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Um Olhar Evolucionista Para a Psicologia

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são de que o objeto de estudo, o ser humano, perde sua
uni cidade e se fragmenta de acordo com as perspectivas e
os recortes impostos.
Não faz tanto tempo, fui convidado pelo centro acadê-
mico de um curso de psicologia para participar de uma
mesa-redonda sobre "Hereditariedade e Ambiente"
(composta de apenas dois participantes, uma antropóloga
e eu mesmo, talvez no propósito de nos ver defender, ela
o aporte ambienral e cultural, eu, a base instintiva e bioló-
gica, o que, de fato, fizemos). O tema é bastante polêmi-
co, mais ainda numa época como a nossa, marcada por
um progresso enorme no conhecimento dos processos
genéticos e por tentativas audazes de aplicação desseconhe-
cimento, inclusive ao comportamento. Em Tabula Rasa
(2004), Stephen Pinker gasta quase 700 páginas para reba-
ter, com paixão, a idéia de que a mente da criança é uma
folha em branco, na qual a sociedade e a cultura inscrevem
tudo.
No debate, a fala da antropóloga foi principalmente
dedicada ao estabelecimento do cultural e do psicológico
como essencialmente independentes do biológico. A natu-
reza simbólica do ser humano, o arbitrário e o cumulati-
vo do fato cultural, as transformações da história foram
contrastados com a determinação mecânica do processo
genético, incapaz de dar conta do significado. Fez-se
também uma crítica às interpretações funcionalistas/
evolucionistas do comportamento humano, perigosas
pelas implicações em termos de darwinismo social. Justi-
ficariam tudo o que fosse considerado geneticamente
adaptativo, inclusive o estupro. Estava clara, nas coloca-
UM OLHAR EVOLUCIONISTA
PARA A PSICOLOGIAI
César Ades
Desde que se constituiu, a psicologia procurou estabe-
lecer a independência de seu enfoque e de seu método em
relação à biologia. Mas nunca deixou de pagar um tribu-
to ao biológico, nem que fosse como o reconhecimento
do substrato a partir do qual outra forma de organização
(da mente, do comportamento) se origina. Na origem do
pensamento psicológico, está uma posição cartesiana, rara-
mente explicitada, mas que incomoda (como Descartes
esteve incomodado para explicar a origem, ao mesmo
tempo corporal e mental, das paixões humanas) por não
indicar uma fronteira nítida entre o psicológico e o bioló-
gico e por não proporcionar uma epistemologia capaz de
dar conta, independentemente, do psicológico. O deter-
minante biológico não é negado, mas colocado fora do
âmbito das explicações relevantes acerca da mente ou do
comportamento.
Sobre esta ambigüidade, desenvolvem-se dicotomias
que se auto-reforçam, como a dicotomia entre natureza e
criação (nature and nurture), entre biologia e cultura, entre
inato e aprendido, e se criam distâncias ainda maiores do
que as que normalmente existem entre as ciências, os
departamentos e os cientistas. O conhecimento fica encap-
sulado em áreas não apenas especializadas, mas que se
colocam como incomensuráveis. Acaba-se tendo a irnpres-
'Versão de uma palestra apresentada no IV Congresso Norte-Nordeste de
Psicologia, Salvador, Bahia (2005) e do texto correspondente à palestra
publicado em Psicologia: novas direções no diálogo com ourros campos
do saber (Nádia Maria Dourado Rocha e Antonio Virgilio Bittencourr
Bastos, Coordenadores), Casa do Psicólogo, 2007.
Steven Pinker
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ções, a permanência de uma postura dicotômica, com
raízes na distinção de Dilthey (1883) entre ciências natu-
rais (Naturwissenchaften) e ciências do espírito (Geiteswis-
.mchaften). Como integrar a intenção de compreender
om a de medir e interpretar de fora, por assim dizer, o
objeto estudado? Interpretar dados (o problema é definir
o que são dados) psicológicos em termos biológicos seria
perder um conteúdo essencial, alienando o conhecimen-
o do ser humano da rede de significados que o constitui
e que passa pela linguagem. Apesar das divergências, o
debate com a antropóloga foi cordial. Mas não é na mesa
de discussão que poderá progredir muito o esforço de
integração entre as perspectivas da biologia e das ciências
humanas. Não se trata de apenas efetuar uma tradução
de termos ou um cut-and-paste de idéias. Mais estimu-
lante e produtivo é o contato que se dá em regiões de
fronteira, em torno de assuntos suficientemente próximos
para que a vantagem de olhar de dois ou mais pontos de
vista se torne explícita. A aproximação se dá, então, atra-
vés do interesse convergente dos pesquisadores e de uma
transferência natural de modos de pensar e de métodos
de um lado a outro.
Piaget disse uma vez que uma regra de criatividade era
olhar ao lado do assunto pesquisado (Lino de Macedo,
comunicação pessoal), aventurar-se fora dos esquemas,
procurando outras formas de ver os fatos, à maneira do
antropólogo que aborda uma sociedade que ele pretende
compreender com curiosidade e desejo de assimilação.
Ainda usando o pensamento de Piaget, eu diria que é
necessário descentrar a sua perspectiva, ou seja, ver o mesmo
objeto de uma outra perspectiva, sem abandonar a base
de especialização. É no surpreender-se diante do objeto
(porque visto dentro de outro referencial) que está uma
das raízes da integração entre perspectivas: prender-se
menos aos modos habituais de conhecer e às posições teóri-
cas e mais à necessidade de conhecer o objeto da forma
mais completa e interativa possível.
A hierarquia que o senso comum estabelece entre as
ciências faz muitos temerem que, num empreendimento
conjunto, os enunciados da psicologia acabem se reduzin-
do aos da biologia. Não há razão, contudo, para pensar
que a migração de conceitos seja unidirecional, não há
perspectivas necessariamente mais básicas ou mais ricas na
produção de perguntas. Vale uma epistemologia cruzada,
que se constitui na pesquisa efetuada com conceitos e
modelos transpostos de uma área para outra. Em vez de
pensar como reducionista o desenvolvimento do contato
entre psicologia e biologia - prefiro entendê-lo como
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 11
produto de uma coevolução que instaura interdependên-
cias'.
Neste texto, abordo a perspectiva evolucionista que
interpreta o comportamento humano como adaptação às
condições do ambiente físico e social em que o ser huma-
no evoluiu enquanto espécie. Do mesmo jeito como se
supõe ser adaptativo, porque pode afugentar predadores,
o movimento deimático de um louva-a-deus que se ergue
e estica as asas coloridas, ou a resposta do pavão de abrir
em leque a sua cauda, porque atrai as fêmeas, também
podem ser interpretados os comportamentos do ser huma-
no como produtos de uma evolução que os tornou funcio-
nais, isto é, que lhes atribuiu uma vantagem em termos
de sobrevivência e reprodução. Transpõe-se uma maneira
de conceituar o comportamento animal para o compor-
tamento humano.
Pode-se argüir que é inevitável esta transposição, uma
vez que, sendo ele próprio um animal, o ser humano tem
seu comportamento regido pelos mesmos princípios
(darwinistas) que regem o comportamento animal. Mas
este argumento, simples e lógico como é, não convence
necessariamente: embora sendo um animal, o ser humano
poderia seguir princípios comportamentais diferentes-
decorrentes de sua natureza diferente. simbólica, cultural,
histórica - às vezes entendidos como princípios emer-
gentes, libertos das contingências originais (Sawyer,
2002).
