida. Assim, o lugar está contido no espaço. A categoria lugar encerra espaços com os quais os indivíduos têm vínculos afetivos, onde se encontram as referências pessoais e os sistemas de valores que induzem a diferentes formas de perceber e construir a paisagem e o espaço geográfico. Na perspectiva de lugar e singularidade, o lugar é resultante, de um lado, de características históricas e culturais inerentes ao processo de formação e, de outro, da expressão da globalidade. Pedagogicamente, o conhecimento geográfico só pode ser processado quando os alunos localizam, têm acesso e utilizam as informações acumu- ladas sobre diferentes lugares: ao desenvolver as habilidades de comparar, analisar, interpretar e sintetizar, tornam-se capazes de elaborar um discurso próprio da geografia, utilizando a oralidade, a escrita ou quaisquer linguagens que representem os lugares, os territórios. No passado, saber sobre um lugar era memorizar uma lista de elemen- tos que o distinguiam. Uma região, segundo Milton Santos (1997, p. 133), “era sinônimo de territorialidade absoluta de um grupo, com suas característi- cas de identidade, exclusividade e limites, dada a presença única desse grupo, sem outra mediação. A diferença entre essa área se devia a essa relação com o entorno”. Hoje, cada vez mais, saber sobre o lugar é compreender como ele dá base às relações globais e com elas interage – o planeta, em seu momento histórico, é a unidade; os lugares dão a marca da diversidade. Muda o mundo História do Pensamento Geográfico – 30 – e mudam os lugares: os acontecimentos mais distantes podem provocar trans- formações no espaço local de vivência dos alunos. Desse modo, estudar o lugar busca entender seu entorno, conhecer e desvelar alguns aspectos da realidade mais imediata, criando condições para atuar sobre ela e também modificá-la. O espaço geográfico pode ser recortado a partir de diferentes critérios, de acordo com o ponto de vista do geógrafo e dos temas em estudo, como já vimos anteriormente, a visão do professor ou do geógrafo deve definir o que se deseja expressar na abordagem do espaço. No que tange a região ou à regionalização é a delimitação de conjuntos ou parcelas do território que apresentam alguma identidade (física, política, cultural, econômica, diferentes sistemas técnicos, científicos e informacio- nais). Portanto, ao planejar o trabalho e decidir sobre o estudo de um lugar, uma região, o critério de divisão espacial estabelecido deve contribuir para o entendimento de um tema, um problema. Convém ressaltar que a região é um conceito mais complexo, que foi evoluindo juntamente com a geografia e será estudado separadamente por essa questão. Quando se escolhe uma região a ser estudada, é possível estabelecer seus fundamentos políticos de controle e gestão. Ao construir a rede de influên- cias, é possível refletir sobre quem domina a organização espacial desse lugar e como isso ocorre. Já o conceito de território está envolvido com relações de poder e posse. O termo pode ser usado tanto em âmbito nacional quanto associado a outras escalas, desde a local (de rua e bairro) até a mundial, isso porque a delimitação do território está assentada nas relações de poder, domínio e apropriação nele contidas. O território configura-se como uma porção concreta do espaço geo- gráfico em que se revelam as diferenças de condições ambientais e de vida da população; pode ser demarcado, é construído, desconstruído ou reconstruído ao longo do tempo – sejam séculos, décadas ou anos, até meses, semanas ou dias. Para Santos (1996, p. 75-76): Seja qual for o país e o estágio do seu desenvolvimento, há sempre nele uma configuração territorial formada pela constelação de recur- sos naturais, lagos, rios, planícies, montanhas e florestas e também de recursos criados: estradas de ferro e de rodagem, condutos de toda – 31 – O Saber Geográfico e a Ação Humana ordem, barragens,açudes, cidades, o que for. É esse conjunto de todas as coisas arranjadas em sistema que forma a configuração territorial cuja realidade e extensão se confundem com o próprio território de um país. Tipos de floresta, de solo, de clima, de escoamento, são interdependentes, como também o são as coisas que o homem super- põe á natureza. Aliás, a interdependência se complica e completa jus- tamente porque ela se dá entre as coisas que chamamos de naturais e as que chamamos de artificiais. Por exemplo, ao selecionar o território nacional como escala de estudo de um projeto escolar, muitos geógrafos utilizam mapas com as regiões estabeleci- das pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cujas fronteiras são unidades administrativas (os estados). Nesses mapas, o território está orga- nizado e dividido em cinco regiões, como se cada uma delas tivesse caracterís- ticas físicas, políticas, culturais e econômicas semelhantes. Esse é o modelo de divisão regional encontrado na maioria dos livros didáticos. 