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(1) Simone Gonçalves de Assis Joviana Quintes Avanci Renata Pires Pesce Suely Ferreira Deslandes PESQUISADORES Simone G. Assis (COORDENAÇÃO) Joviana Quintes Avanci Renata Pires Pesce Suely Ferreira Deslandes Liana Furtado Ximenes Luciene Patrícia Câmara Lucimar Câmara Marriel Gabriela Franco Dias Lyra APOIO TÉCNICO Jerônimo Rufino dos Santos Júnior Marcelo da Cunha Pereira Marcelo Silva da Motta APOIO À DOCUMENTAÇÃO E NORMATIZAÇÃO DA BIBLIOGRAFIA Fátima Cristina Lopes dos Santos Danúzia da Rocha de Paula ISBN: 85-88026-30-9 Este texto é fruto de uma pesquisa financiada pelo Programa de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação em Saúde Pública – PDTSP-SUS, da Fundação Oswaldo Cruz. É continuidade de um trabalho sobre resiliência desenvolvido pelo Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli em conjunto com o Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF. Também contou com bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq; do Programa PIBIC do CNPq/Fiocruz; e do Programa de Técnicos/ Tecnologistas (Tec-Tec) - Convênio FIOCRUZ-FAPERJ. Capa, projeto gráfico e editoração: Carlota Rios; Ilustração: Marcelo Tibúrcio; Revisão: Mara Lúcia Pires Pesce; Fotos: Gutemberg Brito Ficha catalográfica 305.23 A848s Assis, Simone Gonçalves de Superação de dificuldades na infância e adolescência: conversando com profissionais de saúde sobre resiliência e promoção da saúde/ Simone Gonçalves de Assis; Joviana Quintes Avanci; Renata Pires Pesce; Suely Ferreira Deslandes. — Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ENSP/CLAVES/CNPq, 2006. ISBN 68 p. 1. Resiliência. 2. Risco. 3.Promoção da saúde. 4.Proteção. I.Fundação Oswaldo Cruz. II. Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde “Jorge Careli”. III.Fundo das Nações Unidas para a Infância. IV. Avanci, Joviana Quintes. V. Pesce, Renata Pires. VI. Deslandes, Suely Ferreira. AGRADECIMENTOS Secretaria Municipal de Saúde de Duque de Caxias-RJ Secretaria Municipal de Saúde de São Gonçalo/RJ. Unidades de saúde e profissionais que participaram dos grupos focais que deram origem ao livro. Secretaria Municipal de Educação de São Gonçalo/RJ. ÍNDICE Apresentação 5 Capítulo 1: SUPERAR, ENFRENTAR OU SER RESILIENTE FRENTE AOS PROBLEMAS? 5 Resiliência e ciclos de vida 10 Reconhecendo crianças e adolescentes resilientes 12 Capítulo 2: SITUAÇÕES QUE DESAFIAM A RESILIÊNCIA 15 Desigualdade social e resiliência 18 Morte de pais e irmãos 19 Problemas de saúde nas famílias 20 Brigas e separações dos pais 21 Violências nas famílias 22 Dificuldades na escola e comunidade 25 Capítulo 3: PROTEÇÃO QUE ESTIMULA A RESILIÊNCIA 27 Atributos protetivos individuais que potencializam a resiliência 32 Família e ambiente social 42 Capítulo 4: O DESAFIO DA PROMOÇÃO DA SAÚDE E DA RESILIÊNCIA 47 DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES Representações das crianças/adolescentes e de suas famílias 52 Representações dos profissionais de saúde 53 Profissionais de saúde e promoção da resiliência 58 REFERÊNCIAS/REFERÊNCIAS SUGERIDAS 63 ANEXO – ESCALA DE RESILIÊNCIA (WAGNILD & YANG, 1993) 67 (6) (7) APRESENTAÇÃO Este livro foi feito após entrevistarmos profissionais de saúde com experiência em atendimento às crianças, adolescentes e suas famílias. São profissionais com idade e tempo de formação bem variados. Queríamos saber o que pensam sobre a capacidade humana de superação de problemas, também chamada de resiliência e da possibilidade do profissional de saúde estimular esta habilidade em seus jovens clientes e suas famílias. Os relatos das experiências de 35 profissionais que trabalham nos municípios de São Gonçalo/RJ e Duque de Caxias/RJ são a base deste livro e se encontram destacadas em algumas partes do texto. São médicos, psicólogos, enfermeiros, fonoaudiólogos, biólogos, assistentes sociais e auxiliares de enfermagem de ambos os sexos que trabalham em postos e centros de saúde, hospitais infantis, Centros de Apoio Psicossocial da Infância e Juventude – CAPSIJ, (destinado ao atendimento a quadros mais graves de problemas mentais), Centros de Atenção Total ao Adolescente – CEATA (unidade de referência para adolescentes em situação de uso e/ou dependência de substâncias) e no setor de saúde escolar dos bombeiros. O texto também articula a reflexão dos profissionais com os resultados de um estudo epidemiológico com 1.923 escolares de São Gonçalo/RJ entre 12 e 19 anos que avaliaram suas próprias capacidades de superação de dificuldades. Procuramos ainda trazer no livro as bases científicas hoje existentes sobre o conceito de resi- liência, um tema cada vez mais fundamental para aqueles que têm como norte a promoção em saúde. Eu gostei dessa pesquisa. (risos) Ninguém nunca chamou a gente para falar, sabia? A gente só atende. (Profissionais do Centro Municipal de Saúde que participaram de um grupo para avaliar a primeira versão deste livro) (8) Esperamos que este livro possa ajudar os profissionais que atuam na área da infância e adolescência a perceberem que as ações de proteção que desenvolvem no seu cotidiano são pontos-chave para a promoção da resiliência desde as fases mais iniciais da vida. Promover a capacidade de superação de dificuldades ainda na infância e na adolescência é uma das formas de ajudar as pessoas a enfrentarem momentos muito difíceis da vida, como as perdas e as violências que podem ocorrer ao longo da existência. A resiliência é importante de ser desenvolvida para a prevenção da violência. Para nós, profissionais do Centro Latino Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli - CLAVES, que há dezessete anos estudamos as formas de violência sobre crianças e adolescentes, tão importante quanto diagnosticar e atender as vítimas, é prevenir a violência desenvolvendo a resiliência na sociedade, caminho cada vez mais promissor e apontado por muitos estudiosos. Acreditamos que os profissionais de saúde, junto com os profissionais de educação, os pais e as próprias crianças e adolescentes têm papel fundamental para a promoção da resiliência, razão pela qual escrevemos livros específicos visando alcançar cada um desses públicos1. Partimos do pressuposto que cada sociedade pode encontrar formas próprias e criativas de superação das dificuldades vividas pela população. Este livro é apenas um passo nesta direção, que, esperamos, possa ser útil para você. 1 Cinco outros textos para capacitação/sensibilização sobre o tema foram produzidos pelas autoras: • Resiliência: enfatizando a proteção dos adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2006 • Resiliência na adolescência. Refletindo com educadores sobre superação de dificuldades. Rio de Janeiro. Fiocruz; ENSP; CLAVES; UNICEF; CNPq, 2005 • Encarando os desafios da vida. Uma conversa com adolescentes. Fiocruz; ENSP; CLAVES; UNICEF; CNPq, 2005. • Por que é importante ajudar os filhos a “dar a volta” por cima? Conversando com pais de crianças e adolescentes sobre as dificuldades da vida. Fiocruz; ENSP; CLAVES, 2006 ••••• O olho do furacão. Peça teatral escrita por Martha Ribeiro a partir dos originais dos livros. Dirigida por Marta Guedes e Johayne Hildefonso (9) SUPERAR, ENFRENTAR OU SER RESILIENTE FRENTE AOS PROBLEMAS? Começamos os encontros com os profissionais de saúde contando a história de dois irmãos universitários que recentemente perderam a mãe, o pai ficou desempregado e a família ficou mal financeiramente e instável emocionalmente. Nesta fase ruim, um deles se encaminha para as drogas enquanto o outro arruma um emprego noturno, faz faculdade e ajuda em casa. Os relatos dos profissionais trouxeram imediatamente duas idéias diferentes: a capacidade de enfrentar os problemas – positiva ou negativamente – e a de superá-los. O conceito de resiliência ainda é pouco difundido na prática em saúde; apenas uma profissional conhecia a temática, trazendo-aespontaneamente para discutir esse caso dos dois jovens. Para os profissionais, de uma forma geral, os problemas podem ser enfrentados de forma negativa ou positiva. No primeiro caso, as adversidades são negadas ou são utilizadas ações que dificultam a sua resolução; enquanto que um enfrentamento positivo está relacionado à atitudes construtivas que auxiliam a resolução das dificuldades. Ambas as formas de enfrentamento trazem embutida a noção de que são processos adotados ao lidar com os problemas. Já a noção de superação das dificuldades está mais relacionada a um resultado obtido; a uma forma construtiva de reorganizar a vida após um problema. Alguns profissionais criticam essa idéia de superação total, por considerarem não ser possível apagar totalmente as cicatrizes deixadas pelas adversidades. A fala desses profissionais de saúde está bem afinada ao que existe na ampla bibliografia sobre resiliência surgida nos últimos trinta anos. Inicialmente pensada 1 (10) nas ciências exatas, na física e na engenharia, a resiliência foi definida como a energia de deformação máxima que um material é capaz de armazenar sem sofrer alterações permanentes (Yunes & Szymanski, 2001). Posteriormente o termo foi adaptado para as ciências humanas e da saúde, designando a capacidade de resistir às adversidades, a força necessária para a saúde mental estabelecer-se durante a vida, mesmo após a exposição a riscos. Significa a habilidade de se acomodar e reequilibrar frente às adversidades. Na medicina, teria como foco a capacidade de uma pessoa resistir às doenças, infecções ou intervenções, com ou sem a ajuda de medicamentos (Tavares, 2001). Na Saúde Pública, encaixa-se perfeitamente na ótica da prevenção e da promoção da saúde, do bem estar e da qualidade de vida de indivíduos e sociedades. Definições comumente utilizadas: Enfrentar * pôr ou estar defronte de, defrontar, confrontar; atacar de frente; encarar, arrostar, afrontar; defrontar-se, confrontar-se (Aurélio, B.H.F. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986). Superar * vencer, subjugar; livrar-se de, afastar, remover; passar além de, exceder, ultrapassar; passar por cima de; passar além de; sobrelevar; levar vantagem a; sobrepujar (Aurélio, B.H.F. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986). Resiliência * elasticidade, ricochete, capacidade de rápida de recuperação (Houaiss, A. Webster. Dicionário inglês português. Rio de Janeiro: Record, 1982). * propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica; resistência ao choque (Aurélio, B.H.F. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986). Como se pode perceber neste quadro, o termo enfrentar tem conotação restrita a agir frente ao problema, não dando indícios sobre o modo de atuação da pessoa. Superar já passa outra mensagem, a de resolução do problema ou de um encaminhamento positivo. Já as duas definições de resiliência salientam a visão da física e a capacidade rápida de recuperação. (11) Neste trabalho, optamos por considerar a superação de problemas como um sinônimo de resiliência, porque entendemos ambos os conceitos sob a ótica da organização individual, de grupos ou instituições em que persistentemente predomina a busca de resolução dos problemas, visando o pleno crescimento e desenvolvimento. As definições de resiliência obtidas em dicionários refletem uma visão tradicional sobre o tema, não alcançando o desenvolvimento que o conceito vem tendo ao longo das décadas. No começo, era entendido como sinônimo de invulnerabilidade, como uma capacidade individual de adaptação bem-sucedida em um ambiente ‘desajustado’ e como qualidades elásticas e flexíveis do ser humano. Acreditava-se então que existiriam pessoas invencíveis, especiais e capazes de resistirem a toda sorte de problemas e ambientes sem enfraquecerem. Com o avanço dos estudos científicos viu-se que não existem pessoas invencíveis e que a resiliência não é um dado imutável nos indivíduos. Ela é fruto de um processo dinâmico que, por sua vez, envolve fatores sociais e intrapsíquicos de vulnerabilidade e de proteção. A resiliência está ancorada em dois grandes pólos: o da adversidade, representado pelos eventos de vida desfavoráveis; e o da proteção, que aponta para a compreensão das formas de apoio - internas e externas ao indivíduo – que o conduzem a uma reconstrução singular diante do sofrimento causado por uma adversidade. Neste livro vamos nos deter nos fatores de vulnerabilidade e de proteção existentes na vida de crianças e adolescentes e que as influenciam a ter maior ou menor capacidade de superação aos estresses da vida. Resiliência e vulnerabilidade se encontram em pólos opostos da resposta aos riscos (Luthar & Zigler, 1991; Antoni & Koller, 2000). Por vulnerabilidade entende-se a predisposição de uma pessoa para desenvolver psicopatologias e apresentar problemas de comportamento, ou, dizendo de outra forma, uma susceptibilidade para que surja um resultado negativo durante o desenvolvimento. No outro lado, está a resiliência, como o potencial individual para resistir às conseqüências negativas das situações de risco e desenvolver-se firmemente. Vamos apresentar dados que mostram por que as pessoas mais resilientes lidam, adaptam, mostram superação e constroem caminhos positivos diante de circunstâncias de vida difíceis, enquanto outras com menor resiliência apresentam esse potencial menos desenvolvido e se deixam vencer mais facilmente frente aos obstáculos. A escolha por abordar as fases iniciais da vida justifica-se porque é neste período em que se estabelecem as bases que sustentam e norteiam o ser humano (12) ao longo de sua existência, e, portanto, é um momento prioritário para se pensar em prevenção aos agravos e em promover saúde. RESILIÊNCIA E CICLOS DE VIDA Nos primeiros anos, a resiliência já está se estabelecendo, mas ainda é muito frágil. Conforme as reações do meio, o potencial de resiliência poderá se apagar, se desviar ou se reforçar, até se tornar uma sólida maneira de agir (Cyrulnik, 2004). O potencial de resiliência de uma pessoa inicia-se antes mesmo de sua concepção e é fortalecido durante a gravidez por meio das fantasias, das expectativas, dos desejos despertados no núcleo familiar, da trajetória de vida dos pais e do contexto sócio-econômico que cerca a criança durante seu crescimento e desenvolvimento. Os primeiros meses e anos de vida são importantes para o padrão de desenvolvimento da criança e seu potencial de resiliência, que será definido pelas interações que fizer com o meio e pela riqueza de estimulação que a criança recebe. Cada filho recebe um cuidado diferente de seus pais e é uma pessoa única e singular, assim como é distinto o processo de construção de sua resiliência. No período de 0 a 3 anos, o afeto por si próprio começa a ser construído, questão fundamental para o desenvolvimento da resiliência. Aí já se instala a capacidade de encarar com otimismo as novidades e dificuldades que surgem. Brincadeiras aparentemente sem sentido como beijar um machucado para que a dor vá embora e ressaltar o humor de pequenos acidentes sofridos podem ser incorporados pela criança como formas mais leves de enfrentar momentos difíceis. A consciência, o significado dos limites e o sentimento de confiança (em A gente sempre fala assim: é do indivíduo! Mas dá uma impressão quase, como se fosse uma coisa natural. Nasci com essa capacidade. Eu acho que isso é construído ao longo da vida por essas outras coisas que estão em volta. É porque de repente eu tive uma família afetuosa, tive limites, onde eu encontrei espaços onde eu pude ter relações favoráveis que eu construí esse indivíduo forte, capaz de superar as coisas. Porque senão fica parecendo que fulano nasceu forte e fulaninho nasceu fraco. Eu não acredito nisso. Nessa natureza humana. Eu não... eu particularmente não acredito. (Profissional do Capsij) (13)si e no mundo) também são formados nessa fase, o que afeta a capacidade de tolerar frustrações (Kotliarenco et al., 1997). No período dos 4 a 7 anos, as relações afetivas são estendidas a um circuito mais amplo. A criança já é capaz de planejar e tomar iniciativa para o alcance de metas específicas, mas necessita de mãos estendidas que apóiem seu êxito. O educador e a escola assumem papel fundamental para o desenvolvimento da resiliência, especialmente na esfera afetiva. Podem estimular a autoconfiança da criança e seu potencial de resiliência, dando-lhe novas oportunidades para que perceba suas possibilidades e diferentes formas de enfrentar as dificuldades (Munist et al, 1998). Na troca de afeto com pares, a criança precisa sentir que ocupa um lugar no grupo, que é aceita e querida por algumas de suas particularidades. A afirmação da confiança básica, do reconhecimento dos limites que o mundo impõe e do progresso para a independência vão se consolidar nessa etapa, configurando-se como outro fator que promove a resiliência ao longo da vida. A criança dos 8 aos 11 anos necessita receber aprovação por sua produtividade, já que desenvolve um repertório maior de habilidades específicas. A avaliação da competência está em alta nessa etapa, assim como o desenvolvimento de um senso básico de inferioridade, quando a criança se sente incapaz de desenvolver habilidades. Os pares assumem um papel importante nesse tempo de transformações sexuais e dos conflitos específicos da puberdade. As mudanças emocionais se aceleram. Acentua-se o processo de identificação e a criança costuma se separar mais da figura dos pais, caminhando para a maior independência. Pela intensidade das mudanças, as crises emocionais afetam a confiança, provocando inseguranças e incertezas. Na adolescência, os afetos e conflitos são ampliados. O adolescente reexamina sua identidade e os papéis que deve desempenhar. Costuma ocorrer um desajuste consigo mesmo, havendo maior necessidade de afirmação pessoal, de busca de autonomia e de independência em relação à família. É preciso que surja um adulto significativo para contrabalançar os conflitos com os pais, freqüentes nessa fase da vida. As relações amorosas são valorizadas e o sentimento de confiança é cambaleante. Na vida adulta o potencial de resiliência continua a se fortalecer ou pode se enfraquecer. Nessa fase, em que os afetos alcançam maior desenvolvimento, estabelecem-se novos núcleos familiares e capacidade de estabelecer intimidade afetiva com parceiro(a) e filhos é uma das maiores necessidades. A competência e a satisfação com a ocupação, fundamentais deste momento da vida, podem estar fragilizados se o adulto estiver com seu grau de autoconfiança (14) comprometido. A bibliografia sobre resiliência a respeito dessa fase da vida se direciona mais para a forma de enfrentar problemas como mortes e doenças. Existem todo o ciclo vital, com especial atenção para os primeiros anos da vida. Para isso, profissionais de saúde precisam reconhecer o potencial de resiliência existente na família, nas crianças e adolescentes que atendem. RECONHECENDO CRIANÇAS E ADOLESCENTES RESILIENTES Reconhecer os problemas apresentados pelo paciente é o passo fundamental para o bom atendimento do caso e para a escolha das estratégias de atenção necessárias para o pleno restabelecimento. É também um primeiro passo para se avaliar o seu potencial de resiliência. Classificar uma pessoa como resiliente ou não resiliente é um passo difícil de ser executado na clínica, por várias razões. PRINCIPAIS DIFICULDADES PARA O RECONHECIMENTO DA RESILIÊNCIA EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES 1) A resiliência é um atributo emocional que se desenvolve ao longo da vida e seu reconhecimento é mais difícil pelo seu alto grau de subjetividade, onde cada indivíduo traz em sua história de vida uma maior ou menor capacidade de superar as adversidades. 