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Plantas que agem no sistema nervoso central APRESENTAÇÃO As plantas são uma fonte valiosa de metabólitos secundários, úteis para prevenir e tratar inúmeras doenças, incluindo as que acometem o sistema nervoso central (SNC). Vários estudos têm relatado, ao longo dos anos, o potencial das plantas medicinais em exercer ação antidepressiva, ansiolítica, sedativa, estimulante, anticonvulsivante, além de ações relacionadas à melhora da memória e das funções locomotoras. Entre suas inúmeras potencialidades, as ações antidepressivas, ansiolíticas e estimulantes têm sido as mais exploradas do ponto de vista farmacológico. Nesta Unidade de Aprendizagem, você saberá mais sobre quais são as plantas mais usadas para essa finalidade, quais são os metabólitos secundários responsáveis por sua ação e de que forma eles agem no SNC. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Explicar de que forma o sistema nervoso central pode ser estimulado pelo uso de plantas medicinais. • Identificar os mecanismos de interferência de plantas medicinais causadoras de depressão no sistema nervoso central. • Associar a química de plantas medicinais ao estímulo e à depressão do sistema nervoso central. • DESAFIO Em alguns casos, pacientes acabam sofrendo piora do seu estado de saúde devido ao uso de plantas medicinais e de seus derivados. Como profissional de saúde, é importante avaliar o uso dessas plantas e sua interação com outros tratamentos, com o objetivo de buscar a melhor alternativa para cada situação. Acompanhe o caso: Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Analisando o quadro de João, como você responderia: a) Quais foram as prováveis substâncias envolvidas nessa grave interação planta-medicamento? b) Explique detalhadamente o mecanismo de ação que levou a essa interação. Quais componentes presentes no extrato do Hipericum perforatum que podem estar envolvidos e de que forma eles propiciam esse tipo de interação? INFOGRÁFICO Os flavonoides estão presentes em quase todas as plantas terrestres, garantindo-lhes a proteção da cor e dos raios ultravioleta. As plantas medicinais usadas em virtude das propriedades terapêuticas de seus flavonoides normalmente são disponibilizadas para uso oral ou tópico. Entretanto, após ingestão oral, como será que esses compostos conseguem ultrapassar a barreia hematencefálica e exercer ações centrais? Confira no Infográfico. CONTEÚDO DO LIVRO Você já deve ter ouvido relatos que envolvem o uso de plantas alucinógenas em rituais religiosos e indígenas, plantas que "davam superpoderes" aos que as manipulavam e conheciam seus efeitos. Embora não fossem usadas diretamente para fins terapêuticos, foram os relatos das suas ações que motivaram uma série de pesquisas na área farmacobotânica, cruciais para a elucidação de inúmeros metabólitos secundários com ação no sistema nervoso central. Hoje, dispõe-se de uma série de medicamentos de origem vegetal, cujos componentes têm comprovada ação sobre neurotransmissores excitatórios e inibitórios responsáveis por manter o ser humano em equilíbrio psíquico e físico. No capítulo Plantas que agem no sistema nervoso central, da obra Farmacognosia aplicada, você vai conhecer quais são essas plantas, quais são seus constituintes majoritários e de que forma estes agem no sistema nervoso central. Boa leitura. FARMACOGNOSIA APLICADA Letícia Hoerbe Andrighetti Plantas que agem no sistema nervoso central Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Explicar de que forma o sistema nervoso central pode ser estimulado pelo uso de plantas medicinais. � Identificar os mecanismos de interferência de plantas medicinais causadores de depressão no sistema nervoso central. � Associar a química de plantas medicinais ao estímulo e à depressão do sistema nervoso central. Introdução Ao longo da existência humana, as