A questão que se coloca, então, é saber se as diferenças
do ser humano com os outros animais implicam necessa-
riamente, e desde o ponto de partida, a impossibilidade
de aplicar-se o modelo evolucionista ao comportamento
humano. As diferenças que marcam, obviamente, o
comportamento humano poderiam ser análogas às que
diferenciam um tipo de animal de outro, isto é, poderiam
ser assimiláveis a uma lógica evolutiva geral. Ou poderiam,
ao contrário, determinar um campo empírico sujeito a
princípios próprios, nâo-evolutivos.
2Sociedades científicas, como a Sociedade Latino-Americana de Psicobio-
logia, que se transformou em Sociedade Brasileira de Psicobiologia,que,
por sua vez, gerou a Sociedade Brasileira de Neurociência e Comporta-
mento, foram bases importantes para uma interação psicobiológica em
nosso meio. A Sociedade Brasileira de Etologia (SBEt), de cujos encontros
anuais participam psicólogos e especialistas em diversas áreas biológicas e
estudantes de diversos cursos de graduação, tem sido ponto de convergência
e de progresso na área. A Revista de Etologia, uma publicação da SBEt e do
Instituto de Psicologia da USp, tem abordado questões de fronteira com o
comportamento humano. Disciplinas como Etologia e Comportamento
Animal, oferecidas no Instituto de Psicologia da USp, que reúnem alunos
de biologia e de psicologia, além de outros, demonstram na prática das
discussões de aula a viabilidade da integração de perspectivas.
Teoria evolutiva geral ou específica do ser humano?
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Nota
Ser mais ousado e com parcimônia e rigor científico
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12 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia
Embora não existam critérios rigorosos para decidir
entre a comensurabilidade e a incomensurabilidade, pare-
ce-me apressada a proposição de que, se há diferenças,
torna-se necessário aceitar uma ruptura epistemológica
entre as áreas de pesquisa envolvidas. Se um peixe respira
através de guelras, um modo muito diferente da respiração
de organismos terrestres, isto não implica que devamos
construir, para os peixes, uma biologia especial (e que deva-
mos supor que eles não tenham sofrido uma história evolu-
tiva). O mesmo vale para o biossonar dos morcegos, os
dentes "recicláveis" dos tubarões, as asas das aves, o órgão
detector de temperatura das cobras e um número imenso
de diferenças entre animais. A abordagem evolucionista
não pretende (nem poderia, sem entrar em contradição
com a sua própria proposta) reduzir a estrutura de um
animal, ou a sua fisiologia, ou o seu comportamento, à
estrutura, à fisiologia ou ao comportamento de outro
animal. Pretende, ao contrário, a partir de princípios gerais
(seleção natural, seleção sexual e suas decorrências), expli-
car como teriam sido geradas as diferenças essenciais e
importantes entre os animais. Não há, nesta perspectiva,
contradição ou impossibilidade epistemológica em reco-
nhecer as características específicas do ser humano e em
acreditar que se insiram num esquema mais amplo de
semelhanças e de continuidade evolutiva.
Trata-se de uma abordagem comparativa, que parte das
semelhanças e diferenças entre o ser humano e outros
animais e busca examinar, através do confronto, a viabili-
dade de aplicação dos princípios de uma lógica euolucio-
nista. Entender o comportamento humano consiste em
tomá-lo como um caso especial e em verificar a validade,
neste caso, dos princípios de interpretação desenvolvidos
para a vida animal. Esta aplicação não é pura transposição.
Interpretar evolutivamente significa levar em conta a novi-
dade das características específicas (no sentido de próprias
da espécie) e aproveitá-Ias, num movimento de retorno,
para enriquecer o esquema geral.
A linguagem e a cultura, das quais muito nos orgulhamos
porque nos diferenciam, surgem como novidades no cená-
rio evolutivo e têm de ser tomadas como tais. O esforço
comparativo pode nos levar a perceber que a novidade, que
tanto impressiona, é uma novidade relativa: estudos sobre
a capacidade de primatas não-humanos adquirirem o uso
de símbolos em suas interações com o ser humano, se não
provam (e a intenção não é absolutamente provar) que esses
animais possam falar como seres humanos, mostram que
eles possuem aptidões que prenunciam a linguagem (Sava-
ge-Rumbaugh, Shanker e Taylor, 1998). Do mesmo jeito,
prenunciam a cultura humana as observações, feitas em
chimpanzés de diversas regiões da África, de diferenças
comportamentais estáveis e provavelmente transmitidas de
uma geração para outra (Perry e Manson, 2003).
A abordagem comparativa focaliza ao mesmo tempo
causa e função. A distinção entre categorias "causal" e
"funcional", ou entre a "causação próxima" e a "causação
última" (Alcock, 2001), esteve sempre implícita, desde
Darwin, na abordagem evolucionista. Foi posta em relevo
por Tinbergen (1963), na sua famosa formulação das
quatro perguntas básicas para a pesquisa etológica. Sem
retomar a uma definição ou discussão dessas categorias,
vale a pena notar que é possível interessar-se, em certo
estágio de investigação, mais pela estrutura e funciona-
mento de um processo comportamental, isto é, pelas suas
características descritivas e causais, do que pelas implica-
ções evolucionistas. O fato de não se saber por que (em
termos funcionais) o riso humano tem as características
sonográficas que tem, não impede que haja interesse em
descrever de forma minuciosa as suas emissões, verifican-
do o quanto são estereotipadas (Provine e Yong, 1991) ou
o quanto são variáveis, compostas de episódios vocalizados
e não-vocalizados (Bachorowski, Smoski e Owren, 2001).
Do mesmo jeito, pode-se investir tempo de pesquisa regis-
trando os contextos em que pessoas riem (às vezes à toa,
sem que haja nada de humorístico na situação, Provine,
1993), ou formular uma teoria sobre a determinação social
do riso, mostrando que depende da motivação do emissor,
de seu relacionamento com o ouvinte e que atua como
modificador de afetos (Owren e Bachorowski, 2003), antes
ou independentemente da formulação de hipóteses evolu-
cionistas.
Também pode existir um interesse maior pelo teste de
uma hipótese funcional do que pela análise do mecanismo
causal subjacente. Não pode haver contradição entre as
duas abordagens, mas elas podem proceder independen-
temente, de acordo com os objetivos da investigação
empreendida. A pesquisa psicológica comumente se centra
sobre questões causais (por exemplo, contextos em que
aparecem falsas memórias, efeito da disposição do mobi-
liário de uma creche sobre o comportamento de crianças
pequenas, capacidade que bebês têm de imitar expressões
faciais etc.), enquanto muito da pesquisa em comporta-
mento animal, dentro de uma perspectiva biológica, busca
comprovar hipóteses funcionais (por exemplo, relativas às
idéias de Trivers, 1972, sobre investimento parental).
Isso significa que não é necessário que toda pesquisa
psicológica passe a se pautar por hipóteses evolucionistas,
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embora, a longo prazo e dentro de uma visão unificada,
os níveis causal e funcional devam ter uma conexão flexí-
vel e de mútua influência. Hipóteses evolucionistas são
formuladas a partir de estudos causais e precisam deles
para alcançar sua formulação mais precisa e para encontrar
a sua comprovação. A avaliação de hipóteses a respeito do
apego, enquanto estratégia evolutiva, depende do conhe-
cimento de como se desenvolve a relação mãe-criança, da
descrição dos tipos de apego etc. Estudos sobre os proces-
sos cognitivos, dentro de um quadro causal, produzem
informações relevantes às formulações evolucionistas a
respeito da modularidade dos mecanismos mentais. De
maneira inversa, a abordagem evolucionista pode ser vista
como um programa heurístico de pesquisa, capaz de gerar
perguntas e hipóteses, e de motivar pesquisas com meto-
dologia própria (Lakatos, 1970). Abre campos empíricos
inatingidos até o momento e proporciona idéias para
pesquisas causais, fechando o círculo.
