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Elkaim - Como sobreviver à própria familia

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Prévia do material em texto

•
Mony Elkaím
com a colaboração de
Caroline Glorion
Como
Sobreviver à
Própria Família
Tradução:
Maria Alice de Sampaio Dória
ké4IU1?é--J
/ / EDITORA
Título do original francês:
Comment survivre à sa propre fomille
Copyright da edição original © Éditions du Seuil, 2006
Copyright da edição brasileira © 2008 Integrare Editora Lcda,
Publisher
Maurício Machado
Assistente editorial
Luciana M. Tiba
Produção editorial e coordenação
Estúdio Sabiá
Preparação de texto
Hebe Ester Lucas
Revisão de provas
Maria Sylvia Correa, Ceci Meira e Capiru Escobar de Assis
Projeto gráfico de capa e de miolo I Diagramação
Nobreart Comunicação
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CI P)
(Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)
Elkaun, Mony
Como sobreviver à própria famnia / Mony Elkaim com a
colaboração de Caroline Glorion ; [tradução de Maria Alice S.
Doria]. - São Paulo: Integrare Editora, 2008.
Título original: Cornmenr survivre à sa propre famille.
Bibliografia.
ISBN 978-85-99362-32-7
I. Família - Aspectos psicológicos 2. Terapia familiar T. Glorion,
CaroIine. 11.Título.
08-09046 CDD-616.89156
fndices para catálogo sistemático:
I. Terapia familiar: Ciências médicas 616.89156
Todos os direi tos reservados à
INTEGRARE EDITORA LTDA.
Rua Tabapuã, 1123, 7º andar, conj. 71-74
CEP 04533-014 - São Paulo - SP - Brasil
Te!. (55) (l1) 3562-8590
Visite nosso site: www.integrareeditora.com.br
SUMÁRIO
Mensagem do NAIA. ..... 9
Apresentação da edição brasileira,
por Sandra Fedullo Colombo 11
Prefácio, por Caroline Glorion ..................................................15
Introdução . . 19
Capítulo 1
Mãe e filha: a travessia de um conflito 23
Capítulo 2
O passado não nos condena
Capítulo 3
O patriarca que queria o bem dos filhos .
contra a vontade deles 43
Capítulo 4
Em que roteiro eu me encaixo? ...........................................................51
Capítulo 5
Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar.......... ....57
Capítulo 6
Libertar o outro para que eu possa mudar
Capítulo 7
O homem que não conseguia deixar
a mulher nem continuar com ela....
Capítulo 8
O luto num contexto ...
Capítulo 9
A mulher a quem se pedia demais e
o homem que se sentia abandonado.
Capítulo 10
O homem que queria afeição e a
mulher que queria ser respeitada
Capítulo 11
Meu parceiro, meu casamento e eu
Capítulo 12
Um segredo de família ....
Capítulo 13
O navio fantasma... .. ..... u
Capítulo 14
Sobreviver à própria família
. 77
A Olga, minha esposa,
e a Michael, meu filho,
que me deram tanto.. 85
..........101
.....109
. 121
..........131
.139
Bibliografia 143
Mensagem do NAIA
o NAIA - Núcleo Assistencial Irmão Alfredo é uma en-
tidade filantrópica que, desde 1982, assiste e educa crianças
com e sem deficiência, em situação de risco pessoal e social, e
suas famílias, nas regiões do Brooklin e Vila Missionária, na
cidade de São Paulo.
Criado por um grupo de pessoas interessadas em minirni-
zar os problemas de abandono e discriminação que crianças com
deficiência sofriam, iniciou seu trabalho com a missão de orien-
tar, encaminhar e atender, em regime de creche, crianças carentes
com deficiência cujas mães precisavam trabalhar e não tinham
com quem deixar seus filhos. Nessa fase, pudemos vivenciar o
preconceito e a exclusão das pessoas com deficiência em quase
todos os segmentos da sociedade.
Em 1994, procuramos novos caminhos e adotamos o "pa-
radigma da inclusão": nasceu a primeira "Creche Inclusiva" na
cidade de São Paulo. Passamos, assim, a atender 30 crianças com
deficiência e 30 sem deficiência num mesmo ambiente.
Em nossas experiências de educação nesse modelo, temos
constatado que a convivência entre crianças com e sem deficiên-
cia beneficia a todas igualmente, pois aprendem solidariamente a
reconhecer e respeitar as diferenças.
Agradeço a Caroline Glorion,
pois sem a sua ajuda eu não teria
realizado esta obra; a [ean-Luc Giribone,
que com o seu intenso trabalho me
permitiu terminá-Ia, e aos meus pacientes -
sem eles este livro não existiria.
9
Hoje atendemos a 510 crianças e adolescentes, em am-
biente inclusivo, nos programas de Educação Infantil, Educação
Complementar, Atendimento à Família e Projetos Culturais: mú-
sica, esportes, capoeira, informática, inglês, teatro, artes.
Nosso objetivo é prepará-los, e a suas famílias, para que pos-
sam fazer escolhas, agir positivamente sobre sua realidade e ser ca-
pazes, futuramente, de colocar suas capacidades a serviço da comu-
nidade, no sentido de diminuir a desigualdade social e a exclusão.
O que uma pessoa se torna ao longo da vida depende das
oportunidades que teve e das escolhas que fez. Porém, entendemos
que, além do acesso às oportunidades, as pessoas precisam ser prepa-
radas para fazer escolhas. O que propomos é oferecer as ferramentas
necessárias para o desenvolvimento sociocultural dessas crianças, jo-
vens e suas famílias, estimulando-as ao exercício pleno da cidadania.
Assim, foi com grande satisfação que recebemos a indicação
de nossa amiga e voluntária Sandra Fedullo Colombo e o posterior
convite da Integrare Editora para ocupar este espaço num livro que
aborda como tema central, com grande propriedade, as relações
familiares. Agradecendo a oportunidade, sentimo-nos fortalecidos
e revitalizados na busca do cumprimento de nossa missão.
Finalmente, convidamos os leitores a visitar o NAIA. Ve-
nham compartilhar um pouco de seu tempo, energia e conheci-
mentos. Sua presença é muito importante para nós.
Apresentação da
edição brasileira
Conheci Mony Elkaím no início da década de 90, em Bue-
nos Aires, em uma grande conferência mundial cujo objetivo era
reunir os maiores pensadores contemporâneos, filósofos, cientis-
tas, pesquisadores, humanistas, em um grande fórum de reflexão
sobre a ciência contemporânea e a compreensão das relações hu-
manas, cultura e subjetividade.
Entre esses pensadores estava Mony, que, em uma grande
assembléia de quase mil pessoas, emocionou-nos e fez-nos mer-
gulhar em nossas próprias histórias de vida, convidando-nos a sair
do lugar de profissionais que falavam sobre as relações humanas
para o de pessoas que tinham histórias de afeto para compartilhar,
e refletir .sobre algumas vivências que são repetidas e alimentadas
através do tempo, em uma dança cuja coreografia sabemos de cor,
sem muitas vezes nos darmos conta.
O que me marcou, naquele momento, foi sua crença em
que as relações ocorrem no encontro das ressonâncias de histó-
rias vividas, que se acordam mutuamente, e que, muitas vezes,
constroem seqüências repetitivas, mas que também podem ofe-
recer, ao nos darmos conta, os passos alternativos para uma nova
música ... O foco na consciência da responsabilidade mútua, na
Nídia Krunfli David Daghum
Presidente do Núcleo Assistencial Irmão Alfredo - NAIA
Rua Ribeiro do Vale, 120 - Brooklin, SP
Fone: (11) 5533-7922
www.naia.org.br
10 11
construção das relações e na autoria de todos os envolvidos na
trama estimula a capacidade de transformação de cada um de
nós, dando ênfase à possibilidade de sair das armadilhas relacio-
nais em vez de buscar culpados.
Seu convite a comprometer-nos com o que vivemos e di-
zemos foi, para mim, o diferencial: a consciência de que, quan-
do contamos uma história, estamos falando de nós mesmos, de
nossas experiências afetivas, acordadas naquele encontro com o
outro! Nunca podemos falar sobre o outro, mas de nossa vivên-
cia junto com o outro!
Ao ler Como sobreviver à própria família senti a mesma
emoção de quando o ouvi pela primeira vez, pois, com a postura
sensível de um contador de histórias, Mony vai desvendando, pe-
rante nossos olhos, situações humanas tocantes, em que as pessoas
se sentem prisioneiras na própria família. Passo a passo, ele nos
convida a perceber a parte de cada um na construção desse apri-
sionamento e, o que é maravilhoso, os recursos que cada um e o
grupo, como um todo, possuem para transformar essa história.
Mony acredita profundamente, e nós com ele, ao acom-
panhar as narrativas, que o futuro nãoprecisa ser a repetição
estéril do que já conhecemos e, principalmente, tememos. Ele
nos faz perceber como estamos enganados ao procurarmos, com
insistência, uma realidade imparcial e objetiva. E nos mostra a
impossibilidade de olharmos nossas histórias por um só canal, o
nosso, e definirmos o certo e o errado como posições absolutas.
E se todos estiverem certos, como nos pergunta? E se estivermos,
sem perceber, participando de um script familiar e repetindo
nosso papel sem nos darmos conta? E se os sintomas surgiram
como uma denúncia de que aquelas relações estão tornando-se
aprisionantes e dolorosas, apontando o momento de revê-Ias? E
se os sintomas forem, também, uma proteção para nos queixar-
mos, mas não transformarmos nada, para continuarmos leais
às nossas famílias? Essas e outras perguntas instigantes nos são
apresentadas durante a leitura deste texto.
