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PESQUISA 9 TCC

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
Centro de Educação e Humanidades 
Instituto de Psicologia 
 
 
 
 
 
 
Daniele Mariano Seda 
 
 
 
 
 
 
 
“POR QUE VOCÊ NÃO OLHA PRA MIM?”: Invisibilidade social 
de jovens em situação de vulnerabilidade e o futebol como luta por 
reconhecimento 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2012 
Daniele Mariano Seda 
 
 
 
 
 
 
“POR QUE VOCÊ NÃO OLHA PRA MIM?”: Invisibilidade social de jovens 
em situação de vulnerabilidade e o futebol como luta por reconhecimento 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada como requisito parcial 
para obtenção do título de Mestre ao Programa 
de Pós-Graduação em Psicologia Social da 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro: 
Área de concentração: Psicologia Social. 
 
 
 
 
 
 
 
Orientador: Prof. Dr. Jorge Coelho Soares 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2012 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CATALOGAÇÃO NA FONTE 
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A 
 
 
 
 
 
 
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou 
parcial desta dissertação. 
 
________________________________ ________________ 
Assinatura Data 
 
S474 Seda, Daniele Mariano 
 “POR QUE VOCÊ NÃO OLHA PRA MIM?”: Invisibilidade 
 social de jovens em situação de vulnerabilidade e o futebol como 
 luta por reconhecimento / Daniele Mariano Seda. – 2012. 
 169 f. 
 
 Orientador: Jorge Coelho Soares. 
 Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de 
 Janeiro, Instituto de Psicologia 
 
 1. Psicologia social – Teses. 2. Futebol – Aspectos sociais – 
 Teses. 3. Jovens – Psicologia – Teses. I. Universidade do 
 Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. II. Soares, 
 Jorge Coelho. III.Título. 
 
 
 
nt CDU 159.9:796.332 
 
Daniele Mariano Seda 
 
 
“POR QUE VOCÊ NÃO OLHA PRA MIM?”: Invisibilidade social de jovens 
em situação de vulnerabilidade e o futebol como luta por reconhecimento 
 
 
 
 
 
 
 
Aprovado em 14 de junho de 2012 
 
Banca Examinadora: 
 
_________________________________________________________ 
Prof. Dr. Jorge Coelho Soares 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
 
_________________________________________________________ 
Profa. Dra. Ariane Patrícia Ewald 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
 
_________________________________________________________ 
Prof. Dr. Aluísio Ferreira de Lima 
Universidade Federal do Ceará 
 
_________________________________________________________ 
Prof. Dr. Fernando José de Castro 
Universidade Federal do Rio de Janeiro 
 
Rio de Janeiro 
2012 
Dissertação apresentada, como requisito 
parcial para obtenção do título de 
Mestre, ao Programa de Pós-Graduação 
em Psicologia Social, da Universidade 
do Estado do Rio de Janeiro. 
DEDICATÓRIA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
À minha família: que me ensinou os primeiros passos e todos os outros que 
me trouxeram até aqui. 
 
 
 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
 
A Deus; 
Aos mestres que me acompanharam nesse percurso; 
Ao orientador Jorge Coelho Soares por sempre me incentivar em ir além e ser 
mais, um verdadeiro Vade Mecum - a Academia tem sorte em tê-lo; 
Aos amigos e familiares que compreenderam minha ausência durante este 
ciclo; 
Ao companheiro de jornada pelas preciosas contribuições; 
À Vila Olímpica da Mangueira e seus alunos e atletas que me proporcionam 
constante desenvolvimento pessoal e profissional; 
A todos que direta ou indiretamente contribuíram para este trabalho; e 
Ao sonho de milhares de meninos de se tornarem jogadores de futebol 
Obrigada. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Só uma palavra me devora 
Aquela que meu coração não diz 
Só o que me cega, o que me faz infeliz 
É o brilho do olhar que eu não sofri. 
Sueli Costa & Abel Silva 
RESUMO 
 
 
SEDA, Daniele Mariano. “Por que você não olha pra mim?”: Invisibilidade social de 
jovens em situação de vulnerabilidade e o futebol como luta por reconhecimento. 169f. 
2012. Dissertação (Mestrado em Psicologia social). – Instituto de Psicologia, 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. 
 
A presente dissertação discute o futebol como caminho para o reconhecimento 
social por jovens em situação de vulnerabilidade, entendida aqui pela 
afrodescendência, residência em favelas e a escassez de recursos financeiros. Esta 
vulnerabilidade pode remeter a uma invisibilidade social, que pode ser compreendida 
como relações sociais onde alguns sujeitos, por serem na esmagadora maioria das 
vezes proscritos do mundo significativo daqueles que detêm o poder, através da 
indiferença, e/ou por habitarem o imaginário social de forma negativa sendo 
estigmatizados, não têm suas capacidades e potencialidades reconhecidas e passam 
a ser ignorados e privados de muitas formas de interação social. Dialeticamente, no 
cerne destas relações, está presente a luta por reconhecimento, aqui estudada com 
base na Teoria Crítica e especialmente nos escritos do teórico Axel Honneth. A 
relação do indivíduo consigo próprio está atrelada às experiências de reconhecimento, 
pois ele se constitui unicamente porque aprende – através do assentimento ou 
encorajamento de outrem – a referir a si próprio determinadas características. Quando 
essas experiências são precárias, como ocorre nos casos de invisibilidade social, se 
dá uma busca, uma cobrança, uma luta pelo reconhecimento negado. 
Reconhecimento social que pode ser obtido através do futebol e seus 
desdobramentos, como a possibilidade do consumo conspícuo, da exposição midiática 
e de um suposto poder de mudança social. Como metodologia para compreender 
melhor estas questões foram analisadas produções sociais, como filmes, livros, 
músicas e reportagens, as quais foram consideradas sinais de uma sociedade 
capitalista, sociedade do espetáculo e individualista que se apresenta como 
meritocrática, ignorando que a disponibilidade de recursos da cultura dominante que 
cada sujeito possui, tem relação positiva com o sucesso pessoal. E para ilustrar o 
contexto histórico, social e cultural, onde jovens em situação de vulnerabilidade e 
muitas vezes invisíveis socialmente lutam por reconhecimento através do futebol, 
foram realizadas entrevistas com jovens jogadores de futebol da Vila Olímpica da 
Mangueira. A ascensão social e a identidade de ser um jogador de futebol são 
almejadas pelo desejo de obtenção de experiências de reconhecimento positivas nas 
três esferas do reconhecimento e que assim possam promover mudanças em suas 
respectivas autorrelações práticas: na dedicação emotiva, sendo mais amados por 
seus familiares e amigos (autoconfiança); no respeito cognitivo, obtendo cidadania que 
lhes é rotineiramente negada (autorrespeito); e na estima social, ao serem elogiados 
pela performance esportiva, ter fama e visibilidade, e exercer uma função social 
respeitada e digna de admiração (autoestima). Em suma, esta pesquisa busca apontar 
o futebol como instrumento para análise da dinâmica social e contribui por conectar o 
contexto esportivo ao social, visando fomentar nos profissionais que trabalham com 
esta população uma prática mais ampla e crítica, que possa ser capaz de ajudar a 
promover efetivamente mudanças sociais. 
 
Palavras-chave: Futebol. Luta por reconhecimento. Invisibilidade social. Psicologia 
Social. Psicologia do Esporte 
 
ABSTRACT 
 
 
The present dissertation discusses about soccer as one path to social 
recognition by young people in situation of vulnerability, understood here by being 
afro-descendant, residence in slums and lack of financial resources. This 
vulnerability may refer to a social invisibility, which can be understood as social 
relations in which some persons, because they are the overwhelming majority of the 
time proscribed by the meaningful world ofthose who have the power, through 
indifference, and/or inhabit the social imaginary in a negative way by being 
stigmatized, have not recognized their abilities and potential, are ignored in some 
areas of social life, private from forms of social interaction. Dialectically, the heart of 
these relationships, this is the struggle for recognition, in this paper based on Critical 
Theory, especially in the writings of the theorist Axel Honneth. An individual’s 
relationship with oneself tied to the experiences of recognition because it is only 
because they learn – with the consent or encouragement of others – referring to 
themselves certain characteristics. When these experiences are precarious, as in the 
case of social invisibility, a search takes place, a struggle for the recognition denied. 
Social recognition which can be obtained through soccer and its consequences, as 
the possibility of conspicuous consumption, of media exposure and a supposed 
power of social change. As a methodology to better understand these issues were 
analyzed social productions such as films, books, lyrics and reports, which were 
considered signs of a capitalist society, spectacular society and individualistic which 
presents itself as meritocratic, ignoring the availability of resources of the dominant 
culture that each person has, is positively related to personal success. And to 
illustrate the historical, social and cultural context, where young people in 
vulnerability and often socially invisibles struggle for recognition through soccer, 
interviews were conducted with young soccer players from the Olympic Village of 
Mangueira. The social rise and the identity of being a soccer player is targeted by the 
desire to obtain recognition of positive experiences in the three spheres of 
recognition and thus able to make changes in their self-relations practices: emotional 
dedication, being most loved by family and friends (self-confidence); the cognitive 
regard, become a citizen is routinely denied to them (self respect), and social 
esteem, by being praised for their sporting performance, having fame and visibility, 
and perform a social function that is admired and respected (self-esteem). In short, 
this research seeks to identify soccer as a tool for analysis of social dynamics and 
contributes by connecting the sport to the social context in favor of promoting the 
professionals that work with this population a much wider and critical practice, which 
might be able to effectively help promote social changes. 
 
Keywords: Soccer. Struggle for recognition. Social invisibility. Social Psychology. 
Sports Psychology. 
 
 
LISTA DE ILUSTRAÇÕES 
 
 
 
Imagem 1 - 
 
Visão aérea da Vila Olímpica da Mangueira. Sua frente 
se localiza na Rua Santos Melo, e os fundos na Rua Ana 
Neri..................................................................................... 
 
