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2 Le Monde Diplomatique Brasil OUTUBRO 2021 A FRANÇA SE REBAIXA O império não se desarma POR SERGE HALIMI* O s Estados Unidos jamais perma- necem humildes por muito tem- po. Um mês depois de sua derro- ta afegã, a ordem imperial foi restabelecida. Prova-o a afronta que Washington acaba de infligir a Paris. Um mês? Nem isso. Mal os talibãs acabavam de se apossar do aeroporto de Cabul, os neoconservadores se esguei- ravam de novo para fora de seus covis. O Ocidente tinha “perdido o Afeganis- tão”? Seria preciso então reafirmar sua presença em todos os outros lugares pa- ra deixar claro a seus rivais estratégicos, China e Rússia em particular, que ele não recuaria diante do próximo comba- te. “A guerra não acabou”, resumiu o se- nador Mitt Romney, ex-candidato repu- blicano à presidência. “Estamos mais em perigo que antes. E teremos de in- vestir mais para garantir nossa segu- rança.”1 Após disseminarem o caos no Oriente Médio, os Estados Unidos agora voltam os olhos para o Pacífico e mobi- lizam sua Marinha contra a China. Um casinho de nada, sem dúvida... Esse é, ao que tudo indica, o motivo principal da crise diplomática atual en- tre a França e os Estados Unidos, e não a cólera de Paris por ter sido despojada de um lucrativo contrato de armamen- to naval. Trata-se, com efeito, de saber como a Europa deve reagir à aliança militar antichinesa que Washington acaba de anunciar com o Reino Unido e a Austrália. Porque, quanto ao resto – a humilhação pública espetacular, a des- lealdade dos “aliados”, a falta de con- senso em torno de uma decisão geopo- lítica de grande importância –, o Eliseu se acostumou às afrontas norte-ameri- canas nos últimos quinze anos, quer se trate da espionagem de presidentes da República revelada pelo WikiLeaks, do desmembramento da Alstom pela Ge- neral Electric (graças a embustes judi- ciários que beiram o banditismo) ou das multas faraônicas extorquidas de empresas e bancos franceses que não haviam aplicado sanções, contrárias ao direito internacional, decretadas pelos Estados Unidos contra Cuba ou o Irã.2 Para responder ao insulto de aus- tralianos e norte-americanos de outra forma que não a chamada inócua dos embaixadores sediados em Camberra e Washington, Emmanuel Macron faria bem em conceder imediatamente asilo político a Julian Assange e Edward Sno- wden, que lançaram luz sobre os sub- terrâneos do império. O mundo inteiro notaria esse golpe estrondoso. Enquanto seus presidentes tagare- lam, a França se rebaixa. Voltou ao co- mando integrado de uma Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) dirigida por Washington; renuncia ca- da vez mais à sua soberania diplomáti- ca, submetendo-se a uma União Euro- peia povoada de vassalos dos Estados Unidos; mantém contra a Rússia uma série de sanções que proíbem todo en- tendimento “do Atlântico aos Urais”, única perspectiva suscetível de arran- car o Velho Continente das garras nor- te-americanas ou chinesas. Para não definhar na insignificância, a França deve urgentemente deixar claro a Washington, mas também a Pequim, Moscou, Tóquio, Hanói, Seul, Nova Dé- li e Jacarta que ela não aceitará jamais a guerra do Pacífico que os Estados Uni- dos estão preparando.3 *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1 CNN, 29 ago. 2021. 2 Ver Jean-Michel Quatrepoint, “Au nom de la loi... américaine” [Em nome da lei... norte-a- mericana], Le Monde Diplomatique, jan. 2017. 3 Ver Martine Bulard, “L’Alliance atlantique bat la campagne en Asie” [A aliança atlântica em campanha na Ásia], Le Monde Diplomatique, jun. 2021. © C es ar H ab er t P ac io rn ik 3OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil EDITORIAL O Brasil autoritário POR SILVIO CACCIA BAVA M ergulhado em um pesadelo em plena pandemia, o Brasil vive, desde o golpe que depôs a presidenta eleita, Dilma Rousseff, em 2016, o fim de seu mais re- cente período democrático. A coalizão dos governantes, tendo à frente o presidente Jair Bolsonaro, ataca o Parlamento, o Judiciário, e assim vai alimentando sua base radicalizada, im- pondo a pauta nacional, num processo contínuo de destruição e aparelhamen- to das instituições do Estado brasileiro. A perspectiva de continuidade do Partido dos Trabalhadores no governo, depois de eleito por quatro mandatos consecutivos para a Presidência da Re- pública, fez que as elites econômicas rasgassem a Constituição de 1988 e adotassem a via do golpe parlamentar, com o apoio do Tio Sam. “As políticas sociais não cabem no Orçamento da União”, declaravam parlamentares gol- pistas, secundando seu mentor intelec- tual, o ex-ministro da Economia do tempo da ditadura, Delfim Netto.1 As intenções de golpe já estavam presentes desde o início do segundo mandato do presidente Lula. Podemos observar isso nas palavras do então se- nador Jorge Bornhausen, presidente do PFL, partido de direita. Já em 2006 ele declarava: “Vamos acabar com essa ra- ça. Vamos nos livrar dessa raça por, pe- lo menos, 30 anos”.2 Essas intenções se materializaram em 2016, com o respal- do das elites econômicas e por meio de uma aliança entre partidos conserva- dores, militares e igrejas evangélicas neopentecostais. Os principais jornais e canais de TV, controlados por cinco das famílias mais ricas do Brasil, foram preparando as condições para o golpe, que, hoje sabemos, contou com a parti- cipação ativa da NSA, a agência de inte- ligência norte-americana, inspiradora da Operação Lava Jato, uma iniciativa jurídica que se apresentou como uma operação contra a corrupção, estigma- tizou o Partido dos Trabalhadores e prendeu arbitrariamente, antes das eleições, o candidato que provavel- mente iria se reeleger, Lula. As mudanças vão além das mani- festações fascistas do grupo no poder. Elas operam uma profunda mudança neoliberal no padrão de acumulação – reforma trabalhista, reforma da Previ- dência, privatizações, concessões –, processo de destituição de direitos que já se mostra eficaz para as grandes em- presas, que apresentam hoje balanços robustos e um importante aumento da lucratividade. Os resultados do segundo trimestre de 2021 apontam que o lucro de dez em- presas entre as maiores da Bolsa brasi- leira dobrou em relação ao primeiro tri- mestre de 2021, passando de R$ 52 bilhões para R$ 110 bilhões. Em relação ao mesmo período de 2020, os ganhos se multiplicaram por dez.3 Entre elas estão Petrobras, Vale, Banco Itaú, Ban- co Bradesco, Ambev e Usiminas. A destruição criativa,4 eufemismo tomado da teoria de Schumpeter para promover a destruição do Estado e sua capacidade de regulação, associada ao intenso processo de fusões e incorpo- rações tornam os grandes grupos eco- nômicos ainda mais poderosos e pro- movem uma ainda maior concentração de riquezas e o aprofundamento da desigualdade, maior chaga da socie- dade brasileira. Paulo Guedes, minis- tro da Economia, declara: “Vamos pri- vatizar tudo”.5 As imensas reservas de petróleo do pré-sal foram as primeiras a parar na mão das grandes petroleiras internacionais, especialmente norte-a- mericanas. Ele também propõe o corte nos gastos sociais e, assim, vocaliza a voracidade das classes dominantes, contando com o apoio das principais associações empresariais. Logo após o golpe de Estado parla- mentar, o novo presidente, Michel Te- mer, encaminhou ao Congresso Nacio- nal a Emenda Constitucional n.95, aprovada em dezembro de 2016, que congelou os gastos sociais por vinte anos, os quais só poderão ser corrigi- dos pela inflação do ano anterior. Co- nhecida como “PEC da Morte”, ela vai retirar, ao longo dos anos, recursos substanciais das políticas sociais, es- pecialmente da saúde e da educação. A “Ponte para o futuro”, documento estratégico apresentado em 2015 pelo PMDB e implementado desde o come- ço do governo de Michel Temer, que su- cedeu ao governo de Dilma Rousseff, é seguido fielmente até hoje e se apresen- ta como o mapa da mina.6 Entende-se dessa formapor que o grande capital, especialmente o setor financeiro e do agronegócio, mantinha-se, até há pou- co, alinhado e dando suporte ao gover- no Bolsonaro. Inspiradas no passado colonial es- cravocrata, no patrimonialismo, no ra- cismo, no autoritarismo, na xenofobia, no fundamentalismo religioso e numa moral extremamente conservadora, por falta de outro candidato com pos- sibilidades de disputar com Lula as eleições de 2018, as classes dominan- tes se viram constrangidas a apoiar um capitão do Exército que se tornara político depois de afastado da corpo- ração por acusações de conspiração e terrorismo. Esse capitão, um parla- mentar sem expressão, eleito sete ve- zes deputado federal por sua base em meio aos policiais e militares, defensor dos interesses corporativos da tropa, depois que a Justiça impediu Lula de disputar as eleições e o prendeu, tor- nou-se presidente da República com 57,7 milhões de votos. Uma declaração recente do coronel do Exército Marcelo Pimentel, crítico de Bolsonaro, abre outra vertente de análise. Ele aponta a existência do que chama de Partido Militar, isto é, “um grupo coeso, hierarquizado, disciplina- do, com algumas características autori- tárias e claras pretensões de poder polí- tico, dirigido por um núcleo de generais formados nos anos 1970 na Academia Militar das Agulhas Negras, que inte- graram ou integram o Alto Comando do Exército. Em sua dinâmica, eles têm ideário e fundamentação similar a um partido político formal. Seus dirigentes e o capitão sempre foram colegas e ami- gos próximos, desde 1973”.7 Sua análise aponta que a candidatura de Bolsonaro teria sido uma criação desse grupo. Se existe ou não o assim denomina- do Partido Militar ainda é uma questão controversa, mas o crescente protago- nismo militar não deixa margem a dú- vidas. E eles parecem não querer voltar aos quartéis e abrir mão de seus postos no governo. © C la ud iu s 4 Le Monde Diplomatique Brasil