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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Daniele Mariano Seda “POR QUE VOCÊ NÃO OLHA PRA MIM?”: Invisibilidade social de jovens em situação de vulnerabilidade e o futebol como luta por reconhecimento Rio de Janeiro 2012 Daniele Mariano Seda “POR QUE VOCÊ NÃO OLHA PRA MIM?”: Invisibilidade social de jovens em situação de vulnerabilidade e o futebol como luta por reconhecimento Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Área de concentração: Psicologia Social. Orientador: Prof. Dr. Jorge Coelho Soares Rio de Janeiro 2012 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. ________________________________ ________________ Assinatura Data S474 Seda, Daniele Mariano “POR QUE VOCÊ NÃO OLHA PRA MIM?”: Invisibilidade social de jovens em situação de vulnerabilidade e o futebol como luta por reconhecimento / Daniele Mariano Seda. – 2012. 169 f. Orientador: Jorge Coelho Soares. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia 1. Psicologia social – Teses. 2. Futebol – Aspectos sociais – Teses. 3. Jovens – Psicologia – Teses. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. II. Soares, Jorge Coelho. III.Título. nt CDU 159.9:796.332 Daniele Mariano Seda “POR QUE VOCÊ NÃO OLHA PRA MIM?”: Invisibilidade social de jovens em situação de vulnerabilidade e o futebol como luta por reconhecimento Aprovado em 14 de junho de 2012 Banca Examinadora: _________________________________________________________ Prof. Dr. Jorge Coelho Soares Universidade do Estado do Rio de Janeiro _________________________________________________________ Profa. Dra. Ariane Patrícia Ewald Universidade do Estado do Rio de Janeiro _________________________________________________________ Prof. Dr. Aluísio Ferreira de Lima Universidade Federal do Ceará _________________________________________________________ Prof. Dr. Fernando José de Castro Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2012 Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. DEDICATÓRIA À minha família: que me ensinou os primeiros passos e todos os outros que me trouxeram até aqui. AGRADECIMENTOS A Deus; Aos mestres que me acompanharam nesse percurso; Ao orientador Jorge Coelho Soares por sempre me incentivar em ir além e ser mais, um verdadeiro Vade Mecum - a Academia tem sorte em tê-lo; Aos amigos e familiares que compreenderam minha ausência durante este ciclo; Ao companheiro de jornada pelas preciosas contribuições; À Vila Olímpica da Mangueira e seus alunos e atletas que me proporcionam constante desenvolvimento pessoal e profissional; A todos que direta ou indiretamente contribuíram para este trabalho; e Ao sonho de milhares de meninos de se tornarem jogadores de futebol Obrigada. Só uma palavra me devora Aquela que meu coração não diz Só o que me cega, o que me faz infeliz É o brilho do olhar que eu não sofri. Sueli Costa & Abel Silva RESUMO SEDA, Daniele Mariano. “Por que você não olha pra mim?”: Invisibilidade social de jovens em situação de vulnerabilidade e o futebol como luta por reconhecimento. 169f. 2012. Dissertação (Mestrado em Psicologia social). – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. A presente dissertação discute o futebol como caminho para o reconhecimento social por jovens em situação de vulnerabilidade, entendida aqui pela afrodescendência, residência em favelas e a escassez de recursos financeiros. Esta vulnerabilidade pode remeter a uma invisibilidade social, que pode ser compreendida como relações sociais onde alguns sujeitos, por serem na esmagadora maioria das vezes proscritos do mundo significativo daqueles que detêm o poder, através da indiferença, e/ou por habitarem o imaginário social de forma negativa sendo estigmatizados, não têm suas capacidades e potencialidades reconhecidas e passam a ser ignorados e privados de muitas formas de interação social. Dialeticamente, no cerne destas relações, está presente a luta por reconhecimento, aqui estudada com base na Teoria Crítica e especialmente nos escritos do teórico Axel Honneth. A relação do indivíduo consigo próprio está atrelada às experiências de reconhecimento, pois ele se constitui unicamente porque aprende – através do assentimento ou encorajamento de outrem – a referir a si próprio determinadas características. Quando essas experiências são precárias, como ocorre nos casos de invisibilidade social, se dá uma busca, uma cobrança, uma luta pelo reconhecimento negado. Reconhecimento social que pode ser obtido através do futebol e seus desdobramentos, como a possibilidade do consumo conspícuo, da exposição midiática e de um suposto poder de mudança social. Como metodologia para compreender melhor estas questões foram analisadas produções sociais, como filmes, livros, músicas e reportagens, as quais foram consideradas sinais de uma sociedade capitalista, sociedade do espetáculo e individualista que se apresenta como meritocrática, ignorando que a disponibilidade de recursos da cultura dominante que cada sujeito possui, tem relação positiva com o sucesso pessoal. E para ilustrar o contexto histórico, social e cultural, onde jovens em situação de vulnerabilidade e muitas vezes invisíveis socialmente lutam por reconhecimento através do futebol, foram realizadas entrevistas com jovens jogadores de futebol da Vila Olímpica da Mangueira. A ascensão social e a identidade de ser um jogador de futebol são almejadas pelo desejo de obtenção de experiências de reconhecimento positivas nas três esferas do reconhecimento e que assim possam promover mudanças em suas respectivas autorrelações práticas: na dedicação emotiva, sendo mais amados por seus familiares e amigos (autoconfiança); no respeito cognitivo, obtendo cidadania que lhes é rotineiramente negada (autorrespeito); e na estima social, ao serem elogiados pela performance esportiva, ter fama e visibilidade, e exercer uma função social respeitada e digna de admiração (autoestima). Em suma, esta pesquisa busca apontar o futebol como instrumento para análise da dinâmica social e contribui por conectar o contexto esportivo ao social, visando fomentar nos profissionais que trabalham com esta população uma prática mais ampla e crítica, que possa ser capaz de ajudar a promover efetivamente mudanças sociais. Palavras-chave: Futebol. Luta por reconhecimento. Invisibilidade social. Psicologia Social. Psicologia do Esporte ABSTRACT The present dissertation discusses about soccer as one path to social recognition by young people in situation of vulnerability, understood here by being afro-descendant, residence in slums and lack of financial resources. This vulnerability may refer to a social invisibility, which can be understood as social relations in which some persons, because they are the overwhelming majority of the time proscribed by the meaningful world ofthose who have the power, through indifference, and/or inhabit the social imaginary in a negative way by being stigmatized, have not recognized their abilities and potential, are ignored in some areas of social life, private from forms of social interaction. Dialectically, the heart of these relationships, this is the struggle for recognition, in this paper based on Critical Theory, especially in the writings of the theorist Axel Honneth. An individual’s relationship with oneself tied to the experiences of recognition because it is only because they learn – with the consent or encouragement of others – referring to themselves certain characteristics. When these experiences are precarious, as in the case of social invisibility, a search takes place, a struggle for the recognition denied. Social recognition which can be obtained through soccer and its consequences, as the possibility of conspicuous consumption, of media exposure and a supposed power of social change. As a methodology to better understand these issues were analyzed social productions such as films, books, lyrics and reports, which were considered signs of a capitalist society, spectacular society and individualistic which presents itself as meritocratic, ignoring the availability of resources of the dominant culture that each person has, is positively related to personal success. And to illustrate the historical, social and cultural context, where young people in vulnerability and often socially invisibles struggle for recognition through soccer, interviews were conducted with young soccer players from the Olympic Village of Mangueira. The social rise and the identity of being a soccer player is targeted by the desire to obtain recognition of positive experiences in the three spheres of recognition and thus able to make changes in their self-relations practices: emotional dedication, being most loved by family and friends (self-confidence); the cognitive regard, become a citizen is routinely denied to them (self respect), and social esteem, by being praised for their sporting performance, having fame and visibility, and perform a social function that is admired and respected (self-esteem). In short, this research seeks to identify soccer as a tool for analysis of social dynamics and contributes by connecting the sport to the social context in favor of promoting the professionals that work with this population a much wider and critical practice, which might be able to effectively help promote social changes. Keywords: Soccer. Struggle for recognition. Social invisibility. Social Psychology. Sports Psychology. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Imagem 1 - Visão aérea da Vila Olímpica da Mangueira. Sua frente se localiza na Rua Santos Melo, e os fundos na Rua Ana Neri..................................................................................... 18 Fotografia 1 - Entrada Principal da Vila Olímpica da Mangueira.............. 19 Fotografia 2 - Sala do Setor de Psicologia. Vista privilegiada.................. 19 Fotografia 3 - Auditório localizado ao lado da sala da Psicologia. Local onde é realizada a maioria dos trabalhos com as equipes............................................................................... 20 Fotografia 4 - Treino de futsal, categoria sub-9. É impressionante a quantidade de meninos inscritos, visível pela quantidade dos que aguardam nos bancos........................................... 20 Fotografia 5 - Jogo contra a equipe do Vasco da Gama.......................... 23 Imagem 2 - O atleta como mercadoria................................................... 72 Imagem 3 - Gola da camisa da seleção brasileira com a inscrição “Nascido para jogar futebol”................................................ 89 Tabela 1 - Estrutura das relações sociais de reconhecimento............ 118 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................ 10 1 INVISIBILIDADE SOCIAL............................................................................. 26 1.1 Retratos da invisibilidade social de jovens em situação de vulnerabilidade social................................................................................... 37 2 DESIGUALDADE SOCIAL E EXCLUSÃO..................................................... 44 2.1 A banalização do mal.................................................................................... 47 2.2 A atribuição do estigma e o futebol............................................................ 51 2.2.1 A atribuição do estigma de “menor” ............................................................... 57 3 A ESPETACULARIZAÇÃO DO FUTEBOL E SEUS DESDOBRAMENTOS 68 3.1 Grandes eventos e craques......................................................................... 79 3.2 O jogador e o mito do herói......................................................................... 88 3.3 Ser negro: os espaços de reconhecimento................................................ 93 3.4 A hora de pendurar as chuteiras................................................................. 103 4 FUTEBOL E ASCENSÃO SOCIAL................................................................ 107 5 LUTA POR RECONHECIMENTO E O FUTEBOL......................................... 113 5.1 Padrões de reconhecimento intersubjetivo e suas respectivas autorrelações práticas.................................................................................. 118 5.2 Amor e autoconfiança................................................................................... 120 5.3 Direito e autorrespeito.................................................................................. 123 5.4 Solidariedade e autoestima.......................................................................... 125 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 128 REFERÊNCIAS.............................................................................................. 132 ANEXO A: Roteiro das entrevistas.............................................................. 144 ANEXO B: TCLE............................................................................................ 145 ANEXO C: Parecer COEP............................................................................. 146 ANEXO D: Transcrições das entrevistas.................................................... 147 10 INTRODUÇÃO Quando me mudei do interior do estado para a metrópole do Rio de Janeiro, várias coisas me causaram impacto, como o tamanho das construções, a diversidade de comércio, a quantidade de pessoas na rua... mas algo em especial me afetou mais: as relações entre as pessoas, principalmente aquelas em que alguém tem sua humanidade ignorada, não reconhecida, sendo tratado como se não existisse, isto é, como se fosse invisível. Na rua da minha casa em Pasárgada existem doze casas, doze famílias vizinhas, algumas mais chegadas, mas todas conhecidas. No Rio vim morar em um prédio, 64 apartamentos, 64 famílias vizinhas, inúmeros desconhecidas; todos isolados e só procuram as outras famílias se estiverem incomodados com a música alta ou por outras coisas; lá na minha rua as pessoas vinham “incomodar”, pedir uma xícara de açúcar emprestado, tomar um café, essas coisas... e se o som não estivesse alto, aí sim que os vizinhos perguntavam se estava acontecendo alguma coisa. São pessoas amigas com quem deixamos as chaves de casa, que cuidam dos nossos cachorros quando saímos, enfim, que se ajudam. Em uma cidade pequena ninguém é desconhecido, ninguém é invisível. É incrível a quantidade de pessoas da minha cidade natal que encontro quando viajo, e como não encontro nenhum carioca! Percebi depois de um tempo que isso não traduz a realidade. Com certeza encontrovários cariocas, o que acontece é que reconheço muito mais os habitantes da minha cidade. Lembro que minha mãe sempre falava que eu conhecia a cidade toda – isso, claro, era um exagero –, mas poderia dizer que reconhecia quase a cidade inteira. Certa vez um morador de rua bateu à porta de minha casa pedindo água e minha mãe foi atendê-lo. Ao ouvir a voz do senhor a reconheci e minha mãe se espantou quando o chamei pelo nome: “olá Bandeira, o que está fazendo por aqui?” Aquele era o morador de rua que dormia na praça da cidade, claro que o (re)conhecia, todos em uma cidade pequena são visíveis e possuem seu espaço no contexto cultural e histórico da cidade. Estava acostumada também a ir à padaria ou ao açougue e ver as pessoas se cumprimentarem pelo nome. Por muitas vezes ia comprar algo e esquecia o 11 dinheiro, e o balconista gentilmente me falava “não tem nada não, amanhã você paga”. Aqui, percebi que as pessoas nem se cumprimentam nesses lugares, ou se o fazem é como se fosse uma simples repetição de palavras contidas em certo ritual, ninguém pergunta tudo bem querendo saber a resposta. Outra situação que via como inusitada era a dos ambulantes nas conduções, fato raro no interior, mas muito comum no Rio. Tão comum que quase ninguém se incomoda mais com o mesmo discurso que normalmente inicia com um “desculpe incomodar o silêncio da viagem, é que trago aqui...”. O fato era que eu sempre prestava atenção neles, me lembravam de longe os “shows” quase circenses dos ambulantes do interior que se desdobram nas praças públicas para venderem suas pomadas que curam de frieiras a bronquite. Por costume ou olhar turístico (por mais que os anos passem, nunca consegui me sentir do, mas sempre no Rio), eu sempre prestei atenção nas pessoas que entravam nos coletivos e tentavam vender alguma coisa, mesmo que não tivesse interesse em comprar. Por vezes percebi que era a única que interrompia o que estava fazendo para prestar atenção e confesso que me divertia com a monotonia do discurso e o quanto ele passava a ser decorado. Existiam, inclusive, aqueles que se cansavam de repetir e o escreviam no papel e aqueles que distribuíam balas para conquistar clientes, tudo para mim era novo. Um dia, apesar de não comprar as bananadas que um jovem vendedor oferecia, ele se aproximou e disse mais ou menos assim: “Muito obrigado pela atenção. A senhora não comprou, mas eu ganhei muito mais, eu sei que a senhora me ouviu, que prestou atenção. Tem gente que se faz de cego e surdo, finge que a gente nem tá aí, aí a gente chega e oferece a mercadoria e sem olhar elas vão despachando a gente. Mas a senhora não, a senhora prestou atenção, muito obrigado.” Ele tinha acabado de verbalizar o que eu vinha presenciando há muito tempo e nunca tinha parado para refletir. Fiquei pensativa o resto da viagem sobre quanto o reconhecimento era importante, e que ao prestar atenção no trabalhador que falava demonstrava consideração e reconhecimento social ao que estava sendo feito e, consequentemente, à pessoa que o fazia. Dentre essas situações e outras tantas, uma que me inquieta é como se vê (ou não) as crianças na (de) rua que carregam na pele e no corpo o estigma da cor, 12 da classe social e do local de moradia. Moleques de pés descalços eram o que mais via e vejo na rua, mas a conotação era diferente... Lá eles são chamados de moleques porque fazem molecagem, aqui esta denominação carrega um sentido pejorativo – isso quando não são tachados como pivetes-crianças. Moleque correndo era sinal de que estavam brincando de pique-pega ou na certa em busca de alguma pipa perdida. Aqui, se veem essa cena, as pessoas se entreolham e comungam do pensamento de que na certa era um menor infrator em fuga. Eu possuía o primeiro olhar, mas com o tempo a metrópole me condicionou, foi algo gradual e quase imperceptível, mas aos poucos foram perdendo a traquinagem que via nelas e um hábito novo foi incorporado quase que inconscientemente: agarrava a bolsa mais forte quando uma delas passava por mim, não puxava mais conversa e, porque as via sem nada, pensava que por não terem o que tinha deveriam querer tomar de mim. A primeira vez que me dei conta de que estava contaminada pela “neurose urbana” foi quando em um banco da minha ainda querida Pasárgada fui retirar dinheiro em um caixa eletrônico e um garoto me espreitava. Estávamos apenas nós dois no banco, e pensava o porquê dele não utilizar outro caixa, e comecei a esperar ser assaltada, e quanto mais o relógio andava, mais desesperada ficava na iminência do golpe inevitável e fulminante. Quando terminei a retirada, me virei já