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Capítulo 1 Alpinismo Sistêmico:1 dos primórdios cartesianos às falácias construcionistas Nina Vasconcelos Guimarães “Quero-me permitir falar com e não para o cliente, envolvendo-me numa parceria genuína de construção de narrativas. Quero ter habilidade de estar em contato emocional com uma dificuldade ou problema e não me sentir compelida a proclamar sobre o que os outros “devam” fazer, não me apressar para “consertar” o problema e não fingir estar desligada, isolando-me emocionalmente” (Guimarães, 2014). Introdução Este capítulo é um convite instigante ao leitor. O percurso a ser traçado é um mapa da Teoria Sistêmica, desde seus primórdios (final da década de cinquenta), quando contrariou os ensinamentos que a precederam, até o momento atual, quando incluiu a virada paradigmática da década de oitenta, trazendo para o seu acervo os ensinamentos do Construtivismo, do Construcionismo Social e da Narrativa Terapêutica. Denominei-o Alpinismo Sistêmico, porque se trata de uma trilha sinuosa, marcada por inúmeros caminhos que vieram, ao longo dos tempos, compondo uma prática sólida, consistente e responsável de intervenções sistêmicas individuais, conjugais, familiares e comunitárias. Todas elas corporificando uma áurea de conhecimentos sistêmicos que assume a postura ética de nunca se considerar obsoleta e, assim, continuamente, revisar-se por meio de diálogos pulsantes geradores de multiversos. Originalmente, este capitulo fez parte de minha dissertação de mestrado em 2005, cujo titulo foi 1GUIMARÃES, Nina Vasconcelos. Alpinismo sistêmico: dos primórdios cartesianos às falácias construcionistas. In.: GUIMARÃES, Nina Vasconcelos (org.). Autoridade e autonomia em tempos líquidos: a teoria sistêmica na contemporaneidade. Belo Horizonte: Ophicina de arte & prosa, 2014, p.15- 39. Diferenciação do Self e o Ser Terapeuta, e, hoje, integro outras páginas à versão original, por considerar os avanços contínuos da abordagem sistêmica, principalmente no que concerne ao Construcionismo Social. Espero que, nesta escalada, o leitor corra os riscos necessários e imprescindíveis à natureza humana. Origem e Desenvolvimento da Terapia Familiar O movimento da Terapia Sistêmica tem suas raízes na cultura americana dos anos cinquentas, quando a concepção mecanicista não respondia mais às exigências da época, havendo necessidade de uma nova abordagem que respondesse à complexidade de fatores relacionados à compreensão dos problemas como um todo. No início dessa década, o referencial teórico era eminentemente psicanalítico. Ferés-Carneiro e Ponciano (2001), em seus estudos a respeito da história da Terapia de Família, chegaram a um consenso de que os primeiros trabalhos da área foram realizados em famílias com membros esquizofrênicos. As autoras referem-se a Sullivan e Fromm-Richmann (dec. 40 e 50) como os pioneiros do estudo das relações interpessoais em famílias com essa problemática. Bowen, em 1954, incluiu as famílias no tratamento dos pacientes esquizofrênicos, em virtude da percepção de que eles eram influenciados, na presença dos familiares. A natureza desse tratamento identificava o problema como inerente aos relacionamentos entre os pacientes, seus pais e aqueles entes significativos de suas vidas. Ainda na mesma época, a Teoria Geral dos Sistemas de Von Bertallanffy (1968), o projeto de Bateson (1951) sobre esquizofrenia, no Mental Research Institute de Palo Alto, as ideias desenvolvidas por Jackson (1967) sobre homeostase familiar e o trabalho subsequente de Watzlawick e outros (1967) sobre a Pragmática da Comunicação Humana foram as matrizes fundamentais na construção do pensamento sistêmico. Nesse período, na costa leste dos EUA, estavam sendo construídas as bases teóricas e clínicas do que, mais tarde, tornou- se a Psicoterapia Familiar. A Teoria e a Prática Sistêmicas originaram-se da Teoria Geral dos Sistemas (1968) e da Cibernética de Wiener, no final da década de 40. A aplicação dessas duas vertentes teóricas à prática clínica se deu pelas contribuições do antropólogo Gregory Bateson, nos primórdios da década de 50. Nessa época, surgiram diferentes modelos e escolas de Terapia Familiar, com distintas compreensões e interpretações; entretanto todas elas estavam sob o mesmo guarda-chuva paradigmático. Grandesso (2000) afirma que enquanto a Teoria Geral dos Sistemas propunha-se a estudar as correspondências ou isomorfismos entre os sistemas de todo o tipo (von Bertalanffy, 1975, orig. 1968), a Cibernética, originalmente, ocupava-se dos processos de comunicação e controle, tanto nos sistemas naturais como nos artificiais (Wiener, 1961, orig. 1948). (p. 120). O seu contexto de surgimento foi bem descrito por Anderson (1994): [...] circunstâncias clínicas e experiências, combinadas com a inefetividade das teorias e técnicas prevalecentes para se transferirem de forma bem-sucedida para essas circunstâncias e experiências, compeliram para uma busca por novas explicações [...] Um problema e uma procura por compreendê-lo e solucioná-lo foram o imã e o catalisador unificante que uniram os que viriam a ser chamados terapeutas familiares e estabeleceram a arena para a colaboração. (p. 147-148). Bertallanffy, em 1968, introduziu a noção de sistema, depois associada à família, que apresentava a ideia de interdependência e interseção entre os comportamentos de seus membros. A Psicologia começou, então, a pesquisar e a voltar sua atenção para os fenômenos interpessoais e para os contextos onde estes se apresentavam, diminuindo a sua imperiosa preocupação anterior com os fatores intrapsíquicos. A nova abordagem questionava a visão do indivíduo prisioneiro das próprias dificuldades e de sua dinâmica interna e propunha