2) Possui diferentes formas de reconhecimento: • critério de sucesso pessoal, que reduz o significado da resiliência. Em uma fase inicial das pesquisas esta noção foi importante, pois deu um solavanco no interesse científico sobre o tema. Garmezy (1993), um médico estudioso da resiliência, teve seu interesse despertado para o tema ao se deparar na clínica com crianças esquizofrênicas que demonstravam melhor desenvolvimento e maior competência que outras com a mesma doença. A investigação das diferenças entre os dois grupos, tanto no nível individual quanto no familiar, possibilitou que se observasse a existência de pessoas mais ou menos resilientes (Glantz & Johnson, 1999). • aferição de um determinado problema: como por exemplo comportamentos anti-sociais ou depressão, restringindo a noção de resiliência à presença ou ausência de um atributo ou comportamento indesejável. Ambos os critérios se tornam frágeis ao considerarem como resiliente a pessoa bem sucedida em determinado aspecto. Dando como exemplo de resiliência o término dos estudos, passa-se a considerar como não resiliente alguém que, por exemplo, parou de estudar por várias razões, desconsiderando outras esferas da vida em que se mostra plenamente capaz de superar dificuldades. (15) 3) Clínicos e pesquisadores divergem quanto às diferentes noções culturais sobre adaptação bem sucedida frente aos problemas. Seriam mais resilientes aqueles que se submeteriam às normas sociais como não se envolver em situações de risco ou os que se comportam mais de acordo com as normas do grupo social ou familiar? Neste âmbito de discussão, a resiliência toma um caráter perigoso porque entra em um campo ideológico, permitindo rotular pessoas mais vulneráveis com mais um estigma, o da não resiliência, que se acrescenta aos muitos que lhes atribuem, como pobres, marginais ou doentes mentais (Yunes & Szymanski, 2001). No presente trabalho, analisamos resiliência como um atributo geral da personalidade individual ou traço grupal/institucional, caracterizado pela capacidade de resolução de ações, presença de valores e sentido na vida; independência e determinação; autoconfiança e capacidade de superação frente aos problemas (escala de Wagnild &Yang, 1993). O que mostraremos a seguir é que é possível avaliar a resiliência dos pacientes, assim como auxiliá-los em seu processo individual de superação das dificuldades. Este é um importante passo para ajudar crianças e adolescentes no cotidiano do atendimento. Na pesquisa que fizemos com adolescentes, usamos uma escala que valoriza os sinais da capacidade de resiliência de adolescentes, que adaptamos para o português (em anexo) (Pesce et al., 2005). Na atenção a crianças e adolescentes, o mais importante é ter uma “escuta fina” da história do paciente e de seus problemas, para se poder reconhecer e analisar os sinais e sintomas que indiquem o potencial de resiliência dos pacientes e os caminhos a serem tomados durante o atendimento. Com essa escuta, o profissional de saúde é capaz de perceber os mecanismos empregados pelos pequenos pacientes e suas famílias na resolução das dificuldades e de reforçar aspectos protetores, contribuindo para a capacidade de superação de dificuldades de crianças e adolescentes. (16) (17) SITUAÇÕES QUE DESAFIAM A RESILIÊNCIA Boris Cyrulnik, um importante psiquiatra, etólogo e escritor francês que investiga resiliência, ressalta as marcas deixadas pelos problemas enfrentados ainda na infância. Um ferimento precoce ou um grave choque emocional deixam um traço cerebral e afetivo que permanece dissimulado sob a retomada do desenvolvimento. O tecido portará uma lacuna ou uma malha particular que irá alterar a continuação da tecedura. Poderá se tornar um tecido bonito e quente, mas será diferente. O distúrbio é reparável, às vezes até para melhor, mas não é reversível (Cyrulnik, 2004: 113). Ao longo deste capítulo apresentaremos como uma criança se defronta com circunstâncias adversas mesmo antes de nascer e como se defende delas ao longo de todos os anos de sua existência, transformando-se constantemente, dependendo de sua capacidadede elaborar e superar problemas e reformular- se, atributos que compõem as raízes da resiliência. Nesse sentido, dificuldades modelam a vida das pessoas, mudando seus rumos e abrindo novos caminhos. Nem toda adversidade enfrentada na infância e adolescência constitui um problema que afeta o desenvolvimento individual e familiar. Os efeitos dos problemas sobre crianças e adolescentes podem decorrer de apenas uma adversidade. Porém, mais comumente, é o acúmulo deles que leva ao estresse da criança ou adolescente, elevando a possibilidade de conseqüências negativas para o desenvolvimento infanto-juvenil. Esse maior potencial lesivo não se dá apenas pelo número de problemas, mas principalmente 2 (18) pelo impacto e pela potencialização de um problema sobre o outro (Garmezy, 1993). Todos os 1923 adolescentes de escolas públicas e particulares de São Gonçalo que participaram de nosso estudo vivenciaram uma ou mais dificuldades em suas vidas dentre as apresentadas mais adiante, ilustrando em suas falas como as dificuldades são sempre indesejáveis, mas nem sempre evitáveis (Assis, Pesce & Avanci, 2006). ANDRESSA E SEUS PROBLEMAS Andressa, 15 anos, foi encontrada por seus pais desmaiada no chão do quarto. Babava e seus olhos pareciam “perdidos no ar”. Imediatamente eles a levaram para emergência de um hospital, onde seu quadro foi diagnosticado como intoxicação por “chumbinho”, um tipo de carbamato vendido no comércio popular e clandestino como veneno para ratos. No hospital, Andressa realizou lavagem gástrica, foi logo hidratada e medicada com atropina. Com o passar das horas, cessaram a miose (retração da pupila), a sialorréia (secreção abundante de saliva) e os vômitos e a adolescente se mostrou consciente, embora apática. Após o tratamento emergencial, Andressa foi para a enfermaria, muito apática. Não conversa nem com seus pais nos momentos de visita. A auxiliar de enfermagem Janete, procura ajudá-la, puxando assunto, enquanto presta os cuidados a paciente. Após inúmeras tentativas de contato, Janete fala para a menina que não vale a pena querer morrer por causa de namorado algum. Andressa olha para Janete e, com os olhos marejados por lágrimas, diz que nunca teve namorado. Que desejou morrer porque se sentia infeliz, porque ninguém gostava dela. Janete ouviu atentamente o lamento de Andressa, mesmo sabendo que não podia ficar muito tempo com a menina porque precisava atender outros pacientes. Não sabia o que dizer ou o que fazer ao ouvir o relato de Andressa... Andressa vive com ambos os pais e um irmão um ano mais novo. A mãe trabalha como merendeira em uma escola e o pai é garçom. Os pais sempre foram muito severos com Andressa. Nunca permitem que ela saia de casa com amigas e namore. Só sai de casa acompanhada dos pais e para ir à escola tem que ir junto com o irmão. Desde pequena é muito submissa às ordens da família. Nas poucas vezes que reagiu aos pais, levou um tapa no rosto da mãe e apanhou com cinto de seu pai. A mãe nunca elogiou a filha quando ela vai bem na escola, limpa a casa ou faz a comida para a família, atribuições de sua responsabilidade. Pelo contrário, sempre foi muito crítica com todas as atitudes de Andressa, enfatizando seus erros e descuidos. A mãe nunca permitiu a Andressa escolher as próprias roupas ou brinquedos, impondo sua vontade à da filha. As duas pouco conversam. (19) Andressa tem muitas dificuldades de relacionamento com seu irmão André. Ele costuma brigar muito com Andressa e bater nela, que se recolhe em seu quarto pra chorar. Acha que seu irmão é mais querido pelos pais; justifica que eles sempre se preocuparam mais com o irmão porque ele era doentinho quando bebê. André ganha mais presentes e roupas dos pais e tem mais liberdade para sair e estar com colegas. Os pais sempre elogiam quando ele vai bem na escola e dizem que ele é um menino muito inteligente. Andressa se sente rejeitada pela sua família. O pai, apesar de pouco presente em casa, controla rigidamente as finanças da casa. O telefone fica no quarto do casal, sempre trancado a chave, para que os filhos não o utilizem. Os gastos da família são regrados, pois há necessidade de economizar. A pressão é grande a ponto do pai dizer que Andressa precisa casar logo para se livrar da despesa que ela traz. Andressa diz que perdeu o gosto por estudar e que na escola os amigos estão se afastando dela. Acha que Deus se esqueceu dela e que vive num mundo muito injusto. No meio de tanta angústia, Andressa não vê saída para sua situação, exceto tentar se matar comprando e ingerindo chumbinho. Ao ouvir este relato, Janete se afasta apressada do leito da menina, preocupada e triste. Não sabe o que fazer. Informa à chefia de enfermagem que a menina está sofrendo muito. No entanto, a rotina hospitalar tem ritmo distinto das necessidades de Andressa. Logo que se recupera mais um pouco, a adolescente é enviada para casa com um pedido de encaminhamento para atendimento psicológico. O caso de Andressa mostra como uma sucessão de problemas estruturais e relacionais se associam para impedir o desenvolvimento do potencial de resiliência. Andressa mostra pouca capacidade de resolução de problemas, fuga das dificuldades, pouca confiança e estima por si própria. Sua família não age Eu acho que quem vai dizer que problema é mais fácil ou mais difícil pra ser superado é o cliente, é a criança. Ele é quem vai me dizer o que foi sério e o que é que não foi. Isso traz uma questão importante. Às vezes pode ser muito sério pra gente e não é tão sério para ele. Às vezes uma professora, chama atenção da criança na frente da turma. Pra gente ela pode estar querendo ajudar aquela criança; a intenção dela pode ter sido de integrar a criança. Mas para a criança aquilo foi uma coisa horrível, a ponto dela não querer mais ir à aula, não querer mais aquela professora. O cliente é que vai dizer o que é que foi grave, o que é que não foi. O que é que pode ser superado, o que é que não pode. Eu acho. (Profissionais do Hospital infantil (20) como protetora em relação a muitas de suas necessidades e o isolamento social em que a família se insere afasta Andressa de outras redes sociais que poderiam protegê-la. Até o serviço de saúde