plantas medicinais foram muito usadas para alterar nossos sentidos. A área da etnobotânica é extremamente rica em relatos de povos ancestrais que usavam plantas para “despertar os deuses que habitavam dentro do corpo” e propiciar experiências senso- riais, manifestadas, principalmente, pela visão e audição. Hoje sabemos que essas experiências estão relacionadas à ação de diversos metabólitos secundários, sobretudo alcaloides, que exercem funções alucinógenas em nível de sistema nervoso central (SNC). Foi a partir da observação do uso empírico de plantas que “despertavam sentidos extracorpóreos”, estimulavam ou sedavam que a comunidade científica começou a estudar o potencial farmacológico de várias espécies vegetais, principalmente no tratamento de distúrbios relacionados à depressão e ao estímulo das funções do SNC. Doenças do SNC normalmente estão relacionadas a desequilíbrios na produção, disponibilização, metabolização e ligação de neurotransmis- sores a receptores pré e pós-sinápticos. Alterações em qualquer um ou em vários desses pontos normalmente levam a aumento ou diminuição significativos na concentração de neurotransmissores como serotonina, dopamina, norepinefrina e outros, acarretando estados patológicos de depressão e ansiedade, insônia e excitação observada em crises convul- sivas, por exemplo. Neste capítulo você vai estudar uma das ações mais fascinantes das plantas medicinais: como elas podem estimular e deprimir funções de um sistema tão protegido quanto o SNC; de que forma certas plantas conseguem agir como antidepressivos, ansiolíticos e estimulantes; quais são os compostos do seu metabolismo secundário normalmente envol- vidos nessas ações; e como interagem com moléculas do SNC a ponto de causar efeitos inibitórios e excitatórios centrais. 1 Estímulo e depressão do SNC O SNC consiste no encéfalo e na medula espinal. Sua principal função é integrar, processar e coordenar a chegada de estímulos sensitivos e a saída de estímulos motores, além de ser a sede de funções como inteligência, memó- ria, aprendizado e emoções. Os neurônios são as células responsáveis pelas diversas funções essenciais do SNC: síntese, armazenamento, liberação e metabolização dos neurotransmissores são realizadas nos neurônios. Entre os neurônios, no espaço que chamamos de fenda sináptica, esses neuro- transmissores exercem sua ação ao ligarem-se a receptores, gerando ações diversas (euforia, depressão, aprendizado, etc.) (MARTINI; TIMMONS; TALLITSCH, 2009). As ações excitatórias do SNC são aquelas que geram estímulo positivo dos nossos sentidos e ações. São as ações que nos mantêm acordados, alertas, que nos dão impulso à fuga diante do perigo, ou então que nos mantêm persistentes, otimistas e aptos a realizar atividades diárias mesmo vivenciando contratempos e tristezas. As ações inibitórias do SNC, por outro lado, são responsáveis por atenuar as ações excitatórias. Os principais neurotransmissores com ação excitatória são a dopamina, a serotonina, a norepinefrina e o glutamato; por outro lado, o aminoácido ácido gama-aminobutírico (GABA) é um dos prin- cipais neurotransmissores inibitórios (HILAL-DANDAN; BRUNTON, 2014). Quando há equilíbrio nas etapas de produção, liberação e metabolização desses neurotransmissores, e não há impedimentos na sua ligação a receptores específicos, temos o estado fisiológico normal, ou seja, saudável. Os estados excitação ou depressão (inibição) surgem diante do desequilíbrio em alguma(s) dessas etapas(s) e podem ser originados tanto por questões patológicas quando pelo uso de substâncias exógenas, incluindo diversos compostos de origem vegetal capazes de atuar em nível central. Plantas que agem no sistema nervoso central2 Plantas com ação excitatória Plantas com ação excitatória são todas aquelas capazes de aumentar os níveis de neurotransmissores excitatórios, diminuir os níveis de neurotransmissores