Como naquela primeira vivência com seu trabalho, nes-
te livro ele não nos deixa do lado de fora! Somos chamados a
revisitar nossas histórias de encontros e conflitos, nossas resso-
nâncias são acordadas e nossos sentimentos passam a fazer parte
delas. Vemos Mony, em cada uma das situações relatadas, tra-
balhar e oferecer às pessoas a crença em seus próprios recursos,
para transformar aquelas situações e "mudar aquele destino",
que parecia estar fechado.
A ênfase na própria autoria e na responsabilidade decorrente
dessa postura transforma a ética relacional de culpados e vítimas na
de co-autores e co-responsáveis. Por meio dessa consciência e dessa
ética, Mony convida-nos a conhecer mais nossos enredos de vida e
fortalece-nos na posição de poder transformar as relações que senti-
mos insatisfatórias. A crença de que todo narrado r de uma história
está incluído em sua narração, com suas próprias experiências e res-
sonâncias, despertadas naquele encontro humano, permite perceber
que cada ponto de vista é verdadeiro e útil, mas também relativo,
e, dessa forma, abrimos um espaço riquíssimo para a compreensão
das relações familiares, saindo da armadilha de quem tem razão e
de quem é culpado! Com esse movimento, a autoria do que está
acontecendo é dividida entre todos os participantes.
O instrumento que Mony nos oferece é o de nos conectar
com nossa história pessoal, para percebermos o que aquela situa-
ção, com aquela pessoa ou grupo, acorda de dores e riquezas, qual
12 13
Prefácio
é o ponto onde as histórias se encontram, quais os significados
que são despertados e - o que chamei de "pulo do gato" - para
que serve esse acordar de histórias, essas ressonâncias, nessa rela-
ção, nesse momento da vida.
Nessa visão, não existe a possibilidade do observador neu-
tro, aquele que poderá perceber "a verdadeira realidade", a pessoa
que poderá julgar o que é certo e errado. Os lugares de culpado,
vítima, juiz, tão disputados nos conflitos familiares, entre casais,
entre pais e filhos, são desconstruídos ao vivermos o sentido da-
quela experiência para nossa história!
Espero que nossos leitores saboreiem, como eu, essas his-
tórias, revisitem suas próprias experiências de vida e se permi-
tam entrar em contato com as ressonâncias que surgirem, pois
acredito que são portas que se abrem para novas possibilidades,
no caminho da vida.
Prefácio
Eu amo minha família ... Esse foi o título que escolhi para
o documentário que realizei há alguns anos para a rede de tele-
visão France 2. Instintivamente, eu pegava o contrapé do título
de um filme lançado no fim dos anos 90, Eu odeio minha famí-
lia, que, retomando a fórmula de Gide, punha em cena os tor-
mentos da adolescência confrontada com um ambiente familiar
nefasto e sufocante ...
Apoiando-me no princípio do copo meio cheio ou meio
vazio, decidi, depois de uma enquete sobre as famosas terapias
familiares, lançar um olhar deliberadamente otimista sobre a
instituição "família". Se podia ser o lugar de todos os sofri-
mentos, por que a família não poderia ser também um lugar
de liberdade?
O encontro com Mony Elkaim, que seria o meu guia
nessa inesperada viagem documental sobre os caminhos das
terapias de família, foi decisivo. Ele era o líder carismático
dessa prática psicoterápica e optei por seguir-lhe os passos.
Sem demora, ele me ensinou a encontrar palavras simples para
explicar as fantásticas riquezas que todos podemos encontrar
no seio da própria família para vencer as adversidades que en-
venenam a vida cotidiana.
Sandra Fedullo Colombo
Terapeuta de casal e família, co-fundadora do
Sistemas Humanos - Núcleo de Estudos e
Prática Sistêmica Família, Indivíduo, Grupo
Para mais informações acesse:
www.sistemashumanos.org
14 15
."
Como sobreviver à própria família Preidcio
Passei horas e horas ouvindo-o trabalhar com estudantes
de medicina ou psicólogos que tinham bagagem suficiente para
compreender os termos, às vezes um pouco difíceis para mim.
Em seguida, com muita condescendência e um evidente senso
de vulgarização, Mony passava um longo tempo decifrando para
mim os desempenhos de papéis, ocasião em que, aqui e ali, sur-
giam momentos mágicos que lhe davam a oportunidade de de-
senvolver as noções fundamentais da terapia familiar.
Com sutileza e não sem malícia, ao me falar sobre a sua pro-
fissão, sobre o seu papel, Mony Elkaim simplesmente explicitava
como algumas vezes centrávamos o foco num dos membros da fa-
mília. Nós o cumulávamos de todos os males, o estigmatizávamos
como "doente" ou "transviado", sendo que, na maioria das vezes, ele
era apenas o portador de um sintoma que, na verdade, afetava toda
a família. Que bela solidariedade irmos à consulta todos juntos,
para permitir a esse "determinado paciente" sair desse estado ...
I!
Na minha família, eram muitas as histórias que impediam
as conversas, que desiludiam os mais audaciosos - jovens pais,
jovens casais, avós orgulhosos, mas às vezes decepcionados, filhos
rebeldes, que saíram de casa ou estavam em vias de fazê-lo.
Essa terapia, sempre atual, interessava a todos, sem dú-
vida a mim em primeiro lugar, a mais velha de uma numero-
sa família, curiosa para compreender como era possível nos
amarmos tanto e brigarmos tanto!
Mony Elkaim acredita no enorme potencial que existe no
seio de cada família. Seduzida por esse olhar, por essa condes-
c~ndência e essa abordagem que, segundo suas palavras, também
pode apoiar-se nos ombros do Papai Freud, me deixei guiar e Eu
amo minha família deu a alguns sobreviventes da vida em família
a oportunidade de falar, finalmente reconciliados consigo mes-
mos e com os parentes, ilustrando com várias situações esta frase
que Mony gosta de repetir: "Não é necessário que o outro esteja
errado para que tenhamos razão".
Um dia em que passeávamos num jardim em Paris,
Mony apontou uma bela árvore em flor e soltou a metáfora:
"As famílias são semelhantes a essas árvores magníficas, cujos
galhos desabrocham na primavera ... mas acontece que, às ve-
zes, um dos ramos não dá botões ou, então, nenhum botão se
abre, nenhuma flor desabrocha. O galho parece seco, como
se privado da seiva para se desenvolver. O papel do terapeuta
familiar é o de um jardineiro que oferece ou traz um bom
adubo, a boa terra, que faz nascer o sol no lugar certo. Então,
a seiva existente no tronco poderá circular e irrigar cada um
dos ramos, inclusive aqueles que parecem atrofiados".
Depois desse documentário para a televisão, numa das nos-
sas conversas nasceu a idéia deste livro para o grande público. Par-
tilhar o maior número possível de reflexões que ajudariam o leitor
a se fazer as perguntas certas, a mudar um ponto de vista estereo-
tipado que nos aprisiona para dar um novo ar às relações, facilitar
a vida em família, abandonar, de uma vez por todas, as idéias pre-
concebidas, as histórias ultrapassadas, penosas e imutáveis.
Um livro concreto e acessível, no qual cada leitor pudesse
obter sobre o que refletir e se comunicar de maneira diferente
com o cônjuge, os pais, o irmão, a irmã ou com o filho.
16 17
.<
I I
Como sobreviver à própria fàmília Introdução
Conversamos sobre as histórias verdadeiras relatadasen-
tre quatro paredes no consultório de Mony. Nós as organiza-
mos com o objetivo de, um lado, respeitar o segredo profissio-
nal e, do outro, apresentar os casos mais universais. Durante
esses encontros, Mony Elkaim, ímpar contador de histórias,
me relatava essas sessões com deslumbramento quando sur-
giam indícios que lhe permitiram oferecer aos pacientes as
ferramentas para destrinchar situações .emaranhadas. Atenta
às palavras e aos conceitos, desempenhei o papel de ignorante
que salientava os meandros das frases e da mente impossíveis
de serem compreendidos pelos não iniciados. Levei para ele as
perguntas que todos nos fazemos, a fim de aprofundar alguns
pontos obscuros e de difícil acesso.
Esses diálogos fascinantes, apaixonantes, decifrados até nas
vírgulas, formaram uma base sólida, depois cuidadosamente revi-
sada e, em seguida, redigida por Mony.
Introdução
Quem nunca se sentiu, em algum momento, preso na
própria família? Quem nunca teve a impressão de ser esmagado
por uma realidade sobre a qual não podia influir? Desejo que
esta obra esclareça essas situações familiares, que todos conhe-
cemos, com uma luz diferente da que estamos acostumados. Na
maioria das vezes, não é a realidade em si que nos prepara uma
armadilha e sim uma representação dessa realidade construída
com o passar dos anos e dos acontecimentos. Como vamos ver,
cada um desempenha um papel bem específico no roteiro fami-
liar e a distribuição desses papéis, em geral, é feita à revelia de
todos. A armadilha se fecha, um sistema rígido se instala e todos
se sentem prisioneiros. Alguns membros da família sofrem, sin-
tomas aparecem ...
Ao descrever e comentar as situações, das quais a maior
parte diz respeito à nossa vida cotidiana, tentei oferecer ao leitor
uma forma de perceber o que lhe acontece; tentei mostrar de que
maneira participa delas sem querer, e como, para sair desse círcu-
lo vicioso no qual está preso com os parentes, ele pode conseguir
delimitar o seu território, fazendo com que seja respeitado pelas
pessoas que o cercam - sem provocar hostilidade, mas, ao con-
trário, conseguir aliados e não adversários.