não mostrou imediata capacidade de proteção ao se deparar com a menina. As dificuldades vividas pela adolescente não são facilmente captadas e trabalhadas nos serviços de saúde e nem reconhecidas como problemas por muitos profissionais. Ao longo deste capítulo veremos vários tipos de dificuldades que acometeram a vida dos adolescentes de São Gonçalo, refletindo como o reconhecimento desses problemas e de suas conseqüências pode orientar os profissionais de saúde em seu trabalho de promoção da resiliência. DESIGUALDADE SOCIAL E RESILIÊNCIA Viver em condições sócio-econômicas precárias é um fator de risco sempre apontado na literatura nacional e internacional para o desenvolvimento infanto- juvenil e poderia, portanto, ser um impedimento à aquisição da resiliência. É uma ameaça constante, aumentando a vulnerabilidade da criança e de sua família à subnutrição, à privação social, à desvantagem educacional, aos conflitos relacionais e a uma série de outras limitações (Cecconello & Koller, 2000). Classe social pode influenciar pra superar os problemas... Nível sócio-cultural pode influenciar. Mas não determina. Tem gente que tem poder econômico e não consegue superar essas coisas na vida. Tem gente que passa muitos apertos e supera. Pode influenciar, mas não determina. (Profissionais do Posto Municipal) Dentre as variáveis de risco, a precariedade sócio-econômica foi a mais citada pelos adolescentes de São Gonçalo: 57,6% dos adolescentes de São Gonçalo integrantes de famílias dos estratos populares vivenciam mais de três tipos de eventos adversos, dentre os apresentados ao longo deste capítulo. Este percentual cai para 29% entre os adolescentes das classes média e alta. A fala dos profissionais de saúde mostra e os resultados da pesquisa confirmam que nas famílias dos estratos populares e naquelasconstituídas por pais com pouca escolaridade, há mais problemas em várias esferas da vida. (21) Mas, apesar de todo o prejuízo provocado pela privação sócio- econômica, o potencial de resiliência dos adolescentes de São Gonçalo não se mostra afetado pelo estrato sócio-econômico, a despeito dos vários comprometimentos de ordem emocional e relacional observados entre os que passam por situações de pobreza e pelas outras adversidades carreadas por ela. Isso indica que por mais pobre que seja uma família ou comunidade, suas crianças têm tanto potencial de superar dificuldades como uma outra nascida em melhor situação social. MORTE DE PAIS E IRMÃOS A morte dos pais ou cuidadores é uma situação traumatizante para uma criança ou um adolescente. Quatorze por cento dos adolescentes de São Gonçalo já viveram a experiência de perda do pai, da mãe ou irmão/irmã, não havendo distinção de nível sócio-econômico entre eles. A fase da vida em que a perda ocorreu merece ser destacada. A despeito das diferenças de cada etapa, de modo geral, parece que não há um período crítico especial do desenvolvimento afetado pela experiência de perda de cuidadores (Rutter, 1988). A reação da dor imediata parece ser mais curta em crianças pequenas, contudo conseqüências tardias podem aparecer e serem maiores. Para a criança de idade escolar não é a percepção da falta, mas a representação da perda o que mais a mobiliza. Essa representação pode ser constatada através da encenação do evento vivido por meio do desenho, da narrativa, do jogo ou do teatro. Representar ludicamente a perda é uma das O progresso e evolução de irmãos é uma característica da personalidade de cada um. Um cara tem um problema e vai à luta, arregaça a manga. O outro prefere se encolher. Mas há também circunstâncias de possibilidade que cada um vivencia de forma diferenciada, ou seja, eu não sei que tipo de grupos e de vivência cada um teve anteriormente a morte ou perda da mãe para depois da morte dela ter um tipo de reação diferente. As possibilidades que cada um tem também. O que se apresenta para cada um no seu crescimento e amadurecimento também influencia a decisão diante de uma perda. Não é só uma questão individual, é uma questão sócio- cultural também. Embora sejam irmãos. Isso não impede que cada um tenha uma vivência sócio-cultural diferenciada. (Profissionais de posto municipal) (22) formas de promover resiliência. Já o pré-adolescente ou o adolescente precisa comandar a forma como deseja expressar sua infelicidade. Quanto mais nova for a criança, é menos provável que seu luto se assemelhe ao do adulto (Cyrulnik, 2004). A percepção de que a criança supera mais facilmente as dificuldades que os adolescentes foi comumente relatada pelos profissionais de saúde entrevistados, especialmente pelo mais restrito leque de expressões dolorosas e pelo tempo mais curto de luto observado nas fases iniciais da vida. Pouco conhecimento existe sobre as conseqüências tardias provocadas por essas perdas. Para que o profissional visualize o desenrolar da perda sobre a saúde infantil é necessário que se informe sobre o contexto afetivo na família apesar da perda; a qualidade do relacionamento da criança com quem morreu; como e quando a revelação da morte é feita; como o genitor sobrevivente reage e como quer e espera que a criança reaja (Bowlby, 1998). Dar a criança ou ao adolescente informações exatas e sinceras, demonstrando simpatia e apoio é uma postura das mais eficazes, facilitando uma reação realista à perda e diminuindo as conseqüências oriundas dessa experiência. É preciso que o adulto responsável por um ambiente familiar estável seja capaz de tolerar a sua própria saudade e a angústia da criança ou adolescente, se quer ajudá-la a passar de forma mais positiva por um momento tão difícil. O potencial de resiliência é similar entre os que viveram a perda de pais e irmãos e os que não passaram por tal adversidade, apontando para o fato de que existem fatores mediadores que contribuem para a superação de adversidades. Em casos de perdas de cuidadores é importante que não apenas a família próxima à criança, mas também a sociedade encontre meios de ajudar o genitor sobrevivente a cuidar de seus filhos. PROBLEMAS DE SAÚDE NA FAMÍLIA Os problemas de saúde são altamente estressantes e de grande magnitude na vida das crianças e dos adolescentes. Dependendo da gravidade dos agravos à saúde, do tempo que duram e das conseqüências emocionais e financeiras que deixam na família, eleva-se o grau de vulnerabilidade desses adolescentes frente à vida. (23) A pesquisa mostra que muitos adolescentes vivenciaram vários problemas de saúde em suas famílias, destacando-se: mortes de parentes próximos; doenças e acidentes de familiares; uso de álcool e drogas na família. Doenças agudas e crônicas perpassam as histórias familiares, trazendo para dentro de casa a instabilidade da vida. Vivenciar problemas de saúde na família não afeta diretamente a resiliência dos adolescentes. Porém, os mais resilientes mostram-se mais conformados diante das perdas por que passaram. Apesar da tristeza que sentem, seus relatos caminham para um mesmo sentido: “a gente tem que superar, vai fazer o quê”, “era hora dele ir mesmo”. Crianças e adolescentes costumam sentirem muito se assistem o sofrimento das pessoas que amam. Orientar a criança ou adolescente e sua família sobre o processo desencadeado pela doença pode fortalecer neles a coragem para enfrentar as dificuldades. É preciso ter sabedoria para falar a verdade, respeitando o nível intelectual e cognitivo e o estado emocional do paciente. Tentar conectar a família com uma rede de proteção é uma tentativa sempre válida. Vale lembrar a doença como um momento de desafio para a família, do qual ela pode sair mais forte, mostrando que têm capacidade de superação. Também é bom perceber quando um familiar está profundamente abalado com a situação, acolher suas dores, aceitar suas fraquezas, mas apontar caminhos de superação. BRIGAS E SEPARAÇÃO DOS PAIS Difíceis relações familiares põem em risco o desenvolvimento da criança ou adolescente. Discussões familiares envolvendo filhos foram relatadas por 47,4% dos adolescentes de São Gonçalo; 36% viveram separações dos pais e 15,8% tiveram suas famílias recompostas com a chegada de um padrasto ou madrasta. Esses foram os problemas que mais provocaram lágrimas e angústia nos jovens. Um contraponto positivo ao processo de separação dos pais se dá quando, a partir da ruptura do casal se consegue reduzir as brigas, obter maior estabilidade emocional e prover afeto constante à criança e adolescente. Nessa situação, efeitos prejudiciais da separação podem ser minorados, pois famílias com relações conflituosas, permeadas pela rejeição e pela hostilidade são mais prejudiciais à criança que uma família estável, em que os pais estão separados. Parte das (24) conseqüências das separações conjugais sobre os filhos provém quando há instabilidade na capacidade de supervisioná-los, quando perdem tempo criticando as ações e omissões um do outro e quando se sentem inseguros quanto à divisão do amor filial diante da nova conjuntura familiar. Embora os adolescentes que vivenciam brigas e separações entre pais tenham mostrado pior relacionamento com o pai, fraco apoio social, sofrer mais violência física, psicológica e sexual e pior performance escolar do que os que vivem em famílias onde tais conflitos não são mencionados, não se constatou associação entre vivenciar brigas e separações familiares e comprometimento do potencial de resiliência. Crianças e adolescentes costumam sofrer muito durante as brigas e separações de seus pais. Uma boa conversa com o paciente e seu responsável pode ajudar muito, por ser o profissional uma pessoa neutra. É bom reforçar que a criança ou adolescente precisa de ambos os responsáveis e não tem que tomar partido do lado de nenhum deles. É muito comum que os pais não percebam o quanto esta cobrança é prejudicial para os seus filhos. Recomendar aos pais para supervisionaremseus filhos é muito importante. Quanto mais os responsáveis combinarem o modo de disciplinar os filhos, melhor ficarão as crianças após a separação. Em