esperando o pior quando o menino veio em minha direção e falou: “tia, será que a senhora pode me ajudar a tirar um dinheiro do caixa? Meu pai pediu pra tirar e eu falei que sabia só pra não decepcionar, mas não sei não, por favor, tia”. Completamente envergonhada pela prisão de medo que tinha construído, o ajudei. Ele, confiando plenamente em mim, além de me dar o cartão, me disse a senha. Em suma, eu em apenas ter sentido sua presença já o tinha condenado e ele sem nem me conhecer depositou inteira confiança em mim. Esses contrastes com o interior despertaram meu interesse pelo tema da invisibilidade social de certas categorias. Invisibilidade que entendo estar relacionada com descaso, menos-valia, atribuição de estigmas e muitas vezes esquecimento pelas políticas públicas, as quais não se apropriam de suas realidades e intervêm como consideram que sejam os desejos desta população e não como realmente o são. 13 O pobre no interior de onde vim, era visto como gente humilde, que trabalha bastante e geralmente na lida da roça. Aqui, o pobre usualmente é remetido à favela, local não muito distante geograficamente dos ricos, dos serviços públicos e dos centros de compra. Apesar da proximidade, as premissas de convívio social divididas intersubjetivamente se diferenciam. A visão que mais me mobiliza, e que por isso é uma das forças motrizes deste trabalho, é a do jovem pobre, que no interior usualmente é visto como sujeito digno de solidariedade. Nada impede que brinque com os meninos mais abastados, aliás, muitas das traquinagens de crianças como subir em árvores e pegar frutas dos vizinhos ele ensinará para esses meninos. Muitas vezes, esse menino humilde pode ser filho do caseiro, da empregada ou do moço que capina o quintal. Ele é percebido como esforçado, arteiro, desnutrido, muitas vezes sendo chamado de “tadinho”, bem diferente do esperto, malandro, preguiçoso e “sementinha do mal” da metrópole do Rio de Janeiro. Esses jovens pobres, residentes em favelas e em sua maioria negros ou afrodescentes1 são os jovens que no presente trabalho considero em situação de vulnerabilidade. Apesar de o termo estar mais presente nas produções acadêmicas das áreas da saúde (AYRES, J. R. C. M; FRANCA-JUNIOR, I.; CALAZANS,G. J.; SALETTI-FILHO, H. C., 1999; PALMA, A.; MATTOS, U. A. O., 2001; MENEGHEL, S. N. et al, 2003; GONTIJO, D. T.; MEDEIROS, M., 2009), referente a suscetibilidade a doenças e atrelado ainda a uma abordagem conservadora da promoção da saúde com ênfase nos comportamentos (estilo de vida) dos indivíduos, tomei como base as acepções dos teóricos das Ciências Sociais que relacionam vulnerabilidade com a desigualdade de distribuição de renda, onde a pobreza estrutural está relacionada com a escassez de recursos como: água, saúde, educação, alimentação, moradia, renda e cidadania e com a exclusão das política sociais básicas como trabalho, educação, saúde e habitação (GOMES, 2003). E são pobres, na concepção de Yasbek (2003), aqueles que são excluídos em graus diferenciados da riqueza social, por estarem de modo temporário ou permanente sem acesso a um mínimo de bens e recursos. Outro conceito que utilizo no presente estudo é o deinvisibilidade social, que compreendo como relações sociais onde alguns sujeitos por serem proscritos na 1 Apesar dos termos terem significados diferentes, no presente trabalho os utilizo como sinônimos. 14 esmagadora maioria das vezes do mundo significativo daqueles que detêm o poder (indiferença) e/ou por habitarem o imaginário social de forma negativa (preconceito), não têm suas capacidades e potencialidades reconhecidas. Simplesmente passam a ser ignorados em alguns âmbitos do convívio social, privados de formas de interação social. Considero que os jovens em situação de vulnerabilidade são invisíveis socialmente, primeiro por ser uma realidade tolerada e tão naturalizada que dificilmente provoca indignação; segundo por alguns desses jovens receberem estigmas que são lançados sobre eles. Dialeticamente no cerne destas relações está presente a luta por reconhecimento. Uma vez que a relação do indivíduo consigo próprio está atrelada às experiências de reconhecimento, pois ele se constitui unicamente porque aprende – através do assentimento ou encorajamento de outrem – a referir a si próprio determinadas características, quando essas experiências são exíguas, como ocorre nos casos de invisibilidade social, se dá um busca, uma cobrança, uma luta pelo reconhecimento negado. Colocarei aqui uma situação que vivi e me chamou bastante atenção por ter me feito refletir sobre a questão da invisibilidade social e do reconhecimento. No primeiro ano em que fiz parte da Vila Olímpica da Mangueira - instituição onde realizei a pesquisa do presente estudo - participei de um evento esportivo no qual todos os funcionários foram requisitados para trabalhar no apoio logístico. Isto é, desde o funcionário com o Ensino Fundamental incompleto até aquele com Ensino Superior estavam em pé de igualdade, poderiam estar cumprindo uma mesma função e com um detalhe sine qua non: todos estavam utilizando o mesmo uniforme, diferente dos dias comuns em que por normas do próprio patrocinador do projeto, funcionários da Saúde vestem branco, professores de Educação Física vestem verde e rosa com nuances para cada modalidade, funções administrativas rosa, serviços gerais cinza e limpeza verde. Fiquei alocada no setor de alimentação, na organização e distribuição de lanches para as instituições participantes. Neste posto ficamos três psicólogas, dois fisioterapeutas, uma fonoaudióloga, duas secretárias, dois estagiários de fisioterapia e um jovem de dezessete anos que trabalhava na limpeza. Esse rapaz fazia parte da paisagem daquele lugar, era comum passar por ele sem notá-lo ou confundi-lo com tantos outros “meninos da limpeza”. Verdade que 15 por diversas vezes ao cumprimentá-lo a resposta era monossilábica e ao tentar desenvolver uma conversa o tom era sempre formal e eu que nem casada sou, era tratada e chamada como senhora. Neste dia ele estava exercendo uma função muito importante de controle da entrada e saída de pessoas da área reservada para distribuição dos lanches. Só se poderia sair, entrar ou retirar o lanche com o aval deste rapaz. Esta tarefa de autoridade diferenciada da subalterna exercida no cotidiano, assim como o uniforme que naquele momento nos igualava, fizeram com que seu comportamento se modificasse. Mostrou-se feliz e desenvolto, em nossa função sendo o mais animado e eficiente. Nos intervalos conversava, opinava e brincava conosco, sempre muito à vontade e na maioria das vezes como centro das atenções. Muitas mudanças ocorreram por conta de uma experiência de reconhecimento. Naquele evento ele estava sendo útil e requisitado, estava sendo visto! Mas quando tudo acabou e a banda passou... cada qual em seu canto, em cada canto uma dor e tudo tomou seu lugar. Foi como se a capa da invisibilidade lhe fosse novamente outorgada e voltou a enterrar seu rosto junto com a vassoura. Decerto que, após esse dia, ele responde e se coloca mais desenvolto quando o cumprimento, mas a relação nunca mais foi dialética, de mão dupla como no dia do evento. Esta é uma das inúmeras situações em que observei a invisibilidade social e seus desdobramentos, decerto que nós pesquisadores nos tornamos tão próximos de nossos objetos que o identificamos em qualquer lugar. Eu o vejo na minha sobrinha de nove anos que por nada calçava seus chinelos, até que criei uma brincadeira onde as pessoas só eram vistas se estivessem devidamente calçadas. De início ela testou o jogo de aparecer e esconder, primeiro tentando uma chantagem emocional, depois gritando e dançando e após através do contato físico. Cedendo cinco minutos depois e resmungando “ai, é como não existir; como se pudesse bater em mim sem perceber; sempre vou ficar de chinelos”. E deste dia em diante se meu olhar a atravessa e finjo não notar sua presença, imediatamente ela corre para calçar seus chinelos; foi uma brincadeira que julguei boba no momento, mas que a marcou tanto que nem precisou de reforço! Vi meu objeto em um lançamento de livro no Leblon, que no cochilo do segurança uma criança em situação de rua entrou e criou um incômodo, o ar ficou 16 mais pesado e as conversas mais silenciosas, todos os olhares a espreitavam, mas nenhum a fitava. Ela ainda tentou falar com algumas pessoas, mas foi sumariamente ignorada e, então, deitou no chão da livraria. Uma senhora gentilmente se abaixou e cedeu minutos de sua atenção àquela criança, que satisfeita após ter sido vista se retirou com um sorriso no rosto. Vejo meu objeto de pesquisa quando paro nos sinais e converso com os meninos que se aproximam do vidro, como o simples fato de olhar e prestar atenção modifica o comportamento, o tom de voz e até as feições dos sujeitos. Vejo e sinto também nas discrepâncias no modo de viver no interior e na metrópole. Vejo e assisto nos canais esportivos em programas que apresentam os craques do futuro e em documentários que mostram o percurso de gênios da bola que vieram de origem humilde e, de invisíveis, tiveram a vida escancarada. E principalmente observo naquelas crianças e adolescentes vulneráveis, porque pobres, moradores de favelas e na maioria negros que lutam por reconhecimento, que sonham por um lugar de destaque no futebol. Estes últimos são os meus sujeitos de estudo e pesquisa. Ao longo do texto, me debruço sobre a realidade social por meio de análises de fatos, livros, filmes e músicas, por entender que as produções culturais retratam aquilo de que o imaginário