COEVOLUÇÃO
PSICOBIOLÓGICPA: MOMENTO I
Nunca foi tranqüila a história da inserção, ou tentativa
de inserção, das idéias evolucionistas na psicologia. A revi-
são desta história mostra que ela é pontuada por polêmi-
cas científicas e até pessoais, muitas vezesduras, pouco
construtivas. A polêmica indica que não é num clima de
neutralidade científica que se desenvolvem e se articulam
as teorias psicobiológicas, mas num contexto marcado pela
referência às concepções correntes sobre o que é a socie-
dade humana e sobre os perigos que poderiam advir de
uma teoria científica que se transforme em justificativa
para práticas injustas. Rimos bastante, hoje, das charges
publicadas na época de Darwin a respeito da teoria evolu-
cionista, muitas delas representando Darwin meio homem,
meio macaco. Mas elas eram sintomáticas de uma percep-
ção de perigo ou de inconveniência, recuperavam mitos
antigos, nem sempre apaziguadores, de participação do
ser humano na natureza animal.
Mas também se nota, revendo a história, o quanto as
idéias evolucionistas estiveram presentes desde o início do
desenvolvimento da psicologia, enquanto ciência. Wundt,
um dos pioneiros da psicologia científica, escreveu, com um
certo teor recapitulacionista: "Se tentarmos resolver, a partir
da comparação dos atributos psíquicos, a questão geral da
relação genética entre o homem e os animais, devemos adrni-
rir, dada a semelhança dos elementos psíquicos e de suas
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 13
formas mais simples e mais gerais de combinação, que é
possível que a consciência humana tenha se desenvolvido a
partir de uma forma inferior de consciência animal. Este
pressuposto também é fortemente reforçado pelo fato de
que se encontra no reino animal uma série completa de
estágios diferentes de desenvolvimento psíquico e de que
cada ser humano individual passa por um desenvolvimento
análogo" (Wundt, 1897, pp. 280-281).
Romanes, naturalista amigo de Darwin, e Lloyd Morgan,
psicólogo inglês, professor de zoologia na Universidade de
Bristol, foram darwinistas no campo ainda incipiente das
interpretações evolucionistas para o comportamento.
Romanes (1883) preocupou-se em demonstrar a flexibi-
lidade do instinto, na andorinha que melhora a construção
de seu ninho, nos cães de caça que adquirem hábitos muito
diferentes dos hábitos naturais e em estabelecer paralelos
com a consciência humana. Descreveu, por exemplo, como
proposital e consciente o comportamento de um macaco
que numa certa oportunidade desfez os nós de uma corda
para balançar-se nela, alcançar a porta de sua gaiola e fugir.
A postura anedótica e anrropornórfica de Romanes foi
criticada por Lloyd Morgan (1894), cujo cânone, ampla-
mente citado, estabelecia limites para a interpretação de
processos mentais em animais. Mas o propósito dos primei-
ros darwinistas era mesmo o de demonstrar a continuida-
de essencial entre a psicologia animal e a psicologia huma-
na, partindo da consciência humana e indicando o seu
surgimento evolutivo de formas mais simples, como o
reflexo ou o instinto.
A influência de Darwin também se manifestou sobre o
jovem Freud. Ainda aluno de medicina, fora enviado à
estação de biologia marinha de Trieste pelo seu orientador,
o professor Klaus, um darwinista convicto. A missão de
Freud era dissecar enguias, em busca de possíveis bases
anatômicas para a distinção entre enguia-macho e enguia-
fêmea. O artigo que resultou dessa pesquisa tem a minú-
cia e o rigor que o tema exigia. Coloca-se a questão do
quanto permaneceu deste ponto de partida biológico no
desenvolvimento da psicanálise, e de quanto não seria
propícia uma revisão reintegrativa da questão das relações
entre psicanálise e pesquisa psicológica (Ades, 2001). A
repressão, enquanto mecanismo (freudiano) através do
qual idéias são mantidas fora da consciência, talvez pudes-
se ser explicada através do funcionamento da memória
operacional, de aumentos na atividade nervosa do córtex
pré-frontal dorsolateral e da redução da atividade hipo-
campal, mostrando a possibilidade de convergência (Xavier
e Helene, 2005).
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Lápis
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Caixa de texto
leiam até aqui
14 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia
Em seu livro que nos cativa pela forma saborosa com a
qual se refere aos fenômenos psicológicos ("estas coisas que
chamamos sentimentos, desejos, cognições, raciocínios,
decisões e outros que tais" ... ), WilliamJames (1890/1952)
afirmava que "um certo tanto de psicologia-do-cérebro deve
ser pressuposto ou incluído na psicologià' (p. 3). Mas James
não apenas se preocupa com centros e vias neurais possí-
veis, ele cria outra convergência com a biologia, e usa, talvez
pela primeira vez, a expressão "psicologia evolucionista",
que sugere serem os fenômenos psicológicos produtos de
uma longa e lenta transformação da espécie. Observa
primeiro que "com o surgimento da consciência, uma nova
natureza parece introduzir-se, algo cuja potência não resul-
ta dos meros átomos em expansão do caos original" (p. 95).
Parece haver incomensurabilidade entre as leis da matéria
e as do sentimento e da vida mental em geral. Mas James
logo defende o princípio de continuidade: "deveríamos de
modo sincero tentar de todas as possíveis maneiras conce-
ber o surgimento da consciência de modo que não pareça
equivalente à irrupção no universo de uma nova substância,
até então não-existente" (p, 97).
Nesta tentativa de tomar a mente, "como um objeto
num mundo de outros objetos", James se preocupa, entre
outras coisas, com instintos. Não é necessário dar-se ao
esforço de comprovar a sua existência no mundo animal:
são muitos os casos. Mas eles também existem no ser
humano, e em variedade maior. Fiquei impressionado de
encontrar, em James, evidentemente de forma mais espe-
culativa, a idéia de que os instintos se transformam, pela
sua própria execução, e que vão construindo, assim, expec-
tativas aprendidas a respeito do contexto. "Cada ato instin-
tivo, num animal dotado de memória, deixa de ser "cego"
depois da primeira repetição" (p, 704). Assim, "já que o
animal de razão mais rica pode ser também o animal mais
rico em impulsos instintivos, ele (o ser humano) nunca
poderia parecer-se com o autômato fatal que um animal
meramente instintivo seria" (p. 706).
Também fiquei impressionado com a percepção, muito
moderna, de como a evolução dos organismos implica
também a evolução dos ambientes em que sobrevivem:
"nossas faculdades internas estão adaptadas de antemão às
características do mundo em que vivemos, adaptadas, eu
entendo, de modo a conseguirmos nossa segurança e nossa
prosperidade nele ... mente e mundo evoluíram juntos e,
em conseqüência, demonstram um ajustamento mútuo"
(James, 1892, p. 3-4).
Esta suposição de que atuam, no ser humano, impulsos
ou motivações típicas que o definem como tal, análogos
aos que existem em animais, e esta percepção de que estes
impulsos ou motivações não são necessariamente cegos e
estanques à experiência são um prenúncio das colocações
etológicas e da moderna psicologia evolucionista. Encon-
tram sua raiz em Darwin, que tinha previsto a importân-
cia de sua teoria para a psicologia. No final de A Origem
das Espécies (1872), ele escreve: "num futuro distante, eu
vejo campos abertos para pesquisas muito mais importan-
tes. A psicologia encontrará uma base segura no funda-
mento ... da aquisição necessária de cada poder mental e
de cada capacidade mental de forma gradativa. Muita luz
será lançada sobre a origem do homem e sobre sua histó-
rià' (Darwin, 1859/1996, p. 394).