algumas situações pode ser necessário solicitar apoio de profissionais de saúde mental. E quando a situação sócio-econômica fica muito precária após a separação, é bom acionar programas de assistência social para apoiar a família. VIOLÊNCIAS NA FAMÍLIA O acúmulo do conhecimento científico comprova que viver em condições de violência provoca prejuízos severos ao desenvolvimento humano, a curto e longo prazo. A violência pode ser mais devastadora quando é cometida por aqueles de quem se espera afeto e proteção, em especial, os pais. Uma das formas menos detectadas e mais lesivas para a formação do indivíduo é a violência psicológica. Ocorre quando os adultos sistematicamente humilham, demonstram falta de interesse, tecem críticas excessivas, induzem culpa, desencorajam, ignoram sentimentos ou cobram excessivamente a criança ou adolescente. Metade dos adolescentes entrevistados em São Gonçalo já vivenciou pelo menos um tipo de violência psicológica indicando a relevância desse problema. (25) Um em cada três jovens testemunhou humilhação entre os pais e metade deles refere que humilha e é humilhado pelos irmãos nas brigas do dia-a-dia. Sofrer violência psicológica de pessoas significativas foi um dos poucos eventos adversos que, isoladamente, tem capacidade de afetar o potencial de superação de problemas. Outro tipo de violência muito freqüente nas famílias é a violência física, que também se configura como uma forma distorcida de comunicação e de relação interpessoal. É um fenômeno comum e costuma atingir todas as classes sociais, embora envolvendo de forma diferenciada, os vários integrantes do núcleo familiar. É grande a seriedade do problema: 30,5% dos adolescentes entrevistados sofrem violência física severa praticada pela mãe e 16,2% pelo pai, caracterizada por atos com alto potencial de ferir, como chutar, morder ou dar murros, bater com objetos, espancar, ameaçar ou usar arma de fogo ou faca; 39,8% vivenciam agressões físicas entre irmãos a ponto de se machucarem e 16,6% entre pais. Para o profissional de saúde que lida com crianças e adolescentes é útil indagar sobre as práticas disciplinares utilizadas pela família: quanto mais freqüente for a utilização de práticas estritas e punitivas, mais elevado o risco de violência física e emocional no contexto familiar (Koller, 1999). Adolescentes que sofrem violência física na família apresentaram mais problemas emocionais e escolares, embora não tenhamos notado distinção quanto ao potencial de resiliência. A única exceção é ser testemunha de agressão física entre os pais, duas vezes mais mencionada pelos adolescentes com reduzido potencial de resiliência. A violência sexual é outra gravíssima adversidade que acomete crianças e adolescentes, podendo se manifestar de variadas formas. Envolve a participação de um agressor em estágio mais avançado de desenvolvimento psicológico e sexual que a criança ou adolescente vítima da violência. Pode ser praticada através de estimulação direta da criança ou a utilizando para obter gratificação sexual, seja ela imposta pela força ou pela sedução. Nem sempre é acompanhada pelo contato corporal, ocorrendo atos violentos como exibição de partes íntimas para a criança, sexualizando-a precocemente, pornografia infantil e prostituição. (26) É tão mais grave quando envolve figuras de afeto e autoridade como pais, irmãos ou outros familiares. Verificamos que 7,8% dos adolescentes passaram por experiências sexuais traumáticas que não puderam ser discutidas com adultos; 3,3% testemunharam maus-tratos sexuais sofridos por algum outro membro da família; 5,3% vivenciaram experiências sexuais traumáticas quando eram ainda crianças ou na adolescência; e que 4,3% já tiveram medo de sofrer maus-tratos sexuais quando um dos pais estava sob efeito de álcool ou drogas. Apenas uma pergunta teve resposta diferente entre os adolescentes mais e menos resilientes: 2,6% dos primeiros afirmaram que a relação com os pais já envolveu uma experiência sexual, enquanto entre os menos resilientes este percentual quase triplica (7,5%). Esse resultado indica que a quebra de confiança na figura parental parece desestruturar as bases que dão suporte à resiliência, provavelmente porque destrói as fontes de proteção tão necessárias às crianças. Observamos algumas uniformidades em todos os tipos de violência familiar: a) adolescentes ricos e pobres estão igualmente expostos à violência praticada por pais e irmãos, exceto a violência entre os pais, mais relatada por adolescentes de classes populares; b) há uma associação constante entre sofrer violência familiar e vivenciar pior qualidade de relacionamento com os pais, com os amigos e os professores, indicando o potencial comunicacional lesivo oriundo do aprendizado de resolução de conflitos por meio da violência. A violência familiar potencializa a violência social e vice-versa. Outro estudo com 1714 escolares de São Gonçalo mostrou que aqueles que sofrem maus- tratos na família testemunham duas vezes mais violência entre irmãos e entre os pais; enfrentam três vezes mais episódios de violência na escola; vivenciam 3,8 vezes mais agressões na comunidade; e transgridem as normas sociais 3,2 vezes mais que aqueles que não sofrem maus-tratos na família (Assis et al, 2004). Os profissionais de saúde podem ajudar às crianças, adolescentes e familiares em situação de violência familiar se os orientarem sobre outros métodos educativos que não a agressão física e sobre as conseqüências para as crianças de serem humilhadas, rejeitadas ou agredidas sexualmente. É importante realizar bom atendimento, encaminhar, sempre que necessário, à outras instituições que possam ajudar a família e proteger a criança. A notificação dos casos para Conselhos Tutelares é medida legalmente indicada. (27) Os profissionais de saúde que trabalham em serviços públicos podem compartilhar os casos com colega e direção da instituição, trocando idéias sobre encaminhamento e condutas necessárias. DIFICULDADES NA ESCOLA E NA COMUNIDADE Enfrentar adversidades na escola também atinge a formação dos adolescentes. A escola é um local em que as desigualdades sociais mais facilmente transformam-se em marcas para os jovens, podendo promover ou prejudicar o aprendizado imediato e a capacidade futura de inserção no mundo. As condições físicas e materiais e a qualidade do ensino escolar sinalizam às crianças e adolescentes seu lugar no mundo e os limites dos ‘possíveis sociais’ que podem almejar. O relacionamento com colegas pode ser outra fonte de estresse presente na escola, quando permeado por humilhações e violência. Para alguns adolescentes o tempo passado na escola pode se transformar em um ‘inferno na terra’, especialmente quando são humilhados ou agredidos pelos pares. Pode também se transformar no ‘paraíso’ quando eles se sentem aceitos pelos colegas. Do ponto de vista da formação, na escola o adolescente é oficialmente avaliado pela sua competência acadêmica e relacional. Ser bem sucedido em ambos os casos é uma meta nem sempre alcançada, originando muito estresse. Quando não consegue êxito nesta empreitada, o sofrimento e o sentimento de incompetência podem prejudicar o desenvolvimento futuro, imprimindo no jovem o sentimento de fracasso escolar (pelo qual, na verdade, é apenas parcialmente responsável). Um em cada cinco adolescentes foi humilhado na escola no ano anterior à pesquisa. Vários países vêm se preocupando, ultimamente, com comportamentos de crianças e adolescentes “prepotentes e agressivos, tais como colocar apelidos, ofender, humilhar, discriminar, intimidar, perseguir, assediar, aterrorizar, agredir, roubar e quebrar pertences” (Lopes Neto & Saavedra, 2003). O termo que tem sido utilizado para nomear esse fenômeno é “bullying”. Com freqüência, as agressões incluem ações diretas (agressão física ou sexual) e indiretas (agressões emocionais:impor apelidos, insultos, atitudes preconceituosas), que encobrem uma relação desigual de poder. As escolas contribuem para a reprodução da violência psicológica em seu interior ao admitirem maus-tratos entre alunos e tratamentos humilhantes e desrespeitosos entre o corpo discente e docente. (28) Os tipos de violências na escola que encontramos em nosso estudo são similares entre os mais e menos resilientes. Entretanto, os adolescentes menos resilientes são mais vulneráveis em outros aspectos relacionais: têm menor supervisão familiar; possuem pior relacionamento com pais e professores; contam com menos apoio social; fazem mais uso de substâncias psico-ativas; cometem mais atos anti-sociais; sentem mais sofrimento psíquico; têm mais baixa auto-estima; são mais insatisfeitos com a vida; são mais vítimas de violência na família, escola e localidade. A violência na comunidade está relacionada à violência social, sendo comprovadamente mais presente nas localidades onde a população tem menor poder aquisitivo e onde faltam recursos institucionais protetores da saúde, educação, habitação e segurança pública. Manifesta-se por relações baseadas em meios agressivos de solução de conflitos nos locais em que as famílias residem, freqüentemente com criminosos dominando o território e cerceando o direito de ir e vir. Além dos efeitos deletérios da convivência em áreas de elevado risco, o medo originado pelo descontrole e insegurança toma lugar de destaque nessas áreas, sendo tão limitador quanto os reais eventos que ocorrem. Os adolescentes que mais vivenciaram violência na comunidade não mostraram comprometimento da resiliência, embora também tenham um perfil de elevada vulnerabilidade, tal qual constatado entre os que vivem violência na escola. Profissionais de saúde costumam atuar distanciados da escola e da comunidade de origem das crianças e adolescentes. Podem ajudar mais na escuta e na detecção de sintomas mais agudos de ansiedade frente a violências na escola e comunidade, procurando encaminhar o paciente para outros serviços de saúde, assistência social ou de justiça. Pensar interações com o Programa