 
18 
Fotografia 1 - Entrada Principal da Vila Olímpica da Mangueira.............. 19 
Fotografia 2 - Sala do Setor de Psicologia. Vista privilegiada.................. 19 
Fotografia 3 - Auditório localizado ao lado da sala da Psicologia. Local 
onde é realizada a maioria dos trabalhos com as 
equipes............................................................................... 
 
 
20 
Fotografia 4 - Treino de futsal, categoria sub-9. É impressionante a 
quantidade de meninos inscritos, visível pela quantidade 
dos que aguardam nos bancos........................................... 
 
 
20 
Fotografia 5 - Jogo contra a equipe do Vasco da Gama.......................... 23 
Imagem 2 - O atleta como mercadoria................................................... 72 
Imagem 3 - Gola da camisa da seleção brasileira com a inscrição 
“Nascido para jogar futebol”................................................ 
 
89 
Tabela 1 - Estrutura das relações sociais de reconhecimento............ 118 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 INTRODUÇÃO................................................................................................ 10 
1 INVISIBILIDADE SOCIAL............................................................................. 26 
1.1 Retratos da invisibilidade social de jovens em situação de 
vulnerabilidade social................................................................................... 37 
2 DESIGUALDADE SOCIAL E EXCLUSÃO..................................................... 44 
2.1 A banalização do mal.................................................................................... 47 
2.2 A atribuição do estigma e o futebol............................................................ 51 
2.2.1 A atribuição do estigma de “menor” ............................................................... 57 
3 A ESPETACULARIZAÇÃO DO FUTEBOL E SEUS DESDOBRAMENTOS 68 
3.1 Grandes eventos e craques......................................................................... 79 
3.2 O jogador e o mito do herói......................................................................... 88 
3.3 Ser negro: os espaços de reconhecimento................................................ 93 
3.4 A hora de pendurar as chuteiras................................................................. 103 
4 FUTEBOL E ASCENSÃO SOCIAL................................................................ 107 
5 LUTA POR RECONHECIMENTO E O FUTEBOL......................................... 113 
5.1 Padrões de reconhecimento intersubjetivo e suas respectivas 
autorrelações práticas.................................................................................. 118 
5.2 Amor e autoconfiança................................................................................... 120 
5.3 Direito e autorrespeito.................................................................................. 123 
5.4 Solidariedade e autoestima.......................................................................... 125 
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 128 
 REFERÊNCIAS.............................................................................................. 132 
 ANEXO A: Roteiro das entrevistas.............................................................. 144 
 ANEXO B: TCLE............................................................................................ 145 
 ANEXO C: Parecer COEP............................................................................. 146 
 ANEXO D: Transcrições das entrevistas.................................................... 147 
 
 
10 
 
INTRODUÇÃO 
 
 
Quando me mudei do interior do estado para a metrópole do Rio de Janeiro, 
várias coisas me causaram impacto, como o tamanho das construções, a 
diversidade de comércio, a quantidade de pessoas na rua... mas algo em especial 
me afetou mais: as relações entre as pessoas, principalmente aquelas em que 
alguém tem sua humanidade ignorada, não reconhecida, sendo tratado como se não 
existisse, isto é, como se fosse invisível. 
Na rua da minha casa em Pasárgada existem doze casas, doze famílias 
vizinhas, algumas mais chegadas, mas todas conhecidas. No Rio vim morar em um 
prédio, 64 apartamentos, 64 famílias vizinhas, inúmeros desconhecidas; todos 
isolados e só procuram as outras famílias se estiverem incomodados com a música 
alta ou por outras coisas; lá na minha rua as pessoas vinham “incomodar”, pedir 
uma xícara de açúcar emprestado, tomar um café, essas coisas... e se o som não 
estivesse alto, aí sim que os vizinhos perguntavam se estava acontecendo alguma 
coisa. São pessoas amigas com quem deixamos as chaves de casa, que cuidam 
dos nossos cachorros quando saímos, enfim, que se ajudam. 
Em uma cidade pequena ninguém é desconhecido, ninguém é invisível. É 
incrível a quantidade de pessoas da minha cidade natal que encontro quando viajo, 
e como não encontro nenhum carioca! Percebi depois de um tempo que isso não 
traduz a realidade. Com certeza encontrovários cariocas, o que acontece é que 
reconheço muito mais os habitantes da minha cidade. Lembro que minha mãe 
sempre falava que eu conhecia a cidade toda – isso, claro, era um exagero –, mas 
poderia dizer que reconhecia quase a cidade inteira. 
Certa vez um morador de rua bateu à porta de minha casa pedindo água e 
minha mãe foi atendê-lo. Ao ouvir a voz do senhor a reconheci e minha mãe se 
espantou quando o chamei pelo nome: “olá Bandeira, o que está fazendo por aqui?” 
Aquele era o morador de rua que dormia na praça da cidade, claro que o 
(re)conhecia, todos em uma cidade pequena são visíveis e possuem seu espaço no 
contexto cultural e histórico da cidade. 
Estava acostumada também a ir à padaria ou ao açougue e ver as pessoas 
se cumprimentarem pelo nome. Por muitas vezes ia comprar algo e esquecia o 
11 
 
dinheiro, e o balconista gentilmente me falava “não tem nada não, amanhã você 
paga”. Aqui, percebi que as pessoas nem se cumprimentam nesses lugares, ou se o 
fazem é como se fosse uma simples repetição de palavras contidas em certo ritual, 
ninguém pergunta tudo bem querendo saber a resposta. 
Outra situação que via como inusitada era a dos ambulantes nas conduções, 
fato raro no interior, mas muito comum no Rio. Tão comum que quase ninguém se 
incomoda mais com o mesmo discurso que normalmente inicia com um “desculpe 
incomodar o silêncio da viagem, é que trago aqui...”. O fato era que eu sempre 
prestava atenção neles, me lembravam de longe os “shows” quase circenses dos 
ambulantes do interior que se desdobram nas praças públicas para venderem suas 
pomadas que curam de frieiras a bronquite. 
Por costume ou olhar turístico (por mais que os anos passem, nunca consegui 
me sentir do, mas sempre no Rio), eu sempre prestei atenção nas pessoas que 
entravam nos coletivos e tentavam vender alguma coisa, mesmo que não tivesse 
interesse em comprar. 
Por vezes percebi que era a única que interrompia o que estava fazendo para 
prestar atenção e confesso que me divertia com a monotonia do discurso e o quanto 
ele passava a ser decorado. Existiam, inclusive, aqueles que se cansavam de repetir 
e o escreviam no papel e aqueles que distribuíam balas para conquistar clientes, 
tudo para mim era novo. 
Um dia, apesar de não comprar as bananadas que um jovem vendedor 
oferecia, ele se aproximou e disse mais ou menos assim: “Muito obrigado pela 
atenção. A senhora não comprou, mas eu ganhei muito mais, eu sei que a senhora 
me ouviu, que prestou atenção. Tem gente que se faz de cego e surdo, finge que a 
gente nem tá aí, aí a gente chega e oferece a mercadoria e sem olhar elas vão 
despachando a gente. Mas a senhora não, a senhora prestou atenção, muito 
obrigado.” 
Ele tinha acabado de verbalizar o que eu vinha presenciando há muito tempo 
e nunca tinha parado para refletir. Fiquei pensativa o resto da viagem sobre quanto o 
reconhecimento era importante, e que ao prestar atenção no trabalhador que falava 
demonstrava consideração e reconhecimento social ao que estava sendo feito e, 
consequentemente, à pessoa que o fazia. 
 Dentre essas situações e outras tantas, uma que me inquieta é como se vê 
(ou não) as crianças na (de) rua que carregam na pele e no corpo o estigma da cor, 
12 
 
da classe social e do local de moradia. Moleques de pés descalços eram o que mais 
via e vejo na rua, mas a conotação era diferente... Lá eles são chamados de 
moleques porque fazem molecagem, aqui esta denominação carrega um sentido 
pejorativo – isso quando não são tachados como pivetes-crianças. Moleque 
correndo era sinal de que estavam brincando de pique-pega ou na certa em busca 
de alguma pipa perdida. Aqui, se veem essa cena, as pessoas se entreolham e 
comungam do pensamento de que na certa era um menor infrator em fuga. 
Eu possuía o primeiro olhar, mas com o tempo a metrópole me condicionou, 
foi algo gradual e quase imperceptível, mas aos poucos foram perdendo a 
traquinagem que via nelas e um hábito novo foi incorporado quase que 
inconscientemente: agarrava a bolsa mais forte quando uma delas passava por mim, 
não puxava mais conversa e, porque as via sem nada, pensava que por não terem o 
que tinha deveriam querer tomar de mim. 
A primeira vez que me dei conta de que estava contaminada pela “neurose 
urbana” foi quando em um banco da minha ainda querida Pasárgada fui retirar 
dinheiro em um caixa eletrônico e um garoto me espreitava. Estávamos apenas nós 
dois no banco, e pensava o porquê dele não utilizar outro caixa, e comecei a esperar 
ser assaltada, e quanto mais o relógio andava, mais desesperada ficava na 
iminência do golpe inevitável e fulminante. 
Quando terminei a retirada, me virei já esperando o pior quando o menino 
veio em minha direção e falou: “tia, será que a senhora pode me ajudar a tirar um 
dinheiro do caixa? Meu pai pediu pra tirar e eu falei que sabia só pra não 
decepcionar, mas não sei não, por favor, tia”. 
Completamente envergonhada pela prisão de medo que tinha construído, o 
ajudei. Ele, confiando plenamente em mim, além de me dar o cartão, me disse a 
senha. Em suma, eu em apenas ter sentido sua presença já o tinha condenado e ele 
sem nem me conhecer depositou inteira confiança em mim. 
Esses contrastes com o interior despertaram meu interesse pelo tema da 
invisibilidade social de certas categorias. Invisibilidade que entendo estar 
relacionada com descaso, menos-valia, atribuição de estigmas e muitas vezes 
esquecimento pelas políticas públicas, as quais não se apropriam de suas 
realidades e intervêm como consideram que sejam os desejos desta população e 
não como realmente o são. 
13 
 