Darwin não esperou esse futuro distante para realizar
um exercício de aplicação do pensamento evolucionista
ao domínio psicológico. Em vez de estudar o lado "mental"
das emoções, como faria Wundt, dirigiu seu olhar natu-
ralista, colecionador de detalhes, à expressão das emoções
no homem e nos animais. O título do seu livro coloca bem
a crença de que existe entre os (outros) animais e o ser
humano uma continuidade suficiente para que compara-
ções possam ser estabelecidas, reveladoras de semelhanças
e de diferenças, indícios do partilharnento de uma história
evolutiva (Darwin, 1872). O livro, que foi um dosprimei-
ros a usar fotografias com finalidade científica, foi um
verdadeiro best-seller, na época de seu lançamento, em
1872. Mas não teve impacto sobre a pesquisa. Levou quase
um século para que a sua proposta fosse recuperada por
Paul Ekman, um psicólogo que dedicou uma carreira intei-
ra ao estudo de como a face espelha ou esconde a raiva, a
tristeza, o nojo, a alegria, a surpresa, o medo, o desprezo
e outras emoções. Ekman promoveu a reedição de A
Expressão das Emoções ... (Darwin, 1998) que ele conside-
rava "um livro extraordinário, radical para o seu tempo e
mesmo hoje" (Ekman, 2003, p. 1)3.
Darwin sugere, no primeiro capítulo de seu livro (cita-
do aqui na versão traduzida, Darwin, 2000), as fontes nas
quais foi buscar informação. Em sua maioria, ainda são
válidas. Dentre elas, observar as crianças, pois elas exibem
muitas emoções com "extraordinária intensidade" (p. 23),
de uma maneira mais reveladora, às vezes, do que mais
tarde na vida; usar fotos de expressões faciais para serem
avaliadas, quanto à emoção transmitida ["muitas das
3Nota das organizadoras: no Brasil, o livro encontra-se traduzido para o
português e publicado pela Companhia das Letras, em 2000, por reco-
mendação do professor Renato Queiroz, do Departamento de Antropo-
logia da USP.
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expressões foram imediatamente reconhecidas por quase
rodos, ainda que descritas não da mesma maneira" (p. 23)];
buscar descrições de como manifestam emoção pessoas
em outras culturas, de preferência não em contato com
eutopeus ["sempre que determinadas mudanças nas feições
e no corpo exprimirem as mesmas emoções nas diferentes
raças humanas, poderemos inferir, com grande probabili-
dade, que estas são expressões verdadeiras, ou seja, que são
inatas ou instintivas. Expressões ou gestos adquiridos por
convenção na infância provavelmente difeririam tanto
quanto diferem as línguas" (p. 24)]; descrever as expressões
que animais mais comuns exibem, "claro que não para
decidir", escreve Darwin, "até onde no homem algumas
expressões são características de determinados estados de
espírito, mas para proporcionar a mais segura base para se
zeneralizarem as causas, ou origens, dos vários movimen-
tos de Expressão. Ao observar animais, estamos menos
ropensos a nos deixar influenciar pela nossa imaginação;
~ podemos estar seguros de que suas expressões não são
convencionadas" (p. 27). Darwin acreditava que as emoções
não fossem exclusivas dos seres humanos. ''Até as abelhas
?üdem ficar com raiva, dizia Darwin. Só nos últimos anos
s que os estudiosos do comportamento animal pararam
e se acanhar do perigo do antropomorfismo e aceitam as
sábias observações de Darwin, segundo as quais, muitas
rezes, os contextos sociais que geram emoções nos seres
. umanos também as produzem em animais" (Ekman,
_003, p. 2). Vê-se que Darwin (falando em raiva nas
abelhasl) usava o método comparativo nas duas direções:
o animal para o ser humano e deste para o animal, de
ama forma que seria difícil taxar de reducionista.
~ /
COEVOLUÇAO PSICOBIOLOGICA:
MOMENTO 2
A tentação da abordagem biológica ao comportamento
umano, depois destas tentativas isoladas, reaparece com
_orenz e Tinbergen. Sua intenção inicial era recuperar a
coção de instinto - um tanto maltratada pelo behavio-
. mo que, em tudo ou quase tudo, queria ver aprendiza-
z; - colocando-a numa perspectiva evolutiva. Tanto
_orenz (1937), sob a influência do ornitólogo Heinroth,
mo Tinbergen (1958), andando pelas dunas holandesas
: a observar vespas caçadoras e gaivotas, estavam queren-
- construir uma ciência do comportamento animal, mas
zrnbos acabaram incluindo o ser humano em sua proposta.
::::>uassão, a meu ver, as principais contribuições da etolo-
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 15
gia clássica: a primeira, mais essencial, a insistência de que
se deve encontrar raízes instintivas (típicas da espécie, gené-
ticas ou qualquer outro termo que se queira usar) no
comportamento humano e, isso, usando os métodos apon-
tados por Darwin: voltar aos primeiros desempenhos do
bebê ou da criança pequena, na tentativa de surpreender
o que não possa ser atribuído à experiência cultural;
demonstrar a transculturalidade de certos comportamen-
tos humanos. O livro Human Ethology, de Eibl- Eibesfeldt
(1989), com suas cerca de 800 páginas, representa bem a
riqueza de material empírico que as hipóteses etológicas
são capazes de gerar.
A segunda contribuição é metodológica. Os etólogos
clássicos propunham que se observasse o comportamento
humano como o naturalista observa o comportamento
animal: pondo entre parênteses os pressupostos, não indo
direto ao processo inferido, não buscando aplicar a todo
custo um esquema preconcebido; em suma, deixando o
sujeito observado livre para demonstrar o seu modo de
interagir com o ambiente. Desmond Morris, que começou
observador de aves, dizia que podia haver man watching
(ou, de forma menos sexista, person watching) do mesmo
jeito que há bird watchinge se propôs a cultivar este olhar
curioso em relação ao corriqueiro da vida das pessoas
(Morris, 1977).
Os estudos etológicos sobre o comportamento infantil
têm por modelo as descrições minuciosas de Blurton Jones
(1972/1981). Muitos estudos brasileiros podem ser citados
como argumento da relevância de se olhar com atenção e
de se categorizar o comportamento humano. Se hoje não
se ressalta nem se discute a questão da observação, em
psicologia, é que a técnica se integrou às outras, a ponto
de não ser necessário remontar às suas origens. Do mesmo
modo como noções psicanalíticas passaram a fazer parte
do conhecimento comum, certos conceitos e formulações
etológicos difundem-se através da mídia, atendendo à
curiosidade a respeito das semelhanças ou dessemelhanças
entre a mente humana e a animal. São versões modernas
de atitudes e crenças muito antigas. Um certo modo de
divulgar idéias etológicas veio com os textos de Lorenz
sobre os males da humanidade e, principalmente, com os
livros de Morris que usa um misto de conhecimentos cien-
tíficos com observações em que o senso comum se reco-
nhece. O Macaco Nu (199712003) teve enorme repercus-
são; agora, temos A Mulher Nua (Morris, 2004/2005).
Embora este tipo de divulgação tenha o mérito de colocar,
para um público maior, a plausibilidade de uma perspec-
tiva psicobiológica, pode criar a impressão de que as inter-
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16 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia
pretações biológicas são intuitivas ou simplificadoras em
demasia.