OUTUBRO 2021 Na campanha eleitoral de 2018, as denúncias de manipulação da opinião pública por parte de Bolsonaro e seus apoiadores, pela via das fake news dis- seminadas nas redes sociais, têm farta comprovação. Um dos principais as- sessores da campanha eleitoral de Bol- sonaro foi Steve Bannon, o especialista em fake news e segmentação do público eleitor, o mesmo que ajudou a eleger Trump. O Tribunal Superior Eleitoral abriu um inquérito sobre essas denún- cias e já teria todos os elementos para a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.8 O relatório foi encaminhado ao Supre- mo Tribunal Federal e dirigido a Ale- xandre de Moraes, o ministro encarre- gado do inquérito das fake news. Tanto a campanha eleitoral quanto o governo Bolsonaro dispõem de uma poderosa estrutura de comunicação que atua nas redes sociais. Seu núcleo de criação é o assim chamado “gabine- te do ódio”, uma central de produção de fake news hoje instalada no Palácio do Planalto, sede do governo, que con- ta com uma pequena equipe liderada pelo filho Carlos. Aí se cria o mundo fantasioso das mentiras e da radicali- zação. A disseminação das fake news fica a cargo de cerca de 100 hubs, e é por aí que a máquina bolsonarista alimen- ta suas bases. Pelo uso dessa máquina de comuni- cação de fake news são destruídas repu- tações de opositores e veiculadas falsas informações que alimentam a base ra- dicalizada do bolsonarismo, estimada por pesquisas em cerca de 12% da po- pulação brasileira, e seus apoiadores menos fiéis, em 15%.9 Por exemplo, o presidente, mesmo depois de o Congresso rejeitar a adoção do voto impresso, continua defenden- do essa tese alegando a possibilidade de fraude com o uso das urnas eletrôni- cas – uma cópia do comportamento de Trump, o que já lhe custou outra quei- xa-crime encaminhada pelo TSE ao STF. Em sua atuação nas redes sociais em defesa do voto impresso, uma pes- quisa pôde identificar que 65% dos hubs eram compostos por influencia- dores digitais (pagos com dinheiro pú- blico); 20% eram parlamentares e mili- tantes membros dos partidos de extrema direita; 5% eram pessoas apoiadoras, além de serem usados mui- tos milhares de robôs.10 Vale esclarecer que o Brasil é considerado um dos paí- ses mais avançados no uso das urnas eletrônicas, e desde 1996, data de sua implantação, nunca houve nenhuma denúncia a respeito de sua utilização. O processo de cassação da chapa eleitoral do presidente eleito pelo uso das fake news ou os mais de 130 pedidos de impeachment que se acumulam na mesa da presidência da Câmara dos Deputados só não prosperam porque bolsonaristas em postos-chave, como a Procuradoria-Geral da República e a presidência da Câmara dos Deputados, obstruem essa iniciativa. A pandemia foi o ponto de inflexão da conjuntura que faz que Bolsonaro e seus três filhos parlamentares estejam perdendo prestígio e sejam acusados de principais responsáveis pelos mais de 595 mil mortos por Covid-19 no Brasil. A recusa por Bolsonaro de comprar as va- cinas disponibilizadas pela Pfizer e pe- lo Butantan matou 90.000 pessoas, se- gundo estudos de epidemiologistas.11 O fim do auxílio emergencial de R$ 600 (cinco parcelas) e de R$ 300 (quatro parcelas) para mais de 67,9 milhões de brasileiros (um terço da população), durante os primeiros nove meses da pandemia, também contribuiu para essa inflexão. Lembrando que foi o Congresso que elevou para esses valo- res o auxílio emergencial, proposto em R$ 200 por Bolsonaro e Guedes. A insatisfação dos brasileiros com o governo cresce à medida que uma Co- missão Parlamentar de Inquérito do Senado, controlada pela oposição, vai demonstrando a negligência delibera- da, proposital, do governo federal no trato com a pandemia e a corrupção ge- neralizada dos ocupantes do governo, o que envolve tanto a família do presi- dente, ele incluído, como os cerca de 6 mil militares aposentados e da ativa que ocupam postos-chave no governo. Os ocupantes do governo não têm nenhuma preocupação com o país e com a população e exercem a economia da pilhagem, o que ocorre nos ministé- rios, na facilitação da grilagem de ter- ras, na mineração clandestina, no con- trabando de madeiras nobres, nos incêndios na Amazônia e no Pantanal, no desmatamento para a ampliação do agronegócio, na venda do patrimônio público, entre outras frentes. A devastação ambiental, principal- mente na Amazônia e no Pantanal, áreas de expansão ilegal do agronegó- cio, é sem precedentes e tem sensibili- zado o mundo inteiro. Suas consequên- cias serão sentidas agora e pelas futuras gerações, tornando as crises hídricas (que já vivemos agora), os apagões de energia, as secas e os eventos climáti- cos extremos fenômenos recorrentes. Os militares que estão em postos de decisão nos ministérios, autarquias e empresas públicas recebem, além de seus soldos, salários e benefícios pela posição que ocupam, os quais chegam, no caso da presidência da Petrobras, a uma remuneração mensal de R$ 260 mil.12 Esses números contrastam com a pobreza da maioria, já que mais da metade dos brasileiros não ganha R$ 800 mensais. À medida que cai seu prestígio e sua reeleição fica ameaçada, Bolsonaro busca reforçar seus laços com as bases que o elegeram. Coopta, por meio de emendas parlamentares (que garan- tem recursos para aplicação em obras públicas em seus redutos eleitorais), deputados e senadores do chamado Centrão, conjunto de partidos fisiológi- cos que apoiam sempre quem lhes ofe- recer maiores benefícios, o que assegu- ra ao presidente uma base parlamentar suficiente para bloquear pedidos de impeachment. Nomeia ministros e preenche uma vaga no Supremo Tribu- nal Federal com evangélicos neopente- costais, além de favorecer essas igrejas tanto com benefícios fiscais quanto com repasse de recursos para progra- mas sociais. Por fim, amplia enorme- mente a presença de militares aposen- tados e da ativa em seu governo e lhes oferece cargos de importância. Por outro lado, a precarizaçãodas po- líticas sociais, o desemprego e a fome co- bram respostas do governo, que ignora as necessidades da grande maioria. Mais de 125 milhões de brasileiros (58%) vivem hoje em algum grau de insegurança ali- mentar e 20 milhões passam fome.13 A erosão das bases de apoio de Bolsonaro junto aos evangélicos neopentecostais se dá em razão da necropolítica no trato da pandemia. Deixam de apoiá-lo os mais pobres, que pararam de receber o auxílio emergencial. Setores militares que se opõem ao envolvimento do Exército no governo também se desgarraram do apoio ao presidente. E setores das classes médias que o apoiaram na luta contra a corrupção ficam estarrecidos com o grau de corrupção em seu governo, envolven- do-o diretamente, o que a CPI da Co- vid-19 desvenda. O estreitamento de sua base faz o ca- pitão radicalizar seu discurso. Setores importantes do Judiciário e do Parla- mento vão se bandeando para a oposi- ção ao verificarem que a nau do governo está fazendo água e passam a defender o Estado democrático de direito. A ameaça de golpe, diuturnamente enunciada, e a forma criminosa e negli- gente no trato da pandemia levam o grande capital a também dizer um bas- ta, ensaiando retirar seu apoio, por en- quanto ainda retórica. Na área econô- mica, a compreensão de que a instabilidade política não é boa para os negócios, que ele se tornou um pato manco e que terminaram as possibili- dades de reformas vai restringindo o apoio dos empresários. A um ano das eleições presiden- ciais, a sociedade brasileira está dividi- da. Estima-se que o núcleo duro de sustentação de Bolsonaro, a extrema direita, seja algo como 12% do eleitora- do; mais 15% são simpatizantes. Os se- tores progressistas e de defesa do Esta- do democrático são por volta de 30% do eleitorado. E cerca de 40% são passi- veis de se alinhar de um lado ou de ou- tro, a depender das circunstâncias e dos candidatos. Neste momento, Lula, candidato novamente às eleições de 2022, tem 40% da preferência eleitoral, e Bolsonaro, 24%.14 A elite brasileira mais esclarecida começa a considerar que não há plano B na polarização entre Bolsonaro e Lu- la, não há espaço para que se tente criar uma terceira via com Bolsonaro na disputa. Uns acreditam que Lula hoje é a melhor solução para pacificar o país, desde que ele aceite governar sem tentar recuperar os direitos se- questrados pelo golpe. Outros acham que, se Bolsonaro for afastado, há es- paço para uma candidatura de direita disputar com Lula, mas não têm can- didato ainda. Se as acusações e os processos que se acumulam contra ele e seus filhos prosperarem, o que sobra para Bolso- naro é tentar o golpe, criando uma si- tuação de convulsão social e decretan- do o estado de sítio para controlar a situação. Para isso, ele conta com o apoio maciço das forças policiais, de setores das Forças Armadas e das milí- cias (grupos armados compostos por militares e policiais aposentados e da ativa que impõem o controle de um ter- ritório e cobram da população e dos ne- gócios por sua segurança), todos gru- pos fortemente armados. A denúncia reiterada de que as ur- nas eletrônicas permitem a fraude é preparatória para contestar o resultado das eleições, caso ele perca. Sua estra- tégia apostava na melhoria da econo- mia e do emprego, o que não vai ocor- rer, e num “pacote de bondades”, como mais um auxílio emergencial para me- lhorar a posição do presidente entre os mais pobres, que, pelas limitações le- gais do teto dos gastos sociais impostas pelo Congresso golpista, não terá nem o valor nem o sucesso do auxílio emer- gencial precedente. A campanha eleitoral já começou, mas a avaliação dos dados atuais de- monstra que o presidente não tem chances nas urnas. O cerco se fecha. As acusações de corrupção que envolvem o clã Bolsonaro, especialmente seus fi- lhos Carlos e Flávio, estão colocando o presidente em pânico. Eles podem ser presos, e aí ele radicaliza. Toda a máquina de