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• Mony Elkaím com a colaboração de Caroline Glorion Como Sobreviver à Própria Família Tradução: Maria Alice de Sampaio Dória ké4IU1?é--J / / EDITORA Título do original francês: Comment survivre à sa propre fomille Copyright da edição original © Éditions du Seuil, 2006 Copyright da edição brasileira © 2008 Integrare Editora Lcda, Publisher Maurício Machado Assistente editorial Luciana M. Tiba Produção editorial e coordenação Estúdio Sabiá Preparação de texto Hebe Ester Lucas Revisão de provas Maria Sylvia Correa, Ceci Meira e Capiru Escobar de Assis Projeto gráfico de capa e de miolo I Diagramação Nobreart Comunicação Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CI P) (Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil) Elkaun, Mony Como sobreviver à própria famnia / Mony Elkaim com a colaboração de Caroline Glorion ; [tradução de Maria Alice S. Doria]. - São Paulo: Integrare Editora, 2008. Título original: Cornmenr survivre à sa propre famille. Bibliografia. ISBN 978-85-99362-32-7 I. Família - Aspectos psicológicos 2. Terapia familiar T. Glorion, CaroIine. 11.Título. 08-09046 CDD-616.89156 fndices para catálogo sistemático: I. Terapia familiar: Ciências médicas 616.89156 Todos os direi tos reservados à INTEGRARE EDITORA LTDA. Rua Tabapuã, 1123, 7º andar, conj. 71-74 CEP 04533-014 - São Paulo - SP - Brasil Te!. (55) (l1) 3562-8590 Visite nosso site: www.integrareeditora.com.br SUMÁRIO Mensagem do NAIA. ..... 9 Apresentação da edição brasileira, por Sandra Fedullo Colombo 11 Prefácio, por Caroline Glorion ..................................................15 Introdução . . 19 Capítulo 1 Mãe e filha: a travessia de um conflito 23 Capítulo 2 O passado não nos condena Capítulo 3 O patriarca que queria o bem dos filhos . contra a vontade deles 43 Capítulo 4 Em que roteiro eu me encaixo? ...........................................................51 Capítulo 5 Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar.......... ....57 Capítulo 6 Libertar o outro para que eu possa mudar Capítulo 7 O homem que não conseguia deixar a mulher nem continuar com ela.... Capítulo 8 O luto num contexto ... Capítulo 9 A mulher a quem se pedia demais e o homem que se sentia abandonado. Capítulo 10 O homem que queria afeição e a mulher que queria ser respeitada Capítulo 11 Meu parceiro, meu casamento e eu Capítulo 12 Um segredo de família .... Capítulo 13 O navio fantasma... .. ..... u Capítulo 14 Sobreviver à própria família . 77 A Olga, minha esposa, e a Michael, meu filho, que me deram tanto.. 85 ..........101 .....109 . 121 ..........131 .139 Bibliografia 143 Mensagem do NAIA o NAIA - Núcleo Assistencial Irmão Alfredo é uma en- tidade filantrópica que, desde 1982, assiste e educa crianças com e sem deficiência, em situação de risco pessoal e social, e suas famílias, nas regiões do Brooklin e Vila Missionária, na cidade de São Paulo. Criado por um grupo de pessoas interessadas em minirni- zar os problemas de abandono e discriminação que crianças com deficiência sofriam, iniciou seu trabalho com a missão de orien- tar, encaminhar e atender, em regime de creche, crianças carentes com deficiência cujas mães precisavam trabalhar e não tinham com quem deixar seus filhos. Nessa fase, pudemos vivenciar o preconceito e a exclusão das pessoas com deficiência em quase todos os segmentos da sociedade. Em 1994, procuramos novos caminhos e adotamos o "pa- radigma da inclusão": nasceu a primeira "Creche Inclusiva" na cidade de São Paulo. Passamos, assim, a atender 30 crianças com deficiência e 30 sem deficiência num mesmo ambiente. Em nossas experiências de educação nesse modelo, temos constatado que a convivência entre crianças com e sem deficiên- cia beneficia a todas igualmente, pois aprendem solidariamente a reconhecer e respeitar as diferenças. Agradeço a Caroline Glorion, pois sem a sua ajuda eu não teria realizado esta obra; a [ean-Luc Giribone, que com o seu intenso trabalho me permitiu terminá-Ia, e aos meus pacientes - sem eles este livro não existiria. 9 Hoje atendemos a 510 crianças e adolescentes, em am- biente inclusivo, nos programas de Educação Infantil, Educação Complementar, Atendimento à Família e Projetos Culturais: mú- sica, esportes, capoeira, informática, inglês, teatro, artes. Nosso objetivo é prepará-los, e a suas famílias, para que pos- sam fazer escolhas, agir positivamente sobre sua realidade e ser ca- pazes, futuramente, de colocar suas capacidades a serviço da comu- nidade, no sentido de diminuir a desigualdade social e a exclusão. O que uma pessoa se torna ao longo da vida depende das oportunidades que teve e das escolhas que fez. Porém, entendemos que, além do acesso às oportunidades, as pessoas precisam ser prepa- radas para fazer escolhas. O que propomos é oferecer as ferramentas necessárias para o desenvolvimento sociocultural dessas crianças, jo- vens e suas famílias, estimulando-as ao exercício pleno da cidadania. Assim, foi com grande satisfação que recebemos a indicação de nossa amiga e voluntária Sandra Fedullo Colombo e o posterior convite da Integrare Editora para ocupar este espaço num livro que aborda como tema central, com grande propriedade, as relações familiares. Agradecendo a oportunidade, sentimo-nos fortalecidos e revitalizados na busca do cumprimento de nossa missão. Finalmente, convidamos os leitores a visitar o NAIA. Ve- nham compartilhar um pouco de seu tempo, energia e conheci- mentos. Sua presença é muito importante para nós. Apresentação da edição brasileira Conheci Mony Elkaím no início da década de 90, em Bue- nos Aires, em uma grande conferência mundial cujo objetivo era reunir os maiores pensadores contemporâneos, filósofos, cientis- tas, pesquisadores, humanistas, em um grande fórum de reflexão sobre a ciência contemporânea e a compreensão das relações hu- manas, cultura e subjetividade. Entre esses pensadores estava Mony, que, em uma grande assembléia de quase mil pessoas, emocionou-nos e fez-nos mer- gulhar em nossas próprias histórias de vida, convidando-nos a sair do lugar de profissionais que falavam sobre as relações humanas para o de pessoas que tinham histórias de afeto para compartilhar, e refletir .sobre algumas vivências que são repetidas e alimentadas através do tempo, em uma dança cuja coreografia sabemos de cor, sem muitas vezes nos darmos conta. O que me marcou, naquele momento, foi sua crença em que as relações ocorrem no encontro das ressonâncias de histó- rias vividas, que se acordam mutuamente, e que, muitas vezes, constroem seqüências repetitivas, mas que também podem ofe- recer, ao nos darmos conta, os passos alternativos para uma nova música ... O foco na consciência da responsabilidade mútua, na Nídia Krunfli David Daghum Presidente do Núcleo Assistencial Irmão Alfredo - NAIA Rua Ribeiro do Vale, 120 - Brooklin, SP Fone: (11) 5533-7922 www.naia.org.br 10 11 construção das relações e na autoria de todos os envolvidos na trama estimula a capacidade de transformação de cada um de nós, dando ênfase à possibilidade de sair das armadilhas relacio- nais em vez de buscar culpados. Seu convite a comprometer-nos com o que vivemos e di- zemos foi, para mim, o diferencial: a consciência de que, quan- do contamos uma história, estamos falando de nós mesmos, de nossas experiências afetivas, acordadas naquele encontro com o outro! Nunca podemos falar sobre o outro, mas de nossa vivên- cia junto com o outro! Ao ler Como sobreviver à própria família senti a mesma emoção de quando o ouvi pela primeira vez, pois, com a postura sensível de um contador de histórias, Mony vai desvendando, pe- rante nossos olhos, situações humanas tocantes, em que as pessoas se sentem prisioneiras na própria família. Passo a passo, ele nos convida a perceber a parte de cada um na construção desse apri- sionamento e, o que é maravilhoso, os recursos que cada um e o grupo, como um todo, possuem para transformar essa história. Mony acredita profundamente, e nós com ele, ao acom- panhar as narrativas, que o futuro nãoprecisa ser a repetição estéril do que já conhecemos e, principalmente, tememos. Ele nos faz perceber como estamos enganados ao procurarmos, com insistência, uma realidade imparcial e objetiva. E nos mostra a impossibilidade de olharmos nossas histórias por um só canal, o nosso, e definirmos o certo e o errado como posições absolutas. E se todos estiverem certos, como nos pergunta? E se estivermos, sem perceber, participando de um script familiar e repetindo nosso papel sem nos darmos conta? E se os sintomas surgiram como uma denúncia de que aquelas relações estão tornando-se aprisionantes e dolorosas, apontando o momento de revê-Ias? E se os sintomas forem, também, uma proteção para nos queixar- mos, mas não transformarmos nada, para continuarmos leais às nossas famílias? Essas e outras perguntas instigantes nos são apresentadas durante a leitura deste texto. Como naquela primeira vivência com seu trabalho, nes- te livro ele não nos deixa do lado de fora! Somos chamados a revisitar nossas histórias de encontros e conflitos, nossas resso- nâncias são acordadas e nossos sentimentos passam a fazer parte delas. Vemos Mony, em cada uma das situações relatadas, tra- balhar e oferecer às pessoas a crença em seus próprios recursos, para transformar aquelas situações e "mudar aquele destino", que parecia estar fechado. A ênfase na própria autoria e na responsabilidade decorrente dessa postura transforma a ética relacional de culpados e vítimas na de co-autores e co-responsáveis. Por meio dessa consciência e dessa ética, Mony convida-nos a conhecer mais nossos enredos de vida e fortalece-nos na posição de poder transformar as relações que senti- mos insatisfatórias. A crença de que todo narrado r de uma história está incluído em sua narração, com suas próprias experiências e res- sonâncias, despertadas naquele encontro humano, permite perceber que cada ponto de vista é verdadeiro e útil, mas também relativo, e, dessa forma, abrimos um espaço riquíssimo