ini- bitórios ou promover melhora da performancemental por outros mecanismos. Uma das plantas mais usadas desse grupo é o hipérico ou erva-de-são-joão (Hypericum perforatum L.). Essa planta vem sendo utilizada há mais de 2000 anos, em função das suas diversas propriedades medicinais, no tratamento de neuralgia, ansiedade, depressão e como “neurotônico” (BUTTERWECK, 2003). Vários estudos mostram que a ação antidepressiva do hipérico é superior à do placebo e se equivale a doses baixas de antidepressivos clássicos (tricí- clicos e inibidores seletivos da recaptação de serotonina). Contudo, os testes realizados até o momento normalmente envolveram pacientes com depressão leve a moderada (MISCHOULON; RAPAPORT, 2018; ZIRAK et al., 2019). No Brasil, há inúmeras preparações à base de hipérico, que variam em termos de quantidade de componente ativo presente. Os medicamentos fi- toterápicos registrados normalmente são disponíveis na forma de cápsulas contendo 100mg de extrato seco de Hypericum perforatum, padronizado em 0,3% de hipericinas totais expressos em hipericina (BRASIL, 2016). As cápsulas devem ser ingeridas com cerca de 200mL de água, geralmente quatro vezes ao dia (BRASIL, 2016). Conforme a concentração do extrato, as doses diárias variam de 300 a 1800mg. Entre os efeitos adversos (EA) mais comuns estão boca seca, tontura e constipação. Além disso, os pacientes devem ser orientados a se protegerem do sol devido ao risco de reações de fotossensibilidade (Michoulon, 2018). Profissionais da saúde e pacientes devem estar atentos à possibilidade de interações medicamentosas potencialmente sérias entre o hipérico e outros medicamentos. Outro exemplo é a guaraná (Paullinia cupana). Suas sementes são usadas na forma de pó ou como medicamento fitoterápico, apresentado na forma de cápsulas contendo 250mg de extrato padronizado em cafeína. A cafeína, uma metilxantina, é o principal metabólito secundário do guaraná, responsável por sua ação psicoestimulante, redutora da fadiga física e mental (BRASIL, 2014; BRASIL, 2016). 3Plantas que agem no sistema nervoso central Ginkgo biloba (Ginkgo biloba L.) e ginseng (Panax ginseng) também podem ser mencionadas aqui, dada sua capacidade de melhorar a perfor- mance física e mental dos usuários. Os mecanismos envolvidos nessa ação não são completamente elucidados. O ginkgo, por exemplo, é rico em ter- penos e flavonoides, que melhoram a circulação sanguínea cerebral e agem como estimulantes e neuroprotetores (PASSOS et al., 2009; BRASIL, 2016). O ginseng, por sua vez, age como adaptógeno, aumentando as defesas no organismo contra substâncias e fatores estressantes exógenos; paralelamente, é um estimulante físico e mental (WHO, 2010). Há também um grupo de plantas da família Solanaceae ricas em alcaloides tropânicos, responsáveis por ação intensa no SNC. A beladona (Atropa bella- donna), o meimendro (Hyoscyamus niger) e a mandrágora (Mandragora officinarum) estão entre as mais conhecidas desta família. Usadas desde a antiguidade em cultos religiosos e rituais de “feitiçaria”, elas constituem a famosa tríade de “plantas mágicas”. A maioria dos seus efeitos centrais se deve à inibição da acetilcolina (ação antimuscarínica). Quando usadas em dose elevada ou tóxica, promovem estimulação central caracterizada pelas alucinações e delírios em que o su- jeito percebe a realidade de forma diferente (ouve vozes de pessoas ausentes, enxerga animais e objetos inexistentes) e têm a sensação de “estar voando”. Depois dos efeitos estimulantes, passam a predominar os efeitos depressores, com sono profundo e amnésia. A escopolamina, a atropina e a hiosciamina são os alcaloides tropânicos presentes na beladona e responsáveis por esses efeitos centrais, além de vários outros em nível periférico (MARTINEZ; ALMEIDA; PINTO, 2009). No link a seguir você encontra um artigo no qual os autores fazem um