Diametralmente oposto a um livro de receitas, Como sobre-
viver àprópria família é, no entanto, um livro salutar e útil. Estou
feliz por ter sido a sua humilde "parteira". E como em todos os
nascimentos, quer se trate de um filho ou mais prosaicamente
de um livro, promessas de vida, de sonhos e de novos horizontes
acompanham essa vinda ao mundo ...
Caroline Glorion
18 19
- ~___4- ...-... _~,_,_~,___ _
Como sobreviver à própria fàmília Introdução
Sobreviver à própria família passa a ser, então, sobreviver
à idéia que fazemos dela. Como os membros da minha família,
a cultura na qual cresci, meus relacionamentos sociais, a mídia,
me constroem, me esculpem, limitando a minha capacidade de
mudança ou de adaptação? Por que me sinto preso na minha rea-
lidade familiar? Será que não participo, contra a minha vontade,
da escultura de uma situação que, forçosamente, é mútua?
Desde o meu nascimento, estou preso num contexto: a
maneira como fui esperado, olhado, o nome que recebi e muitos
outros elementos constituem um ambiente de regras e mitos,
criado e compartilhado entre os membros da família, cuja co-
esão e permanência ela garante. Desde que cheguei ao mun-
do, participo desse universo cuja estrutura também manterei.
À medida que vou crescendo, os mitos e as regras da minha
família não poderão mais ser diferenciados da maneira como
eu os percebo e como me situo em relação a eles. A partir de
então, torno-me ator da peça que representamos juntos: como
vou me dar o direito de ser suficientemente "desleal" em relação
àqueles que me cercam, ou à imagem que tenho deles, para ver
minha família de um modo diferente do que eles a vêem - de
um modo diferente do que eu também a vejo? Como abrir ca-
minho fora das rotinas repetitivas e aparentemente inevitáveis
nas quais nos atolamos de comum acordo?
Essas são as perguntas às quais este livro se esforça para
responder. Evitando longas elaborações teóricas, me esforcei
para comentar casos concretos e mostrar o ensinamento que
podemos tirar deles.
Aqui vão algumas explicações. Em primeiro lugar, foi im-
possível ser exaustivo. Diante da imensa e complexa paisagem
das situações familiares, precisei fazer uma escolha. Porém, como
veremos, muitos dos princípios evidenciados num caso também
valem para outros e trata-se mais de compreender a natureza
do que podemos fazer e não de aplicar receitas mecanicamente.
Em segundo lugar, esses princípios, válidos na maioria das situ-
ações da vida cotidiana, não funcionam da mesma maneira em
contextos de abuso e violência em que devemos, antes de tudo,
nos proteger, nem em casos graves em que uma ajuda medica-
mentosa e, se necessário, uma hospitalização devem completar a
psicoterapia. Finalmente, eles não são dirigidos especificamen-
te aos filhos, nem aos pais, pois todos estamos envolvidos em
relações cujas tensões incessantes só poderemos evitar se acei-
tarmos reconhecer o papel que nós mesmos desempenhamos
nelas. Como este livro vai mostrar, assim espero, é a conquista
da nossa capacidade em modificar as regras do sistema em que
vivemos que permitirá a todos os membros da família terem
acesso à mudança. Assim é que os vínculos que me unem aos
outros, lugares e causas do meu sofrimento, podem ser os pró-
prios caminhos da minha libertação e da deles.
20 21
----"--
Mãe e filha: a travessia de um conflito
I1
Capítulo 1
Mãe e filha: a travessia
de um conflito
Elegância e distinção são as palavras que me vêem à cabeçaquando mando entrar as duas mulheres que se apresen-tam para a primeira sessão.
Vamos chamá-Ias de Anne e Agathe para facilitar o relato.
Anne, a mais velha, é mãe de Agathe. É uma mulher muito
bonita, de uns cinqüenta anos, e fiquei impressionado com a sua
desenvoltura quando se sentou à minha frente. A filha, que devia ter,
no máximo, uns 25 anos, senta-se ao lado dela com a mesma graça.
A jovem é a primeira a falar: acabou de dar à luz o seu pri-
meiro filho, ela explica, e a mãe se recusa a vê-lo.
Essa recusa é causa de um grande sofrimento para ela.
A mãe toma então a palavra, com a voz tingida de emoção:
"Não se trata apenas dessa criança. Reconheço que não me sinto
capaz de vê-Ia, mas o verdadeiro problema é que não agüento
mais sofrer com a atitude da minha filha!".
Ela inicia um monólogo, que ecoa como uma longa queixa:
"Eu não agüento mais dar a pessoas que me rejeitam, não agüen-
to mais amar alguém que só me retribui com indiferença. Aga-
the sempre adotou essa atitude para comigo! Ela me rejeita e a
23
_.1
Como sobreviver à própria fàmília Mãe e filha: a travessia de um conflito
maior parte do tempo só demonstra indiferença. Evidentemente,
a questão não é o filho dela ... é a sua atitude. A verdade é que
tenho medo de me expor ao me interessar por essa criança; tenho
medo de sofrer outra vez com uma rejeição afetiva, ou uma pala-
vra ofensiva da parte da minha filha. É isso o que me impede!".
A resposta de Agathe não demorou: "Não quero que mi-
nha mãe se comporte comigo como a mãe dela fazia com ela, isto
é, rejeitando-a, não a aceitando como ela era".
Anne prosseguiu como se não tivesse ouvido essa observa-
ção, o que eu notei atentamente. E se dirigiu diretamente à filha:
"Quando seu pai me abandonou, você tomou o partido dele. Ele
me tratava mal, você sabe disso, e, apesar de tudo, ainda se rela-
ciona com ele! Além do mais, você optou deliberadamente por
continuar ligada a pessoas que me abandonaram depois da sepa-
ração. Não, eu não quero ficar longe de você, mas como poderia
agir de outra maneira? É você quem me rejeita e que age de uma
maneira que não me dá opção!".
Enquanto eu escutava, em silêncio, as duas mulheres, senti
uma emoção me invadir - o sofrimento delas era palpável.
Da minha posição de terapeuta, percebi primeiro - como
é geralmente o caso - o sistema circular no qual Anne e Agathe
estavam presas. Elas se acusavam mutuamente de serem respon-
sáveis poraquela situação; Agathe acusava a mãe de se proteger
e não aceitá-Ia como ela era, a mãe acusava a filha de rejeitá-Ia
ao fazer escolhas ou ao adotar atitudes que lhe pareciam hostis e
agressivas. Uma troca fechada em si mesma, uma espécie de gira-
gira: ''A culpa é sua", disse a primeira, "foi você quem começou".
Ao que a segunda replica: "Não, a culpa é sua e se eu reagi assim
foi porque você começou!".
Que ciclo sem fim!
Sem dúvida, porém, olhando mais de perto, Arme e Agathe já
me haviam entregado elementos preciosos.Vamos tentar enurnerá-los.
Anne é uma mulher hipersensível e, parece, marcada por
relacionamentos dolorosos que teve no passado: ela prefere se
proteger a se arriscar a sofrer como fez na infância. Ela me lem-
brou uma estudante que preferia não comparecer a um exame por
medo de ser reprovada: expor-se a uma desilusão aterrorizava-a!
A filha, em compensação, se sente mais à vontade para ex-
pressar seu desejo, mas se sente rejeitada na sua singularidade. E,
de fato, ela não pode ser diferente, não pode expor suas opiniões
oú escolhas, sem que a mãe sinta isso como uma agressão.
Além do mais, existe a sombra desse pai ausente que real-
mente parece planar entre as duas mulheres.
Uma equação bem simples fica evidente: Anne teme se
aproximar da filha com medo de que ela a faça sofrer e Agathe
desejaria encontrar cumplicidade e proximidade na mãe, mas não
pagando o preço de abandonar sua própria personalidade.
Essa primeira sessãopor pouco não foi bruscamente interrom-
pida devido ao gira-gira citado anteriormente: quanto mais Anne
enumerava suas queixas e críticas à filha, mais esta reagia e insistia,
presa na sua própria exigência: ser aceita, reconhecida como ela era.
Nessa pesada atmosfera, eu ouvia Anne repetir como um
metrônomo, dirigindo-se a mim e depois à filha: "Não sou rece-
bida na casa dela e ela se relaciona com pessoas que me são hostis,
que me evitam e me rejeitam. Quanto à relação que você man-
tém com o seu pai, que me abandonou", prossegue, olhando para
Agathe, "pois bem, ela me causa um terrível desgosto".
24 25
I
II
I
1I
I
Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito
Uma especificidade da terapia familiar consiste em entrever
de repente, hic et nunc, o sistema que se instalou entre duas pes-
soas, que lhes dá funções estreitamente complementares e as apri-
siona num círculo patológico. No caso, era uma espécie de laço
complicado, como uma trança cheia de nós, que prendia ambas
num sofrimento pelo qual se sentiam mutuamente responsáveis.
No entanto, não se deve acreditar que as duas se com-
portavam em perfeita sincronia consigo mesmas. Agathe, por
exemplo, desenvolvia um forte sentimento de culpa quando re-
sistia ou se opunha às exigências maternas; mas, se ela cedesse,
tinha a sensação de que estaria rejeitando a si mesma - senti-
mento que abominava.
"Minha mãe", diz ela, "busca em mim o amor que não teve
dos pais. Mas ela é um saco sem fundo: por mais que eu faça,
nunca está satisfeita."
Todos nós sabemos - por nos encontrarmos tanto numa
posição quanto na outra - que a demanda afetiva pode com-
portar uma dimensão absoluta que a torna impreenchível -
demandar é demandar mais ainda, sublinha Lacan no seminário
que tem esse título.