para a compreensão das relações familiares, saindo da armadilha de quem tem razão e de quem é culpado! Com esse movimento, a autoria do que está acontecendo é dividida entre todos os participantes. O instrumento que Mony nos oferece é o de nos conectar com nossa história pessoal, para percebermos o que aquela situa- ção, com aquela pessoa ou grupo, acorda de dores e riquezas, qual 12 13 Prefácio é o ponto onde as histórias se encontram, quais os significados que são despertados e - o que chamei de "pulo do gato" - para que serve esse acordar de histórias, essas ressonâncias, nessa rela- ção, nesse momento da vida. Nessa visão, não existe a possibilidade do observador neu- tro, aquele que poderá perceber "a verdadeira realidade", a pessoa que poderá julgar o que é certo e errado. Os lugares de culpado, vítima, juiz, tão disputados nos conflitos familiares, entre casais, entre pais e filhos, são desconstruídos ao vivermos o sentido da- quela experiência para nossa história! Espero que nossos leitores saboreiem, como eu, essas his- tórias, revisitem suas próprias experiências de vida e se permi- tam entrar em contato com as ressonâncias que surgirem, pois acredito que são portas que se abrem para novas possibilidades, no caminho da vida. Prefácio Eu amo minha família ... Esse foi o título que escolhi para o documentário que realizei há alguns anos para a rede de tele- visão France 2. Instintivamente, eu pegava o contrapé do título de um filme lançado no fim dos anos 90, Eu odeio minha famí- lia, que, retomando a fórmula de Gide, punha em cena os tor- mentos da adolescência confrontada com um ambiente familiar nefasto e sufocante ... Apoiando-me no princípio do copo meio cheio ou meio vazio, decidi, depois de uma enquete sobre as famosas terapias familiares, lançar um olhar deliberadamente otimista sobre a instituição "família". Se podia ser o lugar de todos os sofri- mentos, por que a família não poderia ser também um lugar de liberdade? O encontro com Mony Elkaim, que seria o meu guia nessa inesperada viagem documental sobre os caminhos das terapias de família, foi decisivo. Ele era o líder carismático dessa prática psicoterápica e optei por seguir-lhe os passos. Sem demora, ele me ensinou a encontrar palavras simples para explicar as fantásticas riquezas que todos podemos encontrar no seio da própria família para vencer as adversidades que en- venenam a vida cotidiana. Sandra Fedullo Colombo Terapeuta de casal e família, co-fundadora do Sistemas Humanos - Núcleo de Estudos e Prática Sistêmica Família, Indivíduo, Grupo Para mais informações acesse: www.sistemashumanos.org 14 15 ." Como sobreviver à própria família Preidcio Passei horas e horas ouvindo-o trabalhar com estudantes de medicina ou psicólogos que tinham bagagem suficiente para compreender os termos, às vezes um pouco difíceis para mim. Em seguida, com muita condescendência e um evidente senso de vulgarização, Mony passava um longo tempo decifrando para mim os desempenhos de papéis, ocasião em que, aqui e ali, sur- giam momentos mágicos que lhe davam a oportunidade de de- senvolver as noções fundamentais da terapia familiar. Com sutileza e não sem malícia, ao me falar sobre a sua pro- fissão, sobre o seu papel, Mony Elkaim simplesmente explicitava como algumas vezes centrávamos o foco num dos membros da fa- mília. Nós o cumulávamos de todos os males, o estigmatizávamos como "doente" ou "transviado", sendo que, na maioria das vezes, ele era apenas o portador de um sintoma que, na verdade, afetava toda a família. Que bela solidariedade irmos à consulta todos juntos, para permitir a esse "determinado paciente" sair desse estado ... I! Na minha família, eram muitas as histórias que impediam as conversas, que desiludiam os mais audaciosos - jovens pais, jovens casais, avós orgulhosos, mas às vezes decepcionados, filhos rebeldes, que saíram de casa ou estavam em vias de fazê-lo. Essa terapia, sempre atual, interessava a todos, sem dú- vida a mim em primeiro lugar, a mais velha de uma numero- sa família, curiosa para compreender como era possível nos amarmos tanto e brigarmos tanto! Mony Elkaim acredita no enorme potencial que existe no seio de cada família. Seduzida por esse olhar, por essa condes- c~ndência e essa abordagem que, segundo suas palavras, também pode apoiar-se nos ombros do Papai Freud, me deixei guiar e Eu amo minha família deu a alguns sobreviventes da vida em família a oportunidade de falar, finalmente reconciliados consigo mes- mos e com os parentes, ilustrando com várias situações esta frase que Mony gosta de repetir: "Não é necessário que o outro esteja errado para que tenhamos razão". Um dia em que passeávamos num jardim em Paris, Mony apontou uma bela árvore em flor e soltou a metáfora: "As famílias são semelhantes a essas árvores magníficas, cujos galhos desabrocham na primavera ... mas acontece que, às ve- zes, um dos ramos não dá botões ou, então, nenhum botão se abre, nenhuma flor desabrocha. O galho parece seco, como se privado da seiva para se desenvolver. O papel do terapeuta familiar é o de um jardineiro que oferece ou traz um bom adubo, a boa terra, que faz nascer o sol no lugar certo. Então, a seiva existente no tronco poderá circular e irrigar cada um dos ramos, inclusive aqueles que parecem atrofiados". Depois desse documentário para a televisão, numa das nos- sas conversas nasceu a idéia deste livro para o grande público. Par- tilhar o maior número possível de reflexões que ajudariam o leitor a se fazer as perguntas certas, a mudar um ponto de vista estereo- tipado que nos aprisiona para dar um novo ar às relações, facilitar a vida em família, abandonar, de uma vez por todas, as idéias pre- concebidas, as histórias ultrapassadas, penosas e imutáveis. Um livro concreto e acessível, no qual cada leitor pudesse obter sobre o que refletir e se comunicar de maneira diferente com o cônjuge, os pais, o irmão, a irmã ou com o filho. 16 17 .< I I Como sobreviver à própria fàmília Introdução Conversamos sobre as histórias verdadeiras relatadasen- tre quatro paredes no consultório de Mony. Nós as organiza- mos com o objetivo de, um lado, respeitar o segredo profissio- nal e, do outro, apresentar os casos mais universais. Durante esses encontros, Mony Elkaim, ímpar contador de histórias, me relatava essas sessões com deslumbramento quando sur- giam indícios que lhe permitiram oferecer aos pacientes as ferramentas para destrinchar situações .emaranhadas. Atenta às palavras e aos conceitos, desempenhei o papel de ignorante que salientava os meandros das frases e da mente impossíveis de serem compreendidos pelos não iniciados. Levei para ele as perguntas que todos nos fazemos, a fim de aprofundar alguns pontos obscuros e de difícil acesso. Esses diálogos fascinantes, apaixonantes, decifrados até nas vírgulas, formaram uma base sólida, depois cuidadosamente revi- sada e, em seguida, redigida por Mony. Introdução Quem nunca se sentiu, em algum momento, preso na própria família? Quem nunca teve a impressão de ser esmagado por uma realidade sobre a qual não podia influir? Desejo que esta obra esclareça essas situações familiares, que todos conhe- cemos, com uma luz diferente da que estamos acostumados. Na maioria das vezes, não é a realidade em si que nos prepara uma armadilha e sim uma representação dessa realidade construída com o passar dos anos e dos acontecimentos. Como vamos ver, cada um desempenha um papel bem específico no roteiro fami- liar e a distribuição desses papéis, em geral, é feita à revelia de todos. A armadilha se fecha, um sistema rígido se instala e todos se sentem prisioneiros. Alguns membros da família sofrem, sin- tomas aparecem ... Ao descrever e comentar as situações, das quais a maior parte diz respeito à nossa vida cotidiana, tentei oferecer ao leitor uma forma de perceber o que lhe acontece; tentei mostrar de que maneira participa delas sem querer, e como, para sair desse círcu- lo vicioso no qual está preso com os parentes, ele pode conseguir delimitar o seu território, fazendo com que seja respeitado pelas pessoas que o cercam - sem provocar hostilidade, mas, ao con- trário, conseguir aliados e não adversários. Diametralmente oposto a um livro de receitas, Como sobre- viver àprópria família é, no entanto, um livro salutar e útil. Estou feliz por ter sido a sua humilde "parteira". E como em todos os nascimentos, quer se trate de um filho ou mais prosaicamente de um livro, promessas de vida, de sonhos e de novos horizontes acompanham essa vinda ao mundo ... Caroline Glorion 18 19 - ~___4- ...-... _~,_,_~,___ _ Como sobreviver à própria fàmília Introdução Sobreviver à própria família passa a ser, então, sobreviver à idéia que fazemos dela. Como os membros da minha família, a cultura na qual cresci, meus relacionamentos sociais, a mídia, me constroem, me esculpem, limitando a minha capacidade de mudança ou de adaptação? Por que me sinto preso na minha rea- lidade familiar? Será que não participo, contra a minha vontade, da escultura de uma situação que, forçosamente, é mútua? Desde o meu nascimento, estou preso num contexto: a maneira como fui esperado, olhado, o nome que recebi e muitos outros elementos constituem um ambiente de regras e mitos, criado e compartilhado entre os membros da família, cuja co- esão e permanência ela garante. Desde que cheguei ao mun- do, participo desse universo cuja estrutura também manterei. À medida que vou crescendo, os mitos e as regras da minha família não poderão mais ser diferenciados da maneira como eu os percebo e como me situo em relação a eles. A partir de então, torno-me ator da peça que representamos juntos: como vou me dar o direito de ser suficientemente "desleal" em relação àqueles que me cercam, ou à imagem que tenho deles, para ver minha família de um modo diferente do que eles a vêem - de um modo diferente do que eu também a vejo? Como abrir ca- minho fora das rotinas repetitivas e aparentemente inevitáveis nas quais nos atolamos de comum acordo? Essas são as perguntas às quais este livro se esforça para responder. Evitando longas elaborações teóricas, me esforcei para comentar casos concretos e mostrar o ensinamento que podemos tirar deles. Aqui vão algumas explicações. Em primeiro lugar, foi im- possível ser exaustivo. Diante da imensa e complexa paisagem das situações familiares, precisei fazer uma escolha. Porém, como veremos, muitos dos princípios evidenciados num caso também valem para outros e trata-se mais de compreender a natureza do que podemos fazer e não de aplicar receitas mecanicamente. Em segundo lugar, esses princípios, válidos na maioria das situ- ações da vida cotidiana, não funcionam da mesma maneira em contextos de abuso e violência em que devemos, antes de tudo, nos proteger, nem em casos graves em que uma ajuda medica- mentosa e, se necessário, uma hospitalização devem completar a psicoterapia. Finalmente, eles não são dirigidos especificamen- te aos filhos, nem aos pais, pois todos estamos envolvidos em relações cujas tensões incessantes só poderemos evitar se acei- tarmos reconhecer o papel que nós mesmos desempenhamos nelas. Como este livro vai mostrar, assim espero, é a conquista da nossa capacidade em modificar as regras do sistema em que vivemos que permitirá a todos os membros da família terem acesso à mudança. Assim é que os vínculos que me unem aos outros, lugares e causas do meu sofrimento, podem ser os pró- prios caminhos da minha libertação e da deles. 