propaganda montada pelo governo convocou civis, militares e a Polícia Militar (o que cons- titucionalmente é proibido) para os atos públicos do Dia da Independência, o 7 de Setembro. O monitoramento das redes sociais identificou o uso de mais de 2.600 robôs atuando na convocação, representando 23% dos conteúdos ana- lisados do período no Twitter.15 Na busca de uma demonstração de força, Bolsonaro propôs uma megamo- bilização nessa data, tendo como pauta ataques ao Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Con- gresso, assim como a defesa do voto impresso, mesmo depois de o Congres- so ter rejeitado essa proposta, e da li- berdade de uso das redes sociais para veicular fake news. 5OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil O 7 de Setembro transcorreu com significativas mobilizações sociais bol- sonaristas nas principais capitais do país, especialmente em São Paulo, onde as igrejas neopentecostais mobi- lizaram suas bases para o evento. As mobilizações foram importantes e de- monstraram a força do bolsonarismo, mas pacíficas, sem incidentes graves. Para isso houve o empenho e o controle efetivo dos governadores sobre suas polícias militares. Revigorado pelas manifestações, ele radicalizou mais. Diante da multi- dão que o apoiava no ato em São Paulo, ele quebrou seu comedimento expres- so em Brasília horas antes e declarou que não obedecerá ao Supremo Tribu- nal Federal, chamando de canalhas al- guns de seus ministros, e que só sairá morto da Presidência. Na avaliação de analistas da con- juntura, o golpe está em curso. Não se trata de colocar os tanques na rua, até porque Bolsonaro não os tem, mas de um processo contínuo de aparelha- mento e implosão das instituições do Estado e enfrentamento dos outros po- deres da República. As resistências são débeis. O presi- dente do Supremo tem uma fala fraca e genérica em defesa das instituições de- mocráticas. O presidente do Senado 6 Disponível em: www.fundacaoulysses.org.br/ wp-content/uploads/2016/11/UMA-PONTE- -PARA-O-FUTURO.pdf. 7 Disponível em: www.cartacapital.com.br/poli- tica/o-brasil-e-refem-do-partido-militar-diz- -coronel-reformado. 8 Por unanimidade, o plenário do Tribunal Su- perior Eleitoral também aprovou o encami- nhamento ao Supremo Tribunal Federal de notícia-crime contra o presidente Jair Bolso- naro, para apurar possível conduta criminosa relacionada aos fatos apurados no Inquérito n. 4.781, conhecido como “Inquérito das Fake News”. Disponível em: www.correio- b ra z i l i ense .com.b r /po l i t i ca / 2021/ 08 / 4941363-tse-aprova-envio-de-noticia-crime- -contra-bolsonaro-ao-stf-por-ataques-as- -eleicoes.html. 9 Silvio Caccia Bava, “A direita tem história”, Le Monde Diplomatique Brasil, ago. 2021. 10 MAP – Agência de análise de dados da mídia. Resultado analisando a polêmica do voto im- presso. Citado por: “Renda e saúde: a ‘vida real’ nas redes sociais”, O Estado de S. Paulo, 25 jul. 2021. 11 Celso Rocha Barros, “A CPI provou tudo”, Fo- lha de S.Paulo, 27 set. 2021. 12 “Militares que comandam estatais acumulam até R$ 260 mil em salários”, Folha de S.Paulo, 5 set. 2021. 13 “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, coordenada pelo Grupo de Pesquisa Ali- mento para Justiça da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e com a Universidade de Brasília (UnB). 14 Disponível em: www.gazetadopovo.com.br/ republica/pesquisa-eleitoral-mostra-lula-na- -frente-de-bolsonaro-agosto-2021/. 15 Projeto Pegabot, do Instituto de Tecnologia Social do Rio de Janeiro. Folha de S.Paulo, 7 set. 2021. suspendeu por dois dias as sessões – al- guns avaliam que é para não dar palan- que para a oposição. O presidente da Câmara dos Deputados avalia que tudo está normal, que as polêmicas fazem parte da democracia. As Forças Arma- das não abrem a boca. No dia seguinte, 8 de setembro, bol- sonaristas tentaram invadiro Ministério da Saúde e o Supremo Tribunal Federal, no que foram contidos. Caminhoneiros bloquearam estradas em dezesseis esta- dos, exigindo o impeachment dos mem- bros do STF. Talvez o prelúdio da ação das milícias bolsonaristas na sociedade, um ensaio de golpe. Pressionado pelos outros poderes e pela possibilidade de perder sua base no Congresso, Bolsona- ro pediu a desmobilização dos cami- nhoneiros, o que lhe custou a denomina- ção de “frouxo” de parte de sua base radicalizada. Se é possível imaginar que haja uma estratégia golpista, ela conta com o apoio internacional da ultradireita. O STF, no dia 8, mandou a Polícia Federal reter no aeroporto internacional de Brasília e tomar depoimento de Jason Miller, ex-assessor de Trump e de Steve Bannon, que se retirava do país em um jatinho privado e é acusado de finan- ciar e orientar a convocação das mobi- lizações bolsonaristas. 1 Rodolfo Borges, “Os direitos do brasileiro deixaram de caber no orçamento do Gover- no”, El País, 19 out. 2015. Disponível em: ht- tps://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/24/ politica/1443113983_470233.html. O ex- -ministro Delfim Netto lembra que “não há nada na Constituição que impeça a constru- ção da ‘sociedade civilizada’ que ela projeta. Bastaria às autoridades eleitas desde 1990 adequá-la aos limites que se impuseram ao longo do tempo – da forma como está, a Car- ta Magna exige um crescimento médio do país de 4% ao ano para funcionar (o que só ocorreu, durante a democracia inaugurada em 1985, no Governo Lula [...])”. 2 O senador Jorge Bornhausen, banqueiro, pre- sidente nacional do PFL, revelou o esquema: “Estou encantado com a crise política. Ela vai livrar a gente desta raça por pelo menos 30 anos”. Disponível em: https://smabc.org.br/ acabar-com-essa-raca. 3 “Dez das maiores empresas da Bolsa veem lucro dobrar no 2º trimestre”. Disponível em: www.infomoney.com.br/mercados/dez-das- -maiores-empresas-da-bolsa-veem-lucro-do- brar-no-2o-trimestre/. 4 Alexa Salomão, “A máquina de crescimento quebrou” – Entrevista de Armínio Fraga, ex- presidente do Banco Central para o Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças (Iepe/CdG), 2021.Disponível em: https://iepecdg.com.br/artigos/a-maquina -de-crescimento-quebrou/. 5 O ministro da Economia, Paulo Guedes, deta- lhou em entrevista ao jornal Valor Econômico seus planos para acelerar a privatização de todas as empresas estatais brasileiras. Como o tempo gasto, em média, para preparar a ven- da de uma estatal é de um ano e meio, Gue- des pretende fazer o processo em blocos, em vez de tratar individualmente de cada caso. Disponível em: https://congressoemfoco.uol. com.br/economia/guedes-propoe-privatizar- -tudo-e-desvincular-todas-as-despesas/. • Aprenda com professores especialistas • Aulas on-line e ao vivo pela plataforma Zoom + Plataformas on-line para imersão no idioma https://www.cartacapital.com.br/politica/o-brasil-e-refem-do-partido-militar-diz-coronel-reformado https://www.cartacapital.com.br/politica/o-brasil-e-refem-do-partido-militar-diz-coronel-reformado https://www.cartacapital.com.br/politica/o-brasil-e-refem-do-partido-militar-diz-coronel-reformado https://smabc.org.br/acabar-com-essa-raca https://smabc.org.br/acabar-com-essa-raca 6 Le Monde Diplomatique Brasil OUTUBRO 2021 Baixa percepção da população sobre a comunicação como direito é consequência da concentração. A conformação de mercado trouxe consigo o distanciamento do caráter público e educativo da radiodifusão e se reflete na agenda de regulação dos meios de comunicação, em que os próprios meios disseminam a narrativa de censura para distorcer o debate POR ANA CAROLINA WESTRUP, IRAILDON MOTA E MABEL DIAS* CAPA Q uando falamos sobre o exercício do direito humano à comunica- ção nos deparamos com um dos indicadores mais importantes para medir o grau de pluralidade de vo- zes presentes nos meios de comunica- ção: a concentração midiática. Reco- nhecer a comunicação como um direito humano passa, em muitos aspectos, por enxergar de forma crítica a concen- tração dos fluxos de comunicação e seus impactos para a cidadania, em consonância com o grau de midiatiza- ção da sociedade. No Brasil, a discus- são sobre a concentração midiática e a ausência da efetivação do direito hu- mano à comunicação como a condição de cidadania tem contornos históricos pelo modo como nosso sistema de mí- dia foi desenvolvido e ganha novos de- safios com a disseminação da internet e do modelo de plataformas digitais. O sistema de radiodifusão no Bra- sil foi configurado dando privilégio à iniciativa privada. Além disso, o país observa fenômenos como os “coronéis da mídia” e a expansão da evangeliza- ção eletrônica, em um cenário em que a comunicação pública sofre desmon- tes e ataques. Da mesma forma, a con- centração dos fluxos de informação graças à ascensão dos monopólios di- gitais na internet intervém diretamen- te em direitos digitais fundamentais, como a privacidade e a liberdade de expressão. PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO: PRIVILÉGIO DA INICIATIVA PRIVADA O início da expansão do rádio, na déca- da de 1930, se deu sob marcos regulató- rios em que o Estado brasileiro conce- deu à iniciativa privada o privilégio na prestação desse serviço público, com base no modelo que o professor Othon Jambeiro, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), classificou como trus- teeship model. Assim nasceu o primeiro conglomerado de comunicação no Bra- sil: Emissoras e Diários Associados. Criado pelo jornalista e empresário As- sis Chateaubriand, o grupo chegou a possuir 36 emissoras de rádio, 18 de TV, 34 jornais diários e várias revistas. Em razão da pressão de empresários do setor de comunicações no Brasil, em 1962 João Goulart sancionou o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), como espelho dos interesses comerciais da Associação Brasileira de Radiodifu- sores (Abert), criada exatamente nesse período. Em 1965, as empresas Globo, que já eram donas do jornal O Globo, da