interessante apanhado histórico do uso das plantas alucinógenas europeias e brasileiras, explicando de forma simples seus principais mecanismos de ação. https://qrgo.page.link/8hjR2 Plantas que agem no sistema nervoso central4 É muito importante observar que, atualmente, há vários medicamentos contendo alcaloides tropânicos e seus derivados, produzidos de forma sintética e usados para reduzir espasmos renais, brônquicos e do trato gastrintestinal e promover anestesia local (MARTINEZ; ALMEIDA; PINTO, 2009). Acompanhe na Quadro 1 as principais plantas com ação no SNC. Plantas Indicação terapêutica Registro Referência Erva-de-são- -joão, hipérico (Hypericum perforatum L.) Antidepressivo leve a moderado Fitoterápico de registro simplificado Butterweck (2003); Mischoulon e Rapaport (2018); Zirak et al. (2019); Brasil (2014); Brasil (2016) Guaraná (Paullinia cupana Kunth) Psicoestimulante Fitoterápico de registro simplificado Brasil (2014); Brasil (2016) Ginkgo biloba (Ginkgo biloba L.) Tratamento de vertigens e zumbidos; estimulante e neuroprotetor Fitoterápico Brasil (2014); Passos et al. (2009); Brasil (2016) Ginseng (Panax ginseng) Adaptógeno, estimulante físico e mental Raiz, decocção Brasil (2019); WHO (2010) Kava-kava (Piper methysticum G. Forst) Ansiolítico e hipnótico leve Fitoterápico de registro simplificado Brasil (2014) Valeriana (Valeriana officinalis L.) Sedativo moderado, hipnótico e ansiolítico leve Fitoterápico de registro simplificado Brasil (2014) Quadro 1. Principais plantas com ação no SNC (Continua) 5Plantas que agem no sistema nervoso central Plantas Indicação terapêutica Registro Referência Melissa, erva-cidreira (Melissa officinalis L.) Sedativo e hipnótico leve Produto tradicional fitoterápico de registro simplificado Brasil (2014); Brasil (2018); European Medicines Agency (2013) Maracujá (Passiflora incarnata L.) Sedativo e hipnótico leve Produto tradicional fitoterápico de registro simplificado Brasil (2016); Simões et al. (2017); Brasil (2014) Quadro 1. Principais plantas com ação no SNC (Continuação) 2 Plantas com ação inibitória Agora iremos tratar daquelas plantas muito usadas por nossas avós e mães para “acalmar e ajudar a pegar no sono”. Trata-se de plantas cujos constituintes têm ação inibitória sobre o SNC. Melissa ou erva-cidreira, maracujá, valeriana e kava-kava são algumas das plantas tradicionalmente usadas como ansiolíticos e hipnóticos leves. A melissa ou erva-cidreira (Melissa officinalis L.) é usada com base no uso tradicional (BRASIL, 2014) como auxiliar no tratamento de sinto- mas da ansiedade e insônia leves e como antiespasmódico (BRASIL, 2018). As folhas da planta são empregadas in natura ou secas, para obtenção de chás (decoctos), ou ainda podem ser processadas visando à obtenção de medicamento fitoterápico à base de extratos aquosos ou alcoólicos equivalentes a derivados hidroxicinâmicos expressos em ácido rosmarínico (EUROPEAN MEDICINES AGENCY, 2013; BRASIL, 2018). Estudos recentes também têm investigado seu potencial de uso em doenças como Alzheimer; especificamente no caso do Alzheimer, seu óleo essencial tem mostrado reduzir a agitação e agressividade observadas em certos estágios da doença (MAHBOUBI, 2019). Plantas que agem no sistema nervoso central6 À semelhança da melissa, o maracujá (Passiflora incarnata L.) alivia sintomas de ansiedade leve e insônia (EUROPEAN MEDICINES AGENCY, 2014; BRASIL, 2016; BRASIL, 2018; SIMÕES et al., 2017). Com base no uso tradicional (BRASIL, 2014; BRASIL, 2016; SIMÕES et al., 2017), as partes aéreas da Passiflora incarnata são utilizadas para obtenção de extratos secos, padronizados em flavonoides totais calculados como vitexina, disponíveis como comprimidos e solução. Por suas propriedades ansiolíticas e sedativas, recomenda-se cautela no uso em pessoas que precisam operar máquinas ou exercer atividades que demandam atenção. Não é