20 21 ----"-- Mãe e filha: a travessia de um conflito I1 Capítulo 1 Mãe e filha: a travessia de um conflito Elegância e distinção são as palavras que me vêem à cabeçaquando mando entrar as duas mulheres que se apresen-tam para a primeira sessão. Vamos chamá-Ias de Anne e Agathe para facilitar o relato. Anne, a mais velha, é mãe de Agathe. É uma mulher muito bonita, de uns cinqüenta anos, e fiquei impressionado com a sua desenvoltura quando se sentou à minha frente. A filha, que devia ter, no máximo, uns 25 anos, senta-se ao lado dela com a mesma graça. A jovem é a primeira a falar: acabou de dar à luz o seu pri- meiro filho, ela explica, e a mãe se recusa a vê-lo. Essa recusa é causa de um grande sofrimento para ela. A mãe toma então a palavra, com a voz tingida de emoção: "Não se trata apenas dessa criança. Reconheço que não me sinto capaz de vê-Ia, mas o verdadeiro problema é que não agüento mais sofrer com a atitude da minha filha!". Ela inicia um monólogo, que ecoa como uma longa queixa: "Eu não agüento mais dar a pessoas que me rejeitam, não agüen- to mais amar alguém que só me retribui com indiferença. Aga- the sempre adotou essa atitude para comigo! Ela me rejeita e a 23 _.1 Como sobreviver à própria fàmília Mãe e filha: a travessia de um conflito maior parte do tempo só demonstra indiferença. Evidentemente, a questão não é o filho dela ... é a sua atitude. A verdade é que tenho medo de me expor ao me interessar por essa criança; tenho medo de sofrer outra vez com uma rejeição afetiva, ou uma pala- vra ofensiva da parte da minha filha. É isso o que me impede!". A resposta de Agathe não demorou: "Não quero que mi- nha mãe se comporte comigo como a mãe dela fazia com ela, isto é, rejeitando-a, não a aceitando como ela era". Anne prosseguiu como se não tivesse ouvido essa observa- ção, o que eu notei atentamente. E se dirigiu diretamente à filha: "Quando seu pai me abandonou, você tomou o partido dele. Ele me tratava mal, você sabe disso, e, apesar de tudo, ainda se rela- ciona com ele! Além do mais, você optou deliberadamente por continuar ligada a pessoas que me abandonaram depois da sepa- ração. Não, eu não quero ficar longe de você, mas como poderia agir de outra maneira? É você quem me rejeita e que age de uma maneira que não me dá opção!". Enquanto eu escutava, em silêncio, as duas mulheres, senti uma emoção me invadir - o sofrimento delas era palpável. Da minha posição de terapeuta, percebi primeiro - como é geralmente o caso - o sistema circular no qual Anne e Agathe estavam presas. Elas se acusavam mutuamente de serem respon- sáveis poraquela situação; Agathe acusava a mãe de se proteger e não aceitá-Ia como ela era, a mãe acusava a filha de rejeitá-Ia ao fazer escolhas ou ao adotar atitudes que lhe pareciam hostis e agressivas. Uma troca fechada em si mesma, uma espécie de gira- gira: ''A culpa é sua", disse a primeira, "foi você quem começou". Ao que a segunda replica: "Não, a culpa é sua e se eu reagi assim foi porque você começou!". Que ciclo sem fim! Sem dúvida, porém, olhando mais de perto, Arme e Agathe já me haviam entregado elementos preciosos.Vamos tentar enurnerá-los. Anne é uma mulher hipersensível e, parece, marcada por relacionamentos dolorosos que teve no passado: ela prefere se proteger a se arriscar a sofrer como fez na infância. Ela me lem- brou uma estudante que preferia não comparecer a um exame por medo de ser reprovada: expor-se a uma desilusão aterrorizava-a! A filha, em compensação, se sente mais à vontade para ex- pressar seu desejo, mas se sente rejeitada na sua singularidade. E, de fato, ela não pode ser diferente, não pode expor suas opiniões oú escolhas, sem que a mãe sinta isso como uma agressão. Além do mais, existe a sombra desse pai ausente que real- mente parece planar entre as duas mulheres. Uma equação bem simples fica evidente: Anne teme se aproximar da filha com medo de que ela a faça sofrer e Agathe desejaria encontrar cumplicidade e proximidade na mãe, mas não pagando o preço de abandonar sua própria personalidade. Essa primeira sessãopor pouco não foi bruscamente interrom- pida devido ao gira-gira citado anteriormente: quanto mais Anne enumerava suas queixas e críticas à filha, mais esta reagia e insistia, presa na sua própria exigência: ser aceita, reconhecida como ela era. Nessa pesada atmosfera, eu ouvia Anne repetir como um metrônomo, dirigindo-se a mim e depois à filha: "Não sou rece- bida na casa dela e ela se relaciona com pessoas que me são hostis, que me evitam e me rejeitam. Quanto à relação que você man- tém com o seu pai, que me abandonou", prossegue, olhando para Agathe, "pois bem, ela me causa um terrível desgosto". 24 25 I II I 1I I Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito Uma especificidade da terapia familiar consiste em entrever de repente, hic et nunc, o sistema que se instalou entre duas pes- soas, que lhes dá funções estreitamente complementares e as apri- siona num círculo patológico. No caso, era uma espécie de laço complicado, como uma trança cheia de nós, que prendia ambas num sofrimento pelo qual se sentiam mutuamente responsáveis. No entanto, não se deve acreditar que as duas se com- portavam em perfeita sincronia consigo mesmas. Agathe, por exemplo, desenvolvia um forte sentimento de culpa quando re- sistia ou se opunha às exigências maternas; mas, se ela cedesse, tinha a sensação de que estaria rejeitando a si mesma - senti- mento que abominava. "Minha mãe", diz ela, "busca em mim o amor que não teve dos pais. Mas ela é um saco sem fundo: por mais que eu faça, nunca está satisfeita." Todos nós sabemos - por nos encontrarmos tanto numa posição quanto na outra - que a demanda afetiva pode com- portar uma dimensão absoluta que a torna impreenchível - demandar é demandar mais ainda, sublinha Lacan no seminário que tem esse título. Agathe termina nosso primeiro encontro com uma consta- tação análoga, formulada clara e pausadamente. Menina, depois adolescente, Anne via o pai muito rara- mente, a cada dois ou três anos. Quando fala sobre ele, suas pa- lavras estão impregnadas de tristeza. Novamente a cena se torna emocionante, quando ela me conta um episódio que a abalou. Sofrendo por ver muito pouco o pai, quando tinha 14 ou 15 anos, ousou lançar-lhe uma espécie de ultimato: "Pare de me telefonar", ela declarou. "Se você me ama, vamos ver-nos mais vezes!". A resposta paterna cai como uma punhalada: "Não gosta dos meus telefonemas? Pois bem, eu paro". E ele não deu sinal de vida por vários anos. Anne relata essa lembrança que ainda lhe dói e conclui: "Aqueles que eu mais amei foram os que mais me fizeram sofrer". Do lado materno, Anne também não devia encontrar segu- rança nem consolo. A mãe, que se casara novamente, mandou-a muito cedo para um colégio interno e quando Anne voltava para casa, ouvia claramente que incomodava o novo casal que se for- mava. "Saiba que o meu casamento vem em primeiro lugar", desferiu-lhe a mãe um dia, intimando-a a não se instalar naquela casa que, no entanto, era o seu lar - a única coisa a fazer era "encontrar uma ocupação". Portanto, Anne teve de se virar sozinha e o fez muito bem, pois criou uma empresa que soube dirigir com maestria. Porém, com os homens, suas aventuras, em geral efêmeras, deixavam-na continuamente na posição de abandonada. Agora, Anne era uma mulher desamparada, pois os ne- gócios tinham ido por água abaixo. Sua situação era realmente difícil. No plano afetivo, confrontava-se com um passado que ressurgia e a fazia repetir como um leitmotiv: "Por que aqueles a quem eu mais amei sempre me fizeram sofrer tanto?". Na sessão seguinte, essas últimas palavras me voltam à memória, enquanto começo a questionar a mãe sobre a sua pró- pria infância. Fico sabendo que o pai dela, um homem muito brilhan- te, apreciado por todos, abandonou o lar muito cedo, deixando Anne com a mãe num tête-à-tête cada vez mais doloroso. 