Rio Gráfica Editora e da Rádio O Globo, investiram na criação da TV Globo gra- ças ao polêmico acordo que garantiu fluxo de capital do grupo internacional Time Life, o que contrariava a legisla- ção brasileira, que proibia capital es- trangeiro em empresas nacionais. A ex- pansão do Grupo Globo se deu de forma exponencial nos anos seguintes, adqui- rindo uma liderança de mercado peran- te a audiência em praticamente todos os seus produtos e serviços. A Constituição Federal de 1988 in- seriu alguns princípios para conter a concentração, como a proibição de mo- nopólios e oligopólios; no entanto, o ar- tigo 220 nunca foi devidamente regula- mentado. Como resultado, temos hoje no Brasil um dos cenários de maior concentração no mundo, com apenas cinco grupos de comunicação detendo a propriedade de 26 dos 50 veículos de maior audiência no Brasil, como mos- trou o Monitoramento da Propriedade da Mídia, muitos deles tendo também interesses econômicos que significam riscos à independência da mídia. CORONÉIS DA MÍDIA E A EXPANSÃO DA MÍDIA RELIGIOSA Aliado ao modelo de expansão do setor de radiodifusão comercial, o caso brasi- leiro ainda tem a especificidade de um número significativo de grupos políticos detentores de concessões públicas de ra- diodifusão. Uma publicação do Intervo- zes de 2007, “Concessões de rádio e TV: onde a democracia ainda não chegou”, mostra como o processo de abertura fa- voreceu os políticos donos de mídia. O início se deu no governo do gene- ral João Batista de Figueiredo, por meio de um processo de barganha política em que a principal moeda de troca fo- ram as concessões e outorgas de rádio e TV. Em 1983 foram outorgadas oitenta concessões públicas, e, nos últimos dois meses do governo Figueiredo, pratica- mente às vésperas da convocação da As- sembleia Constituinte, foram autoriza- das 91 concessões, a grande maioria relacionada a setores conservadores. Essa práticateve continuidade no governo de José Sarney. O presidente e seu ministro das Comunicações, Antô- nio Carlos Magalhães, distribuíram 1.028 concessões de TV e rádio até a promulgação da Constituição Federal de 1988. Em troca, os parlamentares aprovaram cinco anos de mandato pa- ra Sarney. Esse contexto relacionado aos políticos detentores de concessão de radiodifusão foi denunciado pela campanha Fora Coronéis da Mídia, marcando a Semana pela Democrati- zação das Comunicações em 2014, ação que se seguiu nos anos posteriores. Já em 1989, outro ator importante entrou no sistema dos medias no Brasil. Com a aquisição da emissora Record, o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Uni- versal do Reino de Deus (Iurd), com sua estratégia de evangelização eletrônica, iniciou o processo de consolidação da emissora que se tornaria a segunda maior rede de televisão no país, em 2008, concorrendo com o SBT pela se- gunda posição na audiência, atrás ape- nas da Rede Globo. O conglomerado Record possui gráficas, rádios, emisso- ras de TV, portais de notícias, como o R7, e uma plataforma de streaming. Ao apoiar o governo de Jair Bolsona- ro, o que não é novidade na estratégia do bispo, Edir Macedo obteve benefícios significativos em verbas publicitárias, abocanhando cerca de R$ 28,6 milhões do governo federal de janeiro de 2019 a maio de 2020 (Agência Pública, 15 jun. 2020). O Grupo Record não está sozi- nho: nove dos cinquenta veículos de maior audiência no Brasil hoje perten- cem a lideranças e igrejas religiosas cris- tãs (evangélicas e católicas) (Le Monde Diplomatique Brasil, 16 abr. 2018). OS ATAQUES À COMUNICAÇÃO PÚBLICA No outro lado da moeda, a comunica- ção pública vive atualmente sob inten- so ataque. O caso da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) é um bom exem- plo para essa afirmação. Em maio de 2007, seguindo o princípio constitucio- nal da complementaridade entre os sis- temas público, privado e estatal, os contornos da EBC foram estruturados com base nas discussões do 1º Fórum de TVs Públicas, organizado pelo Mi- nistério da Cultura, na época coman- dado pelo ministro Gilberto Gil. Entretanto, desde 2016 a EBC está em profundo ataque, desde a cassação do Conselho Curador, um espaço fun- damental para a participação da socie- dade civil, culminando com a tentativa de sua privatização, incluída em março de 2021 no Plano de Desestatização do governo Bolsonaro. O que vemos, portanto, é a consoli- dação de uma concentração midiática, de forma vertical e horizontal, que tem como consequência a baixa percepção da população sobre esse serviço como direito. Ou seja, essa conformação de mercado trouxe consigo o distancia- mento do caráter público e educativo do setor da radiodifusão, e isso se reflete na agenda de regulação dos meios de co- municação, em que os próprios meios, que estão em uma condição privilegiada no debate público, disseminam a narra- tiva de censura à imprensa para distor- cer a necessidade de um debate sobre a democratização da mídia brasileira. Em 2014, entidades que atuam pela democratização da comunicação, por meio da Campanha para Expressar a Li- berdade, elaboraram o projeto de ini- ciativa popular Lei da Mídia Democráti- ca, que traz uma série de propostas para regulamentar os meios de comunicação no Brasil. O projeto aponta caminhos para a promoção da pluralidade de ideias, o fomento à cultura nacional, a universalização dos serviços essenciais de comunicação e a participação popu- lar na definição das políticas públicas de comunicação, entre outros. Concentração midiática: por que é tão difícil enfrentá-la no Brasil? http://brazil.mom-rsf.org/br/ http://brazil.mom-rsf.org/br/ https://www.intervozes.org.br/arquivos/interrev001crtodnc.pdf https://www.intervozes.org.br/arquivos/interrev001crtodnc.pdf https://intervozes.org.br/mobilize/fora-coroneis-da-midia/ https://intervozes.org.br/mobilize/fora-coroneis-da-midia/ https://www.kantaribopemedia.com/audiencia-do-horario-nobre-15-mercados-06-09-a-12-09-2021/ https://www.kantaribopemedia.com/audiencia-do-horario-nobre-15-mercados-06-09-a-12-09-2021/ https://apublica.org/2020/06/governo-gastou-r-30-milhoes-em-radios-e-tvs-de-pastores-que-apoiam-bolsonaro/ https://apublica.org/2020/06/governo-gastou-r-30-milhoes-em-radios-e-tvs-de-pastores-que-apoiam-bolsonaro/ https://apublica.org/2020/06/governo-gastou-r-30-milhoes-em-radios-e-tvs-de-pastores-que-apoiam-bolsonaro/ https://diplomatique.org.br/igrejas-cristas-no-topo-da-audiencia/ https://diplomatique.org.br/igrejas-cristas-no-topo-da-audiencia/ https://diplomatique.org.br/igrejas-cristas-no-topo-da-audiencia/ https://diplomatique.org.br/igrejas-cristas-no-topo-da-audiencia/ https://intervozes.org.br/carta-a-sociedade-por-que-a-ebc-nao-deve-ser-privatizada/ https://intervozes.org.br/carta-a-sociedade-por-que-a-ebc-nao-deve-ser-privatizada/ https://intervozes.org.br/mobilize/campanha-para-expressar-a-liberdade/ https://intervozes.org.br/mobilize/campanha-para-expressar-a-liberdade/ 7OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil Entretanto, a ausência de vontade política e um trabalho incessante de dis- torção dos meios de comunicação tradi- cionais sobre o tema nos abrigam sob um marco regulatório para a radiodifu- são das décadas de 1930 e 1960, uma es- tagnação que expressa a vontade comer- cial e política dos empresários do setor. O caso dos coronéis da mídia é em- blemático. Apesar de o artigo 54 da Constituição Federal proibir que políti- cos possuam concessão de rádio e TV, nosso sistema de radiodifusão é eivado desse fenômeno. Em resposta, o Parti- do Socialismo e Liberdade (Psol) e o Coletivo Intervozes entraram com Ar- guições de Descumprimento de Precei- to Fundamental da Constituição (ADPFs) no Supremo Tribunal Federal para fazer valer as regras constitucio- nais. E têm conseguido algumas vitó- rias. Em julho de 2021, a juíza federal Wanessa Figueiredo dos Santos Lima, acatando pedido do Ministério Público Federal (MPF), decidiu anular a reno- vação das concessões de serviços de ra- diodifusão que tinham o deputado fe- deral Damião Feliciano (PDT), da Paraíba, como sócio. Em fevereiro de 2021, o Tribunal Re- gional Federal da 3ª Região (TRF3) manteve o cancelamento da concessão da Rádio Metropolitana Santista, con- firmando a decisão proferida em pri- meira instância, em 2018. A emissora tinha em seu quadro societário o então deputado federal Antônio Carlos Mar- tins de Bulhões (PRB-SP). Ações como essas são fundamen- tais para combater a concentração mi- diática no Brasil, mas é preciso um reordenamento no marco regulatório, como acontece em países democráti- cos em todo o mundo. A ausência de um marco regulatório capaz de enfren- tar os desafios da concentração midiá- tica e a regulação de conteúdo, em um momento de convergência digital, ele- va cada vez mais o problema em rela- ção à busca incessante por audiência. Isso pode explicar a existência de pro- gramas policialescos na grade de pro- gramação dos principais meios de co- municação brasileiros, que, mesmo violando direitos humanos, continuam sendo exibidos, com cenas e narrativas cada vez mais violentas. MONOPÓLIOS DIGITAIS Em que pesem os dados ainda muito presentes de exclusão digital no Brasil e as discrepâncias de acesso, a pesquisa “TIC Domicílios” de 2020, realizada pe- lo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), revelou que o Brasil tem 152 milhões de usuários de internet, o que corresponde a 81% da população com 10 anos ou mais. Assistimos, portanto, à disseminação da internet como um novo lócus de realização das mais di- versas atividades humanas, dos negó- cios às interações sociais. Mais que espaço ou suporte, trata-se de um sistema sociotécnico composto não apenas de tecnologias (redes, pro- tocolos, dispositivos, programas), mas também de instituições, pessoas e re- gras. A internet, portanto, é fundamen- talmente um espaço de poder em dispu- ta, no qual operam diversos grupos (governos, organismosmultilaterais, empresas transnacionais e locais, orga- nizações da sociedade civil), que bus- cam agir de acordo com seus interesses e adotam estratégias de negócio que afetam a coletividade. Se a internet foi pensada como um espaço aberto, de trocas igualitárias e promessas democratizantes, o que tem ocorrido na última década é a crescen- te concentração em torno de platafor- mas digitais e uma crescente inserção destas na dinâmica capitalista atual. Em 2018, o Intervozes lançou a pes- quisa “Monopólios digitais: concentra- ção e diversidade na internet”, em que analisou especificamente a camada de aplicações e conteúdos. A pesquisa apontou que as grandes plataformas, como Google e Facebook, constituem monopólios digitais caracterizados por forte domínio de um nicho de mercado, grande número de clientes, sejam eles pagos ou não, operação em escala glo- bal, espraiamento para outros segmen- tos para além do nicho original, ativi- dades intensivas em dados, controle de um ecossistema de agentes que desen- volvem serviços e bens mediados por suas plataformas e atividades e estraté- gias de aquisição ou controle acionário de possíveis concorrentes ou agentes do mercado. Em síntese, as plataformas digitais se firmam na mesma lógica de disputa de atenção que a radiodifusão, obtendo seus recursos com o mercado publici- tário, mas com um método mais sofis- ticado e complexo, que usa de forma in- tensiva os dados pessoais dos usuários para a captura da atenção e o direcio- namento de propagandas e conteúdos. A complexidade não se dá somente no modelo de funcionamento, mas pela própria natureza desses monopólios. O Google, por exemplo, representa uma das gigantes transnacionais, as Big Te- chs, empresas que concentram bilhões de pessoas em suas arquiteturas e lu- cram valores inimagináveis. A marca Google vale atualmente US$ 323 bi- lhões. Lidar com esse cenário de ex- pansão desse modelo de negócios que interfere na autonomia do usuário é mais um desafio na agenda do direito humano à comunicação. O Brasil tem duas legislações im- portantes que impactam no modelo de funcionamento das plataformas no país: o Marco Civil da Internet (2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pes- soais (LGPD, 2018). Resultados da mo- bilização da sociedade civil, ambas são consideradas avanços significati- vos para a defesa da integralidade da rede, a garantia da liberdade de ex- pressão e a proteção da privacidade dos dados pessoais. Entretanto, as duas legislações se encontram sob ataque. A recente Medi- da Provisória n. 1.068, de 6 de setembro de 2021, editada pelo governo Bolsona- ro, que altera o Marco Civil da Internet e a Lei de Direitos Autorais, estabelece, em síntese, regras para que as platafor- mas sejam obrigadas a manter no ar to- do o conteúdo que o Ministério Público não considera passível de remoção com “justa causa” sem uma ordem judicial, como mostra nota da Coalizão Direitos na Rede (6 set. 2021). Da mesma forma, a Autoridade Na- cional de Proteção de Dados (ANPD), órgão responsável pela fiscalização e aplicação da norma, com início em 2020, está atrelada ao Executivo e nas mãos de militares, em um momento- -chave para aplicação dessa legislação, visto que durante os primeiros anos de trabalho da ANPD serão formulados parâmetros e diretrizes para orientar a aplicação da LGPD, ou seja, as decisões a serem tomadas pela Autoridade agora definirão como a proteção de dados se dará no futuro. Observamos, assim, que no Brasil há um desafio acumulado de concen- tração midiática, da radiodifusão ao avanço das plataformas. Essa agenda precisa ser tratada com a seriedade de- vida, em prol de um aspecto fundamen- tal de nossa democracia – a liberdade de expressão –, em que todos participem, como nos ensinou Paulo Freire, de um ciclo positivo de comunicação. *Ana Carolina Westrup é doutoranda em Sociologia na UFS, pesquisadora do Leep e bolsista CNPq em Tecnologia Social; Iraildon Mota é comunicador e presidente da ONG Comradio; Mabel Dias é jornalista e mestranda na UFPB. Todos são integran- tes do Intervozes – Coletivo Brasil de Co- municação Social. © Rapha Baggas https://telaviva.com.br/29/07/2021/justica-anula-concessao-de-radio-e-tv-de-parlamentar-da-paraiba/ https://telaviva.com.br/29/07/2021/justica-anula-concessao-de-radio-e-tv-de-parlamentar-da-paraiba/ https://intervozes.org.br/trf3-mantem-cancelamento-da-concessao-da-radio-metropolitana-santista-do-ex-deputado-antonio-bulhoes/ https://intervozes.org.br/trf3-mantem-cancelamento-da-concessao-da-radio-metropolitana-santista-do-ex-deputado-antonio-bulhoes/ https://diplomatique.org.br/a-estetica-dos-programas-policialescos-chega-ao-noticiario-tradicional/ https://diplomatique.org.br/a-estetica-dos-programas-policialescos-chega-ao-noticiario-tradicional/ https://diplomatique.org.br/a-estetica-dos-programas-policialescos-chega-ao-noticiario-tradicional/ https://diplomatique.org.br/a-estetica-dos-programas-policialescos-chega-ao-noticiario-tradicional/ http://intervozes.org.br/arquivos/interliv012monodig.pdf http://intervozes.org.br/arquivos/interliv012monodig.pdf http://intervozes.org.br/arquivos/interliv012monodig.pdf https://direitosnarede.org.br/2021/09/06/urgente-cdr-repudia-mp-que-altera-marco-civil-da-internet-e-alerta-para-riscos/ https://direitosnarede.org.br/2021/09/06/urgente-cdr-repudia-mp-que-altera-marco-civil-da-internet-e-alerta-para-riscos/ https://direitosnarede.org.br/2021/09/06/urgente-cdr-repudia-mp-que-altera-marco-civil-da-internet-e-alerta-para-riscos/ https://direitosnarede.org.br/2021/09/06/urgente-cdr-repudia-mp-que-altera-marco-civil-da-internet-e-alerta-para-riscos/ https://diplomatique.org.br/lei-geral-de-protecao-de-dados-em-vigor-anpd-militarizada/ https://diplomatique.org.br/lei-geral-de-protecao-de-dados-em-vigor-anpd-militarizada/ 8 Le Monde Diplomatique Brasil OUTUBRO 2021 A mídia e o projeto de desdemocratização do Brasil A crença dos governos petistas de que o fortalecimento da principal adversária do Grupo Globo, a RecordTV, pudesse favorecer, do ponto de vista midiático, um cenário mais plural teve consequências trágicas e centrais na ascensão da extrema direita. A lição de que o controle remoto não resolveria a questão veio tardiamente POR JANAINE AIRES E SUZY DOS SANTOS* BAND, SBT, RECORD E REDETV! MERGULHAM NO BOLSONARISMO A comunicação no Brasil nunca foi democrática, e a dependência da verba pública colabora para que os interesses políticos do grupo vi- gente penetrem com maior facilidade na programação televisiva e radiofônica e na imprensa. Focada no entretenimento e com uma estrutura que espelha até ho- je as diretrizes para a comunicação defi- nidas pela ditadura, é a televisão que constrói a agenda pública brasileira. Entre 2003 e 2018 houve uma mu- dança paradigmática nesse setor: o nú- mero de emissoras sob posse de grupos políticos tradicionais estagnou e as emissoras vinculadas a entidades reli- giosas quintuplicaram. Atualmente, 36,5% das emissoras de televisão estão ligadas direta ou indiretamente a polí- ticos e/ou parentes, enquanto 42,7% são vinculadas a entidades religiosas. À queima-roupa, os números po- dem indicar que essa realidade é uma consequência da ampliação da por- centagem de evangélicos na popula- ção brasileira. Ledo engano. A mudan- ça reflete a fragilidade das políticas públicas para a comunicação no país na garantia de maior equidade, plura- lidade e equilíbrio de vozes. Foi a mí- dia capilar e interiorana que permitiu a ascensão de discursos conservado- res, credibilizados pelos meios tradi- cionais e fartamente difundidos pelas plataformas estrangeiras. A crença dos governos petistas de que o fortalecimento da principal adver- sária do Grupo Globo, a RecordTV, pu- desse favorecer, do ponto de vista midiá- tico, um cenário mais plural teve consequências trágicas e centrais na as- censão da extrema direita. A lição de que o controle remoto não resolveria a ques- tão veiotardiamente. Às vésperas do im- peachment, em uma ligação para o líder da Igreja Universal do Reino de Deus e então dono da RecordTV, Dilma Rous- seff (PT) pediu o apoio da emissora e de sua bancada de 23 parlamentares: “Eu vou orar por você e pelo Brasil”, teria dito Edir Macedo. A bancada de “aliados” foi unânime na aprovação do impedimento da presidenta e, no dia seguinte, já com- punha o governo interino. O fato é que o poder econômico e político das igrejas tem moldado a co- municação nacional, e a maior parte dos líderes religiosos que compõem a base de apoio ao governo de Jair Bolso- naro é radiodifusora. A transferência direta é o principal mecanismo de acesso aos meios de co- municação por grupos religiosos, que compram aos montes as emissoras em situação de penúria financeira. À posse direta de meios, soma-se o fato de que o arrendamento de programação provo- ca efeitos na estrutura midiática nacio- nal. “Se não vender horário para igreja, quebro!”, afirmou Marcelo de Carva- lho, um dos donos da RedeTV!, em en- trevista ao repórter Maurício Stycer. É por meio do arrendamento que a paisagem audiovisual brasileira se al- terou profundamente. Dados da Anci- ne de 2016 indicam que o gênero reli- gioso é predominante na programação televisiva nacional, correspondendo a 21,2% do conteúdo analisado na cidade de São Paulo. Era de se imaginar. Po- rém, a agência reguladora não inclui nessa soma conteúdos que não se en- caixem na concepção de “igreja eletrô- nica”, isto é, exibição de cultos e de missas. Logo, conteúdos como a tele- novela bíblica Os Dez Mandamentos, comprada pelo governo federal por R$ 3 milhões para ser exibida na TV Brasil, não entram nesse cálculo. Os telejor- nais diários das emissoras religiosas também não. Os reality shows, progra- mas de variedades e de entrevistas não são considerados conteúdos religiosos, mesmo que a atração principal seja o papa ou uma cantora