Incomodado com a definição dicotômica que Lorenz
dava do comportamento instintivo, ligado como que inevi-
tavelmente à genética e, através da genética, à ação do
ambiente evolutivo, Lehrman (1953) teceu críticas duras
ao inatismo e defendeu a interação genes-ambiente como
feição constante da ontogênese. Os argumentos giravam
em torno do comportamento animal, mas tinham óbvias
implicações para o ser humano. Lorenz acabou conceden-
do que não há traço comportamental em princípio livre
de efeitos ontogenéticos, sem, contudo, abandonar a sua
ênfase no caráter típico-da-espécie, dos padrões instintivos.
A controvérsia Lorenz-Lehrman põe em destaque a neces-
sidade - antiga mas sempre atual - de criar uma ferra-
menta conceitual para dar conta da constância e da varia-
bilidade dos comportamentos adaptativos.
- ICOEVOlUÇAO PSICOBIOlOGICA:
MOMENTO 3
Quando o mirmecólogo Edward Wilson saiu de seu
campo de especialização e publicou Sociobiology: a new
synthesis (1975), também gerou uma enorme resistência,
e não apenas entre cientistas sociais (Rose, Kamin e Lewon-
tin, 1985; Gould e Lewontin, 1979; ver também Yama-
moto, Capo 1 deste livro). Como o próprio Wilson nota,
embora suas idéias sobre animais tivessem sido aceitas, de
imediato, "a generalização ... das teorias da Sociobiologia
aos seres humanos ... teve uma recepção totalmente dife-
rente,pelo menos fora da biologia. Nos anos setenta, preva-
lecia nas ciências sociais a idéia de que não existe uma base
biológica para a natureza humana, que o comportamento
humano tem uma origem quase integralmente sociocul-
tural e, portanto, que os genes desempenham pouco ou
nenhum papel além de auferir capacidade intelectual ou
emocional. Eu defendi o contrário, que a biologia desem-
penha um papel maior, em estreita sintonia com a cultu-
ra, e que o comportamento humano não pode ser compre-
endido sem a biologia" (Wilson, 1995).
A ambição de Wilson era aplicar à sociedade humana
e aos animais os princípios de uma nova compreensão dos
mecanismos de sobrevivência, baseada nos trabalhos teóri-
cos de Hamilton sobre a genética do comportamento social
(Hamilton, 1964a, 1964b) e de Williams (1966), de acor-
do com os quais a seleção atua, não sobre características
de uma espécie, mas sobre as características do indivíduo.
Daí o surgimento da noção de "gene egoísta", populariza-
da por Dawkins (1999) e o abandono da concepção, acei-
ta por etólogos clássicos, de atos selecionados "pelo bem
da espécie".
Os debates foram acalorados. Gould e Dawkins, ambos
admiradores de Darwin, escreviam resenhas um dos livros
do outro, trocando comentários ácidos. Do lado de Wilson,
estavam, além de Dawkins, Stephen Pinker (autor de Como
a Mente Funciona, 1997/2001 e, mais recentemente, de
Tábula Rasa, 2002/2004), e Alcock, o autor de um exce-
lente manual evolucionista sobre comportamento animal
(Alcock, 2001) e de um livro que transmite, a partir de
seu título (The Triumph ofSociobiology, 2001), a exultação
de quem acredita estar do lado certo.
COEVOlUÇÃO PSICOBIOlÓGICA:
MOMENTO 4
Um quarto momento na coevolução entre psicologia e
biologia ocorre quando arrefece a polêmica sociobiológica
e se estende até hoje. Marca-se pela proposta de constituição
de uma psicologia evolucionista. O nome, como foi visto,
remonta a William James. A diferença é que agora se colo-
ca explicitamente como uma perspectiva autônoma para a
análise do comportamento humano, constituída em torno
de um conjunto de pressupostos, com presença institucio-
nal enquanto campo de pesquisa e disciplina acadêmica.
Não se trata de apenas efetuar empréstimos rnetodoló-
gicos à biologia ou de interpretar processos psicológicos
conhecidos de uma forma evolucionista, mas de assimilar
o modo de pensar evolucionista, criando um programa de
pesquisa nascido, por assim dizer, de dentro da psicologia.
Um nome-resumo confere coerência e visibilidade social,
tende a constituir-se em bandeira. Foi o caso com a socio-
biologia, em que Wilson, em desafio à dicotomia tradi-
cional (sabendo o quanto a sua "consiliência" iria provocar
de reação), juntou sociocom bio, criando um nome-resu-
mo rapidamente empregado em cursos, encontros cientí-
ficos e no título de revistas. Também é o caso da antropo-
logia evolucionista e, de uma forma mais espetacular, da
ecologiacomportamental, a sucessora imediata da sociobio-
logia. Na criação desses nomes, observa-se uma caracte-
rística comum: a junção de campos epistemológicos diver-
sos, como se de linhas tradicionais, postas em convergên-
cia, pudessem resultar princípios mais abrangentes e
produtivos. É evidente que o nome não garante, por si, a
coerência e a validade de um programa científico.
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A psicologia evolucionista é identificada a partir de seus
orimeiros protagonistas, entre os quais John Tooby e Leda
Cosmides, da Universidade da Califórnia, em Santa Barba-
ra (Barkow, Cosmides e Tooby, 1992; Cosmides e Tooby,
989; 1999); Martin Daly e Margo Wilson, da MacMas-
ter University, do Canadá (Daly e Wilson, 1996, 1999),
e David Buss, da Universidade do Texas, em Austin (Buss,
990,2005).
A psicologia evolucionista está em fase de expansão. "O
campo da psicologia evolucionista emergiu drarnaticamen-
re nos últimos 15 anos como o indica o crescimento expo-
encial no número de artigos teóricos e empíricos na área",
escrevem Durrant e Ellis (2003, p. 1), apoiando-se em esta-
ticas: de quatro artigos, indicados por uma busca pelos
dices da PsychInfo, entre 1985 e 1988, passou-se para 231,
entre 1997 e 2000. Creio que deva ser ainda maior a conta-
:= m, em 2006. A psicologia evolucionista tem sua socieda-
e (Human Behavior and Evolution Society), seus manuais;
suas reuniões anuais; as pesquisas dentro de seu âmbito são
reiculadas em várias revistas especializadas. No Brasil, uma
miciativa marcante foi a reunião - durante o congresso da
.~ PEPp, em Aracruz, Espírito Santo, em 2004 - do grupo
-e trabalho "Psicologia Evolucionista". A Psicologia Evolu-
ionista marca-se pelo senso de renovação e pela idéia de
.ue será possível transcender a crônica divisão episternoló-
da psicologia através da perspectiva da evolução. Eviden-
ente, tanto entusiasmo gera resistências.
Psicologia Evolucionista rejeita o que Cosmides e
y denominam "modelo padrão das ciências sociais",
emplificado pela posição da co-participanre, antropó-
ga, no simpósio sobre hereditariedade e ambiente ao
ual me referi no começo deste ensaio. Retoma por conta
• rópria a interpretação do comportamento humano como
ré-selecionado e adaptativo, também central às propostas
etologia clássica e da sociobiologia. "Sofremos todos de
cegueira para os instintos", escrevem Cosmides e Tooby
1999, p. 2). cc ••• uma abordagem evolucionista ... perrni-
re reconhecer que competências naturais existem, indica
ue a mente é uma coleção heterogênea destas competên-
cias e, o que é o mais importante, fornece teorias concre-
acerca de suas estruturas" (grifo meu).