recomendado o uso con- comitante com bebidas alcoólicas, anti-histamínicos e outros fármacos com ação sedativa (para evitarsonolência e letargia excessivas). O uso prolongado e em altas doses também não é indicado (BRASIL, 2018). A valeriana (Valeriana officinalis L.) tem propriedades sedativa e hipnótica moderadas, também sendo usada em distúrbios de ansiedade. Suas raízes são usadas como droga vegetal (raiz seca triturada) ou para a obtenção de extra- tos seco e hidroalcoólico, geralmente padronizados em ácidos valerênicos. A ação da valeriana está relacionada à presença dos ácidos valerênicos e de glutamina, que aumentam a disponibilidade de GABA (neurotransmissor com ações inibitórias) na fenda sináptica ao inibirem sua receptação neuronal. Normalmente, medicamentos fitoterápicos contendo valeriana são usados 1 a 3 vezes ao dia, por tempo não muito prolongado. Há vários medicamentos disponíveis no mercado que combinam a Valeriana officinalis a outras plan- tas (inclusive a Passiflora incarnata), visando a melhores efeitos sedativos (BRASIL, 2016; BRASIL, 2018). Nessa mesma linha de indicação está a kava-kava (Piper methysticum G. Forst), usada como droga vegetal, extratos equivalentes a 60–120mg de kavapironas ou extratos secos padronizados em um percentual predeterminado (30 a 70%) de kavapironas. 3 Papel dos metabólitos secundários no estímulo e depressão central Muitos dos aspectos já mencionados ao longo deste capítulo “fornecem pistas” sobre o papel dos metabólitos secundários em ações excitatórias e inibitórias do SNC. São metabólitos de diversas classes, que têm em comum a capacidade de atravessar a barreira hematoencefálica e exercer ações em nível central, embora, geralmente, também agem em nível periférico. 7Plantas que agem no sistema nervoso central O mecanismo pelo qual esses constituintes agem é bastante diverso. Como vimos, na maioria das preparações, eles estão presentes em extratos contendo vários outros componentes. Por essa razão, nem sempre é possível determinar qual metabólito é responsável por determinada ação. Veja, a seguir, a composição do medicamento fitoterápico Hipérico Herbarium®. As informações do fabricante do medicamento indicam que, em cada capsula há 100mg de extrato, dos quais 0,3mg são hipericinas totais quantificadas em termos de hipericina. No entanto, também há hiperforina, flavonoides (rutina, quercetina, isoquercitrina, lueolina, miricetina e canferol), biflavonas (amentoflavona), xantonas e óleos voláteis que, mesmo em quantidade menor, contribuem para os efeitos da planta. Ou seja, não se pode atribuir o mecanismo de ação do hipérico a um único metabólito, mesmo que ele seja usado como “marcador” para quantificar os extratos. Fonte: Adaptada de Hipérico herbarium (2019). Da mesma forma, nem sempre está claro o mecanismo pelo qual os extratos exercem ações excitatórias ou inibitórias. Continuemos com o exemplo do hipérico. Em uma ampla revisão, Zirak et al. (2019) comentam os resultados de vários estudos realizados na tentativa de elucidar o mecanismo pelo qual o extrato do Hypericum perforatum exerce várias ações centrais. Os autores ponderam que esses extratos provavelmente não exercem ação antidepressiva Plantas que agem no sistema nervoso central8 por inibirem a monoamina oxidase (MAO), mas seus constituintes inibem a receptação de serotonina, dopamina e norepinefrina para o neurônio pré- -sináptico. Com isso, aumentam a concentração desses neurotransmissores na fenda. Paralelamente, por mecanismos ainda não explicados, os constituintes do extrato parecem estimular receptores de serotonina. Vale lembrar que muitos dos antidepressivos sintéticos disponíveis do mercado hoje, como fluoxetina, por exemplo, agem dessa forma. Acompanhe na Figura 1 o potencial mecanismo de ação do Hypericum perforatum em distúrbios depressivos. Figura 1. Os metabólitos secundários presentes