26 27 ·" Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito Como acontece muitas vezes nesse tipo de situação, Anne era movida por duas atitudes aparentemente contraditórias. A primeira, que vou chamar de seu "programa oficial', a impele a ir ao encontro da filha - que ela ama - para construir uma rela- ção satisfatória. A segunda, que diz respeito à sua "construção do mundo", mais profunda, aprisiona-a e a mantém numa situação que já é habitual- a de se considerar uma pessoa rejeitada. Anne vai em direção à filha protegida por uma armadura que não ousa retirar, com medo de uma trágica desilusão. Não é nada surpreendente que Agathe fique tonta diante dessa mãe que, pela sua atitude, lhe diz "uma coisa e, ao mesmo tempo, o oposto": ''Ame-me, mas não acredito que você possa amar-me!", ou ainda "Conheça-me, mas não acredito que possa fazê-lo, pois, até agora, ninguém conseguiu isso!". Dupla injun- ção contraditória ditada por um "programa oficial" e uma "cons- trução do mundo" contraditórios. Além disso - e esse é um detalhe importante, pois se trata de uma relação mãe/filha -, provavelmente Anne não tem cons- ciência de que vivencia com Agathe o comportamento da mãe. Esta a havia rejeitado sem condescendência e eis que sua própria filha parece fazer o mesmo com igual empenho! Trata-se de uma situação freqüente. Como prova, bastam as declarações de outra mãe invadida por um tormento seme- lhante: "Quando ouço minha filha falar, ouço a minha mãe. Eu me pergunto quem é a filha e quem é a mãe. Vivo a mesma rejei- ção. Ela diz as mesmas frases da minha mãe. Existe uma analogia, é incrível! O que tive de sofrer com a minha mãe, bom, eu não tinha escolha, mas merecia realmente uma filha que compensasse isso e não que a reproduzisse. Com a minha mãe acontece o mes- mo que com a minha filha, eu a amo e a detesto". A relação teci da entre essas duas mulheres induz à re- petição já vivenciada por uma delas com outros, no caso, por Anne com a própria mãe. Esse tipo de repetição dramática não tem muitas possibilidades de terminar sem uma "decodifica- ção" feita delicadamente. . É isso o que me esforço para fazer nos encontros seguintes. A função do terapeuta aparece aqui nitidamente: ele é aquele que, com sua presença e seus discursos, pela natureza de suas intervenções, abre o espaço relacional e permite sair da repetição patológica. É importante destacar outro aspecto: trata-se da maneira pela qual a filha, na luta com a sua mãe, volta a representar o con- fronto entre esta última e sua própria mãe. Essa situação poderia ser ilustrada pela queixa de outra paciente: "Minha filha tem co- migo as mesmas reações que eu tinha com minhamãe; é como se ela revivesse comigo o que vivi com a minha mãe. No entanto, fiz de tudo para lhe oferecer uma relação diferente da que minha mãe mantinha comigo". Essa mãe trava uma luta contra a própria mãe, por meio da filha, enquanto esta retoma a bandeira do combate da mãe na época, sem perceber que o que faz é repetir um conflito que não é seu. Portanto, eis duas mulheres que esperam receber uma da outra, mas que, no fundo, não podem receber. 1 Chamo de "programa oficial" a demanda explícita que o membro de um casal faz ao outro. Por exemplo: "Cuide mais de mim", "Fique mais próximo". Esse programa oficial deve ser diferen- ciado de uma "construção do mundo", elaborada com base em experiências anteriores, que pode contradizê-Ia totalmente. Por exemplo: "Todas as pessoas que dizem amar-me acabam me aban- donando". Num nível superficial, alguma coisa é demandada, porém, num nível mais profundo, não acreditamos que o que é demandado possa ser conseguido. 28 29 orno sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito Por trás do outro, tratado aqui e agora, surge um outro "outro", enfiado no passado, adormecido e acordado pela repe- tição, que a terapia descobre, ao mesmo tempo em que revela a construção do mundo disfarçado pelo programa oficial. "Tenho a impressão de que dei em vão, nunca preencho o espaço que minha mãe quer que eu preencha" - declara Agathe. Minha resposta tem a forma de uma pergunta: "É possível preencher esse espaço?". Anne parece buscar inconscientemente esse amor materno (e provavelmentepaterno) que ela nunca re- cebeu. Mas como sua filha poderia dá-Io? A melhor filha do mundo só pode dar o que tem! Agathe só pode dar ternura e um amor filial. A fórmula irrevogável que ela empregou resume por si só a situação: "O que quer que eu faça, de nada adiantará". Nesse contexto, meu papel será o de fazer com que se cons- cientizem de que esse terceiro espaço existe e que aceitar a dife- rença do outro não implica rejeição. Que uma diferença expressa não equivale a um movimento de agressividade. Tenho de propor que substituam a armadura por um escu- do! Pois a armadura protege, mas impede de sentir o sol na pele, o vento no cabelo ... O escudo também protege, é claro, mas po- demos deixá-I o no chão quando não há mais perigo, mesmo que tenhamos de pegá-Io outra vez se surgir um novo perigo ... A história de Anne e Agathe é uma história triste de amor que poderia durar muito tempo. Mas a decisão de procurar um ter?-peuta familiar é uma atitude que pode pôr fim ao calvário que compartilham. Quando se entra num movimento perpétuo, nessa espécie de moto-contínuo que dá tontura, ir a um terapeuta é encontrar al- guém que - se for um terapeuta familiar - vai começar a afugentar o problema. Quem está errado? Quem tem razão?Quem começou o quê?A simples eliminação do problema, tão difícil de realizar porque sempre podemos nutrir nossa hostilidade com erros bem reais que o nosso sofrimento imputa ao outro, abre um novo espaço. As pergun- tas do terapeuta são, ao contrário, perguntas que libertam: qual é o movimento 'incessante no qual estão presas a mãe e a filha? Qual é o processo que as aprisiona? Que estrutura é essa que faz com que duas pessoas vivam como vítimas e vejam uma à outra como carrasco? A função de uma estrutura dessa - é preciso insistir - não é só a de fornecer proteção às pessoas aprisionadas. Cada proteção também protege o outro: a filha não percebe que seu comportamento permite à mãe se sentir como não reconhecida, portanto, permite que ela mantenha a armadura e continue a não Nesse momento, qual deve ser a posição do terapeuta? Em primeiro lugar, ela comporta uma compreensão tingida de emoção, pois o terapeuta é confrontado com duas pessoas que, naquele frente-a-frente, gostariam de se amar, mas têm medo. Ambas podem dizer, com toda a legitimidade, que sentiram fal- ta de amor na infância. Ambas procuram se situar, mas, nessa busca, falta-lhes uma experiência - precisamente a de ter o sentimento de ter ocupado um lugar no qual pudessem ter sido respeitadas como elas mesmas. As duas mulheres buscam um "terceiro espaço" - aquele em que podemos nos abrir sem medo de sofrer -, mas ambas passaram, principalmente, pela experiência do sofrimento! A isso se acrescenta o fato de estarem presas numa rachadura da fronteira transgeracional, na qual estão no lugar de uma mãe. 30 31 Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito : I se expor; e a mãe não vê que o modo como trata a filha também "protege" esta última, pois permite que ela não se abra, que evite o sofrimento e a desilusão. Ao se proteger, sem ver isso explici- tamente, cada uma delas protege a outra e a leva, completado o movimento giratório, a dar mais um giro! Numa conduta de proximidade e respeito em relação às duas mulheres, mas também analisando o processo que as conde- na a permanecerem nesse desentendimento e nessa autoproteção vivenciada como agressiva pela parceira, o terapeuta pode criar um espaço para ele e, portanto, para elas. Ele é a terceira pessoa que se alia a cada uma das outras duas, presas num ciclo infernal, para tentar intervir no próprio ciclo. A proximidade com uma e com a outra permite uma vivência afetiva nova, pois as duas mulheres percebem rapidamente que o terapeuta não se alia a uma delas contra a outra, ou vice-versa. É na diferença ativa desse sistema terapêutica, sentida pelas protagonistas, que pode aparecer outra saída, outro caminho, ou- tra maneira de ver e de se ver. Nesse momento da conversa, eu intervenho e digo a Anne que ela é a mãe e que pode reivindicar legitimamente o desejo de ver a filha e a neta. Sem dúvida, Agathe vai recusar, mas estarei ao lado delas para compreender o que se passou. Essa proposta que vem do terapeuta é tranqüilizadora, pois o lugar de tercei- ra pessoa neutra, mas engajada de uma maneira diferente das duas protagonistas, já contém virtudes terapêuticas: a proposta respeita a possibilidade de uma não-mudança sem, no entanto, receitá-Ia. Como sempre, não se trata de propor um remédio milagroso, mas apenas de uma abordagem tranqüilizadora para que as duas mulheres saibam que não mais se defrontarão, cada uma com o seu sofrimento a tiracolo. Na sessão seguinte, fico sabendo que o encontro acon- tecera e que tudo havia corrido bem. Melhor ainda: Agathe e Anne haviam almoçado juntas alguns dias depois. Anne conhe- eu a neta e estava feliz com isso, e Agathe, encantada com o novo encontro, havia aceitado almoçar com a mãe! A referência a esse acontecimento, relatado com simpli- cidade, só levou alguns minutos - depois, Agathe prosseguiu com a maior naturalidade, falando de problemas que, dessa vez, eram totalmente pessoais. O espaço criado permitia à jovem deixar que viessem à tona suas dificuldades de contato com as pessoas à sua volta e a relutância que sentia em expressar sua própria opinião. Tudo o que ela dizia entre nós três encontrava um novo eco. Já não eram críticas em relação a uma mãe insatisfatória que ela punha na cesta terapêutica, mas a expressão de uma dificuldade de vida que, finalmente, podia ser formulada como tal. Mais tarde, um novo diálogo se estabelece, quando Agathe reitera a sua demanda em relação à mãe: - Repito que acabei de dar à luz e que tenho um bebê; eu gostaria que o visse! - Mas você nunca me telefona! - retruca Anne. - Não preciso telefonar, você pode ir vê-Ia! - Não quero que você me diga que está ocupada e que tem coisas mais interessantes a fazer. Vou sofrer de novo e ficar outra vez na posição de uma mendiga que pede esmolas na rua. E isso eu não quero por nada neste mundo! 