uma imagem de ser social, cujo comportamento era compreensível à luz das organizações e do funcionamento do sistema de relações em que está inserido. Ou seja, “a vida psíquica do indivíduo não é apenas um fenômeno interno, mas também um processo que se modifica na interação com o mundo que o circunda.” (MINUCHIN, 1988, p. 9). Os fenômenos eram estudados dentro de seus contextos e, a partir da causalidade circular, pressuposto que sustenta a ideia de que os componentes de um sistema interagem em uma sequência circular, com relações bilaterais entre seus elementos constituintes, acreditando-se que a ordem dos fatores não altera o produto. O sintoma passou a ser visto, cada vez mais, como o resultado de uma disfunção relacional de toda a família, que indicava a existência de um conflito entre continuidade e mudança, vínculos de pertencimento e necessidade de individuação dos seus componentes singulares. O pertencimento significa a capacidade do indivíduo de absorver os valores e crenças do seu núcleo familiar, desenvolvendo, com isso, uma forte sensação de ser alguém pertencente a esse sistema. A individuação é a necessidade de cada um dos componentes da família de – uma vez fazendo parte dela – garantir poder ser considerado um ser único, uma pessoa singular, diferente de seus familiares. Nasceu, assim, o movimento da Terapia Familiar, que se estruturou ao redor de algumas ideias, tais como: a família, considerada como um sistema no qual cada comportamento devia ser compreendido em função da relação estabelecida entre os comunicantes; a concepção do sintoma como anomalia individual substituída pelo termo “paciente designado”, o portador do sintoma, que exprime – em nome dos demais membros do sistema familiar – as dificuldades relacionadas ao crescimento e à evolução da família (GRANDESSO, 2000). O objetivo da Terapia não era mais a mudança de apenas um indivíduo em particular, mas a alteração dos modelos de relação entre os indivíduos. Essas mudanças puderam ser alcançadas devido ao rompimento com o paradigma tradicional (pressupostos dasimplicidade, da estabilidade e da objetividade), que, por muito tempo, influenciou a Psicologia em seu estudo do comportamento humano. A lógica disjuntiva e separatista do pressuposto da simplicidade permitiu que os biólogos classificassem os seres vivos; os químicos, os elementos químicos; os psicólogos, os tipos de personalidade. O pressuposto da estabilidade sustentava a crença de que o mundo era estável e de que as coisas se repetiam nele com regularidade, tornando possível prever o resultado dos fenômenos, uma vez conhecendo suas condições iniciais. Por sua vez, o pressuposto da objetividade acreditava que o cientista podia descobrir e descrever os mecanismos de funcionamento da natureza, ocupando uma posição externa que lhe desse uma visão abrangente, afastando sua subjetividade. O século XX observou avanços nos três pressupostos epistemológicos adotados pela ciência tradicional, fazendo emergir uma ciência novo- paradigmática. Ao invés da noção de simplicidade, surge a de complexidade. O pressuposto da estabilidade desenvolve-se para o da instabilidade. O critério da objetividade dá lugar ao da intersubjetividade. Essa evolução incluiu progressos e transformações oriundas de outras áreas de conhecimento, entre os quais se destacam: (1) o princípio da incerteza de Heisenberg (1958), no campo da Física Quântica, que colocava em cheque a possibilidade de uma observação objetiva da realidade, independentemente do observador; (2) os estudos de Prigogine (1984) sobre sistemas afastados do equilíbrio, que elevava o papel do acaso como contexto gerador de perturbações, flutuações e bifurcações, que possibilitavam um salto qualitativo nas organizações dos sistemas, admitindo a imprevisibilidade e (3) as contribuições de Maturana e Varela (1987), no campo da Neurobiologia, que afirmavam um determinismo estrutural nas respostas de um ser vivo, gerado por sua estrutura, e o ambiente, que funcionava apenas como instigador e perturbador do sistema. A Física Moderna de Einstein (1905) e Heisenberg (1958), contrapondo-se ao pressuposto clássico da simplicidade, estabelece a noção de mundo como um todo unificado e inseparável; uma complexa teia de relações na qual os fenômenos são determinados por conexões com a totalidade. Essas conexões podem ser locais e não locais, instantâneas e imprevisíveis, conduzindo a uma nova noção de causalidade estatística, que supera e transcende a concepção clássica e linear2 de causa e efeito. Quando Einstein (1905) admitiu a simultaneidade e a relatividade de acontecimentos, provocou uma grande ruptura com o paradigma da ciência moderna, demonstrando que a simultaneidade de acontecimentos distantes não poderia ser verificada, mas apenas definida. O tempo e o espaço absolutos de Newton (séc. XIX) deixaram de existir; o paradigma mecanicista começou a abrir espaço para a Mecânica Quântica com Heisenberg e Bohr (1927), demonstrando que não era possível observar. ou medir um objeto sem interferir nele ou alterá- lo e, consequentemente, só era possível alcançar resultados aproximados e 2 Uma relação causal se denomina linear quando não intervêm processos de retroalimentação, ou seja, quando a sequência de causa e efeito não retorna ao ponto de partida. O caráter linear de causa e efeito é evidente. probabilísticos. Outra condição teórica para a crise do paradigma clássico foram os avanços do conhecimento nos domínios da Microfísica, da Química e da Biologia. O químico Prigogine (1984) conquistou espaço nas ciências com sua abordagem, que se aplica a todos os sistemas que trocam energia com o ambiente. Denominou estruturas dissipativas aos sistemas abertos, assinalando que, quanto mais complexo