O pobre no interior de onde vim, era visto como gente humilde, que trabalha 
bastante e geralmente na lida da roça. Aqui, o pobre usualmente é remetido à 
favela, local não muito distante geograficamente dos ricos, dos serviços públicos e 
dos centros de compra. Apesar da proximidade, as premissas de convívio social 
divididas intersubjetivamente se diferenciam. 
A visão que mais me mobiliza, e que por isso é uma das forças motrizes deste 
trabalho, é a do jovem pobre, que no interior usualmente é visto como sujeito digno 
de solidariedade. Nada impede que brinque com os meninos mais abastados, aliás, 
muitas das traquinagens de crianças como subir em árvores e pegar frutas dos 
vizinhos ele ensinará para esses meninos. Muitas vezes, esse menino humilde pode 
ser filho do caseiro, da empregada ou do moço que capina o quintal. Ele é percebido 
como esforçado, arteiro, desnutrido, muitas vezes sendo chamado de “tadinho”, bem 
diferente do esperto, malandro, preguiçoso e “sementinha do mal” da metrópole do 
Rio de Janeiro. 
Esses jovens pobres, residentes em favelas e em sua maioria negros ou 
afrodescentes1 são os jovens que no presente trabalho considero em situação de 
vulnerabilidade. Apesar de o termo estar mais presente nas produções acadêmicas 
das áreas da saúde (AYRES, J. R. C. M; FRANCA-JUNIOR, I.; CALAZANS,G. J.; 
SALETTI-FILHO, H. C., 1999; PALMA, A.; MATTOS, U. A. O., 2001; MENEGHEL, S. 
N. et al, 2003; GONTIJO, D. T.; MEDEIROS, M., 2009), referente a suscetibilidade a 
doenças e atrelado ainda a uma abordagem conservadora da promoção da saúde 
com ênfase nos comportamentos (estilo de vida) dos indivíduos, tomei como base as 
acepções dos teóricos das Ciências Sociais que relacionam vulnerabilidade com a 
desigualdade de distribuição de renda, onde a pobreza estrutural está relacionada 
com a escassez de recursos como: água, saúde, educação, alimentação, moradia, 
renda e cidadania e com a exclusão das política sociais básicas como trabalho, 
educação, saúde e habitação (GOMES, 2003). E são pobres, na concepção de 
Yasbek (2003), aqueles que são excluídos em graus diferenciados da riqueza social, 
por estarem de modo temporário ou permanente sem acesso a um mínimo de bens 
e recursos. 
Outro conceito que utilizo no presente estudo é o deinvisibilidade social, que 
compreendo como relações sociais onde alguns sujeitos por serem proscritos na 
 
1
 Apesar dos termos terem significados diferentes, no presente trabalho os utilizo como sinônimos. 
14 
 
esmagadora maioria das vezes do mundo significativo daqueles que detêm o poder 
(indiferença) e/ou por habitarem o imaginário social de forma negativa (preconceito), 
não têm suas capacidades e potencialidades reconhecidas. Simplesmente passam a 
ser ignorados em alguns âmbitos do convívio social, privados de formas de interação 
social. 
Considero que os jovens em situação de vulnerabilidade são invisíveis 
socialmente, primeiro por ser uma realidade tolerada e tão naturalizada que 
dificilmente provoca indignação; segundo por alguns desses jovens receberem 
estigmas que são lançados sobre eles. 
Dialeticamente no cerne destas relações está presente a luta por 
reconhecimento. Uma vez que a relação do indivíduo consigo próprio está atrelada 
às experiências de reconhecimento, pois ele se constitui unicamente porque 
aprende – através do assentimento ou encorajamento de outrem – a referir a si 
próprio determinadas características, quando essas experiências são exíguas, como 
ocorre nos casos de invisibilidade social, se dá um busca, uma cobrança, uma luta 
pelo reconhecimento negado. 
Colocarei aqui uma situação que vivi e me chamou bastante atenção por ter me 
feito refletir sobre a questão da invisibilidade social e do reconhecimento. No 
primeiro ano em que fiz parte da Vila Olímpica da Mangueira - instituição onde 
realizei a pesquisa do presente estudo - participei de um evento esportivo no qual 
todos os funcionários foram requisitados para trabalhar no apoio logístico. Isto é, 
desde o funcionário com o Ensino Fundamental incompleto até aquele com Ensino 
Superior estavam em pé de igualdade, poderiam estar cumprindo uma mesma 
função e com um detalhe sine qua non: todos estavam utilizando o mesmo uniforme, 
diferente dos dias comuns em que por normas do próprio patrocinador do projeto, 
funcionários da Saúde vestem branco, professores de Educação Física vestem 
verde e rosa com nuances para cada modalidade, funções administrativas rosa, 
serviços gerais cinza e limpeza verde. 
Fiquei alocada no setor de alimentação, na organização e distribuição de 
lanches para as instituições participantes. Neste posto ficamos três psicólogas, dois 
fisioterapeutas, uma fonoaudióloga, duas secretárias, dois estagiários de fisioterapia 
e um jovem de dezessete anos que trabalhava na limpeza. 
Esse rapaz fazia parte da paisagem daquele lugar, era comum passar por ele 
sem notá-lo ou confundi-lo com tantos outros “meninos da limpeza”. Verdade que 
15 
 
por diversas vezes ao cumprimentá-lo a resposta era monossilábica e ao tentar 
desenvolver uma conversa o tom era sempre formal e eu que nem casada sou, era 
tratada e chamada como senhora. 
Neste dia ele estava exercendo uma função muito importante de controle da 
entrada e saída de pessoas da área reservada para distribuição dos lanches. Só se 
poderia sair, entrar ou retirar o lanche com o aval deste rapaz. Esta tarefa de 
autoridade diferenciada da subalterna exercida no cotidiano, assim como o uniforme 
que naquele momento nos igualava, fizeram com que seu comportamento se 
modificasse. Mostrou-se feliz e desenvolto, em nossa função sendo o mais animado 
e eficiente. Nos intervalos conversava, opinava e brincava conosco, sempre muito à 
vontade e na maioria das vezes como centro das atenções. 
Muitas mudanças ocorreram por conta de uma experiência de 
reconhecimento. Naquele evento ele estava sendo útil e requisitado, estava sendo 
visto! Mas quando tudo acabou e a banda passou... cada qual em seu canto, em 
cada canto uma dor e tudo tomou seu lugar. 
Foi como se a capa da invisibilidade lhe fosse novamente outorgada e voltou 
a enterrar seu rosto junto com a vassoura. Decerto que, após esse dia, ele responde 
e se coloca mais desenvolto quando o cumprimento, mas a relação nunca mais foi 
dialética, de mão dupla como no dia do evento. 
Esta é uma das inúmeras situações em que observei a invisibilidade social e 
seus desdobramentos, decerto que nós pesquisadores nos tornamos tão próximos 
de nossos objetos que o identificamos em qualquer lugar. 
Eu o vejo na minha sobrinha de nove anos que por nada calçava seus 
chinelos, até que criei uma brincadeira onde as pessoas só eram vistas se 
estivessem devidamente calçadas. De início ela testou o jogo de aparecer e 
esconder, primeiro tentando uma chantagem emocional, depois gritando e dançando 
e após através do contato físico. Cedendo cinco minutos depois e resmungando “ai, 
é como não existir; como se pudesse bater em mim sem perceber; sempre vou ficar 
de chinelos”. E deste dia em diante se meu olhar a atravessa e finjo não notar sua 
presença, imediatamente ela corre para calçar seus chinelos; foi uma brincadeira 
que julguei boba no momento, mas que a marcou tanto que nem precisou de 
reforço! 
Vi meu objeto em um lançamento de livro no Leblon, que no cochilo do 
segurança uma criança em situação de rua entrou e criou um incômodo, o ar ficou 
16 
 
mais pesado e as conversas mais silenciosas, todos os olhares a espreitavam, mas 
nenhum a fitava. Ela ainda tentou falar com algumas pessoas, mas foi sumariamente 
ignorada e, então, deitou no chão da livraria. Uma senhora gentilmente se abaixou e 
cedeu minutos de sua atenção àquela criança, que satisfeita após ter sido vista se 
retirou com um sorriso no rosto. 
Vejo meu objeto de pesquisa quando paro nos sinais e converso com os 
meninos que se aproximam do vidro, como o simples fato de olhar e prestar atenção 
modifica o comportamento, o tom de voz e até as feições dos sujeitos. Vejo e sinto 
também nas discrepâncias no modo de viver no interior e na metrópole. Vejo e 
assisto nos canais esportivos em programas que apresentam os craques do futuro e 
em documentários que mostram o percurso de gênios da bola que vieram de origem 
humilde e, de invisíveis, tiveram a vida escancarada. E principalmente observo 
naquelas crianças e adolescentes vulneráveis, porque pobres, moradores de favelas 
e na maioria negros que lutam por reconhecimento, que sonham por um lugar de 
destaque no futebol. 
Estes últimos são os meus sujeitos de estudo e pesquisa. Ao longo do texto, 
me debruço sobre a realidade social por meio de análises de fatos, livros, filmes e 
músicas, por entender que as produções culturais retratam aquilo de que o 
imaginário social está repleto, o que transborda dele; e porque falam da lógica 
cultural, são representações da sociedade, da realidade social (BECKER, 2009). 
Assim como desconstruo e destrincho notícias da mídia, por compreender que a 
escolha pelo o que irá ser noticiado e como vai ser noticiado também expõe e 
escancara o imaginário como também muitas vezes o forja, por isso estarão 
presentes ao longo do texto. E como forma de enriquecer o presente trabalho, 
realizarei levantamento de literatura que extrapola a Psicologia Social, passando 
pela Educação Física, as Ciências Sociais, a Sociologia e áreas afins. 
Ao longo do trabalho analiso essas produções sociais que considero sinais de 
uma sociedade capitalista, espetacular e individualista que se forja meritocrática 
para melhor analisar o contexto histórico, social e cultural, onde jovens em situação 
de vulnerabilidade e muitas vezes invisíveis socialmente lutam por reconhecimento 
através do futebol. 
Durante a pesquisa também realizei entrevistas semiestruturadas com uma 
amostra de dez (10) jovens de treze (13) e quatorze (14) anos que participavam de 
uma equipe de futebol na Vila Olímpica da Mangueira. As entrevistas 
17 
 