Agathe termina nosso primeiro encontro com uma consta-
tação análoga, formulada clara e pausadamente.
Menina, depois adolescente, Anne via o pai muito rara-
mente, a cada dois ou três anos. Quando fala sobre ele, suas pa-
lavras estão impregnadas de tristeza. Novamente a cena se torna
emocionante, quando ela me conta um episódio que a abalou.
Sofrendo por ver muito pouco o pai, quando tinha 14 ou 15
anos, ousou lançar-lhe uma espécie de ultimato: "Pare de me
telefonar", ela declarou. "Se você me ama, vamos ver-nos mais
vezes!". A resposta paterna cai como uma punhalada: "Não gosta
dos meus telefonemas? Pois bem, eu paro". E ele não deu sinal de
vida por vários anos.
Anne relata essa lembrança que ainda lhe dói e conclui:
"Aqueles que eu mais amei foram os que mais me fizeram sofrer".
Do lado materno, Anne também não devia encontrar segu-
rança nem consolo. A mãe, que se casara novamente, mandou-a
muito cedo para um colégio interno e quando Anne voltava para
casa, ouvia claramente que incomodava o novo casal que se for-
mava. "Saiba que o meu casamento vem em primeiro lugar",
desferiu-lhe a mãe um dia, intimando-a a não se instalar naquela
casa que, no entanto, era o seu lar - a única coisa a fazer era
"encontrar uma ocupação".
Portanto, Anne teve de se virar sozinha e o fez muito bem,
pois criou uma empresa que soube dirigir com maestria. Porém,
com os homens, suas aventuras, em geral efêmeras, deixavam-na
continuamente na posição de abandonada.
Agora, Anne era uma mulher desamparada, pois os ne-
gócios tinham ido por água abaixo. Sua situação era realmente
difícil. No plano afetivo, confrontava-se com um passado que
ressurgia e a fazia repetir como um leitmotiv: "Por que aqueles a
quem eu mais amei sempre me fizeram sofrer tanto?".
Na sessão seguinte, essas últimas palavras me voltam à
memória, enquanto começo a questionar a mãe sobre a sua pró-
pria infância.
Fico sabendo que o pai dela, um homem muito brilhan-
te, apreciado por todos, abandonou o lar muito cedo, deixando
Anne com a mãe num tête-à-tête cada vez mais doloroso.
26 27
·"
Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito
Como acontece muitas vezes nesse tipo de situação, Anne
era movida por duas atitudes aparentemente contraditórias. A
primeira, que vou chamar de seu "programa oficial', a impele a ir
ao encontro da filha - que ela ama - para construir uma rela-
ção satisfatória. A segunda, que diz respeito à sua "construção do
mundo", mais profunda, aprisiona-a e a mantém numa situação
que já é habitual- a de se considerar uma pessoa rejeitada.
Anne vai em direção à filha protegida por uma armadura
que não ousa retirar, com medo de uma trágica desilusão.
Não é nada surpreendente que Agathe fique tonta diante
dessa mãe que, pela sua atitude, lhe diz "uma coisa e, ao mesmo
tempo, o oposto": ''Ame-me, mas não acredito que você possa
amar-me!", ou ainda "Conheça-me, mas não acredito que possa
fazê-lo, pois, até agora, ninguém conseguiu isso!". Dupla injun-
ção contraditória ditada por um "programa oficial" e uma "cons-
trução do mundo" contraditórios.
Além disso - e esse é um detalhe importante, pois se trata
de uma relação mãe/filha -, provavelmente Anne não tem cons-
ciência de que vivencia com Agathe o comportamento da mãe.
Esta a havia rejeitado sem condescendência e eis que sua própria
filha parece fazer o mesmo com igual empenho!
Trata-se de uma situação freqüente. Como prova, bastam
as declarações de outra mãe invadida por um tormento seme-
lhante: "Quando ouço minha filha falar, ouço a minha mãe. Eu
me pergunto quem é a filha e quem é a mãe. Vivo a mesma rejei-
ção. Ela diz as mesmas frases da minha mãe. Existe uma analogia,
é incrível! O que tive de sofrer com a minha mãe, bom, eu não
tinha escolha, mas merecia realmente uma filha que compensasse
isso e não que a reproduzisse. Com a minha mãe acontece o mes-
mo que com a minha filha, eu a amo e a detesto".
A relação teci da entre essas duas mulheres induz à re-
petição já vivenciada por uma delas com outros, no caso, por
Anne com a própria mãe. Esse tipo de repetição dramática não
tem muitas possibilidades de terminar sem uma "decodifica-
ção" feita delicadamente.
. É isso o que me esforço para fazer nos encontros seguintes. A
função do terapeuta aparece aqui nitidamente: ele é aquele que, com
sua presença e seus discursos, pela natureza de suas intervenções,
abre o espaço relacional e permite sair da repetição patológica.
É importante destacar outro aspecto: trata-se da maneira
pela qual a filha, na luta com a sua mãe, volta a representar o con-
fronto entre esta última e sua própria mãe. Essa situação poderia
ser ilustrada pela queixa de outra paciente: "Minha filha tem co-
migo as mesmas reações que eu tinha com minhamãe; é como
se ela revivesse comigo o que vivi com a minha mãe. No entanto,
fiz de tudo para lhe oferecer uma relação diferente da que minha
mãe mantinha comigo".
Essa mãe trava uma luta contra a própria mãe, por meio
da filha, enquanto esta retoma a bandeira do combate da mãe na
época, sem perceber que o que faz é repetir um conflito que não
é seu. Portanto, eis duas mulheres que esperam receber uma da
outra, mas que, no fundo, não podem receber.
1 Chamo de "programa oficial" a demanda explícita que o membro de um casal faz ao outro. Por
exemplo: "Cuide mais de mim", "Fique mais próximo". Esse programa oficial deve ser diferen-
ciado de uma "construção do mundo", elaborada com base em experiências anteriores, que pode
contradizê-Ia totalmente. Por exemplo: "Todas as pessoas que dizem amar-me acabam me aban-
donando". Num nível superficial, alguma coisa é demandada, porém, num nível mais profundo,
não acreditamos que o que é demandado possa ser conseguido.
28 29
orno sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito
Por trás do outro, tratado aqui e agora, surge um outro
"outro", enfiado no passado, adormecido e acordado pela repe-
tição, que a terapia descobre, ao mesmo tempo em que revela a
construção do mundo disfarçado pelo programa oficial.
"Tenho a impressão de que dei em vão, nunca preencho o
espaço que minha mãe quer que eu preencha" - declara Agathe.
Minha resposta tem a forma de uma pergunta: "É possível
preencher esse espaço?". Anne parece buscar inconscientemente
esse amor materno (e provavelmentepaterno) que ela nunca re-
cebeu. Mas como sua filha poderia dá-Io?
A melhor filha do mundo só pode dar o que tem!
Agathe só pode dar ternura e um amor filial. A fórmula
irrevogável que ela empregou resume por si só a situação: "O
que quer que eu faça, de nada adiantará".
Nesse contexto, meu papel será o de fazer com que se cons-
cientizem de que esse terceiro espaço existe e que aceitar a dife-
rença do outro não implica rejeição. Que uma diferença expressa
não equivale a um movimento de agressividade.
Tenho de propor que substituam a armadura por um escu-
do! Pois a armadura protege, mas impede de sentir o sol na pele,
o vento no cabelo ... O escudo também protege, é claro, mas po-
demos deixá-I o no chão quando não há mais perigo, mesmo que
tenhamos de pegá-Io outra vez se surgir um novo perigo ...
A história de Anne e Agathe é uma história triste de amor
que poderia durar muito tempo. Mas a decisão de procurar um
ter?-peuta familiar é uma atitude que pode pôr fim ao calvário
que compartilham.
Quando se entra num movimento perpétuo, nessa espécie de
moto-contínuo que dá tontura, ir a um terapeuta é encontrar al-
guém que - se for um terapeuta familiar - vai começar a afugentar
o problema. Quem está errado? Quem tem razão?Quem começou o
quê?A simples eliminação do problema, tão difícil de realizar porque
sempre podemos nutrir nossa hostilidade com erros bem reais que o
nosso sofrimento imputa ao outro, abre um novo espaço. As pergun-
tas do terapeuta são, ao contrário, perguntas que libertam: qual é o
movimento 'incessante no qual estão presas a mãe e a filha? Qual é o
processo que as aprisiona? Que estrutura é essa que faz com que duas
pessoas vivam como vítimas e vejam uma à outra como carrasco?
A função de uma estrutura dessa - é preciso insistir -
não é só a de fornecer proteção às pessoas aprisionadas. Cada
proteção também protege o outro: a filha não percebe que seu
comportamento permite à mãe se sentir como não reconhecida,
portanto, permite que ela mantenha a armadura e continue a não
Nesse momento, qual deve ser a posição do terapeuta?
Em primeiro lugar, ela comporta uma compreensão tingida
de emoção, pois o terapeuta é confrontado com duas pessoas que,
naquele frente-a-frente, gostariam de se amar, mas têm medo.
Ambas podem dizer, com toda a legitimidade, que sentiram fal-
ta de amor na infância. Ambas procuram se situar, mas, nessa
busca, falta-lhes uma experiência - precisamente a de ter o
sentimento de ter ocupado um lugar no qual pudessem ter sido
respeitadas como elas mesmas.
As duas mulheres buscam um "terceiro espaço" - aquele
em que podemos nos abrir sem medo de sofrer -, mas ambas
passaram, principalmente, pela experiência do sofrimento! A
isso se acrescenta o fato de estarem presas numa rachadura da
fronteira transgeracional, na qual estão no lugar de uma mãe.