social está repleto, o que transborda dele; e porque falam da lógica cultural, são representações da sociedade, da realidade social (BECKER, 2009). Assim como desconstruo e destrincho notícias da mídia, por compreender que a escolha pelo o que irá ser noticiado e como vai ser noticiado também expõe e escancara o imaginário como também muitas vezes o forja, por isso estarão presentes ao longo do texto. E como forma de enriquecer o presente trabalho, realizarei levantamento de literatura que extrapola a Psicologia Social, passando pela Educação Física, as Ciências Sociais, a Sociologia e áreas afins. Ao longo do trabalho analiso essas produções sociais que considero sinais de uma sociedade capitalista, espetacular e individualista que se forja meritocrática para melhor analisar o contexto histórico, social e cultural, onde jovens em situação de vulnerabilidade e muitas vezes invisíveis socialmente lutam por reconhecimento através do futebol. Durante a pesquisa também realizei entrevistas semiestruturadas com uma amostra de dez (10) jovens de treze (13) e quatorze (14) anos que participavam de uma equipe de futebol na Vila Olímpica da Mangueira. As entrevistas 17 complementam o trabalho, e quando são citadas identifico os participantes com a letra “E” seguida de sua respectiva numeração de 1 a 102. Acompanho esta equipe desde oinício do ano de 2011 e tive encontros semanais com duração média de uma hora com estes jovens ao longo desse ano, os quais majoritariamente são moradores da própria comunidade da Mangueira3, possuem recursos financeiros escassos e são negros ou afrodescendentes. Considerei a amostra de dez entrevistados suficiente para o pretendido, e utilizei como critério de escolha, entre os quinze que compunham a equipe, aqueles que se enquadrassem nas três categorias citadas ou pelo menos em duas. Utilizei a técnica da entrevista autobiográfica narrativa de Schütze (1992) como base para confecção do roteiro de entrevista (que se encontra na íntegra em anexo), contudo para a realização das entrevistas a metodologia teve que ser adequada ao objeto, uma vez os entrevistados demandarem serem estimulados para responderem. Neste tipo de entrevista, é realizada uma pergunta inicial que motiva o entrevistado a narrar os acontecimentos de sua vida pessoal, e somente quando o entrevistado termina a narração, o entrevistador realiza mais perguntas. Considerei uma boa ideia perguntar sobre “a história do futebol na vida desses jovens”, pensei que assim interferiria menos em suas respostas e conseguiria material para a pesquisa. Porém, algumas mudanças tiveram que ser realizadas; como exemplo, a inserção de algumas perguntas de “aquecimento”, pois notei que ficavam bastante ansiosos com a entrevista e com estas perguntas eles ficavam mais à vontade. E incluí também perguntas adicionais, pois, apesar do que acreditava anteriormente, a pergunta autobiográfica narrativa não foi suficiente para obter informações consistentes, uma vez os entrevistados não raramente terem respondido de forma frágil, decorrente do próprio contexto que se encontram, o qual torna difícil que pensem e expressem criticamente a realidade vivida. Com isso, realizei perguntas adicionais que diziam respeito à temática aqui trabalhada. 2 As entrevistas na íntegra podem ser encontradas no último anexo. 3 Os jovens que não residiam na Mangueira eram de outras comunidades. 18 Imagem 1 - Visão aérea da Vila Olímpica da Mangueira. Sua frente se localiza na Rua Santos Melo, e os fundos na Rua Ana Neri. Fonte: GOOGLEMAPS, 2012. Penso ser importante apresentar de que local falo, assim como a instituição em que realizei parte da pesquisa. Fui atleta e estagiária na Vila Olímpica da Mangueira, uma relação que se iniciou em 2000, e desde 2009 coordeno o Setor de Psicologia e atuo com Psicologia do Esporte com equipes e atletas das modalidades de futsal, futebol, basquete, atletismo e ginástica rítmica. A Vila Olímpica da Mangueira foi inaugurada em 1987, um espaço dedicado ao atendimento à comunidade com atuações no campo da Saúde, Educação, Esporte, Cultura e Educação para o trabalho. Em pouco tempo ganhou visibilidade, com atletas se destacando nas quadras e pistas e no campo social, com a queda da taxa de criminalidade infantil na comunidade da Mangueira. Este sucesso motivou governos municipais e o estadual na criação de outras vilas olímpicas. Hoje, a Vila Olímpica da Mangueira possui especificidades frente às demais vilas, pois além de promover a inclusão social através do esporte investe também no alto rendimento, participando de competições nacionais e formando atletas que representam o Brasil no cenário mundial. 19 Fotografia 1: Entrada Principal da Vila Olímpica da Mangueira Fonte: O autor, 2011. Fotografia 2: Sala do Setor de Psicologia. Vista privilegiada. Fonte: O autor, 2011. Quando iniciei meu trabalho com Psicologia do Esporte na Mangueira percebi que os grupos de futsal e futebol, comparativamente com as demais modalidades, tinham mais dificuldade de realizar trabalhos em equipe; que a derrota os desestabilizava muito mais; e principalmente que as aspirações e sonhos eram distintos. Desenvolverei essas constatações ao longo do trabalho, mas posso adiantar que em muito se relacionam à cultura do próprio futebol, que para esses jovens fazia aflorar a competitividade interna (afinal, a corrida em busca do sonho de ser jogador profissional depende do talento individual, em uma cultura futebolística 20 em que o trabalho em equipe é ofuscado pelo brilho individual de um craque que sabe jogar bonito), a baixa tolerância à frustração (pois o sentimento comum era de que falhar no único âmbito em que se almeja ter êxito acarretava um ostracismo insuportável). As aspirações se distanciavam das bolsas universitárias, participações em seleções e profissionalização (como no basquete e no atletismo); eram de ser muito famosos, ter dinheiro suficiente para ajudar a família, para esbanjar e criar centros de treinamento para ajudar outros jovens. Fotografia 3: Auditório localizado ao lado da sala da Psicologia. Local onde é realizada a maioria dos trabalhos com as equipes. Fonte: O autor, 2011. Fotografia 4: Treino de futsal, categoria sub-9. É impressionante a quantidade de meninos inscritos, visível pela quantidade dos que aguardam nos bancos. Fonte: O autor, 2011. 21 Uma situação interessante ocorreu quando realizei uma dinâmica de grupo com o intuito de trabalhar o tema da exclusão, onde um integrante sairia da sala e os demais combinariam um código. Ao retornar à sala o voluntário seria ignorado pelo grupo até realizar o código combinado a priori e ser incluído no grupo. Pois bem, já havia realizado esta dinâmica em outros espaços e com outras equipes, mas nunca com um grupo de futebol. O desenrolar me surpreendeu, pois ninguém conseguia ocupar o lugar da invisibilidade, em outros grupos sempre alguém aceitava e observava para descobrir o código. Mas, para esses meninos foi insuportável a experiência, todos buscavam (mesmo sabendo das regras) forçar certo reconhecimento, e para tal pulavam, gritavam e em um caso extremo a agressão física foi uma via. Os demais membros do grupo se solidarizavam mais rapidamente, muitas vezes buscando ajudar o companheiro excluído. Na plenária colocaram seus descontentamentos com a atividade e todos que estiveram no papel do excluído declararam ter se sentido muito mal, e ainda dois jovens disseram algumas vezes se sentir assim ao andar em alguns locais e um definiu que estar invisível é como estar morto; curiosa afirmação que me remeteu ao conceito de vida nua do “homo sacer” do filósofo Agamben. Esta obscura figura do direito romano arcaico, em relação à qual todos os homens são soberanos, possui uma vida matável (quem o mata não é condenado por homicídio), mas não sacrificável. Sua vida nua, que é o próprio viver, é a vida matável, mas insacrificável, porque já está na posse dos deuses e fora da jurisdição humana. Retirada sua visibilidade na vida pública, sua potência e sua humanidade, esta vida nua pode ser descartada, pois não pertence a este plano e sim ao divino, podendo ser descartada e não cabendo punição àquele que executa tal sentença (AGAMBEN, 2007). Percebo o jovem em situação de vulnerabilidade sendo muitas vezes esta vida matável, pois dentro do modelo capitalista ele forma o exército de reserva. E no imaginário ele é depositário de muitos males associados às favelas e é potencialmente perigoso e tendencioso à delinquência. A abissal desigualdade social, cultural e econômica brasileira que se alarga com o retraimento do Estado é manejada, então, com este controle social dos corpos, muitas vezes de forma ostensiva. E assim, a atividade que não havia sido pensada com o intuito de discutir invisibilidade social, acabou se tornando outra força motriz para debruçar-me sobre o tema relacionado com esses jovens e a luta por reconhecimento via futebol. 