3 Conhecimento Geográfico e Organização Social A organização social é um pressuposto para o desenvolvi- mento. Colocar-se à margem da comunidade ou, ainda, à margem da Terra e de seus habitantes, é ficar renegado à fome ou à soli- dão. Assim, normas de convivência social foram sendo criadas em favor do grupo a que determinado elemento pertencia: a sociedade que premiava o membro que demonstrava bom comportamento, e punia aquele que falhava por meio de sanções que o condenavam a viver fora da estrutura de produção. História do Pensamento Geográfico – 34 – 3.1 A urbanização como pressuposto para a evolução do conhecimento geográfico A vida nas grandes cidades modernas estabelece uma distância enorme entres seus habitantes e a natureza. É comum aos professores darem às crian- ças da pré-escola um grão de feijão deitado sobre um pedaço de algodão molhado para que o aluno tenha ao menos uma ideia sobre o ciclo de vida vegetal – de outra forma, eles poderiam pensar que vegetais são fabricados em sacos plásticos ou caixas de cores atraentes. O fato é que o habitante de uma cidade recebe sua formação em razão do mundo que o espera, não de uma ligação com a natureza orgânica. Estruturas são formas, materiais e imateriais, de organização social (habitações, edificações, cidades, redes rodoviárias, portos, aeroportos, cami- nhos, formas de governo, leis, religiões, cultura etc.). Elas são distribuídas de maneira irregular, no entanto, compõem um sistema de organização espacial cujas causas e consequências a geografia tenta entender. Lembramos ainda que a geografia se preocupa também com a irregularidade da distribuição dos fenômenos físicos e relaciona-os às estruturas sociais. Com pouco contato com a natureza, o indivíduo pode ter sérios proble- mas ao se perder em um ambiente natural. Por não conhecer as características desse habitat, não reconhece árvores frutíferas e raízes que podem servir de alimento; é incapaz de matar pequenos animais, improvisando armas; não sabe tecer com fibras de piteiras e palmeiras uma proteção adequada; sem instrumentos industriais, perde o senso de localização, não encontrando o caminho de volta, mas é comum em virtude da vida eminentemente urbana. A natureza foi dominada pelos humanos como grupo, não indivíduos isolados. Isso nos afasta de nossos primórdios, pois nos denominamos reis dos animais, o que nos dá a falsa sensação de que cada um de nós é capaz de per- petrar as proezas que apenas alguns conseguem realizar; somos urbanos por excelência e dependentes do agricultor que planta e do boia-fria que colhe; do engenheiro que projeta, do operário que fabrica e do comerciante que vende; dependemos da prospecção de petróleo no Golfo Pérsico, da água domada em Itaipu, da lenha das florestas dizimadas pelo país todo. – 35 – Conhecimento Geográfico e Organização Social Estamos acostumados, e não é de se estranhar que nossa locomoção está cada vez mais dependente de veículos, como ônibus e trens. Nossos olhos são vídeo da televisão, nosso horizonte são os postais que amigos nos enviam após suas viagens pasteurizadas. Por tudo isso, quando falamos de revolução urbana, não se pode pensar em cidades como as nossas, nem em humanos com valores semelhantes aos que nós desenvolvemos aqui. Não há como ide- alizar os indivíduos conscientemente, decidindo-se por fundar uma cidade, principalmente quando nos referimos à gênese das cidades – é nesse aspecto que encontramos o desenvolvimento do conhecimento geográfico. Não existiam objetivos determinados para a sociedade que se apresenta atualmente. Não houve consciência individual ou de grupo que tenha levado pessoas a plantar os alicerces de agrupamentos urbanos no Egito ou na Meso- potâmia, ou que, a partir de modelos e com objetivos bem determinados, levou-as a criar as bases de futuras cidades pelas diversas civilizações, basear-se no domínio da natureza e, consequentemente, desenvolver conhecimentos, entre os quais podemos destacar o conhecimento