de Saúde da Família ou com serviços de saúde escolar poderiam ser outra fonte de ajuda para apoiar as crianças e as famílias com quadros de maior gravidade. Não podemos esquecer que a sociedade e os governos têm uma parcela importante de responsabilidade sob a população em risco de violência em escolas e comunidades. O país deveria garantir creches e escolas de horário integral e de boa qualidade, áreas de lazer na comunidade e ausência de narcotráfico e armas na comunidade. São ações que ajudariam muito às famílias a criarem seus filhos saudavelmente. (29) PROTEÇÃO QUE ESTIMULA A RESILIÊNCIA Acumulam-se evidências de que seres humanos de todas as idades são mais felizes e mais capazes de desenvolverem melhor seus talentos quando estão seguros de que, por trás deles, existem uma ou mais pessoas que virão em sua ajuda caso surjam dificuldades (Bowlby, 2001:139) No capítulo anterior verificamos que, dentre todas as adversidades, as únicas que isoladamente se mostraram relacionadas à redução do potencial de resiliência se relacionaram à família: ter sofrido violência psicológica por pessoa significativa, testemunhar violência física entre os pais e ter passado por uma experiência sexual com os pais. Esses resultados indicariam que, de uma forma geral, passar por adversidades não afeta a formação da resiliência? Acreditamos que não! Pesquisas nos ajudam a entender essa questão: os efeitos das adversidades são mediados pelo estoque de proteção que as pessoas recebem ao longo da vida (Garmezy & Rutter, 1996). A existência de ambiente afetivo e material protetor é o aspecto determinante para se proteger uma criança ou adolescente que enfrenta adversidades de sofrer conseqüências mais graves e duradouras. O ambiente que cerca a criança e o adolescente nunca é perfeito nem invulnerável, mas quando o saldo protetor é maior e constante, consegue diminuir os efeitos daninhos das adversidades. 3 (30) Um ambiente é protetor e aproxima-se do ideal quando é: • estável e responsável, para dar à criança o sentimento de continuidade e de futuro; • amoroso, para permitir que aprenda a dar e receber afeto; • confiável, para prover segurança de que pode contar com outros para superar problemas; • flexível, com limites negociados e adaptados ao possível de cada indivíduo e aberto para lidar com o novo; • firme o suficiente para facilitar a introjeção de limites e normas culturais; • respeitoso, para que as pessoas aprendam os direitos e os deveres da vida em comunidade. Existem três tipos principais de proteção atuando desde a infância e adolescência. A primeira está na própria capacidade individual de se desenvolver de forma autônoma, com auto-estima positiva, autocontrole e com características de temperamento afetuoso e flexível. A segunda é dada pela família quando provê estabilidade, respeito mútuo, apoio e suporte. A terceira é o apoio oferecido pelo ambiente social, através do relacionamento com amigos, professores e com outras pessoas significativas que têm papel de referência, reforçando o sentimento de ser uma pessoa querida e amada (Brooks, 1994; Emery & Forehand, 1996, Garmezy, 1985). Os fatores que oferecem proteção são, portanto, influências que modificam, melhoram ou alteram a resposta de uma pessoa a algum evento de vida que lhe desencadeou sofrimento. Estão encadeados numa engenharia em que se sustentam os mecanismos de proteção e de risco. Neste capítulo falaremos detalhadamente sobre a proteção existente nessas três esferas. O profissional de saúde precisa estar alerta e discutir estes assuntos com os pacientes e suas famílias. Este é um passo muito importante para quem deseja atuar na promoção da saúde e da resiliência. A história de Julia mostra como é importante quanto os três níveis de proteção se juntam. (31) A RESILIÊNCIA DE JULIA Julia, 10 anos, chegou ao ambulatório do hospital pediátrico com fortes dores no abdômen e vomitando muito. Sentia tantas dores que não conseguia ficar em pé. O pediatra examinou-a e ficou preocupado pela tensão abdominal generalizada, pela ausência de peristalse (movimento habitual de contração do tubo digestivo) e com a dor mais localizada na parte direita do abdome. Estava com febre em torno de 38 graus. O médico foi informado pela mãe que Julia reclamava de dor abdominal há uns dois dias e desde a noite anterior havia começado a ter náuseas e a vomitar. Desconfiando de apendicite, Dr. Cláudio, o pediatra, pediu avaliação da cirurgiã de plantão. A cirurgiã solicitou hemograma, constando um quadro infeccioso com leucocitose e um raio X compatível com um quadro de abdome agudo. Preocupada com o quadro clínico de Julia e com o tempo de evolução dos sintomas, decidiu-se imediatamente pela necessidade de cirurgia devido à apendicite. Ao informar para a mãe sobre o quadro de Julia, a cirurgiã se surpreendeu com o fato da mãe, D. Ana, negar autorização para a realização da cirurgia, alegando que a filha não precisava de cirurgia porque já tinha ajuda espiritual para se curar; que a filha só precisava de uns remédios pra melhorar do “olho grande” que tinham posto nela. A cirurgiã ficou nervosa com a situação, angustiada com o tempo que estava perdendo enquanto a saúde de Julia se deteriorava. Cobrou da mãe o porquê da menina não ter sido trazida com mais antecedência ao hospital, pois era seu dever dar atenção ao filho, cuidar de sua saúde e tomar as providências necessárias. Chama D. Ana de irresponsável e diz que Julia irá morrer caso não seja operada. D. Ana reage nervosamente, gritando que já tinha tomado providências, pois desde o dia anterior tinha levado a menina para ser curada pela força das orações dela e da comunidade. As duas continuam a discussão na enfermaria, chamando atenção de todos os presentes, inclusive de Julia que escuta tudo chorando. Ela não tinha sido informada pessoalmente de seu quadro e teme por sua vida. Vocêvai atendendo bem, atendendo o sujeito. O tempo do sujeito também, que nem sempre é o tempo da gente, que tem que ser respeitado para conhecer a história dele e tentar aí, criar caminhos que ele possa superar. Mas que é muito difícil, é. (Profissionais do Capsij) (32) Procurando acalmar os ânimos, Dr. Claudio chama D. Ana para conversar e procura saber um pouco mais da situação de vida dessa família, tentando ganhar a confiança de D. Ana e entender porque ela está impedindo o tratamento de sua filha. Julia mora com a mãe em um bairro pobre, onde o tráfico de drogas comanda. Por essa razão, Julia fica sempre dentro de casa, saindo só pra ir a escola e a igreja com a mãe. Desde pequena Julia sofria com as brigas dos pais. Eles discutiam muito na frente dela, e com dois anos ela já dizia para eles: “Briga não! Briga não!”. Quando os pais se separaram, ela tinha 7 anos, e sua mãe se tornou muito religiosa, freqüentando diariamente uma igreja da comunidade. Após a separação dos pais o padrão de vida da família caiu. A pensão que o pai dá para a filha não cobre todos os gastos e está há alguns meses sem ser paga, pois o pai está desempregado. A mãe começou trabalhar como faxineira alguns dias da semana. Nos outros dias, vai com Julia pra catar latinhas na rua para melhorar a renda familiar. Os pais de Julia pouco se falam desde a separação. Ana não aceita a nova família de seu ex-marido e não deixa que Julia vá visitar o pai e seu novo irmão, de um ano de idade. Raramente o pai de Julia vem a sua casa e passa alguns momentos com ela. A mãe o culpa por tê-la traído e diz que ele vive em pecado. A vida de Julia é ir pra escola e acompanhar a mãe na igreja, onde aprendeu a tocar violão. Julia hoje toca nos cultos da sua igreja, onde tem muitos colegas. Na escola Julia tira boas notas, embora seja muito tímida na sala de aula. Fica sempre com uma amiga de classe, que também é da sua igreja. D. Ana acompanha o dia-a-dia de Julia na escola, indo às reuniões em que é chamada e é carinhosa com a filha. As duas são muito unidas, como verifica o pediatra ao observar o afeto que uma tem pela outra desde a chegada de ambas ao ambulatório. D. Ana chora ao contar como se desesperou ao ver a filha doente nesses últimos dias. Fez de tudo que podia: comida leve, chás, deu remédio pra febre, chamou o pastor pra orar por ela. Quando viu que a filha não melhorava, levou Julia em dois postos de saúde antes de chegar ao ambulatório do hospital. Por isso tudo, não se conformava por a filha não estar melhorando e tinha muito medo que a filha morresse se fosse operada, igual ao que tinha acontecido com sua mãe, que tinha entrado muito bem numa “cirurgia de estômago” e tinha morrido na mesa de operação. Na enfermaria, enquanto D. Ana contava sua vida ao pediatra, chegaram ao hospital alguns amigos de sua igreja, que oravam pela vida de Julia. Também o pai da menina chegou, ouvindo o diálogo de D. Ana com o pediatra. Julia a tudo ouvia e via; apesar das dores e do mal estar em que se encontrava, mostrou-se afetuosa com o pai, denotando o carinho que (33) sente por ele. O pai, então, autorizou a cirurgia, conversando e conseguindo a concordância de D. Ana sobre o assunto. A cirurgiã e Dr. Claudio se falaram sobre a nova resolução e imediatamente procederam com os arranjos para a cirurgia. O pediatra sinaliza que apesar do rigor religioso que D. Ana tem, ela é efetivamente uma boa cuidadora de Julia e consegue, a despeito das dificuldades econômicas e relacionais, prover proteção para a menina. Por outro lado, a própria Julia, apesar de tão nova, mostra-se uma pessoa equilibrada, intervindo por duas vezes com a mãe para permitir a cirurgia. Ambos os médicos reconhecem como é fácil perder a calma com os pacientes ou seus parentes, especialmente quando há vidas em risco e com a pressão de tantos pacientes para atender com recursos tão escassos. Lembram também que algumas vezes é muito difícil escutar e entender as razões, os hábitos e os valores culturais dos pacientes. Mas reconhecem que seria importante se os hospitais ou serviços tivessem estratégias de apoio nessas situações, bem