22 Observei também uma atitude mais passiva frente a mim e ao tempo destinado para o grupo com a Psicologia. Diferentemente das outras modalidades, quereconhecem e utilizam aquele espaço para falar dos jogos, treinos, relacionamentos, afetos, levando inclusive questões, sugestões de atividades e confraternizações para o local reconhecido como de treinamento e refúgio, nas equipes de futebol o local era visto como uma “aula”, e se o tema não fosse diretamente relacionado com o futebol, mesmo que transversalizasse o rendimento esportivo, a atenção facilmente se dissipava, retornando apenas depois de uma chamada verbal. Grande ilusão minha implantar facilmente o trabalho de uma psicóloga, afinal, os próprios técnicos culturalmente no futebol são chamados de professores, como forma de respeito e distanciamento da figura que ocupa o lugar de autoridade e do suposto saber. Eu como novidade na (e para a) Comissão Técnica, seguia a mesma lógica. Apesar de insistir ser chamada pelo nome e explicar diversas vezes sobre os objetivos da Psicologia ali, sou chamada de “tia” pelos mais novos e de “professora” pelos maiores, e o espaço de trabalho da psicologia com o grupo de “aula”, e quando possível o individual, é considerado quase uma chamada à secretaria escolar. Outra questão importante de salientar como diferença entre o futebol e as outras modalidades é o legado que deixa para aqueles que o praticam. Pois, quando converso com adolescentes e adultos que estão em vias de parar de competir ou já o fizeram, ao questionar o quê o esporte proporcionou, tenho como resposta em outras modalidades: um aprendizado em como trabalhar em grupo, reconhecer limites, uma forma de superação, lidar melhor com frustrações e mais além, como oportunidades de estudos através de bolsas escolares, universitárias ou de emprego através do acúmulo de capital cultural. Tomo como exemplo o próprio Projeto Social da Vila Olímpica da Mangueira, pelo qual muitos dos professores (e uma psicóloga) competiram. Isto quer dizer que uma mobilidade social indireta está mais presente em outros esportes, o futebol parece viver de extremos (LEONARD II, 1993). 23 Fotografia 5: Jogo contra a equipe do Vasco da Gama Fonte: O autor, 2011. No futebol as oportunidades acabam mais cedo. Aos dezessete anos, se o jovem não adquiriu um contrato profissional ou não está fora do país, sente que o fim está próximo, o que gera grande sofrimento para a maioria. O diagnóstico é cruel, o futebol levanta a bandeira da inclusão social, porém, poucas são as práticas para assistir, educar, orientar os jogadores, de oportunizar novas perspectivas e possibilidades. Estas sendo apenas para aqueles que se destacam, tem sorte, são bem empresariados e conseguem um lugar ao sol. Portanto, o futebol é utilizado em grande escala como atividade-fim e não como meio, e a inclusão social que proporciona é ínfima comparada com o que tem em potência. Existem os clubes de empresários, como o Boavista, de Saquarema no Rio de Janeiro, onde os próprios gestores do clube são mediadores e promovem as negociações de venda e empréstimo de jogadores. Enquanto empresários, seguem a lógica do mercado e buscam prioritariamente o lucro possuindo visão comercial para promover seus jogadores, com a vantagem de poderem prever com maior acuidade sobre seus jogadores/investimentos. Existem também os centros de treinamento, como o da Empresa Traffic, de marketing esportivo (COURA, 2009), que leva jovens de todo o Brasil a morarem no interior de São Paulo pelo sonho de se tornar um jogador milionário. Funciona como incubadora de craques e lucra com as transações internacionais. Por outro lado, existem projetos onde o futebol não é tratado como simples negócio e é utilizado como meio para cidadania. Aqui incluo a Vila Olímpica da 24 Mangueira, mas também o Projeto Futebol Libertário4, a Escola Furacão do Atlético Paranaense, que consegue conciliar desenvolvimento de novos talentos com responsabilidade social, onde as notas na escola são fator importante; e os projetos de ex-jogadores de futebol como o Bola pra frente do Jorginho5, Gol de Letra de Leonardo e Raí, e a Fundação Cafu, no Jardim Irene6. Apesar dos bons exemplos, a busca por “descobrir” e “lançar” novas promessas de craques é tamanha que são realizados torneios, que considero “infanticídios subjetivos”: de fraldinha (sub-7) e mamadeira (sub-5), onde as crianças colocam camisas de grandes clubes como Flamengo e Vasco e entram em arenas lotadas de pais que esquecem quem está por baixo das camisas e torcem como se no Maracanã estivessem, e técnicos que esquecem as aulas de desenvolvimento infantil, aprendizagem e coordenação motoras. Com a preocupação exacerbada em ganhar campeonatos de base, até o único ganho disponibilizado, que é o de se tornar jogador, fica prejudicado. Pois, em prol de ganhar alguns jogos na base, crianças são especializadas precocemente, a aquisição adequada de habilidades motoras e a exposição ao maior número possível de experiências do movimento, que capacitarão um jogador bem mais completo e dinâmico, são preteridas. Atentei-me para esse fato em um jogo da categoria sub-13 em que perdemos. O goleiro adversário era bem alto, o que dificultaria seu deslocamento e consequentemente a defesa se fossem chutadas bolas rasteiras. Porém, nosso time só chutava no alto. Lembrei, então, que nas categorias abaixo se treinava à exaustão esse tipo de chute, pois os goleiros, de tão novos, não alcançam a trave superior. Condicionamento e exposição restrita de estímulos que ganharam alguns jogos, porém, dificultou o desenvolvimento esportivo daqueles jogadores. 4 “Trata-se de um projeto piloto que procurou trabalhar o uso do potencial educativo da prática esportiva, especificamente o futebol, na educação não formal como meio para a construção e o exercício da cidadania ativa através do atendimento alternativo direto para adolescentes inseridos nas medidas socioeducativas em meio aberto, que cometeram um ato infracional, na região da Capela do Socorro, atendidos pelo CEDECA Interlagos. O trabalho demonstra que a proposta inovadora pode criar um ambiente para o processo de integração pessoal com a tomada de consciência de sua própria dignidade, auto-estima, consciência corporal, comunicação, responsabilidade, autonomia e exercício da cidadania.” (SILVA, 2007, p.16). 5 Tem como objetivos oferecer oportunidade de promoção social por meio do esporte, educação, arte e cultura e qualificação profissional e ampliar o conceito de “craque” para habilidades reconhecidas não apenas no esporte, mas principalmente em outros núcleos em que a criança e o adolescente estão inseridos: a família, a escola e a comunidade. 6 Tem como missão executar e manter programas que incentivem a inclusão social da comunidade do Jardim Irene e bairros vizinhos, orientando-os para que os mesmos busquem seus direitos como cidadãos, tornando-se agentes transformadores da sua própria realidade. 25 Enfim, diversas são as dificuldades desses meninos para lograrem êxito no futebol, lutando diariamente em busca desse sonho para assim vencer na vida e ser alguém na vida. É disto que se trata esse trabalho, do sonho desses meninos de se destacarem com o futebol e os desdobramentos na esfera social que daí emergem. Discutirei aqui as forças que atuam neste sistema, isto é, a cinética do futebol, mas este é apenas um reflexo da dinâmica social. Sempre à luz da Teoria Crítica, utilizo o futebol como indício que permite desvelar alguns aspectos da totalidade social e fazer o caminho de volta, e assim abrindo e fechando a lente, sem ignorar que o contexto esportivo também é regido pelo modelo capitalista inserido em um contexto histórico, cultural e social, podendo ser ferramenta para reconhecimento social. Porém, pode também ser ferramenta de opressão e engessamento, afinal, sua essência nada tem de igualitária e se aproxima da lógica capitalista, como afirma Helal(1997, p. 30-31): “a ideologia do esporte em muito assemelha-se com os ideais da doutrina do capitalismo liberal (‘todos têm as mesmas oportunidades e o sucesso está ao alcance de todos sem distinção de raça, credo ou classe social’).” Um projeto de sociedade muito atraente que não passa de engodo, assim também o é no futebol. Mas se tornar um jogador de futebol é o sonho de muitos jovens, e não pelo privilégio de trabalhar com algo que pode ser sinônimo de diversão, mas sim, por se tratar de um caminho sedutor de ascensão social, visibilidade e reconhecimento, e muitas vezes por ser visto como única alternativa para saída da subalternidade e ostracismo. 26 1 INVISIBILIDADE SOCIAL “Nós não vemos as coisas como são, mas sim como somos.” Anaïs Nin É de costume popular se falar que “os olhos são as janelas da alma”, que “pior cego é aquele que não quer ver” e “o que os olhos não veem o coração não sente”. Todos esses provérbios apontam para o reconhecimento da sabedoria popular da grande importância da visão como uma das funções de relacionamento do sujeito com o mundo. Como a visão e, por conseguinte, sua seletividade, influenciam como se vê e se é visto ou ainda, se se vê ou se se é visto. O mundo externo é percebido por esses órgãos sensoriais dependentemente do mundo interno de cada um. Isso quer dizer que se pode não ver objetos e/ou pessoas que estão ao alcance da visão pelo simples fato de serem indiferentes para a pessoa que olha. Quando isso ocorre com pessoas, quando elas são postas como fazendo parte da paisagem, dá-se um fenômeno muito comum na modernidade: a invisibilidade social. O conceito de invisibilidade social tem sido aplicado, em geral, quando se refere àqueles que estão à margem da sociedade e coloco aqui como o início da discussão sobre o fenômeno o romance americano de 1952 do escritor Ralph Ellison (2001): Invisible Man. O enredo abrange o tema da invisibilidade social dos negros americanos assim como a tensão racial e o clima de significativas mudanças dessa sociedade no início do século XX. O nome do protagonista da história nunca é revelado, apesar de ter diversos nomes durante a narrativa; como se até a mais pífia das identidades lhe fosse negada. Sua história é contada desde a infância no sul dos Estados Unidos, donde ele parte quando recebe uma bolsa