gospel. A televisão brasileira é muito mais religiosa do que se imagina. Foi esse capital que os líderes políticos católi- cos ofereceram ao atual presidente da República. Como ex-votos modernos, os católicos prometeram “mídia positi- va”, “boas notícias”, “comunicação pa- ra a família” e “uma comunicação em defesa da vida e dos costumes” em tro- ca de dinheiro e da aceleração de suas outorgas. A justiça não aplica os frágeis meca- nismos existentes e insiste não ser pos- sível diferenciar o que é conteúdo e o que é publicidade. Assim, esse debate pouco tem avançado, a ponto de emis- soras como a CNT terem 91,2% de sua grade arrendada sem grandes cons- trangimentos. A fiscalização, que nun- ca foi eficiente, tornou-se ainda mais frágil com as medidas de Michel Temer (MDB) em 2017, responsável por flexi- bilizar as regras para a renovação das concessões e por enterrar a comunica- ção pública brasileira ainda nos pri- meiros minutos do golpe de 2016. Além do rápido e intenso desmonte do proje- to de comunicação pública, um dos primeiros investimentos do governo Temer foi a compra de conteúdo edito- rial nas emissoras de televisão e de rá- dio do Brasil em defesa do governo e de suas propostas reformistas. O ex-presidente não é habilidoso so- mente em escrever cartinhas. Seu pla- no de publicidade teve como primeiro alvo o que parte da imprensa descreveu como “os locutores e apresentadores populares, principalmente do Nordes- te”, que seriam pagos para explicar as mudanças de um ponto de vista positi- vo. Investiu-se também em youtubers escolhidos a dedo para defender a re- forma do ensino médio. A compra de conteúdo editorial segurou as pontas de um governo falido e sem apoio po- pular e é reproduzida também como parte da estratégia do governo atual. Engana-se, porém, quem acredita que a compra de conteúdo editorial tem efeitos somente nas telas e nas on- das do rádio. O investimento na mídia reverbera na parcela de representação política que os meios de comunicação ocupam na Câmara dos Deputados, nas assembleias estaduais, nas câma- ras municipais e nos cargos nos dife- rentes níveis executivos. É como um óleo milagroso que alimenta as engre- nagens ora barulhentas, ora silenciosas de um motor midiático-político. Além dos 30% do Congresso que são proprietários de concessões de radio- difusão, desde o período de redemo- cratização todas as legislaturas da Câ- mara têm em média 10% de deputados com perfil que podemos denominar como “comunicadores-políticos”. São políticos que exercem concomitante- mente mandatos eletivos e trabalham como apresentadores, repórteres e/ou comentaristas nos meios de comunica- ção. Entre 2003 e 2018, 29% estavam vinculados a programas policiais; 21%, a plataformas religiosas; 16%, a progra- mas assistencialistas; 14%, a progra- mas sobre a defesa de direitos; 6%, ao telejornalismo; e 14%, a plataformas diversas, como programas de entrevis- ta e de esportes. Essa realidade é praticamente invi- sível para a imprensa e mesmo nas mo- bilizações políticas. Nos escândalos da compra de vacinas, por exemplo, não se cita que o deputado Ricardo Barros (PP), líder do governo na Câmara, acu- sado de agenciar a compra de vacinas superfaturadas, é dono da rádio CBN de Maringá e casado com a ex-governado- © Marcos Corrêa/PR Jair Bolsonaro ao lado de Edir Macedo e Silvio Santos no 7 de setembro, 2019 9OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil ra do Paraná Cida Borghetti (PP), que nasceu politicamente no programa Curitiba Vips. Ou que Marcos Tolentino, que chegou à CPI da Covid investigado como laranja de um banco que teria da- do garantias à Precisa Medicamentos na intermediação para a compra da Co- vaxin, é dono de uma rede de televisão, a Rede Brasil, e apontado como laranja do deputado federal Celso Russomanno (Republicanos). O negacionismo também tem con- cessões de radiodifusão e se sustenta como a face discursiva da lavagem de dinheiro e do projeto de desdemocrati- zação nacional. Foi essa mídia essen- cialmente capilar, principal responsá- vel por privilegiar a perspectiva econômica em detrimento da saúde, que conferiu credibilidade às informa- ções falsas disparadas pelo gabinete do ódio e fortaleceu o discurso de polari- zação política que opôs o governo fede- ral aos estaduais. Essa espécie de política de celebri- dades à brasileira e a dependência da verba pública explicam o protagonis- mo que Sikêra Júnior e Datena obtive- ram como porta-vozes do governo fe- deral. Seus programas Alerta Nacional (RedeTV!) e Brasil Urgente (Band), res- pectivamente, recebem tratamento privilegiado como difusores de pro- nunciamentos da Presidência – um contraste significativo, considerando os inúmeros episódios de violência com a imprensa livre. Bolsonaro concedeu sucessivas en- trevistas exclusivas para o programa Brasil Urgente ao longo da cobertura da pandemia, incluindo ocasiões que ante- cediam seus pronunciamentos. Em 16 de março, em 33 minutos, em que se fala sobre a participação de Bolsonaro nos protestos contra a ordem democrática; em 27 de março, em 77 minutos, quando classificou a quarentena imposta como uma alternativa abusiva e contrariou os números indicados pelos governos esta- duais; e em 8 de abril de 2020, quando deu uma entrevista exclusiva, de 28 mi- nutos, sobre a eficácia da hidroxicloro- quina. Em maio de 2020, verificou-se uma ruptura mesmo que parcial nesse vínculo. Datena fez pronunciamentos públicos em que declarava não desejar mais entrevistar o presidente, embora tenha feito outras entrevistas a posterio- ri e inserções diárias com representan- tes do governo federal. Naquele momento, tratava-se de uma resposta aos ataques que a emis- sora em que trabalha sofreu na divul- gação do vídeo ministerial tido como prova dos autos do inquérito sobre a in- terferência do presidente na Polícia Fe- deral após denúncia do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. O programa veicu- lou – inesperadamente, já que desco- nhecia o teor do vídeo antes da exibi-ção – ao vivo críticas do superintendente da Caixa Econômica, Pedro Guima- rães, à Rede Bandeirantes, acusada de exigir dinheiro para a divulgação de conteúdo, ou seja, a venda de conteúdo editorial. Na reunião ministerial, o su- perintendente afirmou: “Hoje de ma- nhã, o pessoal da Band queria dinhei- ro. O ponto é o seguinte: vai ou não vai dar dinheiro para a Bandeirantes? Não vai dar dinheiro para a Bandeirantes? Passei meia hora levando porrada, mas repliquei”. O superintendente em questão es- tava participando diariamente do pro- grama de Datena, apresentando as me- didas para o pagamento do auxílio emergencial aos brasileiros, com inser- ções com média de 40 minutos. Datena contestou a informação e disse ao vivo que suas participações no programa eram gratuitas. Sanado o desconforto com a revelação, o superintendente foi substituído pelo próprio ministro da Cidadania, responsável pelo auxílio, Ônix Lorenzoni, que seguiu partici- pando do programa diariamente. Já a RedeTV! investiu na contratação de Sikêra Júnior desde a ascensão de Bolsonaro. O apresentador bolsonarista se popularizou por suas participações cômicas no programa Plantão Alagoas, do SBT em Maceió. Foi criado o progra- ma Alerta Nacional, produzido pela TV A Crítica do Amazonas e exibido em ca- deia nacional. O próprio presidente é entusiasta do programa e já concedeu diferentes entrevistas exclusivas. Entre elas, a que comentou uma falsa notícia em que um porteiro não identificado foi notificado como vítima da Covid-19, mas teria sofrido um acidente ao trocar um pneu. E a que fez no hospital em que estava internado com dores abdomi- nais e soluços persistentes. A produção tem uma estrutura pe- culiar. No formato, Sikêra comenta ma- térias de todo o país, acompanhado por um elenco cômico que interpreta e im- provisa respondendo ao seu comando teatral. Diferentemente de Datena, sua mediação está baseada no drama, e não no jornalismo. Os comentários radicais e cômicos do programa de televisão são editados e disponibilizados na internet em pílulas de poucos minutos, permi- tindo a circulação nas redes sociais e seu compartilhamento por aplicativos como o WhatsApp. Quanto mais polê- mico o comentário, maior o alcance. Ambos os apresentadores, mesmo que não tenham cargos eletivos, classifi- cam-se como comunicadores-políticos e desconstroem as barreiras entre os sistemas midiáticos e políticos brasilei- ros por meio da barganha pela visibili- dade e pela mídia positiva. A RecordTV é a rede que melhor ad- ministra seus comunicadores-políticos. Sua plataforma articulada nos últimos anos é taticamente construída na tele- visão e no rádio e calculada nos templos da Universal. Seus parlamentares estão majoritariamente vinculados ao parti- do Republicanos, que agrega meticulo- samente outras denominações religio- sas com e sem mídia, de modo que geopoliticamente os interesses do gru- po se mantenham intactos. Atualmente, o Republicanos tem 31 deputados federais. Desde sua funda- ção, em 2005, o partido mantém a meta de duplicar sua bancada a cada legisla- tura. Atualmente, mais da metade tem vínculos institucionais com a Igreja: treze são bispos ou pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, três são da Assembleia de Deus e um é da Igreja Batista. O restante da bancada é forma- da por radiodifusores e/ou comunica- dores-políticos, como Celso Russo- manno (SP), já citado, apresentador do quadro “Patrulha do Consumidor”, e Amaro Neto (ES), apresentador do pro- grama Balanço Geral ES, por exemplo, vinculados à programação da emissora e de suas afiliadas. A bancada, comumente, é unânime em seus posicionamentos, e votos con- trários aos interesses do grupo impli- cam saída do partido, da Igreja e da emissora. Flávio Bolsonaro (senador pelo Rio de Janeiro) foi filiado ao parti- do, e Carlos Bolsonaro (vereador da ci- dade do Rio de