complementam o trabalho, e quando são citadas identifico os participantes com a 
letra “E” seguida de sua respectiva numeração de 1 a 102. 
Acompanho esta equipe desde oinício do ano de 2011 e tive encontros 
semanais com duração média de uma hora com estes jovens ao longo desse ano, 
os quais majoritariamente são moradores da própria comunidade da Mangueira3, 
possuem recursos financeiros escassos e são negros ou afrodescendentes. 
Considerei a amostra de dez entrevistados suficiente para o pretendido, e utilizei 
como critério de escolha, entre os quinze que compunham a equipe, aqueles que se 
enquadrassem nas três categorias citadas ou pelo menos em duas. 
Utilizei a técnica da entrevista autobiográfica narrativa de Schütze (1992) 
como base para confecção do roteiro de entrevista (que se encontra na íntegra em 
anexo), contudo para a realização das entrevistas a metodologia teve que ser 
adequada ao objeto, uma vez os entrevistados demandarem serem estimulados 
para responderem. Neste tipo de entrevista, é realizada uma pergunta inicial que 
motiva o entrevistado a narrar os acontecimentos de sua vida pessoal, e somente 
quando o entrevistado termina a narração, o entrevistador realiza mais perguntas. 
Considerei uma boa ideia perguntar sobre “a história do futebol na vida 
desses jovens”, pensei que assim interferiria menos em suas respostas e 
conseguiria material para a pesquisa. Porém, algumas mudanças tiveram que ser 
realizadas; como exemplo, a inserção de algumas perguntas de “aquecimento”, pois 
notei que ficavam bastante ansiosos com a entrevista e com estas perguntas eles 
ficavam mais à vontade. E incluí também perguntas adicionais, pois, apesar do que 
acreditava anteriormente, a pergunta autobiográfica narrativa não foi suficiente para 
obter informações consistentes, uma vez os entrevistados não raramente terem 
respondido de forma frágil, decorrente do próprio contexto que se encontram, o qual 
torna difícil que pensem e expressem criticamente a realidade vivida. Com isso, 
realizei perguntas adicionais que diziam respeito à temática aqui trabalhada. 
 
2
 As entrevistas na íntegra podem ser encontradas no último anexo. 
3
 Os jovens que não residiam na Mangueira eram de outras comunidades. 
18 
 
 
Imagem 1 - Visão aérea da Vila Olímpica da Mangueira. Sua frente se localiza na Rua Santos Melo, e os fundos 
na Rua Ana Neri. 
Fonte: GOOGLEMAPS, 2012. 
 
Penso ser importante apresentar de que local falo, assim como a instituição 
em que realizei parte da pesquisa. Fui atleta e estagiária na Vila Olímpica da 
Mangueira, uma relação que se iniciou em 2000, e desde 2009 coordeno o Setor de 
Psicologia e atuo com Psicologia do Esporte com equipes e atletas das modalidades 
de futsal, futebol, basquete, atletismo e ginástica rítmica. 
A Vila Olímpica da Mangueira foi inaugurada em 1987, um espaço dedicado 
ao atendimento à comunidade com atuações no campo da Saúde, Educação, 
Esporte, Cultura e Educação para o trabalho. 
Em pouco tempo ganhou visibilidade, com atletas se destacando nas quadras 
e pistas e no campo social, com a queda da taxa de criminalidade infantil na 
comunidade da Mangueira. Este sucesso motivou governos municipais e o estadual 
na criação de outras vilas olímpicas. 
Hoje, a Vila Olímpica da Mangueira possui especificidades frente às demais 
vilas, pois além de promover a inclusão social através do esporte investe também no 
alto rendimento, participando de competições nacionais e formando atletas que 
representam o Brasil no cenário mundial. 
19 
 
 
Fotografia 1: Entrada Principal da Vila Olímpica da Mangueira 
Fonte: O autor, 2011. 
 
 
Fotografia 2: Sala do Setor de Psicologia. Vista privilegiada. 
Fonte: O autor, 2011. 
 
 
Quando iniciei meu trabalho com Psicologia do Esporte na Mangueira percebi 
que os grupos de futsal e futebol, comparativamente com as demais modalidades, 
tinham mais dificuldade de realizar trabalhos em equipe; que a derrota os 
desestabilizava muito mais; e principalmente que as aspirações e sonhos eram 
distintos. Desenvolverei essas constatações ao longo do trabalho, mas posso 
adiantar que em muito se relacionam à cultura do próprio futebol, que para esses 
jovens fazia aflorar a competitividade interna (afinal, a corrida em busca do sonho de 
ser jogador profissional depende do talento individual, em uma cultura futebolística 
20 
 
em que o trabalho em equipe é ofuscado pelo brilho individual de um craque que 
sabe jogar bonito), a baixa tolerância à frustração (pois o sentimento comum era de 
que falhar no único âmbito em que se almeja ter êxito acarretava um ostracismo 
insuportável). As aspirações se distanciavam das bolsas universitárias, participações 
em seleções e profissionalização (como no basquete e no atletismo); eram de ser 
muito famosos, ter dinheiro suficiente para ajudar a família, para esbanjar e criar 
centros de treinamento para ajudar outros jovens. 
 
Fotografia 3: Auditório localizado ao lado da sala da Psicologia. Local onde é realizada a maioria dos trabalhos 
com as equipes. 
Fonte: O autor, 2011. 
 
 
Fotografia 4: Treino de futsal, categoria sub-9. É impressionante a quantidade de meninos inscritos, visível pela 
quantidade dos que aguardam nos bancos. 
Fonte: O autor, 2011. 
 
21 
 
Uma situação interessante ocorreu quando realizei uma dinâmica de grupo 
com o intuito de trabalhar o tema da exclusão, onde um integrante sairia da sala e os 
demais combinariam um código. Ao retornar à sala o voluntário seria ignorado pelo 
grupo até realizar o código combinado a priori e ser incluído no grupo. Pois bem, já 
havia realizado esta dinâmica em outros espaços e com outras equipes, mas nunca 
com um grupo de futebol. O desenrolar me surpreendeu, pois ninguém conseguia 
ocupar o lugar da invisibilidade, em outros grupos sempre alguém aceitava e 
observava para descobrir o código. Mas, para esses meninos foi insuportável a 
experiência, todos buscavam (mesmo sabendo das regras) forçar certo 
reconhecimento, e para tal pulavam, gritavam e em um caso extremo a agressão 
física foi uma via. Os demais membros do grupo se solidarizavam mais rapidamente, 
muitas vezes buscando ajudar o companheiro excluído. 
Na plenária colocaram seus descontentamentos com a atividade e todos que 
estiveram no papel do excluído declararam ter se sentido muito mal, e ainda dois 
jovens disseram algumas vezes se sentir assim ao andar em alguns locais e um 
definiu que estar invisível é como estar morto; curiosa afirmação que me remeteu ao 
conceito de vida nua do “homo sacer” do filósofo Agamben. Esta obscura figura do 
direito romano arcaico, em relação à qual todos os homens são soberanos, possui 
uma vida matável (quem o mata não é condenado por homicídio), mas não 
sacrificável. Sua vida nua, que é o próprio viver, é a vida matável, mas insacrificável, 
porque já está na posse dos deuses e fora da jurisdição humana. Retirada sua 
visibilidade na vida pública, sua potência e sua humanidade, esta vida nua pode ser 
descartada, pois não pertence a este plano e sim ao divino, podendo ser descartada 
e não cabendo punição àquele que executa tal sentença (AGAMBEN, 2007). 
Percebo o jovem em situação de vulnerabilidade sendo muitas vezes esta 
vida matável, pois dentro do modelo capitalista ele forma o exército de reserva. E no 
imaginário ele é depositário de muitos males associados às favelas e é 
potencialmente perigoso e tendencioso à delinquência. A abissal desigualdade 
social, cultural e econômica brasileira que se alarga com o retraimento do Estado é 
manejada, então, com este controle social dos corpos, muitas vezes de forma 
ostensiva. 
E assim, a atividade que não havia sido pensada com o intuito de discutir 
invisibilidade social, acabou se tornando outra força motriz para debruçar-me sobre 
o tema relacionado com esses jovens e a luta por reconhecimento via futebol. 
22 
 
 Observei também uma atitude mais passiva frente a mim e ao tempo 
destinado para o grupo com a Psicologia. Diferentemente das outras modalidades, 
quereconhecem e utilizam aquele espaço para falar dos jogos, treinos, 
relacionamentos, afetos, levando inclusive questões, sugestões de atividades e 
confraternizações para o local reconhecido como de treinamento e refúgio, nas 
equipes de futebol o local era visto como uma “aula”, e se o tema não fosse 
diretamente relacionado com o futebol, mesmo que transversalizasse o rendimento 
esportivo, a atenção facilmente se dissipava, retornando apenas depois de uma 
chamada verbal. 
Grande ilusão minha implantar facilmente o trabalho de uma psicóloga, afinal, 
os próprios técnicos culturalmente no futebol são chamados de professores, como 
forma de respeito e distanciamento da figura que ocupa o lugar de autoridade e do 
suposto saber. Eu como novidade na (e para a) Comissão Técnica, seguia a mesma 
lógica. Apesar de insistir ser chamada pelo nome e explicar diversas vezes sobre os 
objetivos da Psicologia ali, sou chamada de “tia” pelos mais novos e de “professora” 
pelos maiores, e o espaço de trabalho da psicologia com o grupo de “aula”, e 
quando possível o individual, é considerado quase uma chamada à secretaria 
escolar. 
Outra questão importante de salientar como diferença entre o futebol e as 
outras modalidades é o legado que deixa para aqueles que o praticam. Pois, quando 
converso com adolescentes e adultos que estão em vias de parar de competir ou já 
o fizeram, ao questionar o quê o esporte proporcionou, tenho como resposta em 
outras modalidades: um aprendizado em como trabalhar em grupo, reconhecer 
limites, uma forma de superação, lidar melhor com frustrações e mais além, como 
oportunidades de estudos através de bolsas escolares, universitárias ou de emprego 
através do acúmulo de capital cultural. Tomo como exemplo o próprio Projeto Social 
da Vila Olímpica da Mangueira, pelo qual muitos dos professores (e uma psicóloga) 
competiram. Isto quer dizer que uma mobilidade social indireta está mais presente 
em outros esportes, o futebol parece viver de extremos (LEONARD II, 1993). 
23 
 
 
Fotografia 5: Jogo contra a equipe do Vasco da Gama 
Fonte: O autor, 2011. 
 