geográfico. Retrocedendo 5 ou 6 mil anos, não havia refe- rências ou parâmetros, e a organização social e urbana (nomenclatura utilizada atualmente) decorre de uma série de circunstâncias sociais tão complexas que até hoje não há unanimi- dade entre os pesquisadores a respeito do tema. Aparen- temente, os locais coinci- dem: a agricultura inicia- -se no Oriente Próximo, a organização espacial – e em consequência a urbaniza- ção – também. Figura 3.1 – Crescente Fértil Fonte: www.historiadigital.org História do Pensamento Geográfico – 36 – Quando nos referimos a um provável início da civilização, o foco se volta para o que se denomina de Crescente Fértil1 como local onde as revolu- ções agrícola e urbana teriam se realizado. Se houvesse uma relação entre uma revolução e outra, por que a organi- zação não teria ocorrido com todos os produtores de alimento do Crescente Fértil (figura 3.1)? Podemos tentar elencar algumas possibilidades, como localização, distância ou comunicação, que em nossos dias são recursos extre- mamente rápidos ou quase que instantâneos (como é a comunicação), mas naquele momento histórico não existiam ou ainda não estavam sistematiza- dos. Isso nos faz refletir sobre o conhecimento geográfico nesse contexto. Qual o motivo pelo qual, em alguns lugares, as aldeias se transformaram em cidades e, em outros, permaneceram sem evolução durante séculos ou por muito tempo em relação às demais? O que fez com que a urbanização tenha sido um privilégio, ao menos inicial, do sul da Mesopotâmia e do Vale do Nilo? Uma das hipó- teses é que as encostas das montanhas e os vales podem ser cultivados sem grande dificuldade, facilitando sobremaneira a instalação de aldeias e núcleos que atual- mente chamamos de urbanos. No caso da Síria e da Palestina, há que se consi- derar a terra fértil e a chuva de inverno como elemen- tos favoráveis ao plantio e as montanhas razoavelmente 1 Crescente Fértil é uma região que compreende os atuais estados de Palestina, Israel, Jordânia, Kuwait, Líbano e Chipre, bem como partes de Síria, Iraque, Egito, do sudeste da Turquia e sudoeste do Irã. Irrigada pelo Jordão, pelo Eufrates, pelo Tigre e pelo Nilo, a região cobre uma superfície de cerca de 400 mil a 500 mil km². Figura 3.2 – Curso do Rio Nilo na África Fonte: Jeff Schmaltz / NASA / GSFC – 37 – Conhecimento Geográfico e Organização Social verdejantes como local adequado ao pastoreio. Há várias citações na bíblia sobre pastores, vinhas, tâmaras, ou seja, áreas de agricultura e pastoreio. Local mais adequado para a implantação da agricultura e seus iniciantes produto- res, a extensão larga de terras permitiria ainda pequenos deslocamentos por parte dos grupos por ocasião do esgotamento do solo. Já no sul do Egito e da Mesopotâmia, as condições geoclimáticas eram (e continuam sendo) bastante diferentes. A chuva, nesses locais, é praticamente inexistente. A fertilidade da terraapós as cheias é excelente. Conforme teria elencado Heródoto e quase todos os manuais, o Egito é uma dádiva do Nilo, e na figura 3.2, vemos seu trajeto e sua desemboca- dura em forma de Delta. De fato, o rio, anualmente, em fins de setembro e início de outubro, inundava suas margens, depositando nelas camada de solo novo, rico em matéria orgânica e sedimentos que funcionavam como adubo natural para a agricultura. Aos poucos foram construídos diques e reserva- tórios para controlar a água, soltando-a lenta e adequadamente, de modo a não encharcar em excesso após as cheias nem permitir que a terra perdesse o húmus vários meses depois. Com os Rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, o processo era diferente, mas o principio era seme- lhante. Por causa de irre- gularidade do degelo nas vertentes, as cheias eram surpreendentes e intempes- tivas, às vezes destruidoras. A extrema fertilidade das terras às suas margens (pelo menos ao sul de Bagdá) requeria uma defesa contra a imprevisibilidade dos rios, o que era obtido com a construção de valas que conduziam as águas para onde fosse necessário, graças à topografia plana e aos canais e braços naturais. Figura 3.3 – Esboço do Rio Nilo na civilização egípcia Fonte: extraído do vídeo Egito: Dádiva do Nilo. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=doJGjkv1QsM> História do Pensamento Geográfico – 38 – Esses povos foram os primeiros a introduzir a forma de comunicação escrita, em plaquetas de argila cozida, e também reproduziam lugares por meio de símbolos gráficos, dando origem aos mapas – algumas dessas peças foram encontradas em escavações arqueológicas, representando de modo pri- mitivo a Babilônia, com seus estados e cidades. Os mapas desse período foram responsáveis pela base do sistema carto- gráfico atual, sendo ultrapassados apenas no século XVI, com o advento das grandes navegações e a melhoria considerável dos documentos cartográficos. O mapa mais antigo conhecido em nossos dias foi descoberto nas esca- vações das ruínas da cidade de Ga-Sur (figura 3.4), ao norte da Babilônia. Nesse mapa de aproximadamente sete centímetros, aparece o vale de um rio, com montanhas de cada lado, representadas à semelhança de escamas de peixe, simbolizando a maneira precária com que aqueles povos representavam o relevo terrestre, e ainda círculos trazendo pontos cardeais em caracteres cuneiformes (MOURA FILHO, 1993). Com relação a esse mapa, encontrado na região da Mesopotâmia, des- coberto próximo à cidade de Harran, no nordeste do Iraque atual, Oliveira (1988, p. 17) acrescenta: “É, a propósito de origem babilônia, o mais antigo mapa que o mundo conhece. Trata-se de um tablete de argila cozida com a representação de duas cadeias de montanhas e, no centro delas, um rio, pro- vavelmente o Eufrates”. Figura 3.4 – Mapa de Ga-Sur original e reprodução gráfica baseada em sua leitura Fonte: Oliveira (1993, p. 17) e Raizs (1969, p. 9) in Scalzitti (2011). – 39 – Conhecimento Geográfico e Organização Social Na Grécia antiga, em razão da efervescência das ideias dos pensadores, alguns precursores vinculados direta ou indiretamente aos estudos do uni- verso, do cosmos, visão de mundo, fenômenos e processos naturais merecem destaque pelas suas contribuições. A expansão política, comercial e marítima dos povos do mediterrâneo (Mesopotâmia, Fenícia, Egito) levou à elaboração de mapas marítimos e, sobretudo, à descrição de lugares e povos. Tais descri- ções eram denominadas périplos. O périplo mais antigo data do século VII a.C. e foi feito por marinheiros fenícios a serviço do faraó egípcio. 3.2 Sistematização do conhecimento geográfico A geografia, ou melhor, o conhecimento geográfico, estava inicial- mente distribuído nos diversos conhecimentos, como astronomia, medicina e matemática. A partir dos gregos, os estudos geográficos começaram a ser sistematizados em estudos que engendravam mais de um conhecimento, e a necessidade de se conhecer novos lugares e interpretá-los, além da curiosidade natural do homem, fez evoluir o conhecimento geográfico. 3.2.1 Contribuição dos gregos A palavra geografia foi criada pelos gregos, que ori- ginalmente se preocuparam com a sistematização desse conhecimento e efetiva- mente estudaram a descrição da Terra. O primeiro mapa grego de que se tem notícia foi elaborado por Anaxi- mandro de Mileto (650-615 a.C.), que viajou e escreveu relatos das suas viagens. Dis- cípulo de Tales de Mileto, é Figura 3.5 – Gnômon ou relógio do Sol Fonte: http://www.silvestre.eng.br/astronomia/ criancas/orientasol. História do Pensamento Geográfico – 40 – provável que tenha sido o inventor do gnômon2 (figura 3.5), instrumento que serve para medir a altura do Sol. O segundo mapa da Antiguidade foi elaborado por Hecateu de Mileto (figura 3.6), que viajou por toda parte do mundo conhecido, escreveu a Des- crição da Terra, obra ilustrada por um mapa onde a Terra é representada por um disco com água em sua volta. Figura 3.6 – Mapa Grego com o mundo conhecido Fonte: www.mapas-historicos.com. Outros documentos importantes dessa época são os poemas épicos Ilí- ada e Odisseia, de Homero, conhecidos e apreciados por seu valor literário e pelas informações geográficas contidas na descrição dos lugares distantes e das longas viagens marítimas. Podemos perceber que existem dois pontos de vista da geografia, duas são as preocupações que fundamentam os conhecimentos geográficos na Antiguidade, um relacionado com a física terrestre – forma, dimensão, posi- 2 Objeto (estilete, coluna etc.) que, pela direção ou pelo comprimento de sua sombra no plano horizontal, indica a altura do Sol ou da Lua acima do horizonte e, por conseguinte, a hora do dia. – 41 – Conhecimento Geográfico e Organização Social ção sideral – e outra com a descrição das diferenças da constituição da superfí- cie terrestre e com as diversas culturas que nela se instalam. Essas duas dimen- sões dão origem a dois pontos de vistas: o da geografia geral e o da geografia regional. Os romanos foram