30 31
Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito
:
I
se expor; e a mãe não vê que o modo como trata a filha também
"protege" esta última, pois permite que ela não se abra, que evite
o sofrimento e a desilusão. Ao se proteger, sem ver isso explici-
tamente, cada uma delas protege a outra e a leva, completado o
movimento giratório, a dar mais um giro!
Numa conduta de proximidade e respeito em relação às
duas mulheres, mas também analisando o processo que as conde-
na a permanecerem nesse desentendimento e nessa autoproteção
vivenciada como agressiva pela parceira, o terapeuta pode criar
um espaço para ele e, portanto, para elas.
Ele é a terceira pessoa que se alia a cada uma das outras duas,
presas num ciclo infernal, para tentar intervir no próprio ciclo.
A proximidade com uma e com a outra permite uma vivência
afetiva nova, pois as duas mulheres percebem rapidamente que o
terapeuta não se alia a uma delas contra a outra, ou vice-versa.
É na diferença ativa desse sistema terapêutica, sentida pelas
protagonistas, que pode aparecer outra saída, outro caminho, ou-
tra maneira de ver e de se ver.
Nesse momento da conversa, eu intervenho e digo a Anne
que ela é a mãe e que pode reivindicar legitimamente o desejo de
ver a filha e a neta. Sem dúvida, Agathe vai recusar, mas estarei
ao lado delas para compreender o que se passou. Essa proposta
que vem do terapeuta é tranqüilizadora, pois o lugar de tercei-
ra pessoa neutra, mas engajada de uma maneira diferente das
duas protagonistas, já contém virtudes terapêuticas: a proposta
respeita a possibilidade de uma não-mudança sem, no entanto,
receitá-Ia. Como sempre, não se trata de propor um remédio
milagroso, mas apenas de uma abordagem tranqüilizadora para
que as duas mulheres saibam que não mais se defrontarão, cada
uma com o seu sofrimento a tiracolo.
Na sessão seguinte, fico sabendo que o encontro acon-
tecera e que tudo havia corrido bem. Melhor ainda: Agathe e
Anne haviam almoçado juntas alguns dias depois. Anne conhe-
eu a neta e estava feliz com isso, e Agathe, encantada com o
novo encontro, havia aceitado almoçar com a mãe!
A referência a esse acontecimento, relatado com simpli-
cidade, só levou alguns minutos - depois, Agathe prosseguiu
com a maior naturalidade, falando de problemas que, dessa
vez, eram totalmente pessoais.
O espaço criado permitia à jovem deixar que viessem à
tona suas dificuldades de contato com as pessoas à sua volta e
a relutância que sentia em expressar sua própria opinião. Tudo
o que ela dizia entre nós três encontrava um novo eco. Já não
eram críticas em relação a uma mãe insatisfatória que ela punha
na cesta terapêutica, mas a expressão de uma dificuldade de vida
que, finalmente, podia ser formulada como tal.
Mais tarde, um novo diálogo se estabelece, quando Agathe
reitera a sua demanda em relação à mãe:
- Repito que acabei de dar à luz e que tenho um bebê; eu
gostaria que o visse!
- Mas você nunca me telefona! - retruca Anne.
- Não preciso telefonar, você pode ir vê-Ia!
- Não quero que você me diga que está ocupada e que
tem coisas mais interessantes a fazer. Vou sofrer de novo e ficar
outra vez na posição de uma mendiga que pede esmolas na rua. E
isso eu não quero por nada neste mundo!
32 33
Como sobreviver à própria família Mãe e filha: a travessia de um conflito
Essa fase sena transitória. Outros bloqueios surgmam
mais tarde e precisariam do apoio infalível de um terapeuta para
que as duas mulheres mantivessem o processo de mudança.
criamos uma situação circular em que estamos presos num tal
frenesi que não conseguimos sair dela? Como pensar emsolu-
ções para deter essa porta giratória, para acabar com essa queda-
de-braço? E isso, mesmo que me pareça que a última palavra
será do meu parceiro. Afinal, a última palavra não é um objetivo
tão atraente; o que é realmente exultante é conseguir criar uma
situação que modifique radicalmente os dados do problema ao
trazer soluções inesperadas!
Anne e Agathe nos ensinaram muito sobre as dificuldades
que podem toldar a relação mãe-filho, a relação de um casal
e, de forma geral, qualquer relação em que duas pessoas, que
partilham uma história em comum, enfrentam e com as quais
se defrontam. Elas nos permitem pôr alguns pontos de interro-
gação úteis, que considero universais.
Primeira pergunta, incontornável (e indispensável): em
que medida, se estou constantemente em conflito com meu fi-
lho, não estou revivendo com ele alguma coisa que já vivenciei na
minha própria história? É verdade que os protagonistas, em geral
transbordando de sentimentos ambivalentes, não podem fazer a
si mesmos esse tipo de pergunta no auge da batalha.
Não estou repetindo o que meus pais fizeram comigo e
agindo igual com o meu filho, mesmo que eu tenha sofrido com
isso na minha infância?
Não estou protegendo meus pais, inconscientemente,
como se eu me impedisse de ir mais longe ou ter pensamentos
críticos em relação a eles?
Segunda pergunta, ainda mais surpreendente: em que me-
dida meu filho não está repetindo comigo, numa espécie de para-
lelismo, o que vivi com meus próprios pais?
Outra pergunta, igualmente redentora quando a resposta
aparece: em que medida o que o outro faz comigo não é algu-
ma coisa de que participo? Ele e eu não entramos numa porta
giratória que nos faz girar, mesmo contra a nossa vontade? Não
Para o terapeuta de família confrontado com histórias
complexas que ele desenrola muitas vezes como uma meada de
lã; ajudar o paciente a se abrir para as diferentes perguntas que
desabrocham é uma necessidade.
Isso permite esclarecer (mesmo arbitrariamente) os diferentes
níveis de complexidade, não para simplificar excessivamente, mas
para dar coordenadas, permitir que as pessoas façam a si mesmas
novas perguntas, criar uma nova vivência e deixar delinear-se um
espaço de liberdade para que novas perspectivas se abram nas rela-
ções que aprisionam, que confinam, sufocam os protagonistas do
drama sem fim que é representado diante do terapeuta e com ele.
Para completar essa síntese geral, é preciso destacar uma
das especificidades da relação pai-filho, que formularei assim: se
o outro é meu filho, tenho responsabilidades para com ele que
são diferentes das que ele tem em relação a mim. Portanto, não
posso me comportar como se ele fosse meu irmão ou irmã, ou um
dos meus pais. Nossa relação não é simétrica: sou eu quem devo
dar o primeiro passo sem esperar que ele o faça - assim, aceito o
meu papel de pai e a responsabilidade que decorre desse fato.
34 35
·~
Como sobreviver à própria família o passado não nos condena
I'i
o que concluir de tudo isso?
Que é impossível chegar a uma conclusão em terapia
familiar, pois a criatividade e a dinâmica são os motores das
sessões. A complexidade das relações humanas, os recursos ini-
magináveis dos indivíduos incitam-me a nunca encerrar uma
história, a nunca pôr um ponto final. À guisa de conclusão,
me limitarei a acrescentar um elemento de reflexão, com o
qual terminarei a história dessa mãe e dessa filha que não po-
dia ser a mãe da sua mãe.
Para um pai, achar que tem toda a razão não significa
que ele seja o único a ter razão! Longe disso! Um filho também
pode, legitimamente, achar que tem razão. Por isso, o problema
não é saber quem tem razão ou quem está errado, e sim sair do
processo em que duas pessoas entraram seguros da sua certeza
de ser vítima do outro.
Anne e Agache vieram juntas me ver, e essa atitude, pouco
freqüente, é fundamental!
Isso porque, quando surge um problema, é importante ver
toda a família (ou os dois membros do casal) para melhor com-
preender como a dificuldade se instalou e que sentido, ou função,
pode ter o sintoma, num contexto mais amplo.
Na história de Anne e Agathe, assim que vi mãe e filha, per-
cebi a estrutura que as prendia. Percebi o tipo de relacionamento
que haviam estabelecido, que as levou a se atolarern num pântano
comum. Compreender uma e outra foi indispensável, mas o meu
objetivo era modificar o tipo de relacionamento que as aprisiona-
va, para que elas se abrissem para uma nova vivência emocional,
inaugurada na psicoterapia e que, em seguida, pudessem exportar
para a vida cotidiana.
Capítulo 2
o passado
não nos condena
O capítulo que acabamos de ler descreve, entre outras. coisas, a história de uma repetição. O que se repetianaquela família, de geração em geração? A rejeição. A
paciente, que se sentira rejeitada pela mãe, se vê rejeitada pela fi-
lha que, por sua vez, tem a impressão de que a mãe não a aceita.
A primeira pergunta que essa história nos faz é uma per-
gunta clássica no campo psicoterapêutico: qual é o impacto do
passado no nosso comportamento?
Mas essa pergunta encobre outra, mais profunda: o que
se deve entender por passado? Um terapeuta familiar respon-
derá: não são apenas os fatos, não são apenas os acontecimen-
tos que se sucederam desde que nascemos. Sem dúvida, nosso
passado é feito de mitos, de relatos e de regras, transmitidos
de geração em geração na nossa família, e também, mais am-
plamente, no nosso ambiente. Estaríamos errados em explicar
as tempestades internas que às vezes nos abalam unicamente
com elementos ligados à nossa história; são os acontecimentos
do presente que as provocam, ao entrarem em ressonância com
as experiências vividas e as crenças enraizadas na nossa própria
I,I[ I
36 37
Como sobreviver à própria fàmília o passado não nos condena
história. O passado e o presente desempenham um papel no
nascimento desses maremotos afetivos - na verdade, ambos
são necessários, mas nenhum deles, sozinho, é suficiente. Se o
presente não desperta nada em nós, em geral ele é inofensi-
vo; o passado nos sensibiliza, às vezes nos fragiliza, mas só nos
condena se fizer o presente ecoar em nós. Nossas vivências de
outrora se parecem com dragões adormecidos sob a nossa cama.