nos extratos de H. perforatum aumentam a concentração de neurotransmissores excitatórios na fenda sináptica e, aparentemente, estimulam receptores serotoninérgicos (pontos sinalizados com as setas verdes). Fonte: Adaptada de Zirak et al., (2019). Vesícula Terminação nervosa Elevação da Na+ intracelular Receptores 5-HT S Modulação dos receptores de serotinina Fenda sináptica Inibidores da receptação pré-sináptica Transportador envolvido com a recaptação MAO Neurotransmissor Membrana pré-sináptica Mitocôndria Monoaminas degradadas Inibidor da MAO Na+ Na + Na+ Na + Na+ Na+ Na+ Na+Na+ Na+ Na+ Na+ Membrana pós-sináptica 9Plantas que agem no sistema nervoso central O mecanismo de ação proposto para os constituintes presentes nas várias plantas abordadas ao longo deste capítulo pode ser conferido no Quadro 2. Plantas Substância(s) marcadora(s) Mecanismo de ação Referência Erva-de-são- joão, hipérico (Hypericum perforatum L.) Hipericinas totais expressas em hipericina Inibição da receptação de serotonina, dopamina, norepinefrina e GABA. Age em receptores serotoninérgicos por mecanismo não elucidado. Butterwick (2003); Mischoulon e Rapaport (2018); Zirak et al. (2019) Guaraná (Paullinia cupana Kunth) Metilxantinas expressas em cafeína As metilxantinas inibem a fosfodiesterase, mobilizam cálcio intracelular e bloqueiam receptores de adenosina A1 e A2a, induzindo ao acúmulo de AMP. Simões et al. (2017) Ginkgo biloba (Ginkgo biloba L.) Terpenolactonas — bilobalídeos Ginkgolídeo B e bilobalídeo estão envolvidos com a estimulação central e a redução do tempo de sono por mecanismos ainda não elucidados. Passos et al. (2009); Brasil (2016) Quadro 2. Mecanismos de ação propostos em plantas com ação no SNC (Continua) Plantas que agem no sistema nervoso central10 Plantas Substância(s) marcadora(s) Mecanismo de ação Referência Ginkgo biloba (Ginkgo biloba L.) Flavonoides — ginkgolídeos Ginkgolídeo B e bilobalídeo estão envolvidos com a estimulação central e a redução do tempo de sono por mecanismos ainda não elucidados. Passos et al. (2009); Brasil (2016) Ginseng (Panax ginseng) Saponinas triterpênicas — ginsenosídeos Inibição do glutamato mediada por receptores NMDA. Brasil (2019). WHO (2010). Passos et al. (2009) Kava-kava (Piper methysticum G. Forst) Kavalactonas Bloqueio da receptação de norepinefrina por três lactonas. Brasil (2016) Quadro 2. Mecanismos de ação propostos em plantas com ação no SNC (Continua) (Continuação) 11Plantas que agem no sistema nervoso central Plantas Substância(s) marcadora(s) Mecanismo de ação Referência Valeriana (Valeriana officinalis L.) Valepotriatos, expressos em ácido valerênico Inibição da enzima ácido γ-aminobutiríco transaminase, responsável pela inativação do GABA no SNC, e consequente aumento da atividade GABAérgica. Passos et al. (2009) Melissa, erva-cidreira (Melissa officinalis L.) Ácidos hidroxicinâmicos expressos em ácido rosmarínico Evidências sugerem que seus efeitos são mediados por ações no sistema GABAérgico. Appel (2011) Quadro 2. Mecanismos de ação propostos em plantas com ação no SNC (Continua) (Continuação) Plantas que agem no sistema nervoso central12 Fonte: Adaptado de PubChem (c2020). Plantas Substância(s) marcadora(s) Mecanismo de ação Referência Maracujá (Passiflora incarnata L.) Flavonoides: di-C- heterosídeos de flavonas, expressos em vitexina Inibição da receptação de GABAA e GABAB. Brasil (2016) Imagem: PubChem 9 GABA: ácido gama-aminobutírico; AMP: adenosina monofosfato; NMDA: n-metil d-aspartato; SNC: sistema nervoso central. Quadro 2. Mecanismos de ação propostos em plantas com ação no SNC (Continuação) Plantas com potencial terapêutico nos distúrbios do SNC vêm sendo, pro- gressivamente, investigadas. Um dos aspectos interessantes da maioria das plantas que estudamos ao longo deste capítulo é que todas têm uma série de constituintes (metabólitos secundários) que, juntos, são