No futebol as oportunidades acabam mais cedo. Aos dezessete anos, se o 
jovem não adquiriu um contrato profissional ou não está fora do país, sente que o 
fim está próximo, o que gera grande sofrimento para a maioria. O diagnóstico é 
cruel, o futebol levanta a bandeira da inclusão social, porém, poucas são as práticas 
para assistir, educar, orientar os jogadores, de oportunizar novas perspectivas e 
possibilidades. Estas sendo apenas para aqueles que se destacam, tem sorte, são 
bem empresariados e conseguem um lugar ao sol. Portanto, o futebol é utilizado em 
grande escala como atividade-fim e não como meio, e a inclusão social que 
proporciona é ínfima comparada com o que tem em potência. 
Existem os clubes de empresários, como o Boavista, de Saquarema no Rio 
de Janeiro, onde os próprios gestores do clube são mediadores e promovem as 
negociações de venda e empréstimo de jogadores. Enquanto empresários, seguem 
a lógica do mercado e buscam prioritariamente o lucro possuindo visão comercial 
para promover seus jogadores, com a vantagem de poderem prever com maior 
acuidade sobre seus jogadores/investimentos. Existem também os centros de 
treinamento, como o da Empresa Traffic, de marketing esportivo (COURA, 2009), 
que leva jovens de todo o Brasil a morarem no interior de São Paulo pelo sonho de 
se tornar um jogador milionário. Funciona como incubadora de craques e lucra com 
as transações internacionais. 
Por outro lado, existem projetos onde o futebol não é tratado como simples 
negócio e é utilizado como meio para cidadania. Aqui incluo a Vila Olímpica da 
24 
 
Mangueira, mas também o Projeto Futebol Libertário4, a Escola Furacão do Atlético 
Paranaense, que consegue conciliar desenvolvimento de novos talentos com 
responsabilidade social, onde as notas na escola são fator importante; e os projetos 
de ex-jogadores de futebol como o Bola pra frente do Jorginho5, Gol de Letra de 
Leonardo e Raí, e a Fundação Cafu, no Jardim Irene6. 
Apesar dos bons exemplos, a busca por “descobrir” e “lançar” novas 
promessas de craques é tamanha que são realizados torneios, que considero 
“infanticídios subjetivos”: de fraldinha (sub-7) e mamadeira (sub-5), onde as crianças 
colocam camisas de grandes clubes como Flamengo e Vasco e entram em arenas 
lotadas de pais que esquecem quem está por baixo das camisas e torcem como se 
no Maracanã estivessem, e técnicos que esquecem as aulas de desenvolvimento 
infantil, aprendizagem e coordenação motoras. 
Com a preocupação exacerbada em ganhar campeonatos de base, até o 
único ganho disponibilizado, que é o de se tornar jogador, fica prejudicado. Pois, em 
prol de ganhar alguns jogos na base, crianças são especializadas precocemente, a 
aquisição adequada de habilidades motoras e a exposição ao maior número 
possível de experiências do movimento, que capacitarão um jogador bem mais 
completo e dinâmico, são preteridas. 
Atentei-me para esse fato em um jogo da categoria sub-13 em que perdemos. 
O goleiro adversário era bem alto, o que dificultaria seu deslocamento e 
consequentemente a defesa se fossem chutadas bolas rasteiras. Porém, nosso time 
só chutava no alto. Lembrei, então, que nas categorias abaixo se treinava à 
exaustão esse tipo de chute, pois os goleiros, de tão novos, não alcançam a trave 
superior. Condicionamento e exposição restrita de estímulos que ganharam alguns 
jogos, porém, dificultou o desenvolvimento esportivo daqueles jogadores. 
 
4 “Trata-se de um projeto piloto que procurou trabalhar o uso do potencial educativo da prática esportiva, 
especificamente o futebol, na educação não formal como meio para a construção e o exercício da cidadania ativa 
através do atendimento alternativo direto para adolescentes inseridos nas medidas socioeducativas em meio 
aberto, que cometeram um ato infracional, na região da Capela do Socorro, atendidos pelo CEDECA Interlagos. 
O trabalho demonstra que a proposta inovadora pode criar um ambiente para o processo de integração pessoal 
com a tomada de consciência de sua própria dignidade, auto-estima, consciência corporal, comunicação, 
responsabilidade, autonomia e exercício da cidadania.” (SILVA, 2007, p.16). 
5
 Tem como objetivos oferecer oportunidade de promoção social por meio do esporte, educação, arte e cultura e 
qualificação profissional e ampliar o conceito de “craque” para habilidades reconhecidas não apenas no esporte, 
mas principalmente em outros núcleos em que a criança e o adolescente estão inseridos: a família, a escola e a 
comunidade. 
6
 Tem como missão executar e manter programas que incentivem a inclusão social da comunidade do Jardim 
Irene e bairros vizinhos, orientando-os para que os mesmos busquem seus direitos como cidadãos, tornando-se 
agentes transformadores da sua própria realidade. 
 
25 
 
Enfim, diversas são as dificuldades desses meninos para lograrem êxito no 
futebol, lutando diariamente em busca desse sonho para assim vencer na vida e ser 
alguém na vida. É disto que se trata esse trabalho, do sonho desses meninos de se 
destacarem com o futebol e os desdobramentos na esfera social que daí emergem. 
Discutirei aqui as forças que atuam neste sistema, isto é, a cinética do futebol, mas 
este é apenas um reflexo da dinâmica social. 
Sempre à luz da Teoria Crítica, utilizo o futebol como indício que permite 
desvelar alguns aspectos da totalidade social e fazer o caminho de volta, e assim 
abrindo e fechando a lente, sem ignorar que o contexto esportivo também é regido 
pelo modelo capitalista inserido em um contexto histórico, cultural e social, podendo 
ser ferramenta para reconhecimento social. Porém, pode também ser ferramenta de 
opressão e engessamento, afinal, sua essência nada tem de igualitária e se 
aproxima da lógica capitalista, como afirma Helal(1997, p. 30-31): “a ideologia do 
esporte em muito assemelha-se com os ideais da doutrina do capitalismo liberal 
(‘todos têm as mesmas oportunidades e o sucesso está ao alcance de todos sem 
distinção de raça, credo ou classe social’).” 
Um projeto de sociedade muito atraente que não passa de engodo, assim 
também o é no futebol. Mas se tornar um jogador de futebol é o sonho de muitos 
jovens, e não pelo privilégio de trabalhar com algo que pode ser sinônimo de 
diversão, mas sim, por se tratar de um caminho sedutor de ascensão social, 
visibilidade e reconhecimento, e muitas vezes por ser visto como única alternativa 
para saída da subalternidade e ostracismo. 
26 
 
1 INVISIBILIDADE SOCIAL 
 
 
 “Nós não vemos as coisas como são, mas sim como somos.” 
Anaïs Nin 
 
 
É de costume popular se falar que “os olhos são as janelas da alma”, que 
“pior cego é aquele que não quer ver” e “o que os olhos não veem o coração não 
sente”. Todos esses provérbios apontam para o reconhecimento da sabedoria 
popular da grande importância da visão como uma das funções de relacionamento 
do sujeito com o mundo. Como a visão e, por conseguinte, sua seletividade, 
influenciam como se vê e se é visto ou ainda, se se vê ou se se é visto. 
O mundo externo é percebido por esses órgãos sensoriais dependentemente 
do mundo interno de cada um. Isso quer dizer que se pode não ver objetos e/ou 
pessoas que estão ao alcance da visão pelo simples fato de serem indiferentes para 
a pessoa que olha. Quando isso ocorre com pessoas, quando elas são postas como 
fazendo parte da paisagem, dá-se um fenômeno muito comum na modernidade: a 
invisibilidade social. 
O conceito de invisibilidade social tem sido aplicado, em geral, quando se 
refere àqueles que estão à margem da sociedade e coloco aqui como o início da 
discussão sobre o fenômeno o romance americano de 1952 do escritor Ralph Ellison 
(2001): Invisible Man. O enredo abrange o tema da invisibilidade social dos negros 
americanos assim como a tensão racial e o clima de significativas mudanças dessa 
sociedade no início do século XX. 
O nome do protagonista da história nunca é revelado, apesar de ter diversos 
nomes durante a narrativa; como se até a mais pífia das identidades lhe fosse 
negada. Sua história é contada desde a infância no sul dos Estados Unidos, donde 
ele parte quando recebe uma bolsa para estudar em uma universidade de negros. 
A história se passa em uma época de grande segregação racial, apesar de 
não claramente localizada no tempo. São os Estados Unidos do “pesadelo” de 
Martin Luther King; o país que teve um homem como Jesse Owens7, que desafiou 
as teorias eugenistas de Hitler na própria Alemanha e o fez se retirar do estádio 
 