como capacitassem os profissionais de saúde para atuarem de forma pró-ativa. Julia dá indícios de ser uma criança com potencial de resiliência, pois apesar das dificuldades que já passou em sua vida mostra sinais de determinação, autoconfiança, capacidade de adaptação e de resolução de dificuldades, embora também seja uma menina muito tímida e um pouco assustada com o mundo. Por outro lado, apesar das dificuldades financeiras e relacionais de sua família, possui um meio protetor em muitos sentidos, tanto na família como na igreja em que freqüenta. A importância de se sentir protegido é crucial para a aquisição da resiliência, como se detalha a seguir. Um estudo sobre resiliência que acompanhou crianças recém-nascidas até fazerem quarenta anos de idade comprovou que quanto maior o número de estresses acumulados ao longo da vida, mais fatores de proteção foram necessários durante a infância e juventude para contrabalançar os aspectos negativos e aumentar os resultados positivos no desenvolvimento. Os principais mediadores entre sofrer adversidades e apresentar conseqüências negativas foram o temperamento da criança e da sua família e o suporte emocional dentro e fora da família. Os adultos resilientes eram descritos na primeira infância como pessoas mais afetuosas, ativas, de boa índole e fáceis de lidar. Quando adolescentes tenderam a mostrar maior autoconceito, autocontrole, facilidade em interagir com amigos, professores e inserir-se em grupos (Werner & Smith, 2001). (34) ATRIBUTOS PROTETIVOS INDIVIDUAIS QUE POTENCIALIZAM RESILIÊNCIA Pessoas mais e menos resilientes constroem-se como tais a partir da habilidade ímpar do ser humano de criar e recriar-se a partir das condições que usufrui e percebe no mundo que o cerca, das relações que nele estabelece e dos limites e possibilidades que reconhece em si mesmo. Genética e ambiente social interagem continuamente ao longo de todo o processo evolutivo das pessoas. As características protetivas individuais que vamos abordar neste capítulo são: auto-estima e sentimento de competência; estratégias de enfrentamento das dificuldades; fé e satisfação com a vida; saúde mental e comportamentos sociais pró-ativos; e, finalmente, a importância da genética e da cultura no estabelecimento da singularidade individual. AUTO-ESTIMA E COMPETÊNCIA Na verdade, a resiliência se tricota com milhares de determinantes que serão necessários analisar, alguns são, provavelmente, mais acessíveis e eficazes que outros. A tecelagem do sentimento de si parece um fator capital para a atitude de resiliência (Cyrulnik, 2002:17) A resiliência é um atributo calcado na capacidade de possuir uma estima positiva por si mesmo e de se sentir competente. Ter elevada auto-estima significa sentimentos e atitudes de aprovação de si próprio, considerando-se capaz e uma pessoa de valor. Embora a auto-estima seja uma experiência subjetiva e individual, está acessível às demais pessoas por meio de relatos verbais, gestos e comportamentos (Coopersmith, 1967; Rosenberg, 1989). Os sentimentos de afeto por si próprio e de confiança em si mesmo são moldados nas relações cotidianas desde a primeira infância e são decisivos na relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros. Exercem uma marcante influência na percepção dos acontecimentos e das pessoas e influenciam o comportamento e as vivências individuais (Sánchez & Escribano, 1999). São características que protegem o indivíduo contra o desenvolvimento de problemas emocionais e comportamentais. (35) Os adolescentes mais resilientes relataram cinco vezes mais elevada auto-estima que os menos resilientes. Os primeiros enfatizam mais sua competência e valor, afirmando estarem satisfeitos consigo mesmos, terem várias boas qualidades, serem capazes de fazer coisas tão bem quanto a maioria das pessoas, sentirem que são pessoas de valor e terem uma atitude positiva em relaçãoa si próprio. Possuem também maior satisfação corporal. A competência social está atrelada à noção de comportamentos socialmente aceitos e um indivíduo é considerado competente socialmente quando é capaz de interagir de forma eficaz com os outros e com o ambiente social. Usualmente, três aspectos são considerados como importantes para se aferir competência na infância e na adolescência: habilidades sociais, competência acadêmica e ausência de problemas de comportamento (Lemos & Meneses, 2002) A competência é reforçada por uma série de fatores: desenvolvimento da auto-estima, da auto-eficácia, da auto-avaliação positiva e crítica; habilidade para entender normas sociais, para interagir com pares e adultos e para regular emoções especialmente as negativas; capacidade para apresentar comportamento voltado para objetivos; confiança nas pessoas e no mundo; estabelecimento de objetivos realistas e planejamento de esforços para alcançá-los; além da capacidade de sentir empatia pelos outros (Cecconello & Koller, 2000). A empatia consiste em, através da percepção do estado ou da condição de outra pessoa, compartilhar emocionalmente com ela, colocando-se no seu lugar. Os adolescentes mais resilientes têm mais convicção de que vão conseguir terminar os estudos e conseguir emprego. Sabem mais o que fazer para alcançar os sonhos e as metas, utilizando palavras como “esperança”, “força de vontade”, “coragem”, “determinação”, “persistência”, “seguir em frente” e “correr atrás do seu objetivo”. Consideram-se mais determinados, defendendo suas idéias e opiniões e persistindo quando algo planejado não dá certo. Visualizam o andamento de seus planos no futuro. Os menos resilientes avaliam mais que estão estagnados ou retrocedendo. Outra forma de aferir a competência é pelo desempenho escolar. Entretanto, é fato reconhecido que o fracasso escolar é produzido em parte pelo sistema educacional e não apenas pela competência acadêmica individual de cada aluno (Patto,1993). A vivência de dificuldades escolares aumenta a (36) vulnerabilidade da criança para inadaptação psicossocial; o inverso, o bom desempenho na escola, reflete-se na competência acadêmica. Adolescentes mais e menos resilientes mostraram desempenho similar em matemática e português. Todavia, a capacidade de atuar frente aos colegas mostrou ser atingida nos menos resilientes, que participam menos em sala de aula e em grupos de esportes, artes ou grêmios. Essa falta de confiança certamente afeta a inserção do estudante e ocasiona dificuldades que podem comprometer sua performance. ESTRATÉGIAS PARA LIDAR COM OS PROBLEMAS A forma de encarar os problemas cotidianos varia de pessoa para pessoa e mesmo numa mesma pessoa em diferentes circunstâncias e etapas da vida e pode configurar-se como um importante elemento de proteção individual frente às adversidades. Estudos nacionais e internacionais têm mostrado a importância de se entender esses mecanismos de enfrentamento das dificuldades, para pensarmos em prevenir e em ajudar as pessoas a mudarem alguns comportamentos. Esta forma de encarar os problemas é chamada de coping, palavra inglesa que significa estratégias adaptativas cognitivas e comportamentais que uma pessoa utiliza frente aos diferentes estresses (situações que sobrecarregam ou excedem seus recursos pessoais). É um constante processo adaptativo que o indivíduo lança mão ao administrar adversidades cotidianas e inesperadas, vencendo-as, minimizando-as ou tolerando-as. A utilização das estratégias de coping tem duas funções: regular o estado emocional que acompanha o estresse e atuar diretamente na situação que o originou (Folkman & Lazarus, 1985). As formas de lidar com os problemas são aprendidas através da relação existente entre a pessoa, o ambiente em que vive e seus traços de personalidade. Na infância e na adolescência, o aprendizado e a incorporação de estratégias de coping são parciais e decorrentes da capacidade dos pais e pessoas importantes nessa etapa de desenvolvimento de lidarem com o estresse (Bronfenbrener, 2002; Antoniazzi et al. 1998; Dell´Aglio & Hutz, 2002). Embora cada indivíduo possua um amplo acervo de estratégias para enfrentar as dificuldades, em geral opta por algumas e habitua-se a utilizá-las com maior freqüência. Três formas são mais comumente utilizadas: enfrentar diretamente os problemas; usar mecanismos internos de elaboração das dificuldades; e evitá-los. (37) Estratégias ativas de enfrentamento do problema significam entrar no “olho” do furacão, tomando atitudes concretas que visam não apenas procurar a fonte do problema e tentar solucioná-lo diretamente com os envolvidos, mas também buscar informações e apoio social em pessoas ou instituições que possam ajudar. A maioria dos adolescentes entrevistados tem uma forma ativa de enfrentar os problemas, característica típica de uma fase da vida em que a impulsividade fala mais alto: 99,1% afirmam alguma ação pró-ativa frente aos estresses; 71,3% utilizam essas estratégias em quase todas as esferas onde enfrentam problemas. Todavia, os adolescentes resilientes usam oito vezes mais estratégias ativas que seus colegas menos resilientes, especialmente os problemas que acontecem na escola, com os pais, colegas e namorados. Buscam mais ajuda nos outros; são mais dispostos a procurarem a pessoa que causou o problema para dialogar; conversam logo sobre o problema e depois se “desligam” com facilidade, reduzindo possivelmente o impacto da ansiedade que acompanha os estresses. Estratégias internas de lidar com as adversidades são outras maneiras de vivenciar as dificuldades. Referem-se a atitudes como: aceitar os próprios limites ao enfrentar dificuldades; aceitar que a vida é cheia de problemas; ceder à vontade dos outros, visando resolver os problemas; pensar sobre o problema e tentar achar soluções alternativas; só pensar nos problemas quando eles aparecem; e pensar positivamente sobre os problemas, não se preocupando com eles porque as coisas costumam se ajeitar. Adolescentes mais e menos resilientes utilizam, em alguns ambientes, estratégias internas de forma