32 33 Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito Essa fase sena transitória. Outros bloqueios surgmam mais tarde e precisariam do apoio infalível de um terapeuta para que as duas mulheres mantivessem o processo de mudança. criamos uma situação circular em que estamos presos num tal frenesi que não conseguimos sair dela? Como pensar emsolu- ções para deter essa porta giratória, para acabar com essa queda- de-braço? E isso, mesmo que me pareça que a última palavra será do meu parceiro. Afinal, a última palavra não é um objetivo tão atraente; o que é realmente exultante é conseguir criar uma situação que modifique radicalmente os dados do problema ao trazer soluções inesperadas! Anne e Agathe nos ensinaram muito sobre as dificuldades que podem toldar a relação mãe-filho, a relação de um casal e, de forma geral, qualquer relação em que duas pessoas, que partilham uma história em comum, enfrentam e com as quais se defrontam. Elas nos permitem pôr alguns pontos de interro- gação úteis, que considero universais. Primeira pergunta, incontornável (e indispensável): em que medida, se estou constantemente em conflito com meu fi- lho, não estou revivendo com ele alguma coisa que já vivenciei na minha própria história? É verdade que os protagonistas, em geral transbordando de sentimentos ambivalentes, não podem fazer a si mesmos esse tipo de pergunta no auge da batalha. Não estou repetindo o que meus pais fizeram comigo e agindo igual com o meu filho, mesmo que eu tenha sofrido com isso na minha infância? Não estou protegendo meus pais, inconscientemente, como se eu me impedisse de ir mais longe ou ter pensamentos críticos em relação a eles? Segunda pergunta, ainda mais surpreendente: em que me- dida meu filho não está repetindo comigo, numa espécie de para- lelismo, o que vivi com meus próprios pais? Outra pergunta, igualmente redentora quando a resposta aparece: em que medida o que o outro faz comigo não é algu- ma coisa de que participo? Ele e eu não entramos numa porta giratória que nos faz girar, mesmo contra a nossa vontade? Não Para o terapeuta de família confrontado com histórias complexas que ele desenrola muitas vezes como uma meada de lã; ajudar o paciente a se abrir para as diferentes perguntas que desabrocham é uma necessidade. Isso permite esclarecer (mesmo arbitrariamente) os diferentes níveis de complexidade, não para simplificar excessivamente, mas para dar coordenadas, permitir que as pessoas façam a si mesmas novas perguntas, criar uma nova vivência e deixar delinear-se um espaço de liberdade para que novas perspectivas se abram nas rela- ções que aprisionam, que confinam, sufocam os protagonistas do drama sem fim que é representado diante do terapeuta e com ele. Para completar essa síntese geral, é preciso destacar uma das especificidades da relação pai-filho, que formularei assim: se o outro é meu filho, tenho responsabilidades para com ele que são diferentes das que ele tem em relação a mim. Portanto, não posso me comportar como se ele fosse meu irmão ou irmã, ou um dos meus pais. Nossa relação não é simétrica: sou eu quem devo dar o primeiro passo sem esperar que ele o faça - assim, aceito o meu papel de pai e a responsabilidade que decorre desse fato. 34 35 ·~ Como sobreviver à própria família o passado não nos condena I'i o que concluir de tudo isso? Que é impossível chegar a uma conclusão em terapia familiar, pois a criatividade e a dinâmica são os motores das sessões. A complexidade das relações humanas, os recursos ini- magináveis dos indivíduos incitam-me a nunca encerrar uma história, a nunca pôr um ponto final. À guisa de conclusão, me limitarei a acrescentar um elemento de reflexão, com o qual terminarei a história dessa mãe e dessa filha que não po- dia ser a mãe da sua mãe. Para um pai, achar que tem toda a razão não significa que ele seja o único a ter razão! Longe disso! Um filho também pode, legitimamente, achar que tem razão. Por isso, o problema não é saber quem tem razão ou quem está errado, e sim sair do processo em que duas pessoas entraram seguros da sua certeza de ser vítima do outro. Anne e Agache vieram juntas me ver, e essa atitude, pouco freqüente, é fundamental! Isso porque, quando surge um problema, é importante ver toda a família (ou os dois membros do casal) para melhor com- preender como a dificuldade se instalou e que sentido, ou função, pode ter o sintoma, num contexto mais amplo. Na história de Anne e Agathe, assim que vi mãe e filha, per- cebi a estrutura que as prendia. Percebi o tipo de relacionamento que haviam estabelecido, que as levou a se atolarern num pântano comum. Compreender uma e outra foi indispensável, mas o meu objetivo era modificar o tipo de relacionamento que as aprisiona- va, para que elas se abrissem para uma nova vivência emocional, inaugurada na psicoterapia e que, em seguida, pudessem exportar para a vida cotidiana. Capítulo 2 o passado não nos condena O capítulo que acabamos de ler descreve, entre outras. coisas, a história de uma repetição. O que se repetianaquela família, de geração em geração? A rejeição. A paciente, que se sentira rejeitada pela mãe, se vê rejeitada pela fi- lha que, por sua vez, tem a impressão de que a mãe não a aceita. A primeira pergunta que essa história nos faz é uma per- gunta clássica no campo psicoterapêutico: qual é o impacto do passado no nosso comportamento? Mas essa pergunta encobre outra, mais profunda: o que se deve entender por passado? Um terapeuta familiar respon- derá: não são apenas os fatos, não são apenas os acontecimen- tos que se sucederam desde que nascemos. Sem dúvida, nosso passado é feito de mitos, de relatos e de regras, transmitidos de geração em geração na nossa família, e também, mais am- plamente, no nosso ambiente. Estaríamos errados em explicar as tempestades internas que às vezes nos abalam unicamente com elementos ligados à nossa história; são os acontecimentos do presente que as provocam, ao entrarem em ressonância com as experiências vividas e as crenças enraizadas na nossa própria I,I[ I 36 37 Como sobreviver à própria fàmília o passado não nos condena história. O passado e o presente desempenham um papel no nascimento desses maremotos afetivos - na verdade, ambos são necessários, mas nenhum deles, sozinho, é suficiente. Se o presente não desperta nada em nós, em geral ele é inofensi- vo; o passado nos sensibiliza, às vezes nos fragiliza, mas só nos condena se fizer o presente ecoar em nós. Nossas vivências de outrora se parecem com dragões adormecidos sob a nossa cama. Podemos não perceber a presença deles. Porém, um dia, certo acontecimento toca a música certa' para acordar o dragão. E eis que ele desperta, perturbando o nosso universo. Como, a partir de então, age o terapeuta? Modificando, com a sua presença e suas reações, o coquetel explosivo ao qual está submetido o indivíduo, o casal ou a família em tratamen- to. Com as suas intervenções, ele faz evoluir, aos poucos, pelos reenquadramentos que efetua ou tarefas que dá, o contexto afetivo no qual o paciente está preso; ele faz emergir um novo ambiente que permitirá sair progressivamente da repetição ge- rada pelas interseções entre os acontecimentos do presente e as sensações do passado. A experiência afetiva do paciente na sessão vai, então, substituir a antiga vivência tirânica e abrir outros devires. Vamos imaginar uma jovem que, tendo crescido num contexto difícil, associa os homens à ausência de amor e à rejei- ção afetiva. Mais tarde, ela quer criar uma relação amorosa com o homem que escolhe por companheiro. Ela se sente dividida entre uma crença profunda ligada ao passado, que apresenta os homens como incapazes de amar, e o seu desejo atual de vi- venciar um relacionamento compartilhado com o parceiro. Na escolha do companheiro, ela estará menos atenta do que outras jovens, pois, para ela, os homens são, por definição, incapazes de dar amor e ela não rejeitará aquele em quem detectar, além de protestos vibrantes e declarações inflamadas, uma indiferença e uma hostilidade em potencial; dirá a si mesma que ele é como todos os homens que conheceu, mas que, como ele a ama, tal- vez não seja impossível que, graças a ele, consiga vivenciar uma experiência pela qual nunca passou - uma relação de amor mútuo. Uma parte da jovem fará tudo o que for necessário para que o companheiro mude; mas, ao mesmo tempo, suacrença profunda lhe soprará que é pouco provável que isso ocorra. Se uma discussão eclodir e a rejeição puser o nariz para fora, ela irá ernparedar-se na sua crença: isso fatalmente teria de acorite- r! O pois de vários confrontos dolorosos com o cônjuge, ela não mais ousará esperar por uma mudança, pois ficará receosa de que, se ocorrer, será de pouca duração e, aí sim, provocará uma cruel decepção. Essa situação nos mostra claramente os diversos fatores que preparam o aparecimento de um configuração repetitiva: 1. Uma pessoa marcada por esse traço recorrente do seu pas- ado acredita que o que vivenciou só pode acontecer de novo. 2. Ela cria para si mesma um refúgio para se proteger quan- do existe o risco de a situação se repetir: ao menos nesse abrigo, ela pensa, não ficará exposta à desilusão. 3. Ao mesmo tempo, como qualquer ser humano, ela quer ser feliz, ou seja, procura outra saída, um devir diferente daque- le, repetitivo e doloroso, que já conhece. Ela será mais atraída do que qualquer outra pessoa para o tipo de relacionamento que deseja ver mudado, porém, como, no fundo, não acha que isso seja possível, não ficará tão atenta para evitar esse perigo. 38 39 Como sobreviver à própria fàmília o passado não nos condena 4. Em nome da mudança, ela participa do ciclo que se forma em seguida. Paradoxalmente, deseja se livrar dessa crença profunda que a consome, mas vai enveredar por uma situação que irá reforçá-Ia. 5. Porém, ao fazer isso, ela fica dividida. Uma parte dela quer a mudança, enquanto a outra não consegue acreditar que ocorra. Essa divisão interna faz com que envie ao parceiro uma dupla mensagem: "Pare de se comportar assim" e "Se você mudar de comportamento, tenho muito medo de que isso não dure, pois você só pode se comportar desse modo". 