As competências naturais são adaptações produzidas pela
seleção natural e pela seleção sexual em mecanismos psico-
»gicos que não representam uma pura manifestação gené-
oca,mas decorrem de uma interação genes/fatores arnbien-
:ais que produz toda uma gama de desempenhos compor-
ramentais e cognitivos. De acordo com Buss (1999), os
ecanismos psicológicos são estruturas que se desenvolve-
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 17
ram, ao longo da evolução, por resolver problemas especí-
ficos de sobrevivência e de reprodução. São seletivos (levam
em conta apenas determinados aspectos do ambiente),
funcionam de acordo com regras e procedimentos especí-
ficos e geram informação para outros mecanismos ou se
traduzem diretamente em comportamento.
Os psicólogos evolucionistas se incomodam com a idéia
de que existem mecanismos de efeitos generalizados, pron-
tos para lidar com uma gama extensa de desafios ambien-
tais. Preferem pensar que a mente é composta por uma
coleção de aptidões restritas, de uma certa quantidade de
mecanismos psicológicos, cada qual selecionado de acordo
com uma finalidade particular. A busca de alimento, a
seleção de um parceiro reprodutivo, a evitação do incesto,
a aquisição de uma posição na hierarquia de dominância
são problemas que requerem soluções específicas. É mais
plausível imaginar que tenham acabado por ser atendidos
por mecanismos modulares. Não há soluções gerais porque
não há problemas gerais (ver também Seidl de Moura e
Oliva e Ottoni, Caps. 5 e 6 deste livro).
Trata-se de uma questão de engenharia e de otimização
de desempenho. Imagine-se uma fábrica com uma única
máquina polivalente versusuma fábrica com máquinas feitas
sob medida para cada tarefa. Acreditam os psicólogos evolu-
cionistas que a segunda seria certamente mais eficiente e
que, na contrapartida comportamental, o mesmo mecanis-
mo cognitivo raramente seria capaz de resolver problemas
adaptativos diferentes. Isso representa um retorno à intuição
jamesiana de que o ser humano, ao invés de ser desprovido
de instintos, como afirma o senso comum, os tem em quan-
tidade. Dentre os instintos que compõem a lista de James:
a pugnacidade, a emulação, o medo, a apropriação ou "aqui-
sitividade", a construtividade, a brincadeira, a curiosidade,
a secretividade, a vergonha, o amor. James afirma que o
ciúme é "inquestionavelmente instintivo"(p. 735). Veremos
mais adiante algo a respeito.
Mas os mecanismos psicológicos não são todos facil-
mente especificáveis, nem pode ser sempre determinada
sua localização no sistema nervoso, e nem podem ser total-
mente independentes uns dos outros: a crença na modu-
laridade não vai tão longe. Alguns psicólogos evolucionis-
tas concedem que "qualquer que seja a taxonomia de meca-
nismos especializados que seja proposta para dar conta da
mente humana, deve incluir também alguns processos
não-específicos. Os mecanismos envolvidos no condicio-
namento clássico e operante podem ser exemplos bons
destes processos não-específicos" (Durrant e Ellis, 2003,
p. 10). Falta uma discussão dos critérios para distinguir o
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campo de atuação de processos de domínio específico e
de processos de domínio geral e das pressões evolutivas
para o surgimento de uns e de outros. A idéia da especi-
ficidade gera hipóteses de trás-para-diante: a partir da
função que se supõe exercida por um determinado meca-
nismo, pode-se imaginar quais devam ser as suas caracte-
rísticas estruturais (diferentes das características de meca-
nismos que servem outras funções).
Os mecanismos psicológicos são remanescentes de uma
adaptação adquirida em épocas ancestrais. Para a Psicologia
Evolucionista, é essencial a distinção entre o ambiente em
que a seleção atuou sobre uma determinada população de
organismos, moldando as suas características em função
das demandas ambientais, e o ambiente em que estas adap-
tações são postas em funcionamento, às vezes em condições
que as tornam contraproducentes. O ambiente da seleção
é o ambiente de adaptação evolutiva (ver também Izar, Capo
3 deste livro). Supõe-se então que muitos dos traços psico-
lógicos que nos caracterizam tenham sido formados neste
longo e nebuloso passado, a respeito do qual temos poucos
indícios inequívocos. A civilização moderna, que remonta
à invenção da agricultura, há poucos milhares de anos atrás,
não exerceu papel seletivo apreciável, e não há por que
pensar que, hoje, dispomos de adaptações genéticas para
ver programas de TV; para utilizar a Internet ou para diri-
gir carros no terrível trânsito de São Paulo. De acordo com
uma certa interpretação, estaríamos controlados por prin-
cípios motivacionais e de cognição válidos para ambientes
que não são mais os nossos. A compreensão do comporta-
mento humano dependeria então do confronto entre os
contextos atual e primordial. "Obviamente", concedem
Cosmides e Tooby, "somos capazes de resolver problemas
que nunca se colocaram para caçador-coletor algum, pode-
mos aprender matemática, a dirigir carros, a usar compu-
tadores. Nossa habilidade para resolver problemas como
estes é um efeito colateral ou uma conseqüência dos circui-
tos que foram delineados para atender a problemas adap-
tativos" (Cosmides e Tooby, 1999, p. 6).
Estudo de Caso I: Reconciliação
Usarei dois exemplos de aplicação de uma abordagem
comparativa/evolucionista a campos psicológicos. A idéia
é mostrar que esta abordagem funciona como um progra-
ma de pesquisa, gerador de perguntas e de metodologias,
cuja riqueza depende do quanto de novidade empírica
fornece e do quanto promete em termos de reorganização
teórica.
O primeiro exemplo, sobre a reconciliação, visa ilustrar
o valor heurístico da transposição de perguntas entre etolo-
gia-animal e etologia-humana, a partir de comportamen-
tos ou processos que apresentam semelhanças descritivas
ou causais. É uma estratégia que, do pressuposto da seme-
lhança, parte para a descoberta de elementos que possam
confirmá-Ia. É biunívoca, pode partir do homem como
modelo para o animal (no bom sentido de antro pomo r-
fismo, defendido por de Waal, 1997) ou do animal para
o homem. O objetivo, vale a pena voltar a dizer, não é
nem redução, nem identificação total.
Se chimpanzés se tocam e se beijam depois de um episó-
dio de briga (ao invés de se evitarem) e se, com isso, pare-
cem voltar a ter uma interação pacífica, não seria de se
esperar que crianças (ou adultos) evidenciassem uma
tendência semelhante? A idéia nasceu da leitura de um
artigo que Franz de Waal publicou em 1979, com van
Roosmalen (de Waal e van Roosmalen, 1979), sobre a
reconciliação em chimpanzés. Sempre que dois chimpan-
zés, da colônia do zoológico de Arnhem, na Holanda,
entrassem em conflito, o comportamento de um deles era
observado por mais 45 minutos. Embora, de imediato, os
oponentes se afastassem um do outro, era notável que
fossem vistos emitindo, depois, comportamentos amigá-
veis, como abraçar-se, esticar a mão, emitir uma vocaliza-
ção de submissão e até beijar-se. No período após o conflito,
os atos afiliativos eram mais freqüentes do que num período
correspondente sem conflito, o que sugere que a aproxi-
mação fosse produto do próprio conflito, e talvez produto
de uma motivação para recuperar uma interação pacífica.
Daí o termo "reconciliação".
Quando Paula Maria de Almeida Fríoli me procurou
para escolhermos um tema de pesquisa para o doutorado,
pensamos em buscar estes correlatos no comportamento
de crianças (Fríoli, 1997). As referências acerca da agres-
sividade infantil eram fartas, mas havia muito pouco publi-
cado a respeito de uma possível pacificação pós-conflito
(Sackin e Thelen, 1984). No pátio de uma escola de São
Paulo, Paula observou 256 crianças, de 4 a 5 anos (estágio
1), de 5 a 6 anos (estágio 11) e de 7 a 8 anos (estágio 111).