para estudar em uma universidade de negros. A história se passa em uma época de grande segregação racial, apesar de não claramente localizada no tempo. São os Estados Unidos do “pesadelo” de Martin Luther King; o país que teve um homem como Jesse Owens7, que desafiou as teorias eugenistas de Hitler na própria Alemanha e o fez se retirar do estádio 7 Atleta negro dos Estados Unidos que venceu quatro provas de atletismo, os 100 e 200m rasos, salto em distância e o revezamento 4x100m, nos Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim. 27 (como ficou no imaginário), mas que ao retornar a casa não recebeu sequer uma carta de Roosevelt, então presidente, como sinal de reconhecimento do feito histórico. Para sua biografia, contra o preconceito dos nazistas ele pode sair vitorioso com quatro medalhas de ouro, mas contra o preconceito de sua terra natal sucumbiu, vivendo maior parte de sua vida sem estabilidade financeira e as honras de um medalhista olímpico. Nesse contexto, o protagonista do livro, já cursando a universidade e trabalhando como motorista leva um importante doador de fundos para esta universidade, homem branco e milionário, a uma área vergonhosa da comunidade negra local. Tal acontecido acarreta sua expulsão e envergonhado demais para retornar à casa de seus pais, parte em direção a Nova Iorque. Na Grande Maçã ele passa pelas mais diversas experiências entre reuniões de sindicato e desencontros para conseguir emprego. Finalmente, ele se estabelece no Harlem - o histórico bairro negro americano, um universo à parte - onde acaba envolvido com reuniões secretas e articulações do partido comunista. O protagonista por vezes se confunde com a realidade de muitos brasileiros na atualidade, apesar de ser um livro da década de 50 retratando a realidade americana. Percebe-se isso já no primeiro parágrafo, na apresentação do protagonista: Eu sou um homem invisível. Não, não sou um fantasma como aqueles que assombravam Edgar Allan Poe; nem sou um dos seus ectoplasmas dos filmes de Hollywood. Sou um homem de substância, de carne e osso, fibras e líquidos - e pode ser até que eu possua uma mente. Sou invisível, entenda, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver. Como essas cabeças sem corpo que você vê às vezes nos espetáculos de circo, é como se eu estivesse cercado de espelhos de um vidro duro, que distorce a imagem. Quando eles se aproximam de mim eles vêem apenas meus arredores, eles mesmos, ou pedaços de sua própria imaginação - de fato, tudo e qualquer coisa, menos eu (ELLISON, 1952, p. 3, tradução nossa). 8 A sociedade contemporânea é descrita como uma sociedade de espetáculo, que substitui a máxima: “penso, logo existo” por “sou visto, logo existo” (DEBORD, 1997). O protagonista por ter consciência de ser invisível, por várias vezes se questiona se realmente existe. Ele relata os sentimentos que essa situação gera nele e a angústia de não ser reconhecido, como ele tenta todo dia se convencer de que realmente existe e de seu desejo de cobrar sua existência das outras pessoas. 8 O texto em língua estrangeira é: “I am an invisible man. No, I am not a spook like those who haunted Edgar Allan Poe; nor I am one of your Hollywood-movie ectoplasms. I am a man of substance, of flesh and bone, fiber and liquids-and I might even be said to possess a mind. I am invisible, understand, simply because people refuse to see me. Like the bodiless heads you see sometimes in circus sideshows, it is as though I have been surrounded by mirrors of hard, distorting glass. When they approach me they see only my surroundings, themselves, or figments of their imagination-indeed, everything and anything except me.” 28 Para retratar esses sentimentos relata uma situação em que esbarrou em um homem e foi insultado e reagiu agredindo o homem e demandando um pedido de desculpas, porém o homem continuou o insultando até que percebeu que o homem continuava a não vê-lo, ele ainda era invisível, era um fantasma para o homem. Essa situação pode ser comparada com o enredo do filme Crash: no limite (2005) que em sua introdução já coloca em pauta seu tema principal: É o sentido do tato [...]. Numa cidade de verdade, você anda, esbarra nas pessoas, elas topam com você. Em Los Angeles, ninguém toca em você. Estamos sempre atrás de metal e vidro. Acho que sentimos muita falta do toque. Damos encontrões uns nos outros para sentirmos alguma coisa. Em Los Angeles, assim como em outras grandes cidades, ocorre um fenômeno de utilização do espaço urbano como objeto de consumo, um instrumento político e um elemento na luta de classes. Existe uma diminuição do espaço público, de encontro e aumento dos lugares de passagem, o que acarreta um maior distanciamento do outro (agora visto como estranho) e fechamento em círculos mais próximos, levando a um empobrecimento das relações sociais, uma vez que a pluralidade se faz presente no contato com as diferenças, surpresas, ambivalências e conflitos. Quando se está em local público, onde os diferentes dividem o espaço, busca-se usualmente a ação e não a interação - principalmente com os ditos estranhos - e se não for possível evitar o contato com eles, espera-se que seja fugaz com consequências subtraídas de relevância. Desde a mais tenra idade as crianças são preparadas para esses encontros. Não fale com estranhos é uma frase repetida à exaustão que leva os cidadãos mirins a categorizarem o humano desdemuito cedo; afinal quem é o estranho? Quem não seria o próximo, o semelhante e o confiável? A categoria humana é lateralizada neste contexto, o estranho é o diferente, o habitante do outro nicho e por isso potencialmente perigoso. A busca pela homogeneização do grupo social faz com que se desqualifiquem aqueles que não pertencem ao mesmo, que possuem hábitos díspares, aparência e gostos diferentes. Outro fator de desconforto com a situação de visibilidade do estranho é que quanto mais distante e diferente, maior ansiedade provocará e mais estigma receberá como se fosse uma estratégia para preparo do inesperado (porque desconhecido), e o que salta aos olhos é que as inferências são em sua maioria negativas e reforçadas, como comenta Bauman (2001, p.124): “Torna-se cada vez 29 mais fácil misturar a visão dos estranhos com os medos difusos da insegurança; o que no começo era uma mera suposição torna-se uma verdade comprovada, para acabar como algo evidente”. No filme Crash: no limite, ocorre uma variância de situações onde os personagens ora são ativos na estigmatização e produção de conflitos, ora são passivos e depositários dos preconceitos lançados. Em vários momentos tratam as pessoas fora de seus respectivos círculos pessoais como invisíveis por as considerarem dotadas de menos valor e/ou de atributos negativos; e no decorrer da trama são postas em situações que demandam o contato e por este ser constantemente evitado, quando se faz necessário o que ocorre é o embate, o conflito. Em Invisible Man, o protagonista que sente e ressente sua invisibilidade foi exposto a este contato, quando um passante esbarra nele e continua seu caminho como se nada tivesse acontecido. Sua primeira reação foi demandar o reconhecimento da sua situação, que não foi obtido. Buscou chamar a atenção gesticulando e proferindo xingamentos, mas nada o tornou visível. Por fim, riu da sua situação de “fantasma”. Este incidente o faz ponderar e se considerar irresponsável, relacionando esta característica presente em seus atos impulsivos, agressivos e inconsequentes como fazendo parte da sua invisibilidade. Tanto que mais à frente na narrativa conclui que: “responsabilidade demanda reconhecimento, e reconhecimento é uma forma de acordo” (ELLISON, 2001, p. 4, tradução nossa)9, e todo acordo só é possível quando as duas partes são legitimadas como semelhantes. Quando não é possível o acordo, ocorre uma luta por reconhecimento. Axel Honneth, um dos principais pensadores alemães da atualidade e atual diretor do Instituto Para Pesquisa Social de Frankfurt, berço da Teoria Crítica, enxerga esta luta por reconhecimento como a gramática moral dos conflitos sociais, um sistema de regras que governa a interação entre pessoas e de certa forma legitima algumas práticas sociais. O autor atribui ao romance de Ellison (2001, p. 1) a ênfase na noção de “invisibilidade” e, em sua contrapartida, no “reconhecimento”. Ele comenta: O narrador em primeira pessoa do romance de Ellison pode concluir, de sua condição de invisibilidade social, que aqueles que “olham através dele” (sem o ver) não têm nenhuma intenção de tratá-lo de modo respeitoso ou benevolente; ao 9 O texto em língua estrangeira é: “Responsibility rests upon recognition, and recognition is a form of agreement” 30 contrário, neste caso a ausência de gestos de reconhecimento destina-se a sinalizar à pessoa afetada que deve preparar-se para ações de hostilidade Outra questão relacionada ao invisible man é sua cor: demérito e desconfiança o acompanham. No livro, os negros são retratados como seres inferiores de existência irrelevante, o que é dito tanto por negros quanto por brancos. Exemplificado na frase “Se você é branco você está certo”10, se não for branco está relegado a segundo plano e, adicionado a seus outros atributos que o tornam invisível, ignorado, descartável, incômodo ele se torna passível de eliminação. Aspecto este relevante quando o protagonista, um estudante negro sulista à procura de um emprego em Nova Iorque, é internado em um hospital e médicos discorrem sobre a realização de uma lobotomia: “’[...] o resultado é uma completa mudança de personalidade como você irá encontrar em seus famosos contos de fadas de criminosos transformados em pessoas amáveis depois dessa coisa toda de cirurgia cerebral. E mais” – a voz se tornou triunfante – “o paciente é fisicamente e neurologicamente são.” “Mas e o seu psicológico?” “Absolutamente sem importância!” disse a voz. “O paciente viverá como ele tem que viver, e com absoluta integridade. Quem poderia pedir mais? Ele não irá experienciar maiores conflitos de motivos, e o que é melhor a sociedade não irá sofrer nenhum trauma por sua causa.” Houve uma pausa, uma caneta arranhou o papel. “Então, por que não castração, doutor?” (ELLISON, 2001, p.236, tradução nossa). 