Janeiro) e a ex-mulher Rogéria Bolsonaro são filiados. À primeira vista, a emissora parece uma simples apoiadora natural de Te- mer e de Bolsonaro. Um gesto aparen- temente banal é prova de que, compa- rada a outras redes, a capacidade de barganha é um pouco maior. No dia 1º de setembro de 2019, em pleno Templo de Salomão, o presidente da República prostrou-se de joelhos diante do líder Edir Macedo e de seu genro, Renato Cardoso, apresentador do Inteligência e Fé e do Love School. Os telejornais da casa frequente- mente abrem espaço para o presidente, mas são os representantes do grupo que sempre têm a palavra final e a voz de autoridade. Assim, a RecordTV se- gue ora “bolsonarista desde crianci- nha”, ora sinalizando ruptura. Às ve- zes, só resta ao vice, Hamilton Mourão, correr para apaziguar os ânimos, nem que seja embarcando para Angola, o mais recente motivo de conflito entre o governo e o grupo midiático-político e religioso – uma evidente demonstração de confusão entre o público e o privado e também da natureza pragmática dos vínculos, consolidada na última déca- da. O grupo costuma pular do barco apenas no último segundo. Já o SBT tem outro tipo de estraté- gia. Seu principal capital político se fir- ma nas produções de entretenimento conservador e acrítico e no apelo popu- lar, e se encaixa como uma luva para os governos autoritários. Sem a boa dose de bajulação que só Silvio Santos é ca- paz de oferecer, o SBT nem existiria, já que não teria obtido a autorização dos militares em 1981. Franca apoiadora do impeachment de Dilma, a emissora esteve aberta a to- das as pautas levantadas pelo governo Temer. Quem diria que um salão de be- leza seria o ponto de encontro entre o poder midiático e político brasileiro? Foi Robson Jassa que promoveu a con- versa entre Temer e Santos. Temer e Bol- sonaro, aliás, foram entrevistados em vários programas do SBT, incluindo o mais prestigiado, o Programa Silvio San- tos, rompendo um jejum de participa- ções políticas da Presidência da Repú- blica de quase uma década na atração. A vitória de Bolsonaro fez o conser- vadorismo da programação ir mais lon- ge. Na primeira semana após as elei- ções de 2018, o SBT exibiu vinhetas em tons nacionalistas com dizeres como “Brasil, ame ou deixe-o”, que rememo- ram sua adesão ao autoritarismo e seu tradicional papel de subserviência, ca- pitais políticos fundamentais da emis- sora. Mais tarde, aderiu ao discurso ar- mamentista e ao recrudescimento das leis penais, incorporando programas como O crime não compensa, seis dias depois da posse. Os principais programas da rede são patrocinados pela Havan, loja cata- rinense de departamento de proprie- dade de Luciano Hang, um dos princi- pais empresários que apoiaram o impeachment e a ascensão da família Bolsonaro. Seus investimentos nos programas da casa, como de Ratinho, Eliana e Celso Portiolli (Domingo Le- gal), são importantes. Foi ao SBT que a Presidência acenou na crise política provocada pela saída do ex-ministro Sérgio Moro e pelos im- pactos sociais e econômicos da pande- mia de Covid-19. A Presidência decidiu recriar o extinto Ministério da Comu- nicação e entregá-lo a Fábio Faria (PSD), deputado federal potiguar com “ótimo trânsito no Congresso”, como descreveu o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia. Sem o conhecimento técnico da área, mas com significativas creden- ciais do compadrio, Faria, esposo da quarta filha de Silvio Santos, Patrícia Abravanel, assumiu uma pasta crucial para o momento de crise e para o cená- rio das eleições de 2022. Ele figura ao lado de Bolsonaro nas caravanas pelo Nordeste, região em que o presidente tem baixa penetração, e tem atuado co- mo seu porta-voz perante a imprensa. Turbinada com o poder de outorga de novas concessões de radiodifusão e com o controle da verba publicitária es- tatal, a pasta vem promovendo o tal “armistício patriótico” que anunciou, alimentando com dinheiro essa cadeia midiática dependente. *Janaine Aires é professora da Universi- dade Federal do Rio Grandedo Norte; Su- zy dos Santos é professora da Universida- de Federal do Rio de Janeiro. 10 Le Monde Diplomatique Brasil OUTUBRO 2021 Jornalismo, silenciamentos e consensos fabricados Como mecanismo de controle, as mídias comerciais agem como ferramentas sociais para a produção de consensos. Para legitimar suas expressões de poder, grande parte de suas ações ancora-se na farsa da ideologia burguesa da liberdade de expressão e “da cultura de liberdade na prática da autonomia” POR FRANCIANI BERNARDES E NATALY QUEIROZ* UMA MÍDIA COMERCIAL CONCENTRADA, OLIGOPOLISTA E ASSENTADA NUM IDEÁRIO COLONIAL C omunicação, cidadania e demo- cracia estão diretamente interli- gadas. Os regimes democráticos têm como pressuposto funda- mental a liberdade de expressão. A arena na qual a democracia se forja é o espaço social construído com base em fluxos comunicacionais estabelecidos entre diversos sujeitos, cada vez mais mediados por veículos e tecnologias de comunicação. O reconhecimento da pluralidade, bem como de suas ten- sões e complementaridades, como inerente às práticas democráticas se faz igualmente por meio de processos simbólicos tecidos no cotidiano das representações midiáticas, nas quais é possível reafirmar direitos e deveres partilhados entre os indivíduos. É nessa dialética que se constrói e se va- lida a cidadania. A comunicação é, portanto, ele- mento político que cimenta nossas re- lações no dia a dia, sendo também campo de uma intensa disputa de po- der. A política da grande mídia comer- cial brasileira, concentrada, oligopolis- ta e assentada num ideário colonial, manifestada em suas narrativas dos fa- tos considerados relevantes, é um ter- mômetro que demonstra o tamanho do desafio para manter bases democráti- cas e cidadãs em um país abalado pelo avanço neoconservador e liberal. As instituições midiáticas, quando organismos privados, se configuram co- mo empresas capitalistas de comunica- ção, que visam ao lucro. Nesse sentido, o papel mercantil dos meios de comunica- ção ultrapassa a função dos outros seto- res econômicos, pois, além de serem for- madores da opinião, sua mercadoria, que é a notícia, atua como mecanismo de controle e dominação, posição cen- tral nesse processo de hegemonia. Há uma década, o Intervozes – Cole- tivo Brasil de Comunicação Social de- senvolve uma série de pesquisas intitu- ladas Vozes Silenciadas, sobre a cobertura da mídia acerca de temas fun- damentais para a democracia e para a conquista da cidadania plena. Nesse pe- ríodo nos debruçamos sobre assuntos pluralidade – pilar fundamental do re- conhecimento da existência e da cida- dania desses sujeitos políticos indis- pensáveis para equilibrar a balança dos poderes existentes na sociedade. Seguindo à baila das fontes oficiais como as principais vozes da notícia, a grande mídia comercial e hegemônica incorre numa prática rasa de jornalis- mo declaratório, o qual pode reforçar, no âmbito da política, o personalismo, marca de projetos autoritários. Além disso, pode corroborar a construção de consensos que reforçam o descrédito nas instituições públicas e o afasta- mento dos cidadãos e cidadãs da esfera política. Isso se materializa de várias formas. Uma delas é por meio da crimi- nalização dos movimentos sociais. Em 2011, o Vozes Silenciadas analisou a co- bertura da mídia acerca do MST. Mais da metade das matérias correlaciona a ação do movimento a atos de violência no campo, apresentando-o em 42,5% dos casos como autor das ações. Concomitantemente, ao darem es- paço às vozes do capital como prioritá- rias para abordar, por exemplo, pautas sobre direitos previdenciários, reforma agrária e meio ambiente, os veículos comerciais se colocam ao lado de um modelo econômico neoliberal, subser- viente ao Norte global e excludente. No Vozes Silenciadas que analisou a co- bertura jornalística da reforma previ- denciária de 2019, em um universo de mais de duzentas matérias produzidas, 72,8% das fontes ouvidas eram favorá- veis ou parcialmente favoráveis à mu- dança da legislação. Apenas 19% apre- sentavam posicionamentos contrários ou parcialmente contrários. Como mecanismo de controle, as mídias comerciais agem como ferra- mentas sociais para a produção de con- sensos. Para legitimar suas expressões de poder, grande parte de suas ações an- cora-se na farsa da ideologia burguesa da liberdade de expressão e “da cultura de liberdade na prática da autonomia”. Não podemos perder de vista que a rela- ção de produção, distribuição e consu- mo das informações rebate diretamente na formação da opinião pública. As informações publicadas nas mí- dias podem ser, ao mesmo tempo, um espetáculo de mercadorização da in- formação ou a expressão de resistên- cias. O Vozes Silenciadas evidencia que o direito à comunicação e a demo- cracia necessitam de um jornalismo que se efetive como campo voltado ao interesse público. *Franciani Bernardes é jornalista, douto- ra em Comunicação e pesquisadora do Ob- servatório da Mídia, Direitos Humanos, Po- líticas e Transparências (Ufes); Nataly Queiroz é jornalista, professora universitá- ria e doutora em Comunicação. Ambas fa- zem parte do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Socia como a representação midiática do Mo- vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), das manifestações de ju- nho de 2013, da reforma da Previdência, do derramamento de petróleo na costa brasileira em 2019 e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Para isso, colocamos uma lupa sobre o modus operandi dos maiores veículos de comunicação do país em circulação e audiência, a fim de compreender e de- nunciar como as desigualdades de tra- tamento jornalístico de temas caros à população se imbricam com as velhas desigualdades estruturais de classe, ra- ça e gênero – bases de um sistema so- cioeconômico e político excludente e injusto. No Vozes