menos preocupados com o caráter científico da car- tografia e mais voltados para suas utilidades práticas. Eles elaboravam mapas com fins administrativos e militares, que eram utilizados para cobrança de impostos e para o aumento do seu império. Eles não davam importância à visão esférica que os gregos tinham da Terra, pois os mapas gregos antigos já lhes serviam para traçar rotas e delimi- tar os territórios conquistados. Nesse tipo de carta, chamado Orbus terrarum (figura 3.7), ou mundo inteiro, os três grandes continentes conhecidos apare- cem dispostos simetricamente. Figura 3.7 – Mapa romano Orbus terrarum Fonte: www.celtiberia.net Os romanos realizavam extensos levantamentos de seu império, usando instrumentos gregos, como o astrolábio, um instrumento óptico capaz de determinar a localização de pontos da Terra por meio de observação de fenô- História do Pensamento Geográfico – 42 – menos celestes. Eles também eram adeptos de mapas de itinerários (que mostram caminhos), como a Tábua de Peutinger. Útil representação para os navegantes da época, essa tábua media mais de 6 metros de comprimento por 30 centímetros de largura e servia, basicamente, para traçar rotas de viagens. A seguir estão listados alguns estudiosos gregos que contribuíram sobre- maneira para a evolução do conhecimento geográfico. 2 Erastóstenes (276-194 a.C.) – além de demonstrar a existência da curvatura da Terra e calcular suas dimensões com notável pre- cisão, também localizou mares, terras, montanhas, rios e cidades no primeiro sistema de coordenadas geográficas, no qual estavam presentes as latitudes e as longitudes. Estudou, ainda, questões rela- tivas à hidrografia e à climatologia, às zonas climáticas e às cheias dos rios, notadamente aquelas relativas ao Nilo. Contudo, os níveis de generalização traziam consigo margens de erros consideráveis, fortalecendo a abordagem regional. 2 Heródoto (484-425 a.C.) – filósofoe historiador, considerado o pai da história e da geografia, inseriu a história dos povos no contexto geográfico. Suas crônicas registram a gênese da geografia regional e retratam os mais diferentes e distantes países. São conhe- cidas suas viagens à Fenícia, ao Egito e à Babilônia. Ao estudar as cheias do rio Nilo, Heródoto associou a sua desembocadura à letra grega delta, razão pela qual é encontrada até os dias atuais a foz em delta nos livros escolares. 2 Estrabão (64 a.C. – 20 d.C.) – grande enciclopedista, destaca o caráter filosófico e transdisciplinar da geografia. Em sua obra, afir- mava que o amplo conhecimento, necessário ao empreendimento de qualquer trabalho geográfico, deve estar relacionado tanto com as coisas humanas como divinas, conhecimento que constitui a filosofia. Ao contrário dos gregos, interessava-se por uma abor- dagem mais humana, cujos ensinamentos destinavam-se às ações de governo. Além do mais, ensinava que os geógrafos não deviam preocupar-se com o que estava fora do mundo habitado. Assim como Heródoto, Estrabão foi um grande viajante, tendo descrito no seu livro várias partes do mundo daquela época. Por – 43 – Conhecimento Geográfico e Organização Social tal feito, é, ainda hoje, considerado um dos mais importantes geó- grafos da Antiguidade. Estrabão tinha como metodologia geográ- fica a localização e delimitação dos aspectos físicos de uma região seguidas da descrição da população, com suas lendas, costumes e atividades econômicas. 2 Ptolomeu (90 – 168 d.C.) – é o último grande geógrafo da anti- guidade, foi também astrônomo e matemático. Interessou-se pelas técnicas de projeção cartográfica e elaboração de mapas. Em sua obra Geographia, de oito volumes, traz os princípios de construção de globos e projeções de mapas, indica os princípios da geogra- fia, da matemática e da cartografia, além de organizar um grande vocabulário com todos os nomes de 8000 lugares que conhecia, localizando-os por meio da latitude e da longitude. A seguir, estão as principais contribuições para o conhecimento geográfico. Grécia Antiga Império Romano Homero – século VIII a.C.; geografia como cenário das conquistas e feitos heroicos dos gregos. Marcus T. Varron – 116-27 a.C.; geografia histórica, baseada na ideia de uma sucessão de estágios culturais. Escola de Mileto Pomponius Mella – século I A.D.; geografia regional descritiva; coreo- grafia do mundo conhecido; “gêneros de vida”. Tales – século VII-VI a.C.; mensura- ções e localizações geográficas. Périplos – nas costas do