forem, mais energia despenderão no funcionamento de suas conexões. Introduziu uma nova concepção para o termo caos, considerando- o como flutuações aparentemente desordenadas que apresentam uma ordem dinâmica, abandonando, assim, a antiga associação do termo à desordem ou a algo negativo. No mundo vivo, ordem e desordem sempre são criadas simultaneamente, sem uma previsão do que pode vir a acontecer. Na nova ciência da complexidade, o conceito de instabilidade dinâmica (caos) de Prigogine modificou a formulação de leis da natureza, quando as próprias ciências físicas eram, antes, afinadas com os princípios da ciência tradicional. Passou-se a admitir a imprevisibilidade, a incontrolabilidade e a irreversibilidade de eventos da natureza. (ESTEVES DE VASCONCELLOS, 1995; 2002). Morin (2003), filósofo francês, desde o final da década de sessenta, desenvolveu um pensamento crítico em relação aos princípios objetivos da simplicidade e da lógica disjuntiva e reducionista. Para ele o pensamento complexo nega a linearidade e a visão unidimensional ao defender o diálogo crítico e reflexivo das inter-relações entre ciência, sociedade, técnica e política. Evidencia a necessidade de o cientista se comprometer na reflexão de si mesmo e de sua participação no universo sociocultural, estabelecendo uma comunicação entre o fenômeno observado e o observador. Sua proposta de construção de um conhecimento multidimensional privilegia o pensamento complexo ao considerar todas as influências recebidas, tanto externas quanto internas. O cerne do seu pensamento é distinguir e nunca separar. Petraglia (2001) compartilha essa afirmação de Morin quando diz que o ser humano – ao produzir conhecimento – deve “interpretar os aspectos da ambiguidade, sem desconsiderar a multidimensionalidade do real, os diversos caracteres do fenômeno.” (p. 50). Ao contrapor a Ciência Clássica, que tentava dissolver a complexidade aparente dos fenômenos, Morin (2003) propõe fundamentos do novo paradigma complexo, capaz de ampliar os horizontes das explicações científicas, tanto nas ciências físicas e biológicas como nas sociais, favorecendo um diálogo entre ordem, desordem e organização, enquanto diretrizes não excludentes e, sim, dialogicamente inseparáveis. Assim, afirma que o problema da complexidade não é o da completude, mas o da incompletude do conhecimento [...] Se tentamos pensar no fato de que somos seres ao mesmo tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, é evidente que a complexidade é aquilo que tenta conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos esses aspectos [...] Ao aspirar à multidimensionalidade, o pensamento complexo comporta, em seu interior, um princípio de incompletude e de incerteza. (p. 176-177). Vale lembrar que, em um primeiro momento de estruturação da Terapia Familiar Sistêmica, as famílias eram associadas a máquinas homeostáticas e, consequentemente, o terapeuta era considerado um “reparador de defeitos” (engenheiro social), que detectava a disfunção familiar e intervinha, apoiado em técnicas apropriadas, para alcançar mudanças. Esse período ficou conhecido como Cibernética de Primeira Ordem ou Cibernética dos Sistemas Observados (VON FOERSTER, 1974). A realidade representacional defendia a ideia de que o observador estava separado do evento observado, podendo descrevê-lo a partir de uma epistemologia objetivista. Esteves de Vasconcellos explica (2002): a Primeira Cibernética trata dos processos morfostáticos (manutenção da mesma forma) resultantes de retroação negativa por retroação autorreguladora, a qual conduz o sistema de volta a seu estado de equilíbrio homeostático, otimizando a obtenção da meta. A Primeira Cibernética trata, pois, da capacidade de auto-estabilização ou de automanutenção do sistema. (p. 225). A Terapia, portanto, era “manipulada” por um expert, o terapeuta, que assumia uma posição hierárquica superior no sistema terapêutico, sendo considerado agente condutor do processo e, como tal, oferecia uma intervenção padrão para cada situação específica. A intervenção terapêutica era considerada uma estratégia aplicada para obterresultados bem definidos. Na visão da Cibernética de Primeira Ordem, a tarefa da Terapia é reparar o defeito (disfunção) do sistema familiar, e o terapeuta está preparado para essa tarefa, sabendo o que é uma estrutura familiar funcional. Encontra-se, então, em condições de avaliar como o sistema está (diagnóstico) e que perspectivas de mudança apresenta (prognóstico), assim como de selecionar as técnicas adequadas (programa) e de verificar se, de fato, a intervenção levou o sistema na direção pretendida (avaliação). (ESTEVES DE VASCONCELLOS, 2002, p. 122). Esteves de Vasconcellos (2002), ao conceituar o segundo momento da Cibernética de Primeira Ordem, diz que ela trata [...] dos processos morfogenéticos (gênese de novas formas) resultantes de retroação positiva ou retroação amplificadora de desvios, amplificação que pode – caso não produza a destruição do sistema e se a estrutura do sistema permitir – promover sua transformação, levando-o a um novo regime de funcionamento. A Segunda Cibernética trata, então, da capacidade de automudança do sistema. (p. 225). Grandesso (2000) afirma que “esses processos de ampliação do desvio por meio da retroalimentação positiva e os processos sistêmicos de mudança daí decorrentes foram descritos por Maruyama (1968) como Segunda Cibernética, constituindo-se, assim, no segundo momento da Cibernética de Primeira Ordem.” (p. 125). Nessa época, os modelos de Terapia Familiar utilizavam técnicas geradoras de crise, provocando instabilidades que desequilibravam o sistema. São exemplos disso, dentre outros, o modelo estrutural de Minuchin (1988) e Minuchin e Fishman (1990), além da Terapia Experiencial Simbólica de Whitaker e Bumberry (1990). Os avanços subsequentes da Cibernética incluíram os estudos de máquinas não triviais consideradas imprevisíveis e indetermináveis (acaso) e de sistemas auto-organizadores, autônomos, regidos por suas próprias leis, incluindo os sistemas humanos e sociais. Daí surge um contexto favorável ao desenvolvimento da Cibernética de Segunda Ordem, decorrente das influências de Maturana e Varela (1987) no campo da Neurobiologia. Ambos descreveram os sistemas vivos como autopoiéticos, ou seja, sistemas que criam os componentes necessários para manter sua própria organização, o que lhes confere autonomia de funcionamento. Qualquer mudança que ocorre em um sistema vivo responde a um determinismo estrutural, ou seja, quando um organismo interage com seu meio ambiente, o que vai determinar sua resposta é sua estrutura, sendo o ambiente apenas um contexto instigador, capaz de perturbar o sistema. Daí decorre a impossibilidade de uma interação instrutiva, na qual um indivíduo tenha supremacia sobre outro indivíduo; em vez disso, é possível é um acoplamento estrutural – um encaixe íntimo ou ajuste recíproco entre as ações dos dois indivíduos – caracterizando perturbações recíprocas entre eles. Outros trabalhos desses mesmos autores dão relevância especial ao papel da linguagem como construtora de realidades. A abordagem científica de Maturana (1987), denominada Biologia do Conhecer, sustenta a ideia de que os seres humanos são constituídos biologicamente na linguagem, extinguindo completamente o ideal de objetividade. Nas décadas de setenta e oitenta, ocorreu um desenvolvimento no campo da Cibernética que resultou na passagem da Cibernética de Primeira Ordem ou dos Sistemas Observados para a Cibernética de Segunda Ordem ou dos Sistemas Observantes. Novas tendências foram, assim, incluídas à prática sistêmica, que questionava o lugar do observador como exterior ao sistema, a ideia modernista da existência de um “mundo real”, que se conhece por meio da certeza objetiva, assim como a noção de linguagem como representação desse mundo real. A principal mudança ocorrida na Terapia Familiar, a partir da evolução da Cibernética de Primeira Ordem para a Cibernética de Segunda Ordem, diz respeito à compreensão do lugar do terapeuta, que sai de uma condição de detentor do poder, que avalia e diagnostica, para uma posição mais igualitária de corresponsabilidade junto ao cliente, pela realidade coconstruída por ambos. Sluzki (1996), oportunamente, ressalta que essa passagem não traiu os pontos de vista sistêmicos anteriores, “já que, em nossa prática clínica, dá-se uma oscilação entre ser coconstrutor (participar), de um lado, e observador (olhar de fora), de outro.” (p. 211). Até o início dos anos oitentas, de acordo com Schinitman e Fuks (1996), a Terapia Sistêmica estudava os modelos de comunicação, os processos interpessoais, as estruturas e organizações apresentadas pelas famílias. A partir desse momento, ela passou a incluir o estudo de contextos mais amplos, as construções narrativas por meio de modelos textuais e hermenêuticos, considerando a terapia um contexto favorecedor de metáforas dialógicas que promovem aberturas de significados e múltiplas alternativas ao cliente. Com o desenvolvimento da Cibernética de Segunda Ordem e a inclusão do observador como uma figura relevante e participativa do contexto terapêutico, foi possível passar das metáforas cibernéticas às metáforas hermenêuticas, no campo da Terapia Familiar. A impossibilidade de considerarmos a neutralidade do observador e a realidade objetiva, bem como as influências dos conceitos de autorreferência3 e ressonância4 de Elkaim (1990), fizeram o sistema terapêutico passar a ser percebido como um sistema observante. (VON FOERSTER, 1974). O papel do terapeuta, desmistificado como expert, assume a característica de um facilitador do diálogo que utiliza o seu mundo interno na coconstrução da realidade apresentada. O conceito de autorreflexividade passou a ocupar uma posição central, significando “um diálogo interno do indivíduo consigo mesmo e a tomada de consciência dos próprios preconceitos e teorias através das quais se vê e se compreende o outro e o ambiente circundante.” (BOSCOLO E BERTRANDO, 1996, p. 23). Essa foi uma importante mudança epistemológica, pois ampliou e aprofundou os efeitos da abertura da “caixa preta”, ocorrida dez anos antes, favorecendo a passagem de uma visão reducionista, baseada na descoberta de padrões comportamentais, para uma visão de maior complexidade e abertura, inclusive em direção ao mundo interno do indivíduo, suas histórias, seus significados e suas emoções. Considerando o terapeuta não mais como um mero observador e sim como construtor da realidade no contexto interacional proporcionado pela Psicoterapia, Rapizo (2002) afirma se o mundo em que vivemos se configura com os outros na convivência e na linguagem, podemos concluir que construímos também a linguagem e a nós mesmos nessa convivência. Conhecer e conhecido, sujeito e objeto, determinam-se mutuamente e surgem simultaneamente. (p. 52). De acordo com essa afirmação, baseada em uma epistemologia construtivista, o conhecimento, até mesmo o científico, é construído ativamente pelo sujeito cognoscente, que é influenciado por suas próprias crenças e pressupostos, o que permite o surgimento de várias interpretações possíveis da “realidade”. Portanto se procura eliminar a presunção do saber e se descarta a possibilidade da descoberta de uma realidade ontológica objetiva. Quando um 3 Autorreferência: “aquilo que o psicoterapeuta descreve surge em uma intersecção entre seu meio e ele próprio: não pode separar suas propriedades pessoais da situação que