7
 Atleta negro dos Estados Unidos que venceu quatro provas de atletismo, os 100 e 200m rasos, salto em 
distância e o revezamento 4x100m, nos Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim. 
27 
 
(como ficou no imaginário), mas que ao retornar a casa não recebeu sequer uma 
carta de Roosevelt, então presidente, como sinal de reconhecimento do feito 
histórico. Para sua biografia, contra o preconceito dos nazistas ele pode sair 
vitorioso com quatro medalhas de ouro, mas contra o preconceito de sua terra natal 
sucumbiu, vivendo maior parte de sua vida sem estabilidade financeira e as honras 
de um medalhista olímpico. 
Nesse contexto, o protagonista do livro, já cursando a universidade e 
trabalhando como motorista leva um importante doador de fundos para esta 
universidade, homem branco e milionário, a uma área vergonhosa da comunidade 
negra local. Tal acontecido acarreta sua expulsão e envergonhado demais para 
retornar à casa de seus pais, parte em direção a Nova Iorque. 
Na Grande Maçã ele passa pelas mais diversas experiências entre reuniões 
de sindicato e desencontros para conseguir emprego. Finalmente, ele se estabelece 
no Harlem - o histórico bairro negro americano, um universo à parte - onde acaba 
envolvido com reuniões secretas e articulações do partido comunista. 
O protagonista por vezes se confunde com a realidade de muitos brasileiros 
na atualidade, apesar de ser um livro da década de 50 retratando a realidade 
americana. Percebe-se isso já no primeiro parágrafo, na apresentação do 
protagonista: 
Eu sou um homem invisível. Não, não sou um fantasma como aqueles que 
assombravam Edgar Allan Poe; nem sou um dos seus ectoplasmas dos filmes de 
Hollywood. Sou um homem de substância, de carne e osso, fibras e líquidos - e 
pode ser até que eu possua uma mente. Sou invisível, entenda, simplesmente 
porque as pessoas se recusam a me ver. Como essas cabeças sem corpo que você 
vê às vezes nos espetáculos de circo, é como se eu estivesse cercado de espelhos 
de um vidro duro, que distorce a imagem. Quando eles se aproximam de mim eles 
vêem apenas meus arredores, eles mesmos, ou pedaços de sua própria imaginação 
- de fato, tudo e qualquer coisa, menos eu (ELLISON, 1952, p. 3, tradução nossa). 
8
 
 
A sociedade contemporânea é descrita como uma sociedade de espetáculo, 
que substitui a máxima: “penso, logo existo” por “sou visto, logo existo” (DEBORD, 
1997). O protagonista por ter consciência de ser invisível, por várias vezes se 
questiona se realmente existe. Ele relata os sentimentos que essa situação gera 
nele e a angústia de não ser reconhecido, como ele tenta todo dia se convencer de 
que realmente existe e de seu desejo de cobrar sua existência das outras pessoas. 
 
8
 O texto em língua estrangeira é: “I am an invisible man. No, I am not a spook like those who haunted Edgar 
Allan Poe; nor I am one of your Hollywood-movie ectoplasms. I am a man of substance, of flesh and bone, fiber 
and liquids-and I might even be said to possess a mind. I am invisible, understand, simply because people refuse 
to see me. Like the bodiless heads you see sometimes in circus sideshows, it is as though I have been 
surrounded by mirrors of hard, distorting glass. When they approach me they see only my surroundings, 
themselves, or figments of their imagination-indeed, everything and anything except me.” 
28 
 
Para retratar esses sentimentos relata uma situação em que esbarrou em um 
homem e foi insultado e reagiu agredindo o homem e demandando um pedido de 
desculpas, porém o homem continuou o insultando até que percebeu que o homem 
continuava a não vê-lo, ele ainda era invisível, era um fantasma para o homem. 
Essa situação pode ser comparada com o enredo do filme Crash: no limite 
(2005) que em sua introdução já coloca em pauta seu tema principal: 
É o sentido do tato [...]. Numa cidade de verdade, você anda, esbarra nas pessoas, 
elas topam com você. Em Los Angeles, ninguém toca em você. Estamos sempre 
atrás de metal e vidro. Acho que sentimos muita falta do toque. Damos encontrões 
uns nos outros para sentirmos alguma coisa. 
 
Em Los Angeles, assim como em outras grandes cidades, ocorre um 
fenômeno de utilização do espaço urbano como objeto de consumo, um instrumento 
político e um elemento na luta de classes. Existe uma diminuição do espaço público, 
de encontro e aumento dos lugares de passagem, o que acarreta um maior 
distanciamento do outro (agora visto como estranho) e fechamento em círculos mais 
próximos, levando a um empobrecimento das relações sociais, uma vez que a 
pluralidade se faz presente no contato com as diferenças, surpresas, ambivalências 
e conflitos. 
Quando se está em local público, onde os diferentes dividem o espaço, 
busca-se usualmente a ação e não a interação - principalmente com os ditos 
estranhos - e se não for possível evitar o contato com eles, espera-se que seja fugaz 
com consequências subtraídas de relevância. Desde a mais tenra idade as crianças 
são preparadas para esses encontros. Não fale com estranhos é uma frase repetida 
à exaustão que leva os cidadãos mirins a categorizarem o humano desdemuito 
cedo; afinal quem é o estranho? Quem não seria o próximo, o semelhante e o 
confiável? A categoria humana é lateralizada neste contexto, o estranho é o 
diferente, o habitante do outro nicho e por isso potencialmente perigoso. A busca 
pela homogeneização do grupo social faz com que se desqualifiquem aqueles que 
não pertencem ao mesmo, que possuem hábitos díspares, aparência e gostos 
diferentes. 
Outro fator de desconforto com a situação de visibilidade do estranho é que 
quanto mais distante e diferente, maior ansiedade provocará e mais estigma 
receberá como se fosse uma estratégia para preparo do inesperado (porque 
desconhecido), e o que salta aos olhos é que as inferências são em sua maioria 
negativas e reforçadas, como comenta Bauman (2001, p.124): “Torna-se cada vez 
29 
 
mais fácil misturar a visão dos estranhos com os medos difusos da insegurança; o 
que no começo era uma mera suposição torna-se uma verdade comprovada, para 
acabar como algo evidente”. 
No filme Crash: no limite, ocorre uma variância de situações onde os 
personagens ora são ativos na estigmatização e produção de conflitos, ora são 
passivos e depositários dos preconceitos lançados. Em vários momentos tratam as 
pessoas fora de seus respectivos círculos pessoais como invisíveis por as 
considerarem dotadas de menos valor e/ou de atributos negativos; e no decorrer da 
trama são postas em situações que demandam o contato e por este ser 
constantemente evitado, quando se faz necessário o que ocorre é o embate, o 
conflito. 
Em Invisible Man, o protagonista que sente e ressente sua invisibilidade foi 
exposto a este contato, quando um passante esbarra nele e continua seu caminho 
como se nada tivesse acontecido. Sua primeira reação foi demandar o 
reconhecimento da sua situação, que não foi obtido. Buscou chamar a atenção 
gesticulando e proferindo xingamentos, mas nada o tornou visível. Por fim, riu da 
sua situação de “fantasma”. 
Este incidente o faz ponderar e se considerar irresponsável, relacionando esta 
característica presente em seus atos impulsivos, agressivos e inconsequentes como 
fazendo parte da sua invisibilidade. Tanto que mais à frente na narrativa conclui que: 
“responsabilidade demanda reconhecimento, e reconhecimento é uma forma de 
acordo” (ELLISON, 2001, p. 4, tradução nossa)9, e todo acordo só é possível quando 
as duas partes são legitimadas como semelhantes. Quando não é possível o acordo, 
ocorre uma luta por reconhecimento. 
Axel Honneth, um dos principais pensadores alemães da atualidade e atual 
diretor do Instituto Para Pesquisa Social de Frankfurt, berço da Teoria Crítica, 
enxerga esta luta por reconhecimento como a gramática moral dos conflitos sociais, 
um sistema de regras que governa a interação entre pessoas e de certa forma 
legitima algumas práticas sociais. 
O autor atribui ao romance de Ellison (2001, p. 1) a ênfase na noção de 
“invisibilidade” e, em sua contrapartida, no “reconhecimento”. Ele comenta: 
O narrador em primeira pessoa do romance de Ellison pode concluir, de sua 
condição de invisibilidade social, que aqueles que “olham através dele” (sem o ver) 
não têm nenhuma intenção de tratá-lo de modo respeitoso ou benevolente; ao 
 
9
 O texto em língua estrangeira é: “Responsibility rests upon recognition, and recognition is a form of agreement” 
30 
 
contrário, neste caso a ausência de gestos de reconhecimento destina-se a sinalizar 
à pessoa afetada que deve preparar-se para ações de hostilidade 
 
Outra questão relacionada ao invisible man é sua cor: demérito e 
desconfiança o acompanham. No livro, os negros são retratados como seres 
inferiores de existência irrelevante, o que é dito tanto por negros quanto por brancos. 
Exemplificado na frase “Se você é branco você está certo”10, se não for branco está 
relegado a segundo plano e, adicionado a seus outros atributos que o tornam 
invisível, ignorado, descartável, incômodo ele se torna passível de eliminação. 
Aspecto este relevante quando o protagonista, um estudante negro sulista à 
procura de um emprego em Nova Iorque, é internado em um hospital e médicos 
discorrem sobre a realização de uma lobotomia: 
“’[...] o resultado é uma completa mudança de personalidade como você irá 
encontrar em seus famosos contos de fadas de criminosos transformados em 
pessoas amáveis depois dessa coisa toda de cirurgia cerebral. E mais” – a voz se 
tornou triunfante – “o paciente é fisicamente e neurologicamente são.” 
“Mas e o seu psicológico?” 
“Absolutamente sem importância!” disse a voz. “O paciente viverá como ele tem que 
viver, e com absoluta integridade. Quem poderia pedir mais? Ele não irá 
experienciar maiores conflitos de motivos, e o que é melhor a sociedade não irá 
sofrer nenhum trauma por sua causa.” 
Houve uma pausa, uma caneta arranhou o papel. “Então, por que não castração, 
doutor?” (ELLISON, 2001, p.236, tradução nossa).
11
 