Mediterrâneo (SCYLAX); nas costas do Mar Negro (ARIANUS); nas costas do Mar da Eritreia (de autor desconhecido). Anaximandro – VI-V a.C.; instru- mentos geográficos e cartografia. Plínio, O Velho – 23-79 A.D.; sín- tese do conhecimento geográfico grego; mapeamentos com o uso das coordenadas latitude e longitude; papel importante nas geografias medievais ocidentais. História do Pensamento Geográfico – 44 – Grécia Antiga Império Romano Hecateus – VI-V a.C.; relatos de via- gens e descrições regionais. Heródoto – V a.C.; geografia histó- rica e política; descrições regionais; usos e costumes de “povos bárbaros”; geografia cultural, etc. Platão/Aristóteles – V-IV a.C. rela- ções ambiente natural/ser humano; questões de método. Pytheas – IV a.C.; relatos de viagens, geografia física; “gêneros de vida”. Alexandre – IV a.C.; “geografia apli- cada”: expansão do helenismo; guer- ras; administração dos territórios con- quistados. Hipócrates – IV-III a.C.; geografia médica; influência do ambiente natu- ral sobre o ser humano. Eratóstenes/Hiparco – III-II a.C.; em Alexandria: geografia geral; carto- grafia da Terra; macromensurações da superfície terrestre. Estrabon – I a.C. – I . A.D.; redigiu a maior obra entre os geógrafos greco- -romanos e a maior síntese do conhe- cimento geográfico grego; geografia regional; relatos de viagens; “gêneros de vida”. Ptolomeu – 90-168 A.D.; síntese da geografia mundial; astronomia geo- cêntrica; guia geográfico da localiza- ção de vários lugares no planeta. – 45 – Conhecimento Geográfico e Organização Social Glossário Mesopotâmia: região do Oriente Médio, delimitada pelos vales dos rios Tigre e Eufrates, no atual território do Iraque e terras próximas. Bagdad (Bagdá): capital e maior cidade do Iraque e segunda maior cidade do sudoeste asiático. Situada no centro do país, nas margens do Rio Tigre. Outrora centro da civilização islâmica, foi ocupada pelos EUA em 2003 durante a intervenção de uma coligação internacional no país. Eufrates: rio da antiga Mesopotâmia, atual Iraque, com cerca de 2.780 km de extensão. No sul do Iraque se une ao Rio Tigre para formar o Rio Shattal-Arab, que vai desaguar no Golfo Pérsico. Biblos: nome grego da cidade Fenícia Gebal. Aparentemente, os gregos chamaram-lhe Biblos devido ao fato de ser por meio de Gebal que o byblos (“o papiro Egípcio”) era importado para a Grécia. Situa-se na costa mediter- rânica do atual Líbano, a 42 km de Beirute. Triangulação: a triangulação utiliza um princípio da trigonometria: se um lado e dois ângulos de um triângulo são conhecidos, é possível calcular o terceiro ângulo e os dois lados restantes; utiliza um princípio da trigono- metria: se um lado e dois ângulos de um triângulo são conhecidos, é possível calcular o terceiro ângulo e os dois lados restantes. Agrimensura: medição de terras, campos etc.; arte ou técnica dessa medição; agrimensão. Heródoto: historiador grego, nascido em Halicarnasso (hoje Bodrum, na Turquia) (485?-420 a.C.). Autor da história da invasão persa da Grécia nos princípios do século V a.C., conhecida como As histórias de Heródoto. Dicearco de Messena: historiador e geógrafo grego, natural de Messina (Messena), Sicília (350-290 a.C.). Suas investigações mais notórias estão na área da política, da história literária, da geografia. Criou um planisfério em que a posição de cada região geográfica era estabelecida em relação à distância que a separava de uma linha imaginária orientada de leste para oeste, cha- mada de diafragma. Eratóstenes: matemático, geógrafo e astrónomo grego (194-276 a. C.). Apelidado de Beta por seus contemporâneos, porque o consideravam História do Pensamento Geográfico – 46 – o segundo melhor do mundo em vários aspectos. Foi diretor da Biblioteca de Alexandria. Demócrito: filósofo grego (460-370 a.C.). Considerado pré-socrático, porém, contemporâneo de Sócrates, foi o maior expoente da teoria atômica ou do atomismo. Hiparco de Niceia: astrônomo, construtor, cartógrafo e matemático grego da escola de Alexandria (190-126 a.C.). Hoje é considerado o fundador da astronomia científica e também chamado de pai da trigonometria. Estrabão de Amásia: historiador, geógrafo e filósofo grego (63 ou 64 a.C.