similar. Porém na escola, na relação com pais e com os namorados os mais resilientes usam mais formas reflexivas para lidar com as dificuldades que os menos resilientes. Os primeiros evidenciam mais confiança de que tudo acabará bem quando têm problemas com os pais, com colegas e namorados, tentando achar soluções alternativas e tendem a se preocupar com problemas escolares só quando eles surgem. Também aceitam melhor seus limites quando têm problemas consigo próprios. Evitar enfrentar os problemas é outra estratégia que todos nós utilizamos para lidar com as dificuldades. É uma tentativa de fugir das adversidades, caracterizado por comportamentos como ausência de iniciativa e bloqueio emocional; atitudes de evitação e distração em relação ao problema; além de (38) situações de expressão emocional de raiva, tristeza ou dor. Todas essas ações visam controlar as emoções que acompanham um evento estressante e não o problema propriamente dito. Procuram adiar a necessidade de lidar com o agressor, mantendo-o longe ou evitando saber de sua existência (Dell´Aglio, 2000). Torna-se um problema quando se cristaliza como uma forma continuada de enfrentamento das dificuldades e quando é empregada nas várias áreas do relacionamento. Os adolescentes que são menos resilientes fogem mais dos problemas, pois utilizam essa forma de enfrentar o problema em todas as áreas de seu relacionamento, de forma pouco flexível. Costumam esperar que “o pior vai acontecer”. Também tentam não pensar nos problemas escolares e em suas próprias dificuldades porque imaginam que não podem mudar nada. Evidenciam sofrimento emocional constante, pessimismo, incapacidade de esperar que a situação melhore e falta de vontade de reagir às dificuldades, com um sentimento de renúncia a vivenciar o problema. Uma outra forma de evitação dos problemas é a utilização de substâncias psico-ativas como álcool, cigarro, maconha e cocaína. Esse consumofunciona como um mecanismo que alivia o enfrentamento das dificuldades objetivas e subjetivas que os angustia. O consumo de substâncias psico-ativas foi similar, independente do adolescente ser ou não resiliente. No entanto, um em cada quatro jovens já tinha se embriagado e dentre os 15,5% que fumam, decaiu a qualidade dos relacionamentos e elevaram-se as ocorrências de dificuldades em suas vidas, no mesmo padrão observado entre os consumidores de álcool. Também entre os poucos adolescentes que usam maconha e cocaína se observa essa queda relacional. Nesse último grupo, as adversidades mais freqüentemente associadas à utilização dessas substâncias são as ocorridas na escola, na comunidade e entre amigos, sinalizando a maior influência do grupo de pares nesse tipo de consumo. Outra forma de lidar com os problemas, que mescla diferentes formas de enfrentamento das dificuldades, é transformar os estresses em objeto de sublimação. A estratégia de cicatrização do sofrimento por meio da arte, do esporte ou do humor é considerada precioso fator promotor de resiliência. São mecanismos utilizados para mudar a própria idéia que a pessoa tem sobre o problema que viveu: reelaborar o sofrimento, enquanto o encena para os outros. Atividades (39) artísticas e esportivas podem ser formas eficazes de transformar um sofrimento vivido em um episódio social menos pesado e, algumas vezes, até agradável. No caso do humor, trata-se de transformar uma percepção que machuca em algo que pode se rir ou se fazer uma brincadeira sobre o acontecido (Cyrulnik, 2004). FÉ E SATISFAÇÃO COM A VIDA Acreditar em vida além da matéria e ter fé têm sido considerados importantes fatores de proteção para a saúde física e psicológica do indivíduo. Para a maioria das pessoas, é sinônimo de figura divina e está vinculada à religião. Para outros, é uma expressão de valores morais acerca da dignidade humana. Vários estudos indicam que a religião e o apoio da igreja são importantes promotores de resiliência para jovens (Cook, 2000; Sameroff, 1993). Um adolescente que freqüenta igreja pode maximizar seu desenvolvimento, caso ela promova orientação, ajudando-o a adquirir habilidades cognitivas e emocionais e modificar positivamente seu comportamento; estimule a expressão de sua identidade e lhe ofereça uma comunidade de apoio e estabilidade. Os estudantes mais resilientes se declaram mais vinculados a alguma religião, que também relatam mais confiança em Deus e busca de contato íntimo com o mundo sagrado. Algumas pessoas conseguem passar por muitas adversidades ao longo do seu desenvolvimento sem afetar substancialmente a satisfação que possuem com a vida. Os mais resilientes se inserem nesse grupo. A avaliação de possuir ou não uma vida de boa qualidade depende de aspectos objetivos (satisfação de necessidades básicas e as criadas pela sociedade) e subjetivos (bem-estar, realização pessoal, sentimentos de felicidade, amor e prazer) (Souza et al., 2003). Os adolescentes de São Gonçalo que são mais resilientes referem com freqüência três vezes maior sentirem prazer com suas vidas que os menos resilientes. Acham que ela está próxima da forma como gostariam que fosse; que suas condições de vida são excelentes; que estão conseguindo alcançar as coisas importantes que desejam; e, finalmente, que se pudessem viver a vida de novo, não mudariam quase nada nela. (40) SAÚDE MENTAL E COMPORTAMENTO SOCIAIL Duas formas de proteção individual observadas em crianças e adolescentes são possuir boa saúde mental e não se envolver em comportamentos anti- sociais. Porém, muitas vezes, as adversidades acabam por comprometer a saúde mental de forma ocasional ou permanente. Pelo mundo afora, estima-se que 20% das crianças e adolescentes tenham problemas mentais e comportamentais (Belfer & Saxena, 2006). Pequenas e constantes dificuldades cotidianas que atingem crianças e adolescentes podem ser tão ou mais importantes para gerar sofrimento emocional que grandes problemas ou catástrofes. Conflitos familiares ou escolares habituais podem provocar reações que mobilizam todo o aparato psicológico do adolescente, promovendo desgaste e sofrimento, com freqüente repercussão sobre a saúde física. Pais e professores podem não prestar atenção para problemas que consideram pequenos, enquanto para os adolescentes estes podem alcançar profunda dimensão e sofrimento emocional. Transtornos psiquiátricos menores são também denominados como sofrimento psíquico, com sintomas de depressão leve, ansiedade e agravos psicossomáticos (dores de cabeça, insônia, entre outros). É uma sensação de mal-estar inespecífico, situada num espaço intermediário entre saúde e doença, podendo se transformar em doença em função de sua intensidade e cronicidade. Costuma se relacionar diretamente aos eventos de vida estressantes (Busnello et al,1993; Lima, 1995). Outro dia atendi a mãe de criação de uma criancinha de 5 anos, que falava assim: “Minha mãe toma cachaça! Minha mãe me bate! Minha mãe botou fogo na cama! Meu pai pegou ela com a faca em cima de mim! Ela só me dá comida podre!”. Eu fiquei assim, ó! Eu deixei ela falar bastante até cansar. “Você não vai desculpar sua mãe? Sua mãe tá doente. Ela vai se tratar, vai melhorar!” “Não vou desculpar, não! A minha mãe quis me matar!” Uma coisa horrível! 5 aninhos. Você vê a força da visão daquilo. Acho muito difícil ela superar. Eu acho que depende muito da personalidade de cada um, de falar... Neste caso, a criança tava necessitando de falar. Têm outras que ficam mais introspectivas. (Profissionais do posto municipal) (41) Um total de 29,4% dos adolescentes apresentou sofrimento psíquico. Os menos resilientes relataram maiores proporções de sintomas ansiosos e depressivos como dormir mal, perder interesse pelas coisas, ter dificuldade de pensar com clareza, de tomar decisões e vivenciar sentimento de inutilidade. Entre os menos resilientes surgiu mais a idéia de acabar com a vida e foi mais comum um sentimento difuso de medo. Embora algum grau de sofrimento psíquico seja inevitável ao ser humano, seu excesso leva a problemas de adaptação às demandas cotidianas. Entretanto, vivenciar transtornos em alguma fase da vida não significa ter destino traçado. A superação de fragilidades na saúde mental vivenciadas na infância e adolescência é sempre possível, pois existe um potencial latente de resiliência que pode ser tecido ao longo da vida. Acompanhando uma população de 698 crianças nascidas em 1955 no Havaí até que fizessem 40 anos, Werner & Smith (2001) constaram que aos dez anos de idade 25 delas tinham dificuldades emocionais causadoras de desordens de conduta, comportamento anti-social, neuroses e sociopatia. Aos dezoito anos o número de jovens com severos problemas de saúde mental havia se elevado para 70. O acompanhamento do grupo por mais duas décadas mostrou que, surpreendentemente, 83% das mulheres e 66,7% dos homens que haviam tido problemas de saúde mental na adolescência conseguiram minimizar ou superar tais dificuldades. Lograram uma adaptação positiva em suas trajetórias de vida até os 40 anos, trabalhando, formando famílias e se sentindo satisfeitos consigo mesmos. Os poucos que não conseguiram melhorar suas vidas, prosseguiram com sérios problemas de saúde mental que lhes impossibilitaram a adaptação ao meio e a satisfação pessoal. Nesse grupo estão os que tinham esquizofrenia, depressão crônica e problemas com uso de drogas nas fases iniciais da vida. Os pontos de virada destacados pelos mais resilientes foram o encontro de um parceiro amoroso que os aceitou e deu suporte ou a integração em grupos religiosos. Não é uma tarefa fácil pensar a relação entre resiliência e cometimento de atos transgressores, tenham eles sido ou não registrados no sistema de justiça. Adolescentes (e adultos também), independente do estrato social, cometem algumas infrações sem que sejam pegos e, por vezes, sem que nem sequer as considerem um erro. Por outro lado, alguns autores indicam que cometer infrações pode ser uma forma efetiva de
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