descreve”. (ELKAIM, 1990, p. 15) 4 A ressonância “manifesta-se em uma situação na qual a mesma regra se aplica ao mesmo tempo à família do paciente, à família de origem do terapeuta, à instituição onde é recebido o paciente, ao grupo de supervisão, etc [...] As ressonâncias são constituídas por elementos semelhantes, comuns a diferentes sistemas em interseção...” (ELKAIM, 1990, p. 17) observador entra em contato com uma determinada realidade,seleciona alguns aspectos em detrimento de outros, e tais semelhanças e diferenças não podem ser atribuídas a um mundo independente, mas sim a escolhas feitas pelo próprio observador. Essa é uma posição contrária à objetivista, por meio da qual, no dizer de Grandesso (2000), o conhecimento se apresenta tanto mais confiável quanto mais se puder separar o sujeito cognoscente do objeto conhecido, controlando, tanto as falhas do observador como as imprecisões dos instrumentos. (p. 73). Os construtivistas desconsideram a correspondência entre representação e realidade. Para eles o conhecimento é fruto da experiência compartilhada por uma comunidade de observadores defendendo a convivência com a diversidade de “múltiplas vozes”, influenciada pela cultura e por uma língua, que constituem um mundo polissêmico. A realidade para a Cibernética de Primeira Ordem era objetiva e descritiva, fruto da metaposição do observador e de sua crença em poder reproduzi-la com a mesma precisão de uma máquina fotográfica, isenta das influências do olhar do observador. A Cibernética de Segunda Ordem, ao incluir o observador como coparticipante do fenômeno observado, eleva o sentido de experiência compartilhada, admitindo uma realidade coconstruída e inventada. O Construtivismo deu início a essa revolução, colocando o observador no centro da cena, prosseguindo com o Construcionismo Social, que defende a ideia de a realidade ser construída na linguagem, tornando-se o ponto central não somente da terapia, mas da própria vida. A concepção pós-moderna da linguagem questiona os pressupostos milenares da cultura ocidental da língua como principal veículo de representação do mundo, aquele utilizado para comunicar os conteúdos mentais do indivíduo. A linguagem deixa de ser empregada como transmissora de conhecimento e passa a ser considerada como geradora de mundos possíveis. Grandesso (2000), baseada na perspectiva construcionista de Gergen (1998), ressalta que todo e qualquer conhecimento resulta do intercâmbio social e, portanto, da interdependência e não da individualidade de mentes individuais. A linguagem é compreendida, então, como um processo interativo, construído nos espaços compartilhados de pessoas em relação. (p. 53). Hoffman (1998) refere-se a esse aspecto do Construcionismo Social, afirmando que [...] os teóricos da construção social veem as ideias, os conceitos e as recordações surgindo do intercâmbio social mediado pela linguagem. Todo o conhecimento – sustentam eles –produz-se no espaço entre as pessoas, no reino do ‘mundo comum’ ou da ‘dança comum’. Somente pela conversação permanente com os que lhes são próximos é que o indivíduo desenvolve um senso de identidade ou uma voz interior. (p. 14) Para essa corrente de pensamento o conhecimento de si mesmo e do mundo à sua volta se desenvolve na rede de conversações e nos contextos compartilhados na linguagem e na cultura. É nessa ação humana conjunta, circunscrita por uma cultura, uma história e um contexto social – configurada na linguagem – que (1) os indivíduos vão-se construindo psicologicamente, (2) o conhecimento passa a ser fruto de interpretações linguísticas compartilhadas em práticas sociais, e (3) as mudanças ocorrem, quando a comunidade consensual de interlocutores deixa de legitimar a utilidade daquela “verdade provisória”. Nesse sentido, Grandesso (2000), fundamentada em Gergen (1994), salienta uma vez que os termos e as formas pelas quais alcançamos compreensão do mundo e de nós mesmos são artefatos sociais, as descrições e explicações que desenvolvemos resultam da coordenação da ação humana e não do mundo tal qual ele poderia ser, ou das tendências genéticas de estruturas internas ao indivíduo. O significado das palavras decorre do contexto dos relacionamentos. (p. 84). A Epistemologia Construcionista Social admite que o conhecimento é construído em um espaço social comum de pessoas em relação, a partir do ato da compreensão dos sujeitos linguísticos influenciados pela intersubjetividade da linguagem e da cultura. Diante dessa nova ecologia de ideias e práticas, as metáforas sistêmicas mudaram. As famílias passaram a ser vistas e reconhecidas não enquanto unidade de tratamento, mas como um desenho social flexível no qual pessoas compartilham significados. A Terapia é entendida como um contexto que desafia as “histórias saturadas de problemas” (White, 1989) trazidas pelos clientes, que, considerando a linguagem como geradora de sentidos, torna possível oferecer alternativas mais libertadoras e transformadoras. As palavras e ações assumem significados a partir do contexto do qual fazem parte, como também criam novos contextos. Goolishian e Anderson (1996), por sua vez, definem a Terapia como uma conversação na qual “o consultante e o terapeuta falam um com o outro, não ao outro.” (p. 198). Fruggeri (1998) afirma que “a Psicoterapia emerge, aqui, como um processo de comunicação no qual diferentes parceiros constroem os papéis recíprocos e juntos constroem um contexto interpessoal dentro de um domínio consensual.” (p. 57). As narrativas trazidas pelos clientes constituem construções complexas por eles selecionadas a partir de suas ricas experiências, podendo ser transformadas de acordo com a interação estabelecida com o social. A produção narrativa não é o resultado