-ca. 24 d.C.). Foi o autor da monumental Geographia, um tratado de 17 livros contendo a história e descrições de povos e locais de todo o mundo que lhe era conhecido à época. Ptolomeu: cientista grego (90-168 d.C.). Desenvolveu trabalhos em matemática, astrologia, astronomia, geografia e cartografia. Escreveu o Alma- gesto, tratado de astronomia que reúne todo o conhecimento astronômico babilônico e grego. Nele se basearam árabes, indianos e europeus até o apare- cimento da teoria heliocêntrica de Copérnico. Projeção cônica: projeção cartográfica que utiliza um cone como super- fície de projeção e que apresenta os paralelos circulares e concêntricos e os meridianos, retilíneos e concorrentes no vértice, fazendo entre si ângulos infe- riores às respectivas diferenças de longitude. Gerardus Mercator: geógrafo e cartógrafo flamengo (1512-1594). Apresentou em 1569 a Projeção de Mercator, por meio de um grande pla- nisfério com dimensões 202 x 124 cm, composto por 18 folhas impressas. O nome e as explicações fornecidas por Mercator no seu planisfério mostram que este foi expressamente concebido para uso da navegação marítima. Teodolito: instrumento óptico que mede ângulos verticaise horizontais. 4 Idade Média - Contexto Geral A Idade Média geralmente é referenciada com tendo ocorrido apenas na Europa, sobretudo a parte Ocidental, onde se consolidou o Império Romano. Porém, convém lembrar que, embora a Europa Ocidental tenha sofrido grandes reflexos após a queda do Império Romano, em outras áreas do mundo essa queda ou ruptura total foi pouco ou nada preponderante para as ciências e a evolução do conhecimento geográfico. Não é conveniente generalizar os aspec- tos históricos de uma região para as demais regiões da Terra, pois cada lugar tem suas especificidades, sua história. Além disso, nessa época que passaremos a estudar, o mundo não estava interligado como hoje, os contatos entre os povos e as regiões eram muito pre- cários e, em alguns casos, inexistentes. A Idade Média foi tradicionalmente delimitada com ênfase em eventos políticos. Nesses termos, ela teria se iniciado com a desintegração do Império Romano do Ocidente, no século V (476), e terminado com o fim do Império Romano do Oriente, com a queda de Constantinopla, no século XV (1453), também chamada de Império Bizantino, e pela chegada dos europeus à América. História do Pensamento Geográfico – 48 – Somados todos esses anos, temos cerca de mil anos, caracterizando um longo período em que os europeus viveram em sua maioria no campo, restri- tos a propriedades que buscavam sua sobrevivência e sustento. A sociedade, muito diferente daquela do período do Império Romano, era rigidamente hierarquizada e marcada pela fé em Deus e pelo controle da Igreja Católica – sem dúvida a instituição mais poderosa de toda a Idade Média. O poder político era descentralizado, isto é, estava nas mãos de muitos senhores de terras, os senhores feudais. Por todas essas características, muitos estudiosos acabaram chamando esse longo período de Idade das Trevas. Eles acreditavam que o mundo medieval tinha soterrado o conhecimento produzido por gregos e romanos. O estudo dos fenômenos naturais e das relações sociais por meio da observa- ção, por exemplo, teria sido substituído pelo misticismo religioso. O certo é que durante esses mil anos a sociedade europeia construiu grande parte de seus valores culturais, que iriam se espalhar por todo o mundo a partir do século XV, com as Grandes Navegações. Valores que são, até hoje, plenamente perceptíveis. 4.1 Divisão do período Ao estudarmos a Idade Média, geralmente constatamos, na maior parte dos livros didáticos, a divisão esquemática entre Alta Idade Média e Baixa Idade Média. Essa divisão possui a finalidade de compartimentar os conteúdos refe- rentes a um período que engloba cerca de dez séculos: do século V ao XV d.C. A Alta Idade Média corresponderia, aproximadamente, aos cinco primeiros séculos (século V a século X d.C.), enquanto à Baixa Idade Média estaria reser- vado o período relativo aos séculos seguintes (século XI ao XV d.C.). 