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Fale o que vem à sua cabeça, tente não ceder à censura, ela havia dito. Eu havia colocado o celular atrás de mim, numa posição instável em que o ap...

Fale o que vem à sua cabeça, tente não ceder à censura, ela havia dito. Eu havia colocado o celular atrás de mim, numa posição instável em que o aparelho se apoiava sobre um caderno e se encosta-va em uma garrafa grande de álcool gel, de 900 ml. Eu estava no sofá da sala, eram cinco da tarde, o sol de outono baixava e o início do frio se anunciava, havia uma manta perto de mim. O que me vier à cabeça? Perguntei, retoricamente, já que eu sabia como funcionava. O que te vier à cabeça, eu a escutei dizer. Era um tanto quanto arriscado aquele modo de prosseguir com a sessão. Afinal, se ela caísse, se a minha internet fa-lhasse, eu jamais saberia, uma vez que não estava olhando. Se uma queda maior de uma das redes acontecesse, quanto tempo eu seguiria falando sem que houvesse de fato uma in-terlocutora? Eu estava assumindo o risco de que poderia aca-bar falando para as paredes, e assim dava-se continuidade à análise que eu havia recomeçado duas semanas antes da qua-rentena. Do distanciamento. Diante da quantidade de coisas interrompidas na vida por causa da pandemia, não queria que meu projeto para 2020 de retomar a análise fosse postergado mais uma vez. Não deixava de ser estranho, porém, aquele formato. E aquela tentativa de replicar o formato em casa. Mas não haveria jei-to, eu não queria falar com ela me olhando tão diretamente, nem queria olhá-la. Observar suas expressões (ou suas possí-veis ausências de expressão) enquanto eu associava livremente me desconcentraria: eu não conseguiria evitar interpretar suas caras e bocas ou não-caras e não-bocas, eu não conseguiria evitar a ansiedade diante de uma sobrancelha que se levanta demais ou de menos. Tudo isso iria desviar a atenção de mim mesma. Por isso, eu assumiria o risco de me deitar no pseudo--divã e supor que a internet funcionaria sem percalços. Dizer o que vem à cabeça, não é? Inspirei e expirei sem pressa, como se tomasse fôlego para uma etapa árdua que se apresentava à minha frente. Eu já havia as-sociado livremente e já havia estudado algo em Freud sobre isso, mas vivenciar a coisa na quarentena é tão estranhamente diferente que nem sei. Eu estava no sexto período de psicologia e precisava experimentar aquele lugar. Álcool gel, eu disse, enfim. Hum..., talvez ela tenha retrucado. Álcool gel, cloroquina, vitamina D. Manter a distância. China. Hum..., talvez ela tenha dito. Álcool gel, fascismo, vacinas, geopolítica. Eleições de 2018. Mi-lícias. Quem mandou matar Marielle Franco? Wuhan, ensaios clínicos, epicentro, pandemia, vírus, mortes, covas, necrotério, luto, velório vazio, suicídios, corpos que caem da janela, que se espatifam no chão, que esperam a polícia, os bombeiros, a família, a imprensa, indiferença. E daí? Não sou coveiro. Não faço milagres. Dezenas de pedidos de impeachment na Câ-mara. Lockdown. Distanciamento social, distanciamento físico, férias forçadas, desemprego, entregadores de aplicativos, em-pregadas domésticas perdendo filhos do nono andar, luta de classes. A morte de um menino negro de 5 anos no Recife. A fiança e tudo bem. Hum..., talvez ela tenha insistido. A vida como ela é, risco de morte. Uma tragédia sempre à es-preita, a impotência sempre ao redor. Mil ministros da saúde e nenhum. Países nórdicos e suas governantes mulheres, Nova Zelândia, Paraguai, Uruguai. Curva. Achatar a curva. Crescimen-to exponencial. Generais e mais generais no poder. Fronteiras, aberturas, fases. Eficácia e segurança de remédios e vacinas, macacos rhesus, camundongos, pessoas. Tabelas e porcenta-gens, códigos para desvendar a crise. Voluntários. Pesquisa. Ci-ência. Fim dos direitos sociais, fim dos investimentos. Renda básica universal, imprimir moeda, emitir dívida. Dólar. Quando, até quando e por quê? Hum..., talvez ela tenha concluído. Só consigo pensar nessas coisas, só consigo pensar em listas, sei que era para haver aqui um pensamento minimamente es-truturado, concatenado, uma lógica básica que pudesse reger um relato coerente, mas estou sendo atropelada pela incoe-rência aviltante da vida, esmagada por novos nomes, concei-tos, hábitos, lavar as mãos, higienização, infecção, asfixia, é só o que me vem à cabeça quando vou dormir, e demoro a con-seguir, então posso também dizer insônia, angústia e horror, posso dizer falta de perspectiva, posso dizer que isso não vale a pena mesmo que a alma não seja pequena. Você consegue dormir? Você tem medo de morrer? Não consigo dormir há dias, não sei o que será de nós, da minha vida, da sua. Eu queria saber mais coisas, mas tudo me escapa. Talvez minha mais fiel associação livre fosse não sei não sei não sei, sei lá. Hum, ela acrescentou. Parei de falar. Aguardei. O coração acelerara, minhas mãos es-tavam frias. Geladas. Ela continuou silente. De repente, senti-me extremamente só

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ebook_expressoes aap4
748 pág.

Gestão Hospitalar

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O texto apresentado é um trecho de um livro ou de um conto. Ele descreve uma sessão de análise psicológica realizada à distância, durante a quarentena, em que a paciente é convidada a falar livremente sobre o que vier à sua cabeça. A paciente começa a falar sobre diversos assuntos relacionados à pandemia, como álcool gel, cloroquina, vacinas, geopolítica, entre outros. Ela expressa sua angústia e insegurança diante da situação atual e da incerteza do futuro. O texto é uma reflexão sobre a experiência da quarentena e seus efeitos psicológicos.

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