 
Na visão dos médicos o paciente representa perigo potencial para a 
sociedade, e por isso é passível de ser alvo de intervenções cirúrgicas não 
autorizadas a fim de impedir que produza dano à sociedade. Este jovem não precisa 
viver conflitos de motivos, situações que fortalecem convicções e modificam visões 
de mundo, experiências atreladas à condição de humano, categoria da qual o 
querem destituir. Ele pode viver de forma a gozar de absoluta integridade, o que 
quer dizer não causar traumas à sociedade, enfim, o aspecto psicológico é 
irrelevante e se possível ele poderia até ser castrado, assim a sua proliferação seria 
interrompida e se teria menos negros imprestáveis ocupando espaço na sociedade. 
No fim da narrativa ele reflete sobre sua trajetória e sobre sua invisibilidade, 
com a qual ele foi convivendo, aceitando e introjetando. Inclusive, após diversas 
frustrações e desentendimentos ele passa até a utilizá-la, mesmo sabendo que os 
 
10
 O texto em língua estrangeira é : “if you are white you are right”.” 
11
 O texto em língua estrangeira é: “‘[...]the result is as complete a change of personality as you’ll find in your 
famous fairy-tale cases of criminals transformed into amiable fellows after all that bloody business of a brain 
operation. And what’s more’ the voice went on triumphantly, ‘the patient is both physically and neurally role.’ 
‘But what of his psychology?’ 
‘Absolutely of no importance!’ the voice said. ‘The patient will live as he has to live, and with absolutely integrity. 
Who could ask more? He’ll experience no major conflict of motives, and what is even better, society will suffer no 
trauma on his account.’ 
There was a pause. A pen scratched upon paper. Then, ‘why not castration, doctor?’” 
31 
 
danos provocados são irreversíveis e que provavelmente nunca será reconhecido 
pela sociedade. Ele cria recursos para lidar com sua invisibilidade após diversas 
tentativas frustradas de ser visto. Aprende que a linha entre ser visto e ser ignorado 
é muito tênue, isto é, a linha entre o que existe para ser visto e o que se quer ver, 
como o próprio afirma: 
Atravesse a estreita fronteira do que o homem chama realidade e você entra no 
caos [...] ou na imaginação. Isso eu também aprendi no porão, e não ao privar meu 
senso de percepção. Eu sou invisível, não cego (ELLISON, 2001, p. 576, tradução 
nossa).
12
 
 
O filósofo francês Guillaume Le Blanc relaciona o livro ao trabalho de 
Honneth: 
a invisibilidade social, aquela que Ralph Ellison, a quem Honneth se refere, retrata 
em seu romance O Homem Invisível, para testemunhar a invisibilidade dos negros 
contra os brancos, é um sinal de desprezo moral que culmina no fato de que 
nenhum gesto de consideração é dirigido para o outro. Para os brancos, o preto não 
existe. E a não existência está diretamente relacionada à falta de percepção que 
procura desfazer a consistência social do outro. Visibilidade social é o resultadode 
uma percepção avaliativa do outro, à qual estão relacionadas formas concretas de 
reconhecimento, enquanto a invisibilidade social revela a ausência de tal percepção 
(LE BLANC, 2009, p. 149, tradução nossa).
13
 
 
A realidade sempre é pessoal e singular, como se ela mesma fosse a linha 
tênue que separa o que é real do que é imaginação e onde todos se equilibram, às 
vezes pendendo mais para um lado, outras para o outro, mas na maioria das vezes 
se consegue equiparar os dois lados e caminhar nela. 
E nas últimas páginas do livro o personagem reflete sobre sua invisibilidade e 
como é afetado por ela, tanto que precisa escrever sobre para os que não o vêem, e 
que isso é a única coisa que pode ser feita, a única forma dos “cegos” terem 
conhecimento sobre seus sentimentos e aflições. Em seu último parágrafo conclui o 
que ele, um homem invisível, pode tentar fazer: 
Sendo invisível e sem material, como se fora uma voz desencarnada, que mais 
posso fazer? Que mais senão tentar lhes dizer o que está realmente acontecendo 
quando seus olhos estão vendo através de mim? E isso é o que me assusta: quem 
sabe se, nas frequências mais baixas, eu não falo por você? (ELLISON, 2001, 
p.581, tradução nossa).
14
 
 
12
 O texto em língua estrangeira é: “Step outside the narrow borders of what men call reality and you step into 
chaos […] or imagination. That too I’ve learned in the cellar, and not by deadening my sense of perception. I’m 
invisible, not blind.” 
13 O texto em língua estrangeira é: “l’invisibilité sociale, celle que Ralph Ellison, auquel Honneth se réfère, met 
en scéne dans son roman L’homme invisible pour témoigner de l’invisibilité des Noirs au regard des Blancs, est le 
signe d’un mépris moral qui culmine dans le fait qu’aucun geste de prise en considération de l’autre n’est adressé 
en direction de l’autre. Pour les Blancs, le Noir n’existe pas et cette non-existence est directement liée à une 
absence de perception qui achève de défaire la consistance sociale de l’autre. La visibilité sociale est alors le fruit 
d’une perception évaluative de l’autre à laquelle sont enroulées des forms concrètes de reconnaissance alors que 
l’invisibilité sociale revèle de l’absence d’une telle perception.” 
14
 O texto em língua estrangeira é: “[…] being invisible and without substance, a disembodied voice, as it were, 
what else could I do? What else but try to tell you what was really happening when your eyes were looking 
through? And it is this which frightens me: who knows but that, on the lower frequencies, I speak for you?” 
32 
 
 
A grande contribuição desse livro foi denunciar a existência do fenômeno da 
invisibilidade social, o que permitiu estudá-lo. Ellison buscou através das palavras e 
de seu tom irônico questionar práticas que desconsideravam o humano e o 
particular, mas que se baseavam em estereótipos, que para os negros naquele 
período histórico eram comumente depreciativos. 
No Brasil, a contribuição mais pontual sobre a invisibilidade social é de 
Fernando Braga da Costa (2004), que conseguiu comprová-la por meio de uma 
mudança de função social. Ao cursar uma disciplina durante sua graduação em 
Psicologia na Universidade de São Paulo (USP), Fernando Braga da Costa teve que 
exercer por um dia a função de gari. Nesse dia ocorreu que, entrando no Instituto de 
Psicologia uniformizado de gari, não foi reconhecido. Aliás, percebeu que ninguém 
parecia notar sua presença e se notava era para realizar um desvio, como se fosse 
um obstáculo. 
A experiência de trabalhar como gari no campus da Cidade Universitária da 
capital paulista perdurou por quase dez anos e deu origem ao livro Homens 
invisíveis: relatos de uma humilhação social, onde coloca que, ao olhar da maioria, 
os trabalhadores braçais são seres invisíveis, sem nome, que sofrem de uma 
“espécie de desaparecimento psicossocial de um homem no meio de outros 
homens” (COSTA, 2004, p. 57). 
A experiência o levou a estudar a invisibilidade pública dos garis com maior 
propriedade, como aparece em um trecho onde já se inclui na categoria: 
O que brota da percepção de não aparecer para os outros é a sensação de 
existirmos como coisa, um esvaziamento. Passamos a contar como se fôssemos um 
item paisagístico. Um poste, uma árvore, uma placa de sinalização de trânsito, um 
orelhão, uma pessoa em uniforme de gari na atmosfera social; todos parecem valer 
a mesma coisa. (COSTA, 2004, p.116) 
 
Costa (2004) afirma que depois que uma pessoa é tornada publicamente 
invisível, que se sente mal com isso, parece encarnar o sentimento de não existir. 
Deixa escoar a vitalidade do seu próprio corpo e porque não recebe o reflexo do seu 
olhar, aprende a se proteger e já não olha para ninguém para evitar perceber os 
olhares cegados. Aprende a não ver que não o viram para evitar mais sofrimento. 
Busca-se também a aproximação com os demais excluídos, os quais por 
empatia podem permitir reconhecimento mútuo através da visita dos seus olhares. E 
em casos mais extremos o indivíduo desiste de receber o reflexo do seu olhar: 
A invisibilidade pública refere-se a um momento distorcido daquele olhar originário. É 
numa espécie de segundo instante que o evento se dá realmente. Quando não 
33 
 
devolvemos nosso olhar à aparição humana é que dissimulamos, faltamos com a 
verdade, disfarçamos. [...] Esse encobrimento, o agir artificioso, é facilmente 
constatado por quem ficou à sombra: também ele esteve presente no momento 
distorcido, naquele segundo instante dos cegos, mas a partir de então estará 
sozinho: só ele retomará originário e personalizante, só ele terá ido ao encontro do 
outro. O desgaste aí envolvido é grande – após alguns encontros solitários com 
cegos que não respondem ao olhar do humilhado, cegos que não são devolvidos ao 
circuito das revelações de pessoa –, o desgaste é grande o suficiente para os que 
ficaram invisíveis precipitarem-se no desejo de se trancarem em si mesmos, o que 
lhes parecerá seguro e protetor. (COSTA, 2004, p.229) 
 