de uma mente individual, mas sim da natureza interpessoal da produção discursiva, pela qual são transmitidos sistemas de valores e, a partir dos quais, são sustentadas práticas sociais e visões de mundo. “As construções dos terapeutas estão ligadas ao modo como suas ações são interpretadas pelo cliente, ao modo como suas perguntas, comentários e intervenções são ‘ouvidos’ pelo cliente.” (FRUGGERI, 1998, p. 56). A narrativa é constituída por acontecimentos passados e presentes que viabilizam desdobramentos futuros, indicando uma continuidade na existência do indivíduo e um referencial para interpretar o cotidiano e construir possibilidades futuras. Ela permite expressar não somente a forma como compreendemos nossa experiência, mas também como ampliamos, ou restringimos nossas possibilidades existenciais. Para Hoffman (1998), cada vez mais, os terapeutas demonstram um novo interesse nos modos reflexivos, associativos e metafóricos da Terapia. Nesse contexto, afirma ela (ibidem), “uma maneira de introduzirmos a dúvida necessária é construir uma situação na qual uma pluralidade de histórias seja estimulada e os formatos associativos mantenham os significados variáveis.” (p. 29). O indivíduo, em suas construções narrativas, privilegia e exclui parte dos acontecimentos, de forma a torná-las inteligíveis e compreensíveis nas interações sociais. Essa seletividade do processo atribui um sentido às experiências, assim como constrói o nosso conceito de self, que também é complementado e reconstruído por novas narrativas que incluam, em determinado contexto social, os eventos excluídos em outros. Grandesso (2000) atesta as histórias acabam tendo um efeito concreto não só de organizar, mas também de modelar a vida das pessoas, definindo um senso subjetivo de terem uma vida privada, que não só organiza sua compreensão do passado, mas sua situação atual e seu futuro possível. (p. 203). Hoffman (1998) afirma que os primeiros terapeutas de família foram muito cautelosos em relação à ideia de self. Segundo essa autora (ibidem), os pioneiros no estudo familiar, contrários à posição sustentada pelo Construcionismo Social, “tendem a acreditar que as ideias que uma pessoa tinha a respeito de si mesma só mudariam quando as ideias das outras pessoas sobre ela mudassem.” (p. 16). A antiga visão dos processos narrativos conceitua o self como uma estrutura fixa, inata, a-histórica, individualista e unitária, tendo sido substituída por uma autobiografia em constante desenvolvimento e mudançanas experiências narradas. Partindo de fatos passados e histórias de gerações precedentes, o indivíduo é capaz de fazer uma releitura dos acontecimentos de sua vida, ampliando a compreensão de comportamentos presentes, incluindo sua postura profissional. A Falácia Construcionista Uma das críticas mais severas dirigidas à versão modernista de Terapia diz respeito ao cuidado e à preocupação excessivos com o indivíduo, negligenciando as condições culturais com as quais as dificuldades psicológicas podem ter uma relação significativa. As terapias modernas e pós- modernas coincidem no objetivo final de garantir a autonomia do sujeito, empoderando-o a assumir suas características autorrealizadoras; no Modernismo, esse projeto terapêutico ainda se baseava na existência de uma ontologia mentalista (o ego), e o processo se dava pela avaliação racional e da experiência emocional do paciente associada a uma imagem modernista de “funcionamento pleno” e indivíduo “bom”. O ser humano “saudável” consistia em uma “receita” legitimada por uma cultura e reforçada pelos processos terapêuticos. Essa Psicoterapia mais tradicional focalizava o interesse do terapeuta em um passado distante de seu cliente, em vez de privilegiar o presente angustiante e complexo que ele oferecia. Os problemas faziam parte do interior de um cérebro que funcionava mal, e as condições externas que produziam estresse nem sequer eram consideradas. No decorrer dos anos, o comportamento do terapeuta não podia mais ser compreendido independentemente do comportamento do cliente - as narrativas individuais perdiam, aos poucos, a força e o poder para as narrativas relacionais. Foi nesse cenário que novas exigências urgiram. A pós-modernidade ou pós-estruturalismo é uma época marcada por perspectivas múltiplas dialógicas que promoveram inúmeros saltos qualitativos - as estruturas universais deram lugar ao multiverso, e as famílias passaram a ser consideradasistemas sociais orientados pela linguagem, geradoras de significados e em estado de desequilíbrio. O modelo hierárquico que enaltecia o terapeuta enquanto expert cede lugar a uma responsabilidade mais igualitária. Estamos diante de uma virada paradigmática - para muitos angustiante, para outros tantos já mais do que necessária. O momento de salto paradigmático é sempre precedido por uma série de questionamentos cujas respostas não mais atendem às necessidades locais. O conjunto de crenças, valores e premissas que constituíam o corpo de conhecimento e de "verdade" que, até então, atendiam aos anseios do indivíduo, perde sua força, exigindo novas explicações e respostas, sustentadas por uma nova visão paradigmática. Embora crítico e turbulento, o momento de virada paradigmática é, também, o de grandes oportunidades, pois são das cinzas de dúvidas que os diálogos promovem novas vozes de esperanças para a existência humana (Gergen, 2009). É desse turbilhão de vozes pertencentes a diversas áreas de conhecimento que surge o movimento denominado Construcionismo Social. Esse movimento desafia as tradições de conhecimento e linguagem até então adotadas, a realidade representacional e a estabilidade do significado (Anderson, 2009). Ele não se baseia em uma única teoria, mas sim em um diálogo