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Explique o sentido de "Ferreirinha parou de achar graça na alegria."

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Martins Monica

A desolação chegou em novembro do ano passado, precisamente na hora em que cortou o bolo dos seus 37 anos. Estavam ele e a família. Quando todos foram dormir, ficou para trás e se pôs a assistir, pela décima sétima vez, seu filme predileto: O Homem Que Ri, de 1928, um clássico do cinema mudo alemão. Chorou como sempre ao ver o ator Conrad Veidt no papel do trágico palhaço Gwynplaine, em cujo rosto fora talhado à faca o perpétuo esgar de um sorriso. Ferreira se deu conta de que a alegria não se dissociava da tristeza. Um verdadeiro artista não tinha como abrir mão de um dos lados da moeda da vida.
Rendeu-se então ao abismo da condição humana. Fez as contas: depois de quase duas décadas de riso, era hora de fechar a cara. Julgou o fato de jamais ter usado nariz vermelho como um sinal de que a mudança estava prevista desde há muito.
A festa seguinte a essa iluminação começaria como todas as outras. Sorrindo, ele se apresentou com o velho bordão: “Palhaço Ferreirinha, cabelinho de cenoura e nariz da sua vizinha!” Tudo seguia igual até o finzinho, quando, de súbito, veio o escorregão — que, diga-se, a princípio provocou muito risada. A queda, porém, foi acompanhada de um dilacerante gemido de pavor. Nem nos seus piores dias Kierkegaard gemeu igual. Estatelado ali no chão frio, por dois longos minutos ele pareceu que morria. Expirou declamando o grande Quevedo: “O que chamais morrer é acabar de morrer, e o que chamais nascer é começar a morrer, e o que chamais viver é morrer vivendo.”
Nem crianças nem pais compreenderam o fôlego dramático da cena, mas, como o resto do espetáculo tinha sido repleto de palhaçadas, ficou por isso mesmo. Vieram outras apresentações nos quatro meses seguintes — uma mais triste que a outra.
Ferreira não gosta de ouvir que sofre de depressão. Considera o diagnóstico simplório. Convicto, repete aos críticos e aos fãs: seguirá fazendo graça, mas não voltará a ser um palhaço idiotamente feliz. “Conheci o fundo do poço. Ignorar essa experiência seria fazer um papel tão ridículo quanto o daquele Bozo arrependido”, diz, referindo-se a Arlindo Barreto, o primeiro de vários palhaços Bozo e alegria da criançada no início dos anos 80. Depois de largar a cocaína, Bozo virou pastor evangélico. Prega vestido de palhaço.
Em março, cansado da insistência da família, Ferreira se rendeu e foi ao médico. O doutor receitou um remédio de tarja preta. “Muito obrigado, mas dispenso alegria comprada”, respondeu tristonho.
Ao deixar o consultório, viu-se no corredor lotado do Hospital das Clínicas. Acabrunhado, imaginou-se em serviço e de pronto inventou uma palhaçada. Tiraria do casaco uma banana de dinamite e ameaçaria explodi-la. Ao apertar o botão, uma flor brotaria do artefato. As pessoas chorariam de susto e depois ririam de alívio: tristeza e alegria, como a própria vida.
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