O comportamento das crianças, registrado em videoteipe,
foi classificado em categorias amplas, sendo também regis-
tradas as interferências de terceiros, as relações de amizade
entre as crianças etc. Depois de uma fase de registros focais,
procedeu-se à observação dos episódios de conflito, sempre
que surgissem. O registro, iniciado com as primeiras provo-
cações, ia até o final da briga e abrangia um período suple-
mentar de cinco minutos. Os meninos se mostraram mais
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agressivos, fisicamente, do que as meninas; estas, mais
afiliativas e reconciliatórias. No estágio I, a disputa pela
posse de objetos ou pela ocupação de espaço eram os desen-
cadeadores básicos e a agressão se manifestava por movi-
mentos de bater, de perseguir, de puxar, com apelos de
mediação à professora. Nos estágios seguintes, aumenta-
vam em freqüência formas simbólicas, ritualizadas de agre-
dir, como as ameaças e agressões verbais. Isso estava de
acordo com as expectativas. A existência de comportamen-
os reconciliatórios, nos três níveis de idade, foi uma novi-
dade e uma confirmação.
A reconciliação se manifestava, de início, através de atos
como beijar, abraçar, ficar de mãos dadas, colocar o braço
no ombro do outro etc. em grupos geralmente de mesmo
sexo. A reaproximação era, muitas vezes, espontânea e sem
marcação explícita entre "estar de mal" e "estar de bem":
uma simples continuação da brincadeira interrompida.
_ o segundo estágio, os comportamentos de "ficar de mal"
~"fazer as pazes" apareciam de maneira mais nítida, dota-
os de uma característica de desafio e eram usados mesmo
ue não houvesse um motivo aparente para a briga, como
se as crianças estivessem testando sua capacidade de romper
ou instaurar relacionamentos. O terceiro estágio era marca-
o pelo aparecimento pleno das formas ritualizadas de
rompimento e de reatamento. Não era apenas o objeto ou
o statusem disputa que mais importavam, mas a definição
·0 relacionamento. "Mãos no rosto" era um ficar de mal
rirualizado, exibido principalmente por meninas. Duran-
te um episódio de conflito ou no final deste, uma das
ianças levava o dedo indicador de uma bochecha à outra,
•ueixo para cima em atitude de desafio ou de superiori-
de, muitas vezes dizendo: "Belém, Belém, nunca mais
-co de bem, nem agora, nem no ano que vem." Reconci-
. ções verbais - pedidos de desculpas, oferecimentos
simbólicos ("amanhã eu te empresto o meu caminhão,
:;i?") ou real ("toma a minhabanheira") - ocorriam com
maior freqüência. Os comportamentos afiliativos eram
mais freqüentes logo depois da briga do que num período
cífico do dia seguinte, o que garante que tinham uma
_-nte motivacional própria.
Tem algo a ver a reconciliação animal com a reconci-
ção humana? Não estaríamos, ao usar o mesmo nome,
ndo de uma semelhança superficial a base para uma
comparação em profundidade? E o significado que o rela-
ionamento tem para uma criança, as fantasias que ela cria
torno dele, as regras, os princípios morais que vigoram
zo seu grupo? Questionamentos como estes se baseiam
cum modelo de identidade absoluta, traem a dimensão
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 19
comparativa. Não se trata de negar a dimensão própria
dos relacionamentos de crianças, mesmo pequenas. Nossa
pesquisa mostra como, ao longo dos níveis de idade,
mudam os modos através dos quais é restabelecido o equi-
líbrio depois do conflito. A natureza dos conflitos se trans-
forma quando entram em jogo regras de comportamento
verbalizáveis (como "eu cheguei primeiro" ou "foi a tia que
me deu" ou "você já tem um brinquedo"). O aparecimen-
to de formas ritualizadas - "Belérn, Belém ... " - indica
que "estar de bem" ou "estar de mal" deixaram sua fluidez
inicial e se colocam como estruturas afetivas próprias,
dentro da representação que a criança tem de seu grupo
social. Por isso, são usadas de forma quase lúdica, como
se as crianças brincassem de experimentar com as formas
de relacionamento. A perspectiva evolucionista tem a
vantagem de inserir os processos estudados no ser huma-
no num quadro comparativo amplo em que as diferenças
importam, mas têm significado em função das semelhan-
ças que lhes dão origem.
Estudo de Caso 2: Ciúme
O exemplo a seguir sobre o ciúme mostra que é possí-
vel deduzir, de um conjunto de princípios da teoria evolu-
cionista, conseqüências capazes de ser verificadas no
comportamento humano. O exemplo difere do exemplo
sobre a reconciliação, em que não havia definição prévia
de hipótese funcional e em que a passagem de uma pers-
pectiva para a outra se dava a partir da analogia entre
comportamentos concretos. No exemplo do ciúme, as
semelhanças de cenário ou de desempenho não importam
tanto, mas sim a idéia de que o ser humano se submete
aos princípios evolucionistas gerais que gerenciam o
comportamento de qualquer espécie.
A lógica evolucionista entende que cada indivíduo deva
atuar de maneira a favorecer a propagação de seus genes.
Não há intencionalidade consciente nisso, apenas a expres-
são da maneira como os organismos foram selecionados,
ao longo de incontáveis gerações. No cálculo de custos e
benefícios que rege a função reprodutiva, o investimento
diferencial do macho e da fêmea na produção da prole é
importante, predeterminando a maneira como macho e
fêmea se comportarão um em relação ao outro. É uma
história complexa, na qual as idéias de Hamilton (1964a,
b), Trivers (1972) e de outros biólogos tiveram um papel
importante. De acordo com a teoria, os machos têm
normalmente por objetivo biológico reproduzir-se com o
maior número possível de fêmeas, competindo e/ou se
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20 Um Olhar Evolucionista para a Psicologia
exibindo; as fêmeas têm normalmente o objetivo biológico
de escolher o melhor macho possível para a sua prole (ver
de Sousa e Mota, Capo 12 deste livro). Em caso de compe-
tição, as fêmeas se importarão com a qualidade do macho
e com os recursos que poderá proporcionar a elas e à prole,
os machos com a fertilidade da fêmea e em afastar concor-
rentes. Machos, em certas espécies, montarão guarda para
impedir que a fêmea com a qual irão copular ou com a
qual já tenham copulado possa acasalar-se com outros.
Em que medida poder-se-ia dizer que existem compor-
tamentos humanos análogos às táticas de guarda de parcei-
ros dos animais? No levantamento de Buss (1988), efetu-
ado com estudantes universitários, constam categorias
como vigiar o parceiro, monopolizar o seu tempo, depre-
ciar possíveis rivais, usar de manipulação emocional e até
ameaçar ou punir a infidelidade, comportamentos de
"guarda" que não é difícil atribuir ao ciúme. Indo além da
analogia, cabe verificar se a teoria evolucionista propõe
hipóteses testáveis a respeito do ciúme humano. Uma hipó-
tese parte da idéia de que há uma diferença no modo de
pais e mães investirem na criação dos filhos. Ao homem,
só valeria a pena fornecer este cuidado se tivesse certeza
de paternidade. Portanto, o ciúme masculino reflete essa
preocupação. Sua motivação seria impedir a infidelidade
sexual da parceira e seu sofrimento, a suspeita a este respei-
to. À mulher, interessaria manter junto a si um parceiro
capaz de prover recursos para o desenvolvimento dos filhos
e haveria preocupação com a perda ou a diminuição deste
apoio, que poderia ocorrer como resultado de uma nova
ligação afetiva. Haveria, então, uma variedade masculina
do ciúme provocada pelas iniciativas sexuais (concretas ou
imaginadas) da mulher; e uma variedade feminina desper-
tada por uma traição afetiva (concreta ou imaginada).