6. Portanto, ela estimula o que receia que ocorra. Ela se coloca numa profecia auto-realizadora, como esses motoristas que, devido a um conflito internacional, temendo que a gasolina venha a faltar, completam o tanque e enchem o porta-malas com galões de combustível, provocando assim a escassez que receavam. A jovem reforça no parceiro o comportamento que abomina, mas que, ao mesmo tempo, a protege, pois permite que continue no seu refúgio, protegida da decepção. Esse mecanismo pode ocorrer num casal ou numa família, entre um pai e um filho. Mas só é possível se o outro participar, de uma maneira ou de outra. É o que vamos ilustrar em seguida. sabia, ocorrer de novo e de novo! A partir de então, um ciclo de comportamentos e de reações se estabelece e, rapidamente, come- ça a funcionar por si mesmo; nenhum dos dois protagonistas está à altura de pará-lo, mesmo que o queira. Cada um deles reforçará a convicção do outro e o ajudará a fortalecer o refúgio. No entanto, a experiência nos mostra que esse ciclo pode ter outra saída. A situação pode começar com um convite à re- petição sem que, por isso, vá em frente: basta que o outro man- tenha distância do tema proposto e que esse tema não desperte nele nenhuma fragilidade em especial. A reação será surpreen- dente para o parceiro e se este último, devido a esse fato, não s~guir pelo caminho previsto, pode aparecer uma flexibilidade. As crenças profundas não são convicções inabaláveis, não são estruturais; elas exprimem o medo de sofrimentos renovados. Um contexto afetivo diferente, que recuse a via temida e, ao mesmo tempo, proposta, pode livrar o outro de seus laços e lhe devolver a liberdade que tanto lhe fazia falta. No capítulo anterior, vimos como a crença da mãe nutria na filha a mesma convicção que, por sua vez, reforçava a vivência da mãe. O papel do terapeuta foi "desconectar" os elementos do passado dos elementos do presente. Essa desconexão reduziu o impacto afetivo das crises agudas que mãe e filha atravessavam. Ela pôde ser realizada graças à experiência emocional vivida em família durante as sessões na presença do terapeuta, e enrique- cida com o surgimento e a multiplicação de novas experiências afetivas vivenciadas pelos membros da família entre as sessões. Na verdade, a repetição não é uma pulsão mortífera; ela é uma tentativa de solução que não dá a si mesma os meios de ter êxi- to. Por isso, o terapeuta pode explorá-Ia ao criar um contexto mais Não basta que um membro do casal convide o outro para dançar para que esse outro aceite com prazer. É preciso que o convite encontre uma sensibilidade ou uma fragilidade presente no outro. Só então o fato de entrar na dança será equivalente ao reforço de uma de suas próprias crenças. Ele poderá, como o parceiro, buscar refúgio na fortaleza de sua convicção - a expe- riência repetida que ele teve no passado só poderia, como ele bem 40 41 I '-< Como sobreviver à própria fàmília o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles flexível e permitir que essa tentativa desabroche, até a resolução dos dilemas nos quais os membros da família estavam mergulhados. De resto, o convite que fazemos ao outro para repetir o que conhecemos bastante deriva de uma lealdade inconsciente. Muitas vezes estamos ligados aos nossos pais por grilhões ocultos - por exemplo, o sentimento de que os trairíamos se nos aven- turássemos mais longe do que eles e se tivéssemos sucesso onde eles fracassaram. Porém, mesmo nesse caso, a conscientização de que somos a parte interessada nesses ciclos de sofrimento mútuo pode nos ajudar a tentar outra coisa. E a libertação do outro será, também nesse caso, associada à nossa própria libertação. Capítulo 3 o patriarca que queria o bem dos filhos ... contra a vontade deles A vida é um processo paradoxal: nós, que nascemos, es- tamos condenados a morrer. Talvez fosse melhor não ter nasci- do, como sugeriu Sófocles, porém, é tarde demais! A maneira como vivemos está toda nesse paradoxo que define o quadro do qual não podemos sair - ter nascido e, portanto, ter de morrer. Não somos criaturas assepsiadas que vivem num mundo isento de paradoxos, de rupturas e de contradições; mas podemos fazer o melhor possível para que os paradoxos nos quais estamos pre- sos e nos quais encarceramos os outros possam desembocar em múltiplas vias e não numa só. Nossa prisão reside na unicidade do caminho que se perfila diante de nós; nossa liberdade pode ser formulada como uma abertura de outras vias possíveis e nosso dever de indivíduos é procurar ter acesso a essa liberdade. Esta história começa como um conto.Era uma vez um pai e uma mãe adoráveis que ama-vam muito os seis filhos. Eles sonhavam comprar uma grande casa de campo que se tornasse o ponto de encontro da família. Uma construção acolhedora e espaçosa onde os filhos, que já eram pais, pudessem se encontrar nos fins de semana e nas férias. Conforme os anos fossem passando, essa bela casa, na qual toda a família se reuniria como uma tribo feliz, manteria alegremente a união entre as gerações. Ala{n e Denise - é assim que os chamarei - encontra- ram a casa dos sonhos e compraram-na imediatamente. Com o passar dos anos, Alain se tornou um verdadeiro patriarca: sentia- se feliz em ter à sua volta os seis filhos e as respectivas famílias e dizia a si mesmo que pequenos, jovens e adultos (mais de trinta pessoas ao todo) encontravam alojamento e refúgio na casa que ele havia escolhido. 42 43 III Como sobreviver à própria família o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles Parecia o próprio cenário de harmonia em família. Mas nem tanto, pois, nessa atmosfera de contos de fadas, um mal- entendido se instalava insidiosamente. Querendo agradar aos filhos, um belo dia Alain anunciou que a casa era deles e que iria doá-Ia formalmente, em cartório, pois queria fazer a transferência em vida. Sem dúvida, deseja- va selar concreta e definitivamente a união da família doando simbolicamente as paredes hospitaleiras. Mas, é claro, ele con- tinuou a ir para casa com Denise, o que, no final das contas, era bem compreensível. E zelava para que nenhum quadro fos- se mudado de lugar, nenhum móvel, mesmo incômodo, fosse substituído e se responsabilizavapelos necessários trabalhos de manutenção e reforma. Talvez Denise não aprovasse totalmente esse comporta- mento. Em todo o caso, nada deixou transparecer. Pouco a pouco, e sem que ninguém atentasse realmente para o fato, um conflito começou a se instalar. Parecia, cada vez mais nitidamente, que, apesar da doação, Denise e Alain ainda eram "os donos da casa", não apenas na representação simbólica que faziam da situação, mas, no fundo, na realidade. Essa situa- ção afetou o valor das reuniões familiares, pois, desde então, elas pareciam organizadas para o prazer daqueles que continuavam a ser os verdadeiros proprietários da casa. Os genros e as noras começaram a se sentir meio oprimidos com essasperegrinações rituais em que era celebrado, em coro, o cul- to à família reunida. Maus pensamentos começaram a germinar nas suas cabeças - talvez pudessem passar as férias... em outros lugares! Mas os patriarcas tinham muito tato, eram tão acolhedores, de "convívio" tão fácil, que os membros agregados mais recentes, de status menos sólido, não ousavam confessar suas reticências. E continuaram a celebrar na casa a liturgia dessa família perfeita. No entanto, o fogo continuava latente sob a brasa. A apa- rente harmonia mal ocultava as ambigüidades que, lenta mas indubitavelmente, envenenavam o relacionamento de todos. Datas de férias que coincidiam, despesas com energia elétrica divididas em meio a discussões, móveis sem manutenção: as dis- putas aumentavam entre os irmãos, ou irmãs e seus parceiros. Contudo, paralelamente aos desentendimentos familiares, os rebentos se multiplicavam, para grande alegria do patriarca, e os anos passavam. . Foi nesse contexto que, depois de seis anos de coabitação, uma das filhas finalmente decidiu dizer aos outros: "Queridos ir- mãos e irmãs, eu os amo muito, mas vejo que o meu marido não fica muito feliz quando o trago para cá. Sinto que ele se sujeita, que vem aqui para me agradar, mas precisa de um lugar que seja dele realmente. Conseqüentemente, irmãos e irmãs, eu ficaria muito grata se me ajudassem a sair desta comunidade fraternal comprando a minha parte". A família ficou estupefata! Mas não houve nenhuma rea- ção violenta ou desesperada. Na verdade, tudo teria transcorrido muito bem se o patriarca tivesse tomado uma posição e feito um discurso mais ou menos assim: "Filha adorada, devo lembrar-lhe que, enquanto eu viver, esta casa me pertence. Ela está no nome de vocês, mas isso porque eu quero que, no futuro, vocês sejam os beneficiários. Enquanto eu estiver aqui, não existe possibilidade de que as coisas sejam encaradas de maneira diferente". Se o patriarca tivesse manifestado claramente a sua versão dos fatos, acabando com qualquer ambigüidade, a filha teria ou- 44 45 II I II II II I II I Como sobreviver à própria fàmília o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles vido claramente: ''A casa foi posta no nome de vocês porque eu quis, mas, por enquanto, ela ainda é minha e vocês são meus convidados". Infelizmente, o patriarca permaneceu calado e os ir- mãos, que não tinham recursos para pagar à irmã, disseram: "Está pedindo uma coisa impossível! Não podemos vender esta casa, pois partiríamos o coração dos nossos pais. E você sabe muito bem que não temos a quantia necessária para pagar a sua parte!". Então, a interessada perdeu a calma, chamou os irmãos e as irmãs dos piores nomes e, criticando-os por lhe imporem uma co-pro- priedade que ela não queria mais, disse: "Por causa de vocês corro o risco de ser forçada a me divorciar! Meu marido vai me deixar, é isso o que vai acontecer e vocês serão os responsáveis!". Durante todo o tempo, o patriarca permaneceu calado. Podia-se sentir uma muda reprovação ao comportamento da filha, mas ele não disse uma palavra. Quanto aos filhos, en- veredaram pelo conflito que nascia sem perceber que, antes de tudo, eram vítimas de um sistema que não haviam criado. A situação começou a piorar. Eles tentaram contemporizar. Talvez pudessem emprestar ao casal uma quantia que lhes permitisse alugar uma casa no verão seguinte e passar as