responsáveis pela ação farmacológica específica. Isso significa que não podemos afirmar qual é aprincipal classe envolvida com os efeitos centrais. Veja, por exemplo, o caso dos extratos de hipérico: neles estão presentes antraquinonas/naftodiantronas (como hipericina e pseudo-hipericina), deriva- dos floroglucinol (hiperforina), flavonoides (rutina, quercetina, entre outros), além de óleos voláteis, entre outros. Estima-se que cerca de 20% de todos os compostos presentes têm efeitos biológicos. Nesses extratos, a hipericina é considerada o composto responsável pelas atividades antidepressivas, embora não se possa desmerecer a atividade do seu derivado pseudo-hipericina, cuja concentração é duas a quatro vezes mais elevada do que a hipericina. Os flavo- noides representam 2 a 4% do extrato e também têm propriedades terapêuticas relatadas. Uma questão interessante (ALVES et al., 2014). 13Plantas que agem no sistema nervoso central Entre as plantas medicinais que exercem depressão do SNC, a situação é a mesma, ou seja, normalmente há um extrato rico em inúmeros componentes, entre os quais muitos têm ação. Nos extratos de Valeriana officinalis, por exemplo, há mais de 150 constituintes! Os sesquiterpenos de óleos voláteis representam cerca de 0,2 a 2,8% e incluem o ácido valerênico, principal composto envolvido na ativação de receptores GABAA. Por outro lado, aos iridoides monoterpênicos, como o valepotriato, atribui-se ações de supressão do ritmo de contração e de relaxamento muscular. Assim, embora sejam atribuídas as ações ansiolíticas da valeriana aos sesquiterpenos, acredita-se que é a ação sinérgica dos seus vários constituintes que produz as respostas clínicas de interesse (PATOČKA; JAKL, 2010). ALVES, A. C. S. et al. Aspectos botânicos, químicos, farmacológicos e terapêuticos do hypericum perforatum L. Rev. Bras. 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Physiol., v. 234, nº. 6, p. 1–13, jun. 2019. Leitura recomendada APPLE, K. et al. Modulation of the g-aminobutyric acid (GABA) system by passiflora incarnata L. phytotherapy research. Phytother Res., v. 25, nº. 6, p. 838–843, jun. 2011. 15Plantas que agem no sistema nervoso central Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Plantas que agem no sistema nervoso central16 DICA DO PROFESSOR As plantas medicinais podem ser aplicadas com ação central de forma mais ampla, abrangendo doenças como Alzheimer, Parkinson, estados convulsivos de difícil manejo e outras patologias e sintomas que vêm despertando progressivo interesse, dado o aumento de sua incidência. Nesta Dica do Professor, confira de que forma os metabólitos secundários presentes nessas plantas agem no controle de doenças neuropsiquiátricas. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! EXERCÍCIOS 1) Os constituintes químicos dessa planta são fitosteróis, heterosídeos cianogênicos, alcaloides indólicos, cumarinas e flavonoides como vitexina e apigenina. Seu uso é contraindicado a pacientes que já usam sedativos do sistema nervoso central. É correto afirmar que essa descrição se refere à seguinte planta medicinal: A) boldo (Peumus boldus). B) maracujá (Passiflora incarnata). C) kava-kava (Piper metisticum). D) valeriana (Valeriana oficinalis). E) gengibre (Zingiber officinale). 2) “A Atropa belladonna está presente em diversos medicamentos registrados como fitoterápicos de uso tradicional, dadas sua ação ansiolítica leve e sua propriedade de causar miose.” Sobre essa afirmação, pode-se dizer: A) Está correta, já que extratos de Atropa belladonna são registrados como fitoterápico de uso tradicional por causarem miose e sedação. B) Está correta, dada a elevada quantidade de flavonoides tropânicos que causam miose após instilação ocular. C) Está errada, porque aAtropa belladonna não exerce ações excitatórias, embora cause miose. D) Está errada, porque a Atropa belladonna não é um medicamento fitoterápico de uso tradicional indicado como ansiolítico leve e causador de miose. E) Está correta, porque o uso da Atropa belladonna é bem relatado na literatura para contração pupilar. 