Podemos não perceber a presença deles. Porém, um dia, certo
acontecimento toca a música certa' para acordar o dragão. E eis
que ele desperta, perturbando o nosso universo.
Como, a partir de então, age o terapeuta? Modificando,
com a sua presença e suas reações, o coquetel explosivo ao qual
está submetido o indivíduo, o casal ou a família em tratamen-
to. Com as suas intervenções, ele faz evoluir, aos poucos, pelos
reenquadramentos que efetua ou tarefas que dá, o contexto
afetivo no qual o paciente está preso; ele faz emergir um novo
ambiente que permitirá sair progressivamente da repetição ge-
rada pelas interseções entre os acontecimentos do presente e
as sensações do passado. A experiência afetiva do paciente na
sessão vai, então, substituir a antiga vivência tirânica e abrir
outros devires.
Vamos imaginar uma jovem que, tendo crescido num
contexto difícil, associa os homens à ausência de amor e à rejei-
ção afetiva. Mais tarde, ela quer criar uma relação amorosa com
o homem que escolhe por companheiro. Ela se sente dividida
entre uma crença profunda ligada ao passado, que apresenta
os homens como incapazes de amar, e o seu desejo atual de vi-
venciar um relacionamento compartilhado com o parceiro. Na
escolha do companheiro, ela estará menos atenta do que outras
jovens, pois, para ela, os homens são, por definição, incapazes
de dar amor e ela não rejeitará aquele em quem detectar, além de
protestos vibrantes e declarações inflamadas, uma indiferença e
uma hostilidade em potencial; dirá a si mesma que ele é como
todos os homens que conheceu, mas que, como ele a ama, tal-
vez não seja impossível que, graças a ele, consiga vivenciar uma
experiência pela qual nunca passou - uma relação de amor
mútuo. Uma parte da jovem fará tudo o que for necessário para
que o companheiro mude; mas, ao mesmo tempo, suacrença
profunda lhe soprará que é pouco provável que isso ocorra. Se
uma discussão eclodir e a rejeição puser o nariz para fora, ela
irá ernparedar-se na sua crença: isso fatalmente teria de acorite-
r! O pois de vários confrontos dolorosos com o cônjuge, ela
não mais ousará esperar por uma mudança, pois ficará receosa
de que, se ocorrer, será de pouca duração e, aí sim, provocará
uma cruel decepção.
Essa situação nos mostra claramente os diversos fatores que
preparam o aparecimento de um configuração repetitiva:
1. Uma pessoa marcada por esse traço recorrente do seu pas-
ado acredita que o que vivenciou só pode acontecer de novo.
2. Ela cria para si mesma um refúgio para se proteger quan-
do existe o risco de a situação se repetir: ao menos nesse abrigo,
ela pensa, não ficará exposta à desilusão.
3. Ao mesmo tempo, como qualquer ser humano, ela quer
ser feliz, ou seja, procura outra saída, um devir diferente daque-
le, repetitivo e doloroso, que já conhece. Ela será mais atraída
do que qualquer outra pessoa para o tipo de relacionamento
que deseja ver mudado, porém, como, no fundo, não acha que
isso seja possível, não ficará tão atenta para evitar esse perigo.
38 39
Como sobreviver à própria fàmília o passado não nos condena
4. Em nome da mudança, ela participa do ciclo que se
forma em seguida. Paradoxalmente, deseja se livrar dessa crença
profunda que a consome, mas vai enveredar por uma situação
que irá reforçá-Ia.
5. Porém, ao fazer isso, ela fica dividida. Uma parte dela
quer a mudança, enquanto a outra não consegue acreditar que
ocorra. Essa divisão interna faz com que envie ao parceiro uma
dupla mensagem: "Pare de se comportar assim" e "Se você mudar
de comportamento, tenho muito medo de que isso não dure,
pois você só pode se comportar desse modo".
6. Portanto, ela estimula o que receia que ocorra. Ela se
coloca numa profecia auto-realizadora, como esses motoristas
que, devido a um conflito internacional, temendo que a gasolina
venha a faltar, completam o tanque e enchem o porta-malas com
galões de combustível, provocando assim a escassez que receavam.
A jovem reforça no parceiro o comportamento que abomina, mas
que, ao mesmo tempo, a protege, pois permite que continue no
seu refúgio, protegida da decepção.
Esse mecanismo pode ocorrer num casal ou numa família,
entre um pai e um filho. Mas só é possível se o outro participar,
de uma maneira ou de outra. É o que vamos ilustrar em seguida.
sabia, ocorrer de novo e de novo! A partir de então, um ciclo de
comportamentos e de reações se estabelece e, rapidamente, come-
ça a funcionar por si mesmo; nenhum dos dois protagonistas está
à altura de pará-lo, mesmo que o queira. Cada um deles reforçará
a convicção do outro e o ajudará a fortalecer o refúgio.
No entanto, a experiência nos mostra que esse ciclo pode
ter outra saída. A situação pode começar com um convite à re-
petição sem que, por isso, vá em frente: basta que o outro man-
tenha distância do tema proposto e que esse tema não desperte
nele nenhuma fragilidade em especial. A reação será surpreen-
dente para o parceiro e se este último, devido a esse fato, não
s~guir pelo caminho previsto, pode aparecer uma flexibilidade.
As crenças profundas não são convicções inabaláveis, não são
estruturais; elas exprimem o medo de sofrimentos renovados.
Um contexto afetivo diferente, que recuse a via temida e, ao
mesmo tempo, proposta, pode livrar o outro de seus laços e lhe
devolver a liberdade que tanto lhe fazia falta.
No capítulo anterior, vimos como a crença da mãe nutria
na filha a mesma convicção que, por sua vez, reforçava a vivência
da mãe. O papel do terapeuta foi "desconectar" os elementos do
passado dos elementos do presente. Essa desconexão reduziu o
impacto afetivo das crises agudas que mãe e filha atravessavam.
Ela pôde ser realizada graças à experiência emocional vivida em
família durante as sessões na presença do terapeuta, e enrique-
cida com o surgimento e a multiplicação de novas experiências
afetivas vivenciadas pelos membros da família entre as sessões.
Na verdade, a repetição não é uma pulsão mortífera; ela é
uma tentativa de solução que não dá a si mesma os meios de ter êxi-
to. Por isso, o terapeuta pode explorá-Ia ao criar um contexto mais
Não basta que um membro do casal convide o outro para
dançar para que esse outro aceite com prazer. É preciso que o
convite encontre uma sensibilidade ou uma fragilidade presente
no outro. Só então o fato de entrar na dança será equivalente
ao reforço de uma de suas próprias crenças. Ele poderá, como o
parceiro, buscar refúgio na fortaleza de sua convicção - a expe-
riência repetida que ele teve no passado só poderia, como ele bem
40 41
I '-<
Como sobreviver à própria fàmília o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles
flexível e permitir que essa tentativa desabroche, até a resolução dos
dilemas nos quais os membros da família estavam mergulhados.
De resto, o convite que fazemos ao outro para repetir o
que conhecemos bastante deriva de uma lealdade inconsciente.
Muitas vezes estamos ligados aos nossos pais por grilhões ocultos
- por exemplo, o sentimento de que os trairíamos se nos aven-
turássemos mais longe do que eles e se tivéssemos sucesso onde
eles fracassaram. Porém, mesmo nesse caso, a conscientização de
que somos a parte interessada nesses ciclos de sofrimento mútuo
pode nos ajudar a tentar outra coisa. E a libertação do outro será,
também nesse caso, associada à nossa própria libertação.
Capítulo 3
o patriarca que queria
o bem dos filhos ...
contra a vontade deles
A vida é um processo paradoxal: nós, que nascemos, es-
tamos condenados a morrer. Talvez fosse melhor não ter nasci-
do, como sugeriu Sófocles, porém, é tarde demais! A maneira
como vivemos está toda nesse paradoxo que define o quadro do
qual não podemos sair - ter nascido e, portanto, ter de morrer.
Não somos criaturas assepsiadas que vivem num mundo isento
de paradoxos, de rupturas e de contradições; mas podemos fazer
o melhor possível para que os paradoxos nos quais estamos pre-
sos e nos quais encarceramos os outros possam desembocar em
múltiplas vias e não numa só. Nossa prisão reside na unicidade
do caminho que se perfila diante de nós; nossa liberdade pode ser
formulada como uma abertura de outras vias possíveis e nosso
dever de indivíduos é procurar ter acesso a essa liberdade.
Esta história começa como um conto.Era uma vez um pai e uma mãe adoráveis que ama-vam muito os seis filhos. Eles sonhavam comprar uma
grande casa de campo que se tornasse o ponto de encontro da
família. Uma construção acolhedora e espaçosa onde os filhos,
que já eram pais, pudessem se encontrar nos fins de semana e
nas férias. Conforme os anos fossem passando, essa bela casa, na
qual toda a família se reuniria como uma tribo feliz, manteria
alegremente a união entre as gerações.
Ala{n e Denise - é assim que os chamarei - encontra-
ram a casa dos sonhos e compraram-na imediatamente. Com o
passar dos anos, Alain se tornou um verdadeiro patriarca: sentia-
se feliz em ter à sua volta os seis filhos e as respectivas famílias e
dizia a si mesmo que pequenos, jovens e adultos (mais de trinta
pessoas ao todo) encontravam alojamento e refúgio na casa que
ele havia escolhido.