férias num outro lugar. Mas as propostas, que pretendiam ser conciliadoras, só aumentaram a confusão e agravaram os rancores. o patriarca havia feito o que podia. Ele não reunira os membros da família apenas para o seu próprio prazer, mas para o que ele achava que também seria o prazer de todos. Ao dizer a si mesmo que os filhos ficariam felizes por estarem juntos, ele tinha razão. E para lhes mostrar que o lugar era deles, ele o deu de presente. Porém, não lhes deu realmente. Situação insolúvel? Talvez não, se regras claras houvessem sido formuladas. Pois o que criou o conflito, no caso, não foram os pontos de vista opostos e sim o clima de confusão em que essa oposição aparece. O pai poderia ter reunido os filhos e dito: "Queridos filhos, eu gostaria, para o nosso bem comum, que as coisas ficassem bem claras entre nós. Enquanto Denise e eu estivermos vivos, este lugar me pertence. Pus no nome de vocês para que soubessem que, de qualquer maneira, ele lhes pertencerá no futuro. Mas, enquanto eu viver, é importante que possamos usufruir dessa casa juntos e que nos vejamos com regularidade. Quando eu não estiver mais aqui, bom, poderão fazer o que quiserem com ela". Essas palavras criariam uma fronteira que, por assim dizer, teria impedido os filhos de entrarem numa zona de conflito como aconteceu. Em compensação - e isso é muito freqüente -, numa sit~ação em que as ambigüidades se acumulam, uma cha- mando a outra e a segunda reforçando a primeira, às vezes um desejo louvável de poupar o outro de uma ferida muito profunda gera uma confusão cada vez maior, que pode ampliar-se a tal ponto que se torna impossível corrigi-Ia. Essa configuração não é própria da família. Pensamos num diretor de escola que pode formular regras claras ao administrar suas relações com os alunos e professores ou, ao contrário, se refugiar na imprecisão. Quando A história dessa família nos ensina que uma doação - que é o que parecia ser - pode se transformar num presente envenena- do. Inicialmente não havia nada de alarmante: todos os protago- nistas se comportaram com generosidade. Mas, rapidamente, os não-ditos, causados pela ausência de regras claras entre os irmãos - e entre a família - provocaram sérios conflitos. É verdade que 46 47 Como sobreviver à própria fàmília o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles 11111 /111111 II IIII1 1 I uma lei é claramente estabeleci da, é possível se situar em relação a ela e, eventualmente, combatê-Ia se a acharmos injusta. Em resumo, podemos circunscrever o espaço pessoal da sua inter- venção; mas se a lei não é formulada - ou pior, se é declarada e negada ao mesmo tempo -, a confusão parece inevitável na de- limitação do espaço de cada um. Para falar concretamente: "Meu espaço só começa a existir quando sei onde está o seu". "Se o seu espaço não for traçado, não saberei onde fica o meu". Ou ainda: "Teoricamente, se não tenho limites, eu sou mais rico. Mas, na realidade, sou mais pobre, pois, se não existem fronteiras, não sei onde você acaba e onde eu começo". Precisamos, agora, nos fazer a pergunta essencial. Por que o patriarca não enunciou a lei claramente? Por que ele não pôde criar essa fronteira definida entre o vocês e o eu? E o que acon- tece, em geral, com as pessoas que contribuem para criar esse tipo de situação? O pai que diz sacrificar-se para o bem de seus filhos é uma figura, muitas vezes marcada por certa nobreza, que encontro constantemente. A explicação para esse comportamento reside, ao menos em parte, na história dessas pessoas. Talvez tenham sido criadas num contexto pouco claro que as mergulhou em si- tuações ambíguas, que elas repetem sem ter consciência de que o fazem. Mas outros parâmetros podem concorrer para criar montagens análogas e, a esse respeito, devemos destacar que foi toda a família que, num entendimento implícito, optou por não esclarecer a situação, para evitar o choque com umdeles, ou na ilusória esperança de que um conflito não enfrentado pudes- se ser absorvido por si só. Também podemos supor que os pais quisessem sinceramente o bem dos filhos, mas não conseguiram perceber que o que achavam que fosse bom para eles pudesse ser considerado de maneira totalmente diferente pelos interessados. Então, qualquer comentário da situação passa a ser difícil para os filhos, pois poderiam passar por ingratos. Freqüentemente encontramos pais que não se dão o direito de pensar neles mes- mos - isto é, se questionar sobre eles mesmos -, pois, como dizem, o amor que sentem pelos filhos "vem antes de tudo". Esse estado, que aliás é quase sempre acompanhado de uma culpa difusa, faz do filho uma pessoa que lhes permite mascarar a própria dificuldade em enfrentar seus desejos pessoais, obri- gando esse filho a ser responsável por coisas que não são dele. Portanto, é importante que os pais digam a si mesmos: "Temos o direito de existir e de dizer o que queremos, pois esse direito que nos concedemos também libera nossos filhos de pre- cisarem carregar o peso de nossas dificuldades". Caso contrário, a confusão entre o desejo dos pais e o que eles desejam para os filhos pode criar uma situação que não se pode deslindar. Essa história, que começa como um conto, não termina com um happy end. Mesmo assim, vamos tentar transformá-Ia num apólogo, tirar dela um ensinamento. O que é, na verdade, essa famosa casa de campo, razão de ser e base dos conflitos familiares, senão o lugar onde tudo se quis dar sem nada pedir e sem nunca estabelecer limites? Em vez de oferecer à família reunida o espaço que ela idealizava, essa casa passou a ser o lugar onde cada um, possuindo tudo, não tinha nada. Pois se fronteiras claras não são estabelecidas, se não somos capazes de expressar nossos desejos e dizer ao outro "Você começa onde eu termino", ninguém possui lugar nenhum. iillllit 48 49 I ."-'. Como sobreviver à própria família Em que roteiro eu me encaixo? Quando os pais não ousam reivindicar seu espaço, passa a ser difícil para os filhos traçar o deles! Invadir um filho com o sacrifício que queremos fazer por ele pode criar uma situação sufocante e incerta. E quando amamos os filhos e filhas a ponto de nos esquecermos de nós mesmos, corremos o risco de, mesmo quando estamos cheios de amor e de generosidade, rimar "muito Capítulo 4 Em que roteiro eu me encaixo? "C( "amor com mau amor . c riar um filho é uma das tarefas mais difíceis que exis-tem. Se somos muito exigentes, nossa rigidez pode sercondenada; se somos muito tolerantes, nossa indul- ência é que é criticada; se amamos demais, corremos o risco de parecer invasivos, sufocantes; se tentamos dar a eles um espaço, nos acham indiferentes, muito distantes. Portanto, os pais não têm outra escolha a não ser adaptar o seu comportamento a cada filho, por ensaio e erro. Mas, ao mesmo tempo, devem as- umir e reivindicar o lugar de pais, sobretudo no papel que lhes cabe na hora da decisão. "Como devo amar o meu filho?" - essa é a pergunta lancinante que se apresenta a qualquer pai. Pois o amor que recebeu (e recebe) dos pais é, para um filho, o viático que lhe permitirá, nos momentos de sofrimento e de dúvida, continuar a acreditar no próprio valor, a atravessar as situações difíceis e a se salvar em caso de naufrágio. É, sobretudo, a segurança específica que ele sente devido ao amor que lhe damos que lhe permitirá enfrentar essas circunstâncias. 50 51 .0 Como sobreviver à própria fàmília Em que roteiro eu me encaixo? Mas, infelizmente, amar não basta; é preciso amar respei- tando a diferença do outro. Acontece que esse limite é muito difícil de ser estabelecido. Quando começo a impedir que meu filho desabroche impondo que ele seja como eu quero, sem res- peitar a sua alteridade? É ainda mais difícil dizer que também devo defender, caso necessário, meu direito e dever de ser aquele que contribui para estabelecer a lei, sem me furtar a essa respon- sabilidade e aceitando assumir as conseqüências - que podem ser dolorosas - desse componente fundamental do papel de pai. Estipular para o meu filho os limites que ele não deve ultrapassar é, realmente, uma das principais responsabilidades que me ca- bem, mesmo que esteja longe de ser a única. Os pais podem ter dificuldade em assumir plenamente suas funções, pois estão incluídos, da mesma maneira que os outros membros da família, em ciclos repetitivos que existem nas rela- ções familiares. Esses roteiros escritos tanto pela família quanto pela cultura nos aprisionam à nossa revelia - felizmente, como veremos ao longo deste livro, eles podem ser modificados quando os protagonistas abandonam a trama. Além disso, já dissemos, a realidade não é um dado objeti- vo; ela é criada no processo pelo qual a percebemos. O que per- cebemos e o que sentimos surge na interseção do que se oferece a nós e do que nos constitui. Os limites do nosso conhecimento do real estão ligados a elementos de natureza diversa: a consti- tuição biológica de nossos órgãos da percepção obviamente é fundamental, mas os nossos a priori também o são. O mesmo acontece com o modo como os membros de uma família se per- cebem mutuamente. Amamos nossos filhos como imaginamos que eles sejam, mas o que pensamos deles não é necessariamente como eles são - menos ainda aos olhos deles. Podemos formu- lar assim a mensagem implícita que o pai envia ao filho: "Eu o amo como acho que você é, sem perceber que, talvez, você seja diferente; mas como eu o amo e quero o seu bem, aceite o meu amor como sendo algo positivo". Às vezes, para manter esse amor, o filho tenta ser confor- me a imagem que ele acha que temos dele. Mas, ao incitá-Io a se engajar nesse processo, fazemos com que ele corra um grande perigo, pois quanto mais o amamos, mais risco ele corre de não se sentir amado, pois não é ele que é amado e sim a represen- tação que ele forjou para nos agradar. Uma paciente me disse um dia, com vigor: "Meu pai me amou intensamente, mas ele nunca me conheceu como sou". Não poderíamos formular o problema de maneira mais clara. Entretanto, convencidos da sinceridade