fértil de lógicas, valores e visões que nunca vão compor uma verdade definitiva, uma vez que o próprio movimento condena essa lógica fundamental. As práticas construcionistas rompem com as premissas tradicionais a respeito do conhecimento, da pessoa e da natureza do “real”, privilegiando um total relativismo das expressões de identidade. Convida-nos a uma multiplicidade de versões de realidade,- situadas histórica e socialmente. É uma proposta inovadora, que constitui uma verdadeira tapeçaria pós- moderna cujos fios contrariam heranças passadas e propõem uma alternativa contemporânea. Nessa tapeçaria, cada cliente traz o seu novelo de histórias, e o terapeuta promove um espaço construtivo, onde cada um se sinta reverenciado por uma escuta genuína e respeitosa que promova mudança. A principal ideia nascida dos diálogos construcionistas é a de que o conhecimento do eu e do mundo tem sua origem nos relacionamentos humanos, histórica e culturalmente situados (Gergen, 2009). Assim, os diálogos construcionistas desafiam e condenam a tradição individualista e elevam o papel do relacionamento para o centro do bem-estar humano. Como diz o autor, "[...] não é na mente individual que o conhecimento, a razão, a emoção e a moralidade residem, mas nos relacionamentos” (p. 12). Algumas comunidades científicas resistem fortemente aos argumentos construcionistas de que uma determinada verdade nunca deveria sobrepôr-se a qualquer outra verdade. Na realidade, a nova ótica defende que as suposições não podem ser tratadas como universais. Dessa forma, Gergen (2010), afirma que aqueles que buscam a verdade procuram reduzir o mundo a um conjunto fixo e único de palavras. Declarar A verdade é congelar profundamente as palavras, reduzindo, dessa forma, o reino das possibilidades para o surgimento de novos significados" (p. 35). A atitude coerente do pós-modernismo é a de manter o ceticismo, questionando qualquer princípio de verdade único e universal, inclusive o próprio discurso pós-moderno (Anderson, 2009). Por exemplo, a ciência médica ocidental concebe a deficiência, a saúde, a doença, a vida, a morte, os limites do corpo, a natureza da dor, etc, dentro de fronteiras razoáveis para essa comunidade linguística, cultural e historicamente situada. Certamente, transpô- las para outras comunidades poderia ser um erro grotesco, pois sua utilidade está nos limites de seus contornos. Concebendo-o dessa forma, a autora afirma que "o Construcionismo Social tem uma enorme função libertadora" (p. 12). Para atender a essa liberdade, foi necessário romper com algumas hipóteses anteriores, relativas à importância da comunicação na vida humana: • a hipótese realista acreditava que as palavras serviam para retratar fidedignamente a realidade tal qual ela se apresentava, com total isenção do observador; • a hipótese subjetivista garantia que as palavras serviam para expressar o mundo interior, as manifestações da mente subjetiva; nesse sentido, a linguagem do cliente nada mais era do que a manifestação de sua experiência privada; • a hipótese estratégica defendia a ideia de o terapeuta selecionar suas palavras com o cuidado de inseri-las na conversação num dado momento apropriado, permitindo mudar ou o cliente, ou o padrão de suas relações familiares; aqui, o risco é de o terapeuta ser visto como um grande manipulador e seus clientes, como meros fantoches. O que o Construcionismo Social propõe, entretanto, é a comunicação como uma ação coordenada, o que subentende elevar o interesse pelo significado, pela natureza construída da realidade, pelos processos construtivos na Terapia, pelo caráter cultural e político das práticas terapêuticas. Segundo Gergen (2009), "há uma forte tendência a posicionar o lugar do significado dentro do próprio processo de interação. Isto é, o agente individual não é mais enfatizado como a fonte do significado; a atenção passa do dentro para o entre" (p. 22). Para essa corrente de pensamento, nenhuma declaração em si tem sentido sozinha, isoladamente. Ela só adquire significado a partir de uma ação suplementar de uma ou mais pessoas. Os suplementos, por sua vez, podem ser tão simples quanto um aceno de cabeça que confirma o que foi dito anteriormente. Assim, para Gergen (2009), o significado não reside dentro dos indivíduos, mas sim no relacionamento - "tanto o ato quanto o suplemento precisam ser coordenados, para que o significado ocorra [...] A comunicação é inerentemente colaborativa" (p. 23). Por outro lado, o que dizemos, ou fazemos ganha sentido dentro de um contexto temporal específicoque dá significado àquilo que precedeu, ao mesmo tempo em que convida a uma ação suplementar posterior. Os suplementos tanto criam significados quanto os restringem. Daí a importância de o terapeuta atentar para suas perguntas, não permitindo que elas obstruam as possibilidades de seu cliente. Por exemplo, quando ele o questiona sobre sua depressão, já subentende restringir seu cliente às limitações que tal rótulo o impõe, convidando-o a encarnar as restrições de um deprimido. Assim, a Terapia é uma ação colaborativa. É função do terapeuta criar e/ou sustentar significados que surgem no contexto; ele é um grande colaborador generativo de significados sempre apoiados pela ações suplementares de seus clientes. Essa visão o força a se despedir daquela imagem onipotente de profissional, na medida em que considera qualquer mudança terapêutica como o produto de uma ação conjunta, que traz a herança de um passado e de uma cultura que se atualizam no aqui e no agora. Por isso, os significados são temporários, podendo assumir novas formas enquanto houver trocas dialógicas. Como afirma Gergen (2009), o indivíduo chega à Terapia como um participante de uma rede relacional, uma