4.1.1 Alta Idade Média Período de instabilidade e insegurança generalizada que se estendeu do século V ao século IX. Desse período, destacam-se: 2 reinos germânicos – os germânicos eram povos árias estabelecidos ao longo das fronteiras do Império Romano. Os romanos os cha- – 49 – Idade Média - Contexto Geral mavam de “bárbaros”, por serem estrangeiros e não falarem o latim. Formaram vários reinos germânicos dentro do território romano; 2 Reino Cristão dos Francos – os francos constituíram o reino mais poderoso da Europa Ocidental; 2 Igreja e o Sacro Império – a Igreja Medieval teve importante papel na sociedade. Foi nessa época que começou a organizar-se, com o objetivo de zelar pela homogeneidade dos princípios da religião cristã e promover a conversão dos pagãos; 2 Sistema Feudal – o feudalismo começou a se formar no século V, na Europa Ocidental, com a crise do Império Romano; 2 Império Bizantino – estabelecido em Constantinopla, sobreviveu à invasões bárbaras e perdurou por todo o período medieval; 2 árabes e o islamismo – no Oriente Médio, na península ará- bica, nasceu em 630 o Islão, como resultado das Guerras Santas empreendidas por Maomé. Aos poucos, o Islamismo se expandiu por um extenso território, conquistando terras da Ásia, da África e da Europa. 4.1.2 Baixa Idade Média Período que vai do século X ao século XV. Destacam-se nessa época: 2 crise do feudalismo; 2 cruzadas e a expansão das sociedades cristãs; 2 ressurgimento urbano na Europa; 2 renascimento comercial europeu; 2 formação das monarquias nacionais europeias; 2 cultura medieval. Durante a Baixa Idade Média, com a expansão dos turcos-otomanos no século XIV, tomando os Balcãs e a Ásia Menor, o Império Bizantino acabou reduzido à cidade de Constantinopla. História do Pensamento Geográfico – 50 – A queda, em 1453, foi um fato histórico que marcou o fim da Idade Média na Europa. A conquista da capital bizantina pelo Império Otomano sob o comando do sultão Maomé II, marcou o fim do Império Romano no Ocidente. 4.2 Influência da Igreja Católica na Idade Média Juntamente com a expansão do Feudalismo, em quase toda a Europa Medieval, também ocorre a ascensão de uma das mais importantes e podero- sas instituições desse mesmo período: a Igreja Católica, que havia se expan- dido durante o Império Romano e, com seu fim, alcançou a condição de principal instituição a disseminar e refletir os valores da doutrina cristã. Naquela época, logo depois do primeiro século, diversas interpretações da doutrina cristã e outras religiões pagãs se faziam presentes no contexto europeu. Foi pelo Concílio de Niceia, em 325, que se assentaram as bases religiosas e ideológicas da Igreja Católica Apostólica Romana. Com a cen- tralização de seus princípios e a formulação de uma estrutura hierárquica, a Igreja teve condições suficientes de realmente influenciar os inúmeros feudos na Idade Média. Estabelecida em uma sociedade marcada pelo pensamento religioso, a Igreja esteve presente nos mais diferentes níveis da sociedade medieval. A própria organização da sociedade medieval (dividida em clero, nobreza e ser- vos) era um reflexo da Santíssima Trindade. Além disso, a vida terrena era desprezada em relação aos benefícios a serem alcançados pela vida nos céus. Dessa maneira, muitos dos costumes dessa época estavam influenciados pelo dilema da vida após a morte. Além de se destacar pela sua presença no campo das ideias, a Igreja tam- bém alcançou grande poder material. Durante a Idade Média, ela passou a controlar grande parte dos territórios feudais, transformando-se em impor- tante chave na manutenção e nas decisões do poder nobiliárquico. A própria exigência do celibato foi um importante mecanismo para que a Igreja conser- vasse o seu patrimônio. O crescimento do poder material da Igreja chegou a causar reações dentro da própria instituição. – 51 – Idade Média - Contexto Geral Aqueles que viam na influência político-econômica da Igreja uma ame- aça aos princípios religiosos, começaram a se concentrar em ordens religiosas que se abstinham de qualquer tipo de regalia ou conforto material (quando assistimos ao filme O nome da rosa1, podemos observar o tratamento dife- renciado às congregações dentro da própria igreja. Essa cisão nas práticas da Igreja veio subdividir o clero em duas vertentes: o clero secular, que admi- nistrava os bens da Igreja e a representava nas questões políticas; e o clero regular, composto pelas ordens religiosas mais voltadas às práticas espirituais e à pregação de valores cristãos. Grande parte de pessoas alfabetizadas eram membros da Igreja, pouquís- simas pessoas eram alfabetizadas ou tinham acesso às obras escritas. Por isso, muitos mosteiros medievais preservavam bibliotecas inteiras, nas quais grandes obras do Mundo Clássico e Oriental eram conservadas. São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, por exemplo, foram dois membros da Igreja que produziram tratados filosóficos que dialogavam com os pensadores da Antiguidade. Mesmo contando com tamanho poder e influência,
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