3) Ayahuasca é uma palavra de origem indígena (aya = pessoa morta, alma, espírito; waska = corda, cipó ou vinho) que é traduzida do quíchua como cipó dos mortos, corda dos espíritos ou vinho dos mortos. Essa bebida é utilizada por vários grupos indígenas da Amazônia Ocidental com o objetivo de “ser instrumento de reencontro com os antepassados”. Sobre essa bebida, é correto afirmar: A) Essa bebida é rica em saponinas sesquiterpênicas com ação alucinógena. B) Os efeitos atribuídos a essa bebida não têm ação com metabólitos secundários presentes nas plantas usadas para seu preparo. C) Seus efeitos estão relacionados à ação central dos alcaloides harmalina, harmina e tetraidorharmina. D) Seus efeitos alucinógenos devem-se à presença de mucilagens de ação central. E) A Ayahuasca é registrada como fitoterápico de ação tradicional, dados os inúmeros relatos de suas ações no sistema nervoso central. 4) Extratos de Hypericum perforatum são amplamente usados na terapia antidepressiva. Do ponto de vista fitoquímico, esta é uma das plantas mais investigadas com finalidade medicamentosa. Sobre o hipérico, é correto afirmar: A) É rico em ginkgoflavonoides e terpenolactonas. B) É rico em cumarinas, flavonoides e saponinas. C) Não pode ser usado por via oral, dados os seus efeitos irritantes sobre a mucosa gástrica. D) Uma de suas indicações é a prevenção dos sintomas de resfriados. E) Seus extratos padronizados contêm hiperforina e hipericina. 5) O uso desse fitoterápico é desaconselhado a pacientes com agitação, ansiedade, insônia e pressão alta e não deve ser associado a bebidas que contenham metilxantinas, para não potencializar seus efeitos. Sobre essa descrição, assinale a alternativa correta: A) Trata-se de um fitoterápico com ação depressora do sistema nervoso central. B) Trata-se da Passiflora incarnata, indicada para minimizar insônia e ansiedade. C) Com certeza é um fitoterápico que interage por mecanismos farmacocinéticos com substâncias contendo metilxantina. D) Trata-se da Valeriana officinalis, rica em valepotriatos. E) Trata-se da Paulinia cupana, rica em cafeína. NA PRÁTICA É muito comum, entre idosos, a prática da automedicação, visando a dormir melhor. As plantas medicinais e os fitoterápicos são os produtos mais usados por eles para essa finalidade. Um dos motivos para isso é o falso entendimento de que "o que é natural não faz mal". Neste Na Prática, veja o que aconteceu com uma idosa de mais de 80 anos ao adicionar um fitoterápico à sua rotina medicamentosa e entenda o risco de combinar vários medicamentos, plantas e outros produtos na tentativa de dormir mais e melhor. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! SAIBA MAIS Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Memento fitoterápico Confira, neste documento da Farmacopeia Brasileira, várias monografias sobre plantas com ação no sistema nervoso central. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Avaliação do perfil de produção de fitoterápicos para o tratamento de ansiedade e depressão pelas indústrias farmacêuticas Neste artigo, você encontrará dados que indicam como é a situação da produção de fitoterápicos para ansiedade e depressão atualmente. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Relação Nacional de Plantas Medicinais de Interesse ao Sistema Único de Saúde (Renisus) Neste site, você pode conferir de que forma as plantas medicinais vêm sendo gradualmente inseridas no Sistema Único de Saúde. Muitas plantas com ação central já vêm sendo incorporadas a serviços do SUS em vários municípios brasileiros. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
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