rede que se estende desde as pessoas íntimas até a cultura no geral e, de volta no tempo, até relacionamentos e tradições pré-existentes. É nessa matriz de relacionamento que o 'problema' é criado e designado como um problema. O relacionamento terapêutico representa o estabelecimento de uma nova coordenação, uma coordenação que vai desenvolver-se dos recursos que tanto o terapeuta quanto o cliente trazem para o relacionamento (p. 30). Kenneth Gergen e Mary Gergen (2010) trazem um precioso exemplo ilustrativo sobre a natureza política de nossas considerações. Ao discorrer sobre o processo de fertilização humana em um trabalho feminista de Emily Martin, os autores apresentam narrativas diferentes, ambas verdadeiras, e nenhuma delas mais politicamente correta do que a outra. Em uma das versões, o espermatozoide é visto dentro da perspectiva machista baseada no mito cultural do macho poderoso e ativo e da fêmea passiva e indefesa - os heróis da história, os espermatozoides ativos, lutam, em esforço contínuo, para penetrar o óvulo- princesa, e ela fica à espera, passivamente. Por outro lado, podemos adotar a versão de que o óvulo-sereia atrai para si espermas indefesos, seleciona um deles e destrói os outros. Sob essa ótica, a força dominante muda completamente do homem para a mulher. Estamos diante de duas versões, cada uma delas privilegiando um lado em detrimento do outro e, ainda, com restrições que nos fazem poder considerar outras tantas versões além dessas duas "verdades". Para que tal limitação não se instaure, a novidade e a curiosidade são vistas como ingredientes imprescindíveis na prática colaborativa. O terapeuta nunca deve deter-se ao que lhe é familiar, ou se deixar seduzir pelo preenchimento de lacunas com pressuposições já conhecidas; em vez disso, deve enxergar seu cliente como um eterno ser excepcional. Esse saber prévio pode fazê-lo correr o risco de despersonalizar o cliente, limitando tanto as suas possibilidades quanto as dele. Ao adotar essa posição filosófica, o terapeuta convida o outro a um compromisso compartilhado, a uma investigação mútua e a uma ação conjunta que promove um diálogo generativo e transformador, sempre rico de possibilidades futuras (Anderson, 2009). Dizendo de outra forma, embora consonantemente, McNamee e Gergen (1998) pontuam que "o terapeuta e o cliente formam um relacionamento para o qual ambos trazem recursos, nos termos do qual podem ser esculpidos os contornos do futuro" (p. 211). Dessa forma, podemo-nos questionar:Quem é o cliente na perspectiva construcionista social? Não é um ser passivo, esperando para ser interpretado por um leitor, nem mesmo o detentor de uma visão fixa ou "correta". O cliente é alguém que construiu uma visão pessimista de si, encapsulou-se em sua própria armadilha desesperançosa, mas, diante das premissas construcionistas, também é alguém cuja história está sempre sendo revisada, passível de mudanças suplementares. O cliente é um ser historiado dentro de um contexto interacional. O texto que ele produz em Terapia é sempre uma narrativa construída entre pessoas, não é mais um texto resultante da história dele, nem mesmo do terapeuta, mas uma construção de ambos (Lax, 1998). Assim, a história de cada um de nós pode mudar em Terapia, na medida em que avançamos no tempo e desenvolvemos novas perspectivas em nossas vidas. A noção de insight passa a ser considerada como uma nova compreensão que faça sentido para o indivíduo e não como a descoberta de uma verdade sobre a sua existência. É nesse sentido que McNamee e Gergen (1998) pontuam o risco de aceitarmos a história que o cliente nos conta, pois isso nos coloca diante do absurdo de definir o problema como uma entidade fixa. Portanto, imergindo no mundo do cliente, aproximando-nos do texto que ele apresenta, como terapeutas mantemos a condição genuína do não saber, sempre no esforço de nos aproximar, o mais possível, daquilo que o cliente está dizendo, conectando-nos e tentando aprender com ele e a partir dele. Nesse processo de tentar entendê-lo, vamos construindo entendimentos locais, desenvolvidos em nossas conversações. Assim, podemos concluir que o terapeuta convida o cliente a entrar em um relacionamento colaborativo e em uma conversação dialógica, cujo tom é curioso e respeitoso com o mapa de sentidos do cliente, prestando atenção às palavras e expressões por ele usadas, ao significado do silêncio que se impõe entre eles e ao novelo de histórias que percorrem juntos, a partir de uma parceria de hospitalidade incondicional, termo que Derrida empresta a Anderson (2009), quando enfatiza que "o terapeuta é o anfitrião e, ao mesmo tempo, é o convidado na vida do cliente" (p. 44). Ou seja, tanto o terapeuta quanto o cliente se sentem convidados a participar de uma parceria na qual o anfitrião, quaisquer um dos dois, assume uma postura mais ou menos convidativa, que reverbera em um grau de conforto proporcional ao tipo de convite feito - quanto mais colaborativo e melhor ciceroneado, mais impregnado de possibilidades futuras. Referências Bibliográficas ANDERSON, Harlene. Rethinking family therapy: a delicate balance. Journal of Marital and Family Therapy, 20, 1994, p. 145-150 apud GRANDESSO, Marilene. Sobre a reconstrução do significado: uma análise epistemológica e hermenêutica da prática clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. 422 p. ANDERSON, Harlene. Terapia Colaborativa: relacionamentos e conversações. Novas Perspectivas Sistêmicas, Rio de Janeiro, ano XVIII, n. 33, p. 37-52, abril 2009. BERTALANFFY, Ludwig von (orig. 1968). Teoria geral dos sistemas. Petrópolis: Vozes, 1975. 351 p. BOSCOLO, Luigi; BERTRANDO, Paolo. Terapia sistemica individuale. 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