Inspirei-me, numa pesquisa sobre as diferenças de sexo
no ciúme (Ades, 2003), no trabalho de Geary, Rumsey,
Bow-Thomas e Hoard (1995), em que um questionário
de ciúme era aplicado a estudantes universitários norte-
americanos e chineses, visando avaliar o sofrimento que
lhes causaria uma infidelidade (1) emocional ("seu parcei-
ro está tendo um relacionamento emocional profundo
com outra pessoa") ou (2) sexual ("seu parceiro está tendo
relações sexuais intensas com outra pessoa"). Havia dife-
renças culturais marcadas quanto à experiência amorosa:
a maioria dos chineses não tinha tido relacionamentos
prévios e, pouquíssimos, relacionamentos envolvendo
sexo; a maioria dos norte-americanos mantinha relacio-
namentos envolvendo sexo. Os resultados confirmaram a
hipótese evolucionista: um número significativamente
maior de homens (do que de mulheres), tanto norte-ameri-
canos como chineses, relatou mais sofrimento ao imaginar
a infidelidade sexual do que ao imaginar uma infidelidade
afetiva. O contexto cultural teve, contudo, influência: a
proporção de indivíduos relatando maior sofrimento pela
infidelidade sexual era maior entre os norte-americanos
do que entre os chineses.
Com um grupo de alunos", repliquei a pesquisa de
Geary et alo(1995). Nossa amostra, composta de estudan-
tes universitários de vários cursos da Universidade de São
Paulo, assemelhava-se mais à amostra norte-americana em
matéria de experiência de namoro do que da amostra
chinesa. Os dados também deram apoio à hipótese evolu-
cionista. Uma porcentagem maior de homens brasileiros
(50,9%) do que de mulheres (13,5%) disse sentir-se mais
afetada quando imaginava o parceiro tendo relações sexuais
ardentes com alguém do que quando o imaginava apaixo-
nado. A porcentagem se aproximava mais da encontrada
por Geary et alo (1995) em norte-americanos do que em
chineses, o que reforça a interpretação de que um maior
sentimento de ciúme sexual surge em contextos de maior
liberdade sexual (e, portanto, mais ameaçadores).
Um resultado surpreendente da pesquisa foi a semelhan-
ça entre homens e mulheres quanto às emoções desperta-
das pela infidelidade do parceiro. No caso da traição aferi-
va, tanto homens como mulheres diziam-se mais magoa-
dos e ciumentos do que enraivecidos, quando se tratava
de traição sexual, a raiva era fortemente manifestada, em
homens e mulheres, às vezes ultrapassando o nível do
ciúme e da mágoa. Concluímos que "embora confirman-
do a natureza transcultural das diferenças homem/mulher
quanto ao tipo de ciúme (sexual vs. emocional), nossos
resultados mostram que estas diferenças não se encontram
em todas as dimensões do comportamento ciumento e
parecem ser flexíveis e sujeitas a influências contextuais"
(Ades, 2003, p. 1186).
PRODUTIVIDADE E
PERSPECTIVAS DO PROGRAMA
EVOLUCIONISTA
O programa evolucionista aplicado à pesquisa psicoló-
gica tem tido grande produtividade, tem levado a insights
"Ana Paula Ferreira Moreira, AnaPaula Sammogini, Ana Luísa Tisselli,
Cláudia Fernanda Rodriguez, Janaína Silva, Kátia Ackermann e Luciana
Palma.
áreas de agressão, da violência doméstica, do apego e
ias relações pais-filhos, da formação de amizades e alianças,
,ja psicopatologia e em outros temas. Os dados que têm
:razido não são conhecimentos de senso comum reelabora-
ios. Não é trivial a pergunta "Por que é que mulheres são
:nais propensas a ter relações extraconjugais quando estão
ovulando?" e nem é fácil enquadrar a resposta, seja no senso
comum, seja numa das nossas teorias psicológicas.
Uma primeira contribuição do programa evolucionista
onsiste numa ênfase metodológica na observação do
comportamento em situações do dia-a-dia (naturais?), ilus-
rrada pelo exemplo do comportamento de reconciliação.
Mas nem tudo (na verdade, pouco) pode ser diretamente
observado. Entrevistas, questionários, avaliações, escalas
-o instrumentos necessários do psicólogo evolucionista
_ a abordar atitudes e afeto (como no caso do ciúme).
Urna segunda contribuição do programa evolucionista,
mais importante, tem a ver com a construção de um
quadro teórico integrado r de observações e gerador de
aipóteses,
Uma teoria evolucionista do comportamento humano
rem uma certa vantagem em termos de abrangência, uma
vez que coloca, na mesma perspectiva teórica, animais e seres
. umanos. Princípios do comportamento não são fechados
o círculo da espécie, mas referem-se a estruturas em trans-
formação que mantêm, entre si, uma semelhança básica, dife-
zenciando-se, contudo, de acordo com o grupo ou espécie
5Il que se concretizam. ''Ao invés de nos apegarmos à idéia
;::0 quanto somos diferentes de qualquer outro animal", afir-
a de Waal (em entrevista a M. F. Small, 2001), "a identi-
:::adehumana deveria ser construída sobre a idéia de que
somos animais que levaram adiante, num grau significativo,
certas capacidades. Nós e os outros animais somos iguais e
Um Olhar Evolucionista para a Psicologia 21
diferentes e a igualdade é o único quadro dentro do qual se
pode tornar concreta a diferença".
A abrangência teórica da perspectiva evolucionista cons-
trói-se de forma bidirecional, entre o conhecimento dos
animais e o conhecimento do ser humano. Uma tarefa difícil,
quando são detectadas semelhanças, é saber se expressam
homologia (mecanismos provenientes de uma ascendência
evolutiva comum) ou homoplasia (mecanismos convergentes,
sem ancestralidade comum). O mecanismo de reconheci-
mento da face, por exemplo, apresenta várias características
comuns ao ser humano e a primatas não-humanos que
apóiam a hipótese da homologia (Hauser e Spelke, 2004). É
a reconciliação - entendida como a presença de uma moti-
vação para a retomada de contato e interação após uma briga
entre crianças - uma característica homóloga ou hornoplás-
tica, em relação à reconciliação de primatas não-humanos em
circunstâncias semelhantes? Mesmo que não seja prudente
responder que sim, a comparação pode ser frutífera.
Os dados com animais indicam claramente existir conti-
nuidade evolutiva em muitos processos sociais e inclusive
na possibilidade de transmissão de tradições comporta-
mentais de uma geração para outra. Fornecem ainda uma
base forte para a idéia de que o ser humano é biologica-
mente cultural (de acordo com a bela expressão de meus
colegas Vera Sílvia Bussab e Fernando Leite Ribeiro, 1998).
No entanto, a compreensão do comportamento humano
permanece necessariamente aberta aos aportes de um olhar
psicológico, centrado na experiência individual, e ao olhar
antropológico dirigido aos aspectos coletivos da experiên-
cia. Não reduzir, mas ver melhor as características distin-
tivas e a complexidade do fenômeno humano na conti-
nuidade/descontinuidade com outras espécies e dentro do
quadro evolutivo do qual ele não pode escapar.

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