42 43
III
Como sobreviver à própria família o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles
Parecia o próprio cenário de harmonia em família. Mas
nem tanto, pois, nessa atmosfera de contos de fadas, um mal-
entendido se instalava insidiosamente.
Querendo agradar aos filhos, um belo dia Alain anunciou
que a casa era deles e que iria doá-Ia formalmente, em cartório,
pois queria fazer a transferência em vida. Sem dúvida, deseja-
va selar concreta e definitivamente a união da família doando
simbolicamente as paredes hospitaleiras. Mas, é claro, ele con-
tinuou a ir para casa com Denise, o que, no final das contas,
era bem compreensível. E zelava para que nenhum quadro fos-
se mudado de lugar, nenhum móvel, mesmo incômodo, fosse
substituído e se responsabilizavapelos necessários trabalhos de
manutenção e reforma.
Talvez Denise não aprovasse totalmente esse comporta-
mento. Em todo o caso, nada deixou transparecer.
Pouco a pouco, e sem que ninguém atentasse realmente
para o fato, um conflito começou a se instalar. Parecia, cada vez
mais nitidamente, que, apesar da doação, Denise e Alain ainda
eram "os donos da casa", não apenas na representação simbólica
que faziam da situação, mas, no fundo, na realidade. Essa situa-
ção afetou o valor das reuniões familiares, pois, desde então, elas
pareciam organizadas para o prazer daqueles que continuavam a
ser os verdadeiros proprietários da casa.
Os genros e as noras começaram a se sentir meio oprimidos
com essasperegrinações rituais em que era celebrado, em coro, o cul-
to à família reunida. Maus pensamentos começaram a germinar nas
suas cabeças - talvez pudessem passar as férias... em outros lugares!
Mas os patriarcas tinham muito tato, eram tão acolhedores,
de "convívio" tão fácil, que os membros agregados mais recentes,
de status menos sólido, não ousavam confessar suas reticências.
E continuaram a celebrar na casa a liturgia dessa família perfeita.
No entanto, o fogo continuava latente sob a brasa. A apa-
rente harmonia mal ocultava as ambigüidades que, lenta mas
indubitavelmente, envenenavam o relacionamento de todos.
Datas de férias que coincidiam, despesas com energia elétrica
divididas em meio a discussões, móveis sem manutenção: as dis-
putas aumentavam entre os irmãos, ou irmãs e seus parceiros.
Contudo, paralelamente aos desentendimentos familiares,
os rebentos se multiplicavam, para grande alegria do patriarca,
e os anos passavam.
. Foi nesse contexto que, depois de seis anos de coabitação,
uma das filhas finalmente decidiu dizer aos outros: "Queridos ir-
mãos e irmãs, eu os amo muito, mas vejo que o meu marido não
fica muito feliz quando o trago para cá. Sinto que ele se sujeita,
que vem aqui para me agradar, mas precisa de um lugar que seja
dele realmente. Conseqüentemente, irmãos e irmãs, eu ficaria
muito grata se me ajudassem a sair desta comunidade fraternal
comprando a minha parte".
A família ficou estupefata! Mas não houve nenhuma rea-
ção violenta ou desesperada. Na verdade, tudo teria transcorrido
muito bem se o patriarca tivesse tomado uma posição e feito um
discurso mais ou menos assim: "Filha adorada, devo lembrar-lhe
que, enquanto eu viver, esta casa me pertence. Ela está no nome
de vocês, mas isso porque eu quero que, no futuro, vocês sejam os
beneficiários. Enquanto eu estiver aqui, não existe possibilidade
de que as coisas sejam encaradas de maneira diferente".
Se o patriarca tivesse manifestado claramente a sua versão
dos fatos, acabando com qualquer ambigüidade, a filha teria ou-
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Como sobreviver à própria fàmília o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles
vido claramente: ''A casa foi posta no nome de vocês porque eu
quis, mas, por enquanto, ela ainda é minha e vocês são meus
convidados". Infelizmente, o patriarca permaneceu calado e os ir-
mãos, que não tinham recursos para pagar à irmã, disseram: "Está
pedindo uma coisa impossível! Não podemos vender esta casa,
pois partiríamos o coração dos nossos pais. E você sabe muito
bem que não temos a quantia necessária para pagar a sua parte!".
Então, a interessada perdeu a calma, chamou os irmãos e as irmãs
dos piores nomes e, criticando-os por lhe imporem uma co-pro-
priedade que ela não queria mais, disse: "Por causa de vocês corro
o risco de ser forçada a me divorciar! Meu marido vai me deixar, é
isso o que vai acontecer e vocês serão os responsáveis!".
Durante todo o tempo, o patriarca permaneceu calado.
Podia-se sentir uma muda reprovação ao comportamento da
filha, mas ele não disse uma palavra. Quanto aos filhos, en-
veredaram pelo conflito que nascia sem perceber que, antes de
tudo, eram vítimas de um sistema que não haviam criado. A
situação começou a piorar. Eles tentaram contemporizar. Talvez
pudessem emprestar ao casal uma quantia que lhes permitisse
alugar uma casa no verão seguinte e passar as férias num outro
lugar. Mas as propostas, que pretendiam ser conciliadoras, só
aumentaram a confusão e agravaram os rancores.
o patriarca havia feito o que podia. Ele não reunira os membros
da família apenas para o seu próprio prazer, mas para o que ele
achava que também seria o prazer de todos. Ao dizer a si mesmo
que os filhos ficariam felizes por estarem juntos, ele tinha razão.
E para lhes mostrar que o lugar era deles, ele o deu de presente.
Porém, não lhes deu realmente.
Situação insolúvel? Talvez não, se regras claras houvessem
sido formuladas. Pois o que criou o conflito, no caso, não foram
os pontos de vista opostos e sim o clima de confusão em que
essa oposição aparece.
O pai poderia ter reunido os filhos e dito: "Queridos filhos,
eu gostaria, para o nosso bem comum, que as coisas ficassem bem
claras entre nós. Enquanto Denise e eu estivermos vivos, este
lugar me pertence. Pus no nome de vocês para que soubessem
que, de qualquer maneira, ele lhes pertencerá no futuro. Mas,
enquanto eu viver, é importante que possamos usufruir dessa
casa juntos e que nos vejamos com regularidade. Quando eu não
estiver mais aqui, bom, poderão fazer o que quiserem com ela".
Essas palavras criariam uma fronteira que, por assim dizer, teria
impedido os filhos de entrarem numa zona de conflito como
aconteceu. Em compensação - e isso é muito freqüente -,
numa sit~ação em que as ambigüidades se acumulam, uma cha-
mando a outra e a segunda reforçando a primeira, às vezes um
desejo louvável de poupar o outro de uma ferida muito profunda
gera uma confusão cada vez maior, que pode ampliar-se a tal
ponto que se torna impossível corrigi-Ia. Essa configuração não
é própria da família. Pensamos num diretor de escola que pode
formular regras claras ao administrar suas relações com os alunos
e professores ou, ao contrário, se refugiar na imprecisão. Quando
A história dessa família nos ensina que uma doação - que é
o que parecia ser - pode se transformar num presente envenena-
do. Inicialmente não havia nada de alarmante: todos os protago-
nistas se comportaram com generosidade. Mas, rapidamente, os
não-ditos, causados pela ausência de regras claras entre os irmãos
- e entre a família - provocaram sérios conflitos. É verdade que
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Como sobreviver à própria fàmília o patriarca que queria o bem dos filhos... contra a vontade deles
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uma lei é claramente estabeleci da, é possível se situar em relação
a ela e, eventualmente, combatê-Ia se a acharmos injusta. Em
resumo, podemos circunscrever o espaço pessoal da sua inter-
venção; mas se a lei não é formulada - ou pior, se é declarada e
negada ao mesmo tempo -, a confusão parece inevitável na de-
limitação do espaço de cada um. Para falar concretamente: "Meu
espaço só começa a existir quando sei onde está o seu". "Se o seu
espaço não for traçado, não saberei onde fica o meu". Ou ainda:
"Teoricamente, se não tenho limites, eu sou mais rico. Mas, na
realidade, sou mais pobre, pois, se não existem fronteiras, não sei
onde você acaba e onde eu começo".
Precisamos, agora, nos fazer a pergunta essencial. Por que
o patriarca não enunciou a lei claramente? Por que ele não pôde
criar essa fronteira definida entre o vocês e o eu? E o que acon-
tece, em geral, com as pessoas que contribuem para criar esse
tipo de situação?
O pai que diz sacrificar-se para o bem de seus filhos é uma
figura, muitas vezes marcada por certa nobreza, que encontro
constantemente. A explicação para esse comportamento reside,
ao menos em parte, na história dessas pessoas. Talvez tenham
sido criadas num contexto pouco claro que as mergulhou em si-
tuações ambíguas, que elas repetem sem ter consciência de que
o fazem. Mas outros parâmetros podem concorrer para criar
montagens análogas e, a esse respeito, devemos destacar que foi
toda a família que, num entendimento implícito, optou por
não esclarecer a situação, para evitar o choque com umdeles, ou
na ilusória esperança de que um conflito não enfrentado pudes-
se ser absorvido por si só. Também podemos supor que os pais
quisessem sinceramente o bem dos filhos, mas não conseguiram
perceber que o que achavam que fosse bom para eles pudesse ser
considerado de maneira totalmente diferente pelos interessados.