do seu amor pelos filhos, os pais só poderiam viven- ciar como ingratidão suprema a recusa do filho em aceitar o que eles oferecem tão sinceramente. As coisas podem ser ainda mais complicadas. O filho pode ser confrontado com uma mensagem contraditória de um dos pais ou mesmo dos dois. Helm Stierlin, psiquiatra e psica- nalista, professor da universidade de Heidelberg, nos ajuda a enxergar com mais clareza esse ponto, graças ao seu conceito de delegação. Delegare, em latim, significa "enviar" e, ao mesmo tempo, "confiar uma missão". O filho "delegado" é enviado por sua família e ligado a ela por lealdade - até aqui, nada de anor- mal. Porém, segundo Stierlin (que retoma noções freudianas bem conhecidas), existem diferentes tipos de missão: aquelas que são dadas pelo id da pessoa que delega e as que são dadas pelo superego. Pode muito bem ocorrer que a missão dada pelo 52 53 Como sobreviver à própria fàmília Em que roteiro eu me encaixo? id ("Pense, antes de tudo, no seu prazer") vá de encontro à que vem do superego ("Trabalhe e tenha sucesso onde eu fracas- sei"). É, então, a mesma pessoa que formula duas exigências mais ou menos incompatíveis e podemos adivinhar em que situação inextricável o filho vai debater-se. Em outros casos, a contradi- ção ocorre entre as missões confiadas pelos pais individualmen- te, mas as coisas não ficam mais fáceis por isso. Esses processos, como vemos, não derivam de uma con- cepção linear simplista, segundo a qual os filhos "se ressentem" devido às ações dos pais: para cornpreendê-Ios, o terapeuta deve levar em consideração as regras estabelecidas numa família através das diferentes gerações e a articulação dos elementos singulares que ele descobre nos filhos e nos pais. pela relação (o que eles fazem juntos?). Desde então, o paciente deixou de ser um indivíduo: ele é uma relação. A partir dos anos 60, o terapeuta familiar se dedicou a ana-lisar as relações dolorosas que via desfilar nas sessões, diante dele. Por volta do início dos anos 80, graças sobretudo ao trabalho de Paul Watzlawick, esse terapeuta tomou consciência da sua posi- ção na terapia - ele percebeu que não era um observador exter- no, sem influência no que se passava, mas que também pertencia ao sistema humano que analisava e que o englobava. Foi então que a pergunta mudou outra vez. Não era mais "O que eles fazem juntos?" e sim "O que nós fazemos juntos?". E, ato contínuo, a pr.ópria concepção da mudança terapêutica evoluiu. A maneira orno o terapeuta usa a si próprio na sessão pode contribuir para mudar as regras desse sistema ao qual ele pertence, da mesma forma que os membros da família. Nos capítulos seguintes, veremos como os membros de uma família podem conscientizar-se dessas regras ao descobrirem roteiro pessoal que seguem sem saber. Então, uma deliberada mudança por parte deles poderá esboçar na família outros ciclos de relacionamento que se abrirão para outros devires. Uma das críticas constantemente feitas à terapia de família é que ela contribui para culpar os pais. Ao insistir nas mensa- gens contraditórias que o filho muitas vezes recebe dos pais, a terapia familiar pode, ao dar os primeiros passos, ter dado essa impressão. Mas, a partir do fim dos anos 50, surgiu outra manei- ra de enxergar as coisas (graças à teoria dos sistemas). Segundo essa nova abordagem, a família passou a ser um sistema humano e as interações que ocorrem entre seus membros são sempre re- cíprocas - o que A faz a B provoca o que B faz a A e assim por diante. Portanto, foi preciso abandonar a concepção linear da ca- sualidade e substituí-Ia por uma concepção circular. Saber "quem começou" não tinha mais sentido, assim como não tinha sentido se perguntar quem armou a cilada para o outro. Passamos de um universo no qual buscávamos um culpado (quem fez isso? o que um fez para o outro?) para um mundo no qual nos interessamos 54 55 Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar Capítulo 5 Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar O casal que entra no meu consultório me impressiona. pelas maneiras afáveis. Ambos estão na faixa dos qua-renta anos e exercem profissões liberais. Vivem juntos há mais de dez anos. O homem toma a palavra e, com voz firme, explica a razão da consulta: Damien - filho da sua mulher, a quem é muito ligado - se recusa a continuar os estudos ou a procurar um emprego. A mulher intervém, visivelmente aborre- ida, pois acha que Damien se comporta como um preguiçoso: "Ele é passivo em relação à vida, espera que as coisas se realizem ozinhas! Eu, que, ao contrário, sou impaciente, ao menos no que e refere a de, continuo a ajuda-lo, a estimulã-Io. Queria muito que ele fizesse as provas finais do ensino médio!". Nesse ponto, o método materno deu frutos, mas, em seguida, as coisas pioraram, pois o rapaz decidiu adiar a en- trada na faculdade. Ele negociou com os pais a possibilidade de trabalhar enquanto se decidia, pois, segundo suas próprias palavras, "não gostava de estudar". Alguns meses depois, ele já havia recusado todo tipo de trabalho e não dava mostras de procurar outro! Esse comportamento provocava constante 57 I~ Como sobreviver à própria família Meu {ilho se recusa a estudar e a trabalhar conflito entre ele e os pais. E eis que eles estavam na minha frente, solicitando ajuda para sair desse impasse. Damien não quisera acompanhá-los. Diante de uma situação como essa, é difícil não ter uma rea- ção banal ou superficial: "Esses pais", somos tentados a pensar, "estão diante de um filho difícil, que só quer fazer o que tem vonta- de e a quem, como diz a mãe, 'é preciso empurrar'!". Mas, eviden- temente, o terapeuta não pode parar por aí. Precisa tentar compre- ender as razões do comportamento do adolescente e a verdadeira natureza do que, exteriormente, é percebido como preguiça. Eu quis, então, ver sob outra perspectiva a situação da fa- mília que estava à minha frente. Talvez precisasse saber mais sobre as gerações anteriores para compreender melhor o que se passava com a atual. Interroguei a mãe sobre sua família e sobre os homens que faziam parte dela. Ela começou a falar sobre o pai: "Era um homem, como posso dizer, sem energia. Ele se queixava o tempo todo da conduta da mulher diante dos próprios filhos. Era frágil, como o meu filho!". Quanto mais ela falava sobre o pai, mais eu percebia que usava os mesmos qualificativos para descrever o filho e, além do mais, pintava mais ou menos o mesmo retrato de outto homem que havia desempenhado um papel importante na família e, também, "se sujeitava à vida", sem ter nenhuma influência sobre ela. Em seguida, ela voltou a Damien: sempre sentira que ele era "frágil" e acabou por se indagar se, pelo fato de estar constantemen- te "por trás" dele, querendo ajuda-lo, não havia cometido um erro; o rapaz não lhe agradecia por todos os seus esforços! Eu lhe disse que fiquei surpreso com a similitude dos ter- mos que ela usava para qualificar o comportamento do filho e dos homens que considerava importantes na sua família. Ela concordou: "É, tenho medo de que meu filho se pareça com eles ... ". O padrasto, em silêncio até aquele momento, confessou sua impotência diante do menino, sobre o qual reconhecia não ter nenhuma influência; ele chegara a cometer pequenos furtos. Todas as vezes que tentava interferir, a esposa fazia de tudo para mantê-lo afastado no momento das decisões. Essa atitude lhe dava um sentimento de exclusão e desvalorização: "Gastei tan- ta energia", suspirou, "cuidando desse menino ... ". Esforcei-me para pôr as palavras dele numa perspectiva transgeracional e consegui saber que, na juventude, havia sentido a mesma coisa, pois tinha a impressão recorrente de que, para a mãe, ele era menos importante do que os irmãos. Portanto, ficou nítido que, com o comportamento de Da- mien, que eles qualificavam de irresponsável e preguiçoso, os pais reviviam uma mesma situação, o que ampliava as dificuldades das quais se queixavam. Ao ser confrontada com Damien, não era tanto o filho que essa mãe via e sim um homem com quem já convivera e cuja incapacidade de tomar decisões e agir ela pude- ra, dolorosamente, avaliar. E, quando impedia a interferência do marido, não desconfiava que este último passava novamente pela experiência de desvalorização vivenciada com a própria mãe. Quando, na terapia familiar, tentamos trazer à luz certos fa- tos do passado relacionados à situação presente, esse tipo de análi- se vem constantemente à tona. No entanto, não associamos uma relação desse gênero à simples ligação de causa e efeito. Quanto aos sintomas, tínhamos de lidar com uma dupla remissão: o com- portamento de Damien tinha uma função para a família e para os pais no aqui e agora (função que, naquele momento da terapia, eu ainda não havia compreendido), e tinha também uma "uti- 58 59 .0 Como sobreviver à própria fàmília Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar lidade", ou um sentido, que só se podia entender se levássemos em conta o passado - ele reforçava crenças profundas na mãe e no padrasto, construções do mundo estabelecidas (eu me sinto tentado a dizer "enquistadas") desde a infância. No fim dessa sessão decisiva, pedi ao casal que viesse com o filho na sessão seguinte. Eu insisti: "Para lhes dar uma resposta, é muito importante que eu veja toda a família". Quinze dias de- pois, Damien estava na minha frente. Sem pestanejar, ele ouviu a mãe repetir o quanto estava irritada por ele não ter cumprido a promessa que fizera - trabalhar antes de retomar os estudos. Surpreendente, o filho "preguiçoso" me explicou o tipo de estudo que queria seguir e me deu a impressão, apesar de usar expressões não muito exatas, de que tinha uma idéia do que poderia fazer mais tarde. A mãe voltou ao assunto do prazo que lhe havia dado para encontrar um trabalho, "um prazo", disse ela, "não respeitado". Nessa sessão, também fiquei sabendo que o pai de Damien interferia muito pouco e que o rapaz tinha mais intimidade
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