Cada olhar negado fere a estima do sujeito, faz com que ele se sinta inferior, 
uma vez que se não é merecedor de um olhar, do que mais seria? O olhar é o mais 
distante dos sentidos, é o que demanda menor intimidade ao ser recíproco. O 
paladar e o tato demandam contato, proximidade; o olfato, para ser revelado, precisa 
do auxílio da visão ou da audição, tendo como requisito uma proximidade relativa. 
Todos demandam interesse, algum grau de intimidade e reforço pelo não-verbal. Já 
pela visão em frações de segundo pode-se obter a reciprocidade, basta que os olhos 
se encontrem e transmitam algum sentido. Quando se vê, mas não se recebe a 
reciprocidade desse olhar, qualquer outro contato é mais difícil e ao tentar 
constantemente e não conseguir êxito, o sujeito, para evitar o desapontamento, 
muitas vezes desiste de buscar seu reflexo no outro. 
Pedintes na rua, por exemplo, acostumados com descaso e quase 
condicionados (na falta de um termo melhor) a se protegerem dessa frustração, de 
não receber o retorno do olhar, quando se dirigem a alguém para pedir ajuda, por 
vezes apenas esticam a mão ou pedem de forma lacônica, e o contato visual – 
quando existe – não é um contato propriamente dito. Os olhos estão como que fora 
de órbita, não buscam mais o reconhecimento, o olhar está perdido no vazio sem 
pretensão alguma. 
Em Janela da Alma (2002), a cineasta Marjut Rimminen faz um depoimento 
que retrata essa posição. Ela nasceu estrábica e passou por um drama durante sua 
infância e adolescência. Relata que quando se dirigia a alguém, não recebia atenção 
de imediato, pois a pessoa não percebia que era com ela que Marjut estava falando. 
A falta de contato visual devido à sua deficiência prejudicava muito seus 
relacionamentos, mesmo com os familiares mais próximos, como deixa claro na 
afirmação que faz sobre sua mãe: 
Lembro-me da minha mãe sempre olhandopara mim com aquele olhar triste e 
deprimido, olhando para mim, mas sem se comunicar comigo. Olhando através de 
mim, como que dizendo “coitada da minha filha, que horror...”. E isso me afetou, 
como se eu fosse um fracasso para que ela me achasse assim. 
 
34 
 
Marjut comenta que por as pessoas evitarem falar com ela, não olharem para 
ela e a estigmatizarem (ela sempre tinha papel periférico nas tarefas ou reuniões 
escolares), passou a não esperar os olhares e o reconhecimento dos outros e a 
voltar sua catexia para si. Relata que todo esse contexto influenciou a escolha da 
sua profissão, pois quando era jovem nunca teve a possibilidade de atuar no papel 
principal - tanto no sentido literal quanto no figurado - sendo sempre relegada à 
paisagem, mas quando se tornou cineasta e passou a produzir curtas animados teve 
a possibilidade de atuar em todos os papéis. 
A falta do reflexo do seu olhar foi para ela algo que influenciou todos os 
campos de sua vida, inclusive o fato de ter se tornado uma pessoa mais 
autocentrada após desistir de esperar reconhecimento e de ter incorporado o 
estigma de ser defeituosa15. 
Na busca por mudar essa situação Marjut passou por várias cirurgias 
corretivas e com espanto afirma que após a última operação, a qual obteve sucesso 
e corrigiu completamente seus olhos, ninguém notou a diferença. As pessoas se 
acostumaram a evitar olhar para ela. E Marjut, que ansiava pelo reconhecimento, 
desejava que as pessoas exclamassem que seus olhos agora estavam corretos, que 
estava diferente, mais bonita; se frustrou mais uma vez e se perguntou o porquê 
desse trauma. Percebeu que a lesão fora interna, seus olhos corrigidos não 
apagariam os anos em que eles estavam voltados para ela mesma e que as 
pessoas não a veriam com outros olhos. 
A pessoa que sofre com a invisibilidade social e/ou pela atribuição de algum 
estigma, pode eventualmente introjetá-lo e se tornar mais autocentrada ou pode 
ainda lutar por algum reconhecimento. A interseção de várias vias de 
reconhecimento define como a pessoa se percebe e percebe o mundo, uma vez isso 
ser mediado por suas relações intersubjetivas, onde o reconhecimento de sua 
presença, isto é, sua visibilidade é condição primeira. 
Na multidão de meninos que buscam um espaço no futebol, é fácil ver a 
floresta e não as árvores. É um exercício diário diferenciá-los no que cada um tem 
de melhor e diferente. Apesar dos nomes parecidos (homenagens a jogadores ou 
tentativas de importação de nomes estrangeiros) e de histórias de vida similares que 
abarcam muitas vezes a vulnerabilidade e a invisibilidade social, e do sonho 
 
15
 A palavra utilizada em inglês pela própria cineasta foi damaged. 
35 
 
compartilhado de se tornar um jogador de futebol ser um grito por reconhecimento 
expelido por vozes igualmente fragilizadas, muitos matizes existem em cada história 
de vida e muitas diferenças entre cada menino que persegue o sonho, difíceis de 
perceber se os igualamos, ou pior, os tornamos invisíveis socialmente. 
Guillaume Le Blanc atrela invisibilidade social ao subalterno, precário e 
excluído, e a resume assim: 
Invisibilidade social é entendida, então, como o fato de não ser ninguém. 
Finalmente, em alguns contextos, pode acompanhar o anonimato das vidas não 
expostas, que não se instalam por alguma qualidade notável no continuum da vida 
cotidiana. É, então, um abrigo que, no comum, preserva o anonimato de uma vida, 
ou uma disposição criada pela eliminação de todas as qualidades. A invisibilidade 
social é assim entendida como o fato de ser sem qualidades – ausência reivindicada 
ou atribuída. (LE BLANC, 2009, pg 6, tradução nossa)
16
 
 
A impossibilidade do trabalho provoca nessas vidas invisíveis uma morte 
social, uma vez ser o trabalho fonte de respeito a si próprio e a não humilhação. No 
caso do futebol, apesar de ser considerado desempregado apenas o atleta 
profissional que já jogou por dinheiro e se encontra sem contrato, os atletas mais 
novos que não têm clube ou não jogam nos chamados “clubes de camisa” se 
sentem mais distantes do sonho de jogar futebol, num limbo, pulando de peneira em 
peneira, invisíveis no mundo do futebol. Daí, muitos viverem no sonho futuro, no 
reconhecimento futuro, como forma de reparação: 
Esta dimensão do reconhecimento dá uma consistência material e simbólica à ideia 
de reparação. A reparação não implica uma restituição igual à integridade da pessoa 
antes da lesão. Implica, contudo, que o potencial de ser mesmo uma pessoa foi 
injustamente negado como um ato violento, afetou não só o presente dessa pessoa, 
mas ainda a possibilidade de seu futuro, fazendo o exercício de capacidades 
básicas algo problemático. Neste sentido, a reparação é tanto para o passado 
quanto para o futuro. Assim, é o reconhecimento do potencial de vir-a-ser, isto é, 
estar de volta em uma janela disponível para as suas capacidades, simbolicamente 
separar o passado do dano [...]. O processo não nega a lesão ou o teste de 
vulnerabilidade que a acompanha, mas dá à pessoa lesada a possibilidade simbólica 
de um novo início. (LE BLANC, 2009, pg 101, tradução nossa) 
17
 
 
 
16 O texto em língua estrangeira é: “l’invisibilité sociale se comprend alors comme le fait de n’être personne. 
Enfin, dans certains contextes, elle peut accompagner l’anonymat des vies non exposées, qui ne tranchent par 
aucune qualité remarquable le continuum de la quotidienneté. Elle est alors ou bien um refuge qui, dans 
l’ordinaire, preserve l’anonymat d’une vie, ou bien une disposition engendrée par l’effacement de toutes qualités. 
L’invisibilité sociale se comprend ainsi comme le fait d’être sans qualités – absence revendiquée ou attribuée.” 
17 O texto em língua estrangeira é: “Cette dimension de la reconnaissance confère une consistance matérielle et 
symbolique à l’idée de réparation. La réparation n’implique pas une restitution à l’identique de l’intégrité de la 
personne avant le préjudice subi. Elle implique em revanche que la potentialité même d’être une personne a été 
injustement niée par un acte dont la violence nuit non seulement au présent de la personne mais encore à 
possibilite de son avenir, en rendant l’exercice de capabilités de base problématique. Em ce sens, la réparation 
vise tout autant le passé que l’avenir. Ainsi, est-ce la reconnaissance de la potentialité d’être une personne à 
l’avenir, c’est-à-dire d’être à nouveau dans um rapport disponible à sés capabilités, séparée symboliquement du 
passé du dommage, [...]. Le procès n’annule pas la blessure ni l’épreuve en vulnérabilité qui l’accompagne, mais 
il confère à la personne lésée la possibilite symbolique d’un nouveau commencement.” 
 
36 
 
Como ilustra a fala de E7 ao relatar sobre o que mudaria em sua vida ao se 
tornar um jogador de futebol: “Jogar fora do país... jogar pela seleção brasileira, que 
eu vou jogar. Todo mundo vai me ver lá, jogando”. Afirma quase em tom profético 
sua futura visibilidade e continua: 
 
D Mas, o que você acha que ia ficar diferente na sua vida fazendo essas 
coisas? 
E7 Ficar famoso. 
D Famoso? 
E7 Tudo mundo ia me ver lá, jogando. 
D Isso é uma coisa que você gostaria que acontecesse? É bom ser 
jogador de futebol, ser famoso? 
E7 Gostaria não; vai acontecer. 
D Vai acontecer? Você vai ser famoso? 
E7 Você vai me ver em 2018, já vou estar jogando já. 
D Na Copa? Você acha que uma coisa boa em ser jogador de futebol é 
ficar famoso? 
E7 Claro. 
(E7, 2011) 
 
 A convicção e desejo pela fama aparecem também em outras entrevistas e 
em tantos relatos de jovens jogadores. Esta estima social que envolve uma via 
relacional, confirmada por outros, tornada visível por outros que se encontra no 
sonho de se tornar um jogador de futebol internacionalmente reconhecido é muito 
mais atraente que o tempo da precariedade em que eles se encontram, que é um 
tempo

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