11 Na visão dos médicos o paciente representa perigo potencial para a sociedade, e por isso é passível de ser alvo de intervenções cirúrgicas não autorizadas a fim de impedir que produza dano à sociedade. Este jovem não precisa viver conflitos de motivos, situações que fortalecem convicções e modificam visões de mundo, experiências atreladas à condição de humano, categoria da qual o querem destituir. Ele pode viver de forma a gozar de absoluta integridade, o que quer dizer não causar traumas à sociedade, enfim, o aspecto psicológico é irrelevante e se possível ele poderia até ser castrado, assim a sua proliferação seria interrompida e se teria menos negros imprestáveis ocupando espaço na sociedade. No fim da narrativa ele reflete sobre sua trajetória e sobre sua invisibilidade, com a qual ele foi convivendo, aceitando e introjetando. Inclusive, após diversas frustrações e desentendimentos ele passa até a utilizá-la, mesmo sabendo que os 10 O texto em língua estrangeira é : “if you are white you are right”.” 11 O texto em língua estrangeira é: “‘[...]the result is as complete a change of personality as you’ll find in your famous fairy-tale cases of criminals transformed into amiable fellows after all that bloody business of a brain operation. And what’s more’ the voice went on triumphantly, ‘the patient is both physically and neurally role.’ ‘But what of his psychology?’ ‘Absolutely of no importance!’ the voice said. ‘The patient will live as he has to live, and with absolutely integrity. Who could ask more? He’ll experience no major conflict of motives, and what is even better, society will suffer no trauma on his account.’ There was a pause. A pen scratched upon paper. Then, ‘why not castration, doctor?’” 31 danos provocados são irreversíveis e que provavelmente nunca será reconhecido pela sociedade. Ele cria recursos para lidar com sua invisibilidade após diversas tentativas frustradas de ser visto. Aprende que a linha entre ser visto e ser ignorado é muito tênue, isto é, a linha entre o que existe para ser visto e o que se quer ver, como o próprio afirma: Atravesse a estreita fronteira do que o homem chama realidade e você entra no caos [...] ou na imaginação. Isso eu também aprendi no porão, e não ao privar meu senso de percepção. Eu sou invisível, não cego (ELLISON, 2001, p. 576, tradução nossa). 12 O filósofo francês Guillaume Le Blanc relaciona o livro ao trabalho de Honneth: a invisibilidade social, aquela que Ralph Ellison, a quem Honneth se refere, retrata em seu romance O Homem Invisível, para testemunhar a invisibilidade dos negros contra os brancos, é um sinal de desprezo moral que culmina no fato de que nenhum gesto de consideração é dirigido para o outro. Para os brancos, o preto não existe. E a não existência está diretamente relacionada à falta de percepção que procura desfazer a consistência social do outro. Visibilidade social é o resultadode uma percepção avaliativa do outro, à qual estão relacionadas formas concretas de reconhecimento, enquanto a invisibilidade social revela a ausência de tal percepção (LE BLANC, 2009, p. 149, tradução nossa). 13 A realidade sempre é pessoal e singular, como se ela mesma fosse a linha tênue que separa o que é real do que é imaginação e onde todos se equilibram, às vezes pendendo mais para um lado, outras para o outro, mas na maioria das vezes se consegue equiparar os dois lados e caminhar nela. E nas últimas páginas do livro o personagem reflete sobre sua invisibilidade e como é afetado por ela, tanto que precisa escrever sobre para os que não o vêem, e que isso é a única coisa que pode ser feita, a única forma dos “cegos” terem conhecimento sobre seus sentimentos e aflições. Em seu último parágrafo conclui o que ele, um homem invisível, pode tentar fazer: Sendo invisível e sem material, como se fora uma voz desencarnada, que mais posso fazer? Que mais senão tentar lhes dizer o que está realmente acontecendo quando seus olhos estão vendo através de mim? E isso é o que me assusta: quem sabe se, nas frequências mais baixas, eu não falo por você? (ELLISON, 2001, p.581, tradução nossa). 14 12 O texto em língua estrangeira é: “Step outside the narrow borders of what men call reality and you step into chaos […] or imagination. That too I’ve learned in the cellar, and not by deadening my sense of perception. I’m invisible, not blind.” 13 O texto em língua estrangeira é: “l’invisibilité sociale, celle que Ralph Ellison, auquel Honneth se réfère, met en scéne dans son roman L’homme invisible pour témoigner de l’invisibilité des Noirs au regard des Blancs, est le signe d’un mépris moral qui culmine dans le fait qu’aucun geste de prise en considération de l’autre n’est adressé en direction de l’autre. Pour les Blancs, le Noir n’existe pas et cette non-existence est directement liée à une absence de perception qui achève de défaire la consistance sociale de l’autre. La visibilité sociale est alors le fruit d’une perception évaluative de l’autre à laquelle sont enroulées des forms concrètes de reconnaissance alors que l’invisibilité sociale revèle de l’absence d’une telle perception.” 14 O texto em língua estrangeira é: “[…] being invisible and without substance, a disembodied voice, as it were, what else could I do? What else but try to tell you what was really happening when your eyes were looking through? And it is this which frightens me: who knows but that, on the lower frequencies, I speak for you?” 32 A grande contribuição desse livro foi denunciar a existência do fenômeno da invisibilidade social, o que permitiu estudá-lo. Ellison buscou através das palavras e de seu tom irônico questionar práticas que desconsideravam o humano e o particular, mas que se baseavam em estereótipos, que para os negros naquele período histórico eram comumente depreciativos. No Brasil, a contribuição mais pontual sobre a invisibilidade social é de Fernando Braga da Costa (2004), que conseguiu comprová-la por meio de uma mudança de função social. Ao cursar uma disciplina durante sua graduação em Psicologia na Universidade de São Paulo (USP), Fernando Braga da Costa teve que exercer por um dia a função de gari. Nesse dia ocorreu que, entrando no Instituto de Psicologia uniformizado de gari, não foi reconhecido. Aliás, percebeu que ninguém parecia notar sua presença e se notava era para realizar um desvio, como se fosse um obstáculo. A experiência de trabalhar como gari no campus da Cidade Universitária da capital paulista perdurou por quase dez anos e deu origem ao livro Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social, onde coloca que, ao olhar da maioria, os trabalhadores braçais são seres invisíveis, sem nome, que sofrem de uma “espécie de desaparecimento psicossocial de um homem no meio de outros homens” (COSTA, 2004, p. 57). A experiência o levou a estudar a invisibilidade pública dos garis com maior propriedade, como aparece em um trecho onde já se inclui na categoria: O que brota da percepção de não aparecer para os outros é a sensação de existirmos como coisa, um esvaziamento. Passamos a contar como se fôssemos um item paisagístico. Um poste, uma árvore, uma placa de sinalização de trânsito, um orelhão, uma pessoa em uniforme de gari na atmosfera social; todos parecem valer a mesma coisa. (COSTA, 2004, p.116) Costa (2004) afirma que depois que uma pessoa é tornada publicamente invisível, que se sente mal com isso, parece encarnar o sentimento de não existir. Deixa escoar a vitalidade do seu próprio corpo e porque não recebe o reflexo do seu olhar, aprende a se proteger e já não olha para ninguém para evitar perceber os olhares cegados. Aprende a não ver que não o viram para evitar mais sofrimento. Busca-se também a aproximação com os demais excluídos, os quais por empatia podem permitir reconhecimento mútuo através da visita dos seus olhares. E em casos mais extremos o indivíduo desiste de receber o reflexo do seu olhar: A invisibilidade pública refere-se a um momento distorcido daquele olhar originário. É numa espécie de segundo instante que o evento se dá realmente. Quando não 33 devolvemos nosso olhar à aparição humana é que dissimulamos, faltamos com a verdade, disfarçamos. [...] Esse encobrimento, o agir artificioso, é facilmente constatado por quem ficou à sombra: também ele esteve presente no momento distorcido, naquele segundo instante dos cegos, mas a partir de então estará sozinho: só ele retomará originário e personalizante, só ele terá ido ao encontro do outro. O desgaste aí envolvido é grande – após alguns encontros solitários com cegos que não respondem ao olhar do humilhado, cegos que não são devolvidos ao circuito das revelações de pessoa –, o desgaste é grande o suficiente para os que ficaram invisíveis precipitarem-se no desejo de se trancarem em si mesmos, o que lhes parecerá seguro e protetor. (COSTA, 2004, p.229) Cada olhar negado fere a estima do sujeito, faz com que ele se sinta inferior, uma