Silenciadas, as teias da narrativa midiática são analisadas com base em critérios qualitativos e quantitativos, tais como espaço dedica- do ao tema nos meios de comunicação, ganchos temáticos, tipo de abordagem e fontes consultadas, entre outros. Num período histórico em que a própria política se midiatiza e distintos agentes disputam o sentido da demo- cracia mediados por tecnologias de in- formação e comunicação, ressalta-se o papel dos meios de comunicação na construção das agendas sociais. Nesse contexto, o sujeito que fala e, conse- quentemente, se evidencia nas mídias tem lugar privilegiado na sedimenta- ção de consensos, os quais podem ser balizadores da conquista ou da nega- ção de direitos. As edições do Vozes Silenciadas, de forma geral, revelam que o jornalismo da grande mídia comercial brasileira se mantém como refém dos poderes secu- larizados da velha política e do capital. Isso pode ser evidenciado pela predile- ção e dependência das fontes oficiais na construção das notícias e reporta- gens. Essa política midiática, ao dar voz prioritária aos donos do poder, mesmo quando existe um tom crítico, tolhe a possibilidade de construção de uma vi- são ampliada da problemática social abordada, circunscrevendo-a às narra- tivas de apenas um grupo social. Na análise da cobertura sobre o derramamento de petróleo na costa brasileira, por exemplo, 60% das vozes escutadas pela imprensa eram repre- sentantes do poder público, majorita- riamente das Forças Armadas e do Exe- cutivo federal. Apenas 5% das fontes e personagens eram de povos e comuni- dades tradicionais, aqueles que tive- ram sua vida e seu sustento diretamen- te afetados pelo desastre. Ao agir assim, secundarizando e/ou emudecendo as vozes de grupos social e historicamen- te excluídos, como comunidades tradi- cionais, mulheres, negros e negras, en- tre outros, a mídia retira de cena a © Rapha Baggas 11OUTUBRO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil Violações de direitos ao vivo O maniqueísmo bem versus mal é um traço definidor do discurso simplista utilizado para alcançar rapidamentea compreensão do público nos programas policiais na TV. Deus e o diabo. Polícia e ladrão. Marginal e trabalhador. Posicionar o suspeito contra o “cidadão de bem” engaja o público em uma sensação de pertencimento e compartilhamento de emoções POR TICIANNE PERDIGÃO* PROGRAMAS POLICIAIS NA TV A visibilidade alcançada pelo apre- sentador Sikêra Júnior no Alerta Nacional (RedeTV!) retomou o debate sobre os limites éticos ul- trapassados por programas policiais. Com uma postura cênica e uma lingua- gem popular em tons de deboche e re- volta, Sikêra gera polêmicas ao come- morar a morte de suspeitos com o jargão “CPF cancelado” ou chamar ho- mossexuais de “raça desgraçada”. Desde os anos 1960, programas po- licialescos como Polícia às suas Ordens, da TV Excelsior (1966), Patrulha da Ci- dade, da TV Tupi (1965), e a primeira versão de O Homem do Sapato Branco, exibido pela Rede Globo (1968), já fa- ziam a cobertura de crimes dramati- zando a realidade com trilhas sonoras de suspense e sons de sirenes e tiros. No entanto, foi no começo da déca- da de 1990 que o programa Aqui Agora, do SBT (1991), inovou o formato, trans- ferindo a narrativa radiofônica para a televisão. Seu principal expoente, o ra- dialista Gil Gomes, destacava a entona- ção das palavras e aumentava os efeitos de suspense e a emoção. A linguagem coloquial aproximou os públicos C e D dos programas denominados informa- tivos, gerando uma forte audiência. A mudança de horário também foi im- portante. Exibidos mais cedo, seu su- cesso rendeu versões regionais e se multiplicou pelo país. Atualmente, o apresentador tem maior destaque, mais tempo de estúdio e notícias transmitidas “ao vivo”. É o âncora condutor do programa que in- terfere na cobertura, que pede o enqua- dramento e a repetição de imagens e produz um discurso fortemente opina- tivo e recheado de juízos de valor con- tra os suspeitos. De modo geral, a construção narra- tiva é marcada pela ausência de con- textualização dos problemas relativos à violência e à segurança pública. O ma- niqueísmo bem versus mal é um traço definidor do discurso simplista utiliza- do para alcançar rapidamente a com- preensão do público. Um bandido que comete um crime como esse não tem na, as decisões foram 83,3% desfavorá- veis.4 Além disso, o tempo médio de jul- gamento é de cinco anos, o que contraria a lógica imediata televisiva. A ausência de fiscalização estatal e a morosidade judiciária tornam o am- biente televisivo livre para exibir o cor- po estendido no chão. A chegada do streaming e a expansão de público do YouTube elevaram a competitividade do setor. A busca pela audiência gera disputas acirradas, intensificando ain- da mais seu caráter sensacionalista. Por isso, a criação de uma legislação específica oportunizaria um modelo mais consistente e estável. Em um plano ideal, a legislação contemplaria um sis- tema sancionatório robusto, com maior agilidade e hipóteses claras de infração. A aplicação das sanções seria feita por um novo órgão fiscalizatório indepen- dente, dinâmico e com representantes de diversos setores da sociedade. Enquanto isso não acontece, os ca- sos que chegam aos olhos do Estado ou que ativam o sistema judiciário têm em comum uma forte mobilização social. Diante da dificuldade de mudanças es- truturais a curto prazo, pressionar po- líticos, debater e dar visibilidade ao te- ma movimenta as peças disponíveis. Aqui agora. *Ticianne Perdigão é mestra em Direito (UFPE), doutora em Comunicação (UFPE) e professora universitária. 1 Em pesquisa realizada pela socióloga Esther Solano, a cultura militar relacionada à ética, à disciplina e à defesa da moral e dos bons cos- tumes foi essencial para eleger o último presi- dente. SOLANO, E. Crise da democracia e extremismos de direita. São Paulo: Friedri- chEbert-Stiftung, 2018. 2 O Código Brasileiro de Telecomunicação é de 1962 (Lei n. 4.117) e o Regulamento de Servi- ços de Radiodifusão é de 1963 (Decreto n. 52.795). Ambos foram modificados durante o período da ditadura militar. Mesmo conside- rados ultrapassados, o engessamento é man- tido exatamente pela incapacidade de provo- car riscos a emissoras. 3 O levantamento foi realizado pela autora. CA- BRAL, Ticianne M. P. Fiscalização estatal so- bre o conteúdo televisivo: violações de direitos em programas policiais. Tese (Doutorado em Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Recife, 2019. São três os ti- pos de sanções: multa, suspensão de um a trinta dias da programação e cassação (art. 122 da Lei n. 4.117). Nesta última, a Constitui- ção Federal determina que o cancelamento da cassação só pode ser feito por decisão judi- cial. Nesse caso, especificamente, o processo deve ser encaminhado para apreciação do Po- der Judiciário. Nos exemplos citados, as emis- soras foram penalizadas por: “Não transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico” (art. 28, 12, “b”, do Decreto n. 52.795/1963) e “Promover campanha discriminatória em razão de classe, cor, raça ou religião” (art. 122, V, do Decreto n. 52.795/1963). 4 A pesquisa foi realizada pela autora sobre 24 ações que chegaram à segunda instância. Não houve delimitação temporal, sendo con- sideradas todas as ações localizadas no site dos tribunais até 2012. CABRAL, Ticianne M. P. Controle jurisdicional de conteúdo da pro- gramação televisiva comercial aberta. Disser- tação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito. Recife, 2013. Deus no coração. Reconhecem? Deus e o diabo. Polícia e ladrão. Marginal e trabalhador. Posicionar o suspeito con- tra o “cidadão de bem” engaja o público em uma sensação de pertencimento e compartilhamento de emoções. Ainda, os discursos frequentemente apoiam a truculência militar e defen- dem a violência e o recrudescimento das leis penais contra o crescimento da cri- minalidade. De outro modo, por vezes, há um incentivo à “justiça com as pró- prias mãos”, que fragiliza instituições democráticas. Nesse cenário, os apre- sentadores se colocam como defensores da moral e dos bons costumes, em prol da paz social. O tom de indignação ser- ve, ao telespectador, como forma de des- pressurizar seu medo da violência ou suas dificuldades econômicas e sociais – do preço do gás alto ao ônibus lotado. Quando Sikêra chama os homosse- xuais de “raça desgraçada”, o apresen- tador defende o retorno aos valores tra- dicionais, a exemplo de família e religião, como forma de restauração da ordem social. Essa pauta conservadora pareceu mais evidente nas eleições de 2018, mas programas policiais sempre estiveram aí.1 Em 2015, um estudo realizado pela Andi localizou mais de 8 mil violações de direitos em programas policiais em apenas trinta dias, como: desrespeito à presunção de inocência; incitação ao crime e à violência; incitação à desobe- diência às leis ou às decisões judiciá- rias; exposição indevida de pessoa ou família; discurso de ódio e preconceito de raça, cor, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional. É relevante observar que, enquanto concessionárias do serviço público, as emissoras estão sujeitas a deveres, in- clusive acerca do conteúdo veiculado. Na Constituição existem orientações sobre os princípios e as finalidades que devem ser seguidos pelas emissoras, como a preferência pelas atividades culturais, educativas e informativas. No plano infraconstitucional, há atos normativos mais específicos, como o Código Brasileiro de Telecomunicação e o Regulamento dos Serviços de Radio- difusão,2 que aprofundam as orienta- ções de conteúdo e preveem fiscaliza- ção e sanção estatal para as emissoras. No entanto, mesmo diante do pre- juízo social, o Estado não toma medi- das para coibir abusos produzidos pe- las emissoras. De 2011 a 2018, apenas cinco emissoras receberam
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