vez que se não é merecedor de um olhar, do que mais seria? O olhar é o mais distante dos sentidos, é o que demanda menor intimidade ao ser recíproco. O paladar e o tato demandam contato, proximidade; o olfato, para ser revelado, precisa do auxílio da visão ou da audição, tendo como requisito uma proximidade relativa. Todos demandam interesse, algum grau de intimidade e reforço pelo não-verbal. Já pela visão em frações de segundo pode-se obter a reciprocidade, basta que os olhos se encontrem e transmitam algum sentido. Quando se vê, mas não se recebe a reciprocidade desse olhar, qualquer outro contato é mais difícil e ao tentar constantemente e não conseguir êxito, o sujeito, para evitar o desapontamento, muitas vezes desiste de buscar seu reflexo no outro. Pedintes na rua, por exemplo, acostumados com descaso e quase condicionados (na falta de um termo melhor) a se protegerem dessa frustração, de não receber o retorno do olhar, quando se dirigem a alguém para pedir ajuda, por vezes apenas esticam a mão ou pedem de forma lacônica, e o contato visual – quando existe – não é um contato propriamente dito. Os olhos estão como que fora de órbita, não buscam mais o reconhecimento, o olhar está perdido no vazio sem pretensão alguma. Em Janela da Alma (2002), a cineasta Marjut Rimminen faz um depoimento que retrata essa posição. Ela nasceu estrábica e passou por um drama durante sua infância e adolescência. Relata que quando se dirigia a alguém, não recebia atenção de imediato, pois a pessoa não percebia que era com ela que Marjut estava falando. A falta de contato visual devido à sua deficiência prejudicava muito seus relacionamentos, mesmo com os familiares mais próximos, como deixa claro na afirmação que faz sobre sua mãe: Lembro-me da minha mãe sempre olhandopara mim com aquele olhar triste e deprimido, olhando para mim, mas sem se comunicar comigo. Olhando através de mim, como que dizendo “coitada da minha filha, que horror...”. E isso me afetou, como se eu fosse um fracasso para que ela me achasse assim. 34 Marjut comenta que por as pessoas evitarem falar com ela, não olharem para ela e a estigmatizarem (ela sempre tinha papel periférico nas tarefas ou reuniões escolares), passou a não esperar os olhares e o reconhecimento dos outros e a voltar sua catexia para si. Relata que todo esse contexto influenciou a escolha da sua profissão, pois quando era jovem nunca teve a possibilidade de atuar no papel principal - tanto no sentido literal quanto no figurado - sendo sempre relegada à paisagem, mas quando se tornou cineasta e passou a produzir curtas animados teve a possibilidade de atuar em todos os papéis. A falta do reflexo do seu olhar foi para ela algo que influenciou todos os campos de sua vida, inclusive o fato de ter se tornado uma pessoa mais autocentrada após desistir de esperar reconhecimento e de ter incorporado o estigma de ser defeituosa15. Na busca por mudar essa situação Marjut passou por várias cirurgias corretivas e com espanto afirma que após a última operação, a qual obteve sucesso e corrigiu completamente seus olhos, ninguém notou a diferença. As pessoas se acostumaram a evitar olhar para ela. E Marjut, que ansiava pelo reconhecimento, desejava que as pessoas exclamassem que seus olhos agora estavam corretos, que estava diferente, mais bonita; se frustrou mais uma vez e se perguntou o porquê desse trauma. Percebeu que a lesão fora interna, seus olhos corrigidos não apagariam os anos em que eles estavam voltados para ela mesma e que as pessoas não a veriam com outros olhos. A pessoa que sofre com a invisibilidade social e/ou pela atribuição de algum estigma, pode eventualmente introjetá-lo e se tornar mais autocentrada ou pode ainda lutar por algum reconhecimento. A interseção de várias vias de reconhecimento define como a pessoa se percebe e percebe o mundo, uma vez isso ser mediado por suas relações intersubjetivas, onde o reconhecimento de sua presença, isto é, sua visibilidade é condição primeira. Na multidão de meninos que buscam um espaço no futebol, é fácil ver a floresta e não as árvores. É um exercício diário diferenciá-los no que cada um tem de melhor e diferente. Apesar dos nomes parecidos (homenagens a jogadores ou tentativas de importação de nomes estrangeiros) e de histórias de vida similares que abarcam muitas vezes a vulnerabilidade e a invisibilidade social, e do sonho 15 A palavra utilizada em inglês pela própria cineasta foi damaged. 35 compartilhado de se tornar um jogador de futebol ser um grito por reconhecimento expelido por vozes igualmente fragilizadas, muitos matizes existem em cada história de vida e muitas diferenças entre cada menino que persegue o sonho, difíceis de perceber se os igualamos, ou pior, os tornamos invisíveis socialmente. Guillaume Le Blanc atrela invisibilidade social ao subalterno, precário e excluído, e a resume assim: Invisibilidade social é entendida, então, como o fato de não ser ninguém. Finalmente, em alguns contextos, pode acompanhar o anonimato das vidas não expostas, que não se instalam por alguma qualidade notável no continuum da vida cotidiana. É, então, um abrigo que, no comum, preserva o anonimato de uma vida, ou uma disposição criada pela eliminação de todas as qualidades. A invisibilidade social é assim entendida como o fato de ser sem qualidades – ausência reivindicada ou atribuída. (LE BLANC, 2009, pg 6, tradução nossa) 16 A impossibilidade do trabalho provoca nessas vidas invisíveis uma morte social, uma vez ser o trabalho fonte de respeito a si próprio e a não humilhação. No caso do futebol, apesar de ser considerado desempregado apenas o atleta profissional que já jogou por dinheiro e se encontra sem contrato, os atletas mais novos que não têm clube ou não jogam nos chamados “clubes de camisa” se sentem mais distantes do sonho de jogar futebol, num limbo, pulando de peneira em peneira, invisíveis no mundo do futebol. Daí, muitos viverem no sonho futuro, no reconhecimento futuro, como forma de reparação: Esta dimensão do reconhecimento dá uma consistência material e simbólica à ideia de reparação. A reparação não implica uma restituição igual à integridade da pessoa antes da lesão. Implica, contudo, que o potencial de ser mesmo uma pessoa foi injustamente negado como um ato violento, afetou não só o presente dessa pessoa, mas ainda a possibilidade de seu futuro, fazendo o exercício de capacidades básicas algo problemático. Neste sentido, a reparação é tanto para o passado quanto para o futuro. Assim, é o reconhecimento do potencial de vir-a-ser, isto é, estar de volta em uma janela disponível para as suas capacidades, simbolicamente separar o passado do dano [...]. O processo não nega a lesão ou o teste de vulnerabilidade que a acompanha, mas dá à pessoa lesada a possibilidade simbólica de um novo início. (LE BLANC, 2009, pg 101, tradução nossa) 17 16 O texto em língua estrangeira é: “l’invisibilité sociale se comprend alors comme le fait de n’être personne. Enfin, dans certains contextes, elle peut accompagner l’anonymat des vies non exposées, qui ne tranchent par aucune qualité remarquable le continuum de la quotidienneté. Elle est alors ou bien um refuge qui, dans l’ordinaire, preserve l’anonymat d’une vie, ou bien une disposition engendrée par l’effacement de toutes qualités. L’invisibilité sociale se comprend ainsi comme le fait d’être sans qualités – absence revendiquée ou attribuée.” 17 O texto em língua estrangeira é: “Cette dimension de la reconnaissance confère une consistance matérielle et symbolique à l’idée de réparation. La réparation n’implique pas une restitution à l’identique de l’intégrité de la personne avant le préjudice subi. Elle implique em revanche que la potentialité même d’être une personne a été injustement niée par un acte dont la violence nuit non seulement au présent de la personne mais encore à possibilite de son avenir, en rendant l’exercice de capabilités de base problématique. Em ce sens, la réparation vise tout autant le passé que l’avenir. Ainsi, est-ce la reconnaissance de la potentialité d’être une personne à l’avenir, c’est-à-dire d’être à nouveau dans um rapport disponible à sés capabilités, séparée symboliquement du passé du dommage, [...]. Le procès n’annule pas la blessure ni l’épreuve en vulnérabilité qui l’accompagne, mais il confère à la personne lésée la possibilite symbolique d’un nouveau commencement.” 36 Como ilustra a fala de E7 ao relatar sobre o que mudaria em sua vida ao se tornar um jogador de futebol: “Jogar fora do país... jogar pela seleção brasileira, que eu vou jogar. Todo mundo vai me ver lá, jogando”. Afirma quase em tom profético sua futura visibilidade e continua: D Mas, o que você acha que ia ficar diferente na sua vida fazendo essas coisas? E7 Ficar famoso. D Famoso? E7 Tudo mundo ia me ver lá, jogando. D Isso é uma coisa que você gostaria que acontecesse? É bom ser jogador de futebol, ser famoso? E7 Gostaria não; vai acontecer. D Vai acontecer? Você vai ser famoso? E7 Você vai me ver em 2018, já vou estar jogando já. D Na Copa? Você acha que uma coisa boa em ser jogador de futebol é ficar famoso? E7 Claro. (E7, 2011) A convicção e desejo pela fama aparecem também em outras entrevistas e em tantos relatos de jovens jogadores. Esta estima social que envolve uma via relacional, confirmada por outros, tornada visível por outros que se encontra no sonho de se tornar um jogador de futebol internacionalmente reconhecido é muito mais atraente que o tempo da precariedade em que eles se encontram, que é um tempo
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