Então, qualquer comentário da situação passa a ser difícil para
os filhos, pois poderiam passar por ingratos. Freqüentemente
encontramos pais que não se dão o direito de pensar neles mes-
mos - isto é, se questionar sobre eles mesmos -, pois, como
dizem, o amor que sentem pelos filhos "vem antes de tudo".
Esse estado, que aliás é quase sempre acompanhado de uma
culpa difusa, faz do filho uma pessoa que lhes permite mascarar
a própria dificuldade em enfrentar seus desejos pessoais, obri-
gando esse filho a ser responsável por coisas que não são dele.
Portanto, é importante que os pais digam a si mesmos:
"Temos o direito de existir e de dizer o que queremos, pois esse
direito que nos concedemos também libera nossos filhos de pre-
cisarem carregar o peso de nossas dificuldades". Caso contrário,
a confusão entre o desejo dos pais e o que eles desejam para os
filhos pode criar uma situação que não se pode deslindar.
Essa história, que começa como um conto, não termina
com um happy end. Mesmo assim, vamos tentar transformá-Ia
num apólogo, tirar dela um ensinamento.
O que é, na verdade, essa famosa casa de campo, razão de
ser e base dos conflitos familiares, senão o lugar onde tudo se quis
dar sem nada pedir e sem nunca estabelecer limites? Em vez de
oferecer à família reunida o espaço que ela idealizava, essa casa
passou a ser o lugar onde cada um, possuindo tudo, não tinha
nada. Pois se fronteiras claras não são estabelecidas, se não somos
capazes de expressar nossos desejos e dizer ao outro "Você começa
onde eu termino", ninguém possui lugar nenhum.
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I ."-'.
Como sobreviver à própria família Em que roteiro eu me encaixo?
Quando os pais não ousam reivindicar seu espaço, passa
a ser difícil para os filhos traçar o deles! Invadir um filho com
o sacrifício que queremos fazer por ele pode criar uma situação
sufocante e incerta. E quando amamos os filhos e filhas a ponto
de nos esquecermos de nós mesmos, corremos o risco de, mesmo
quando estamos cheios de amor e de generosidade, rimar "muito
Capítulo 4
Em que roteiro
eu me encaixo?
"C( "amor com mau amor .
c riar um filho é uma das tarefas mais difíceis que exis-tem. Se somos muito exigentes, nossa rigidez pode sercondenada; se somos muito tolerantes, nossa indul-
ência é que é criticada; se amamos demais, corremos o risco de
parecer invasivos, sufocantes; se tentamos dar a eles um espaço,
nos acham indiferentes, muito distantes. Portanto, os pais não
têm outra escolha a não ser adaptar o seu comportamento a
cada filho, por ensaio e erro. Mas, ao mesmo tempo, devem as-
umir e reivindicar o lugar de pais, sobretudo no papel que lhes
cabe na hora da decisão.
"Como devo amar o meu filho?" - essa é a pergunta
lancinante que se apresenta a qualquer pai. Pois o amor que
recebeu (e recebe) dos pais é, para um filho, o viático que lhe
permitirá, nos momentos de sofrimento e de dúvida, continuar
a acreditar no próprio valor, a atravessar as situações difíceis
e a se salvar em caso de naufrágio. É, sobretudo, a segurança
específica que ele sente devido ao amor que lhe damos que lhe
permitirá enfrentar essas circunstâncias.
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.0
Como sobreviver à própria fàmília Em que roteiro eu me encaixo?
Mas, infelizmente, amar não basta; é preciso amar respei-
tando a diferença do outro. Acontece que esse limite é muito
difícil de ser estabelecido. Quando começo a impedir que meu
filho desabroche impondo que ele seja como eu quero, sem res-
peitar a sua alteridade? É ainda mais difícil dizer que também
devo defender, caso necessário, meu direito e dever de ser aquele
que contribui para estabelecer a lei, sem me furtar a essa respon-
sabilidade e aceitando assumir as conseqüências - que podem
ser dolorosas - desse componente fundamental do papel de pai.
Estipular para o meu filho os limites que ele não deve ultrapassar
é, realmente, uma das principais responsabilidades que me ca-
bem, mesmo que esteja longe de ser a única.
Os pais podem ter dificuldade em assumir plenamente suas
funções, pois estão incluídos, da mesma maneira que os outros
membros da família, em ciclos repetitivos que existem nas rela-
ções familiares. Esses roteiros escritos tanto pela família quanto
pela cultura nos aprisionam à nossa revelia - felizmente, como
veremos ao longo deste livro, eles podem ser modificados quando
os protagonistas abandonam a trama.
Além disso, já dissemos, a realidade não é um dado objeti-
vo; ela é criada no processo pelo qual a percebemos. O que per-
cebemos e o que sentimos surge na interseção do que se oferece
a nós e do que nos constitui. Os limites do nosso conhecimento
do real estão ligados a elementos de natureza diversa: a consti-
tuição biológica de nossos órgãos da percepção obviamente é
fundamental, mas os nossos a priori também o são. O mesmo
acontece com o modo como os membros de uma família se per-
cebem mutuamente. Amamos nossos filhos como imaginamos
que eles sejam, mas o que pensamos deles não é necessariamente
como eles são - menos ainda aos olhos deles. Podemos formu-
lar assim a mensagem implícita que o pai envia ao filho: "Eu o
amo como acho que você é, sem perceber que, talvez, você seja
diferente; mas como eu o amo e quero o seu bem, aceite o meu
amor como sendo algo positivo".
Às vezes, para manter esse amor, o filho tenta ser confor-
me a imagem que ele acha que temos dele. Mas, ao incitá-Io a
se engajar nesse processo, fazemos com que ele corra um grande
perigo, pois quanto mais o amamos, mais risco ele corre de não
se sentir amado, pois não é ele que é amado e sim a represen-
tação que ele forjou para nos agradar. Uma paciente me disse
um dia, com vigor: "Meu pai me amou intensamente, mas ele
nunca me conheceu como sou". Não poderíamos formular o
problema de maneira mais clara. Entretanto, convencidos da
sinceridade do seu amor pelos filhos, os pais só poderiam viven-
ciar como ingratidão suprema a recusa do filho em aceitar o que
eles oferecem tão sinceramente.
As coisas podem ser ainda mais complicadas. O filho
pode ser confrontado com uma mensagem contraditória de um
dos pais ou mesmo dos dois. Helm Stierlin, psiquiatra e psica-
nalista, professor da universidade de Heidelberg, nos ajuda a
enxergar com mais clareza esse ponto, graças ao seu conceito
de delegação. Delegare, em latim, significa "enviar" e, ao mesmo
tempo, "confiar uma missão". O filho "delegado" é enviado por
sua família e ligado a ela por lealdade - até aqui, nada de anor-
mal. Porém, segundo Stierlin (que retoma noções freudianas
bem conhecidas), existem diferentes tipos de missão: aquelas
que são dadas pelo id da pessoa que delega e as que são dadas
pelo superego. Pode muito bem ocorrer que a missão dada pelo
52 53
Como sobreviver à própria fàmília Em que roteiro eu me encaixo?
id ("Pense, antes de tudo, no seu prazer") vá de encontro à que
vem do superego ("Trabalhe e tenha sucesso onde eu fracas-
sei"). É, então, a mesma pessoa que formula duas exigências mais
ou menos incompatíveis e podemos adivinhar em que situação
inextricável o filho vai debater-se. Em outros casos, a contradi-
ção ocorre entre as missões confiadas pelos pais individualmen-
te, mas as coisas não ficam mais fáceis por isso.
Esses processos, como vemos, não derivam de uma con-
cepção linear simplista, segundo a qual os filhos "se ressentem"
devido às ações dos pais: para cornpreendê-Ios, o terapeuta deve
levar em consideração as regras estabelecidas numa família através
das diferentes gerações e a articulação dos elementos singulares
que ele descobre nos filhos e nos pais.
pela relação (o que eles fazem juntos?). Desde então, o paciente
deixou de ser um indivíduo: ele é uma relação.
A partir dos anos 60, o terapeuta familiar se dedicou a ana-lisar as relações dolorosas que via desfilar nas sessões, diante dele.
Por volta do início dos anos 80, graças sobretudo ao trabalho de
Paul Watzlawick, esse terapeuta tomou consciência da sua posi-
ção na terapia - ele percebeu que não era um observador exter-
no, sem influência no que se passava, mas que também pertencia
ao sistema humano que analisava e que o englobava. Foi então
que a pergunta mudou outra vez. Não era mais "O que eles fazem
juntos?" e sim "O que nós fazemos juntos?". E, ato contínuo, a
pr.ópria concepção da mudança terapêutica evoluiu. A maneira
orno o terapeuta usa a si próprio na sessão pode contribuir para
mudar as regras desse sistema ao qual ele pertence, da mesma
forma que os membros da família.
Nos capítulos seguintes, veremos como os membros de
uma família podem conscientizar-se dessas regras ao descobrirem
roteiro pessoal que seguem sem saber. Então, uma deliberada
mudança por parte deles poderá esboçar na família outros ciclos
de relacionamento que se abrirão para outros devires.
Uma das críticas constantemente feitas à terapia de família
é que ela contribui para culpar os pais. Ao insistir nas mensa-
gens contraditórias que o filho muitas vezes recebe dos pais, a
terapia familiar pode, ao dar os primeiros passos, ter dado essa
impressão. Mas, a partir do fim dos anos 50, surgiu outra manei-
ra de enxergar as coisas (graças à teoria dos sistemas). Segundo
essa nova abordagem, a família passou a ser um sistema humano
e as interações que ocorrem entre seus membros são sempre re-
cíprocas - o que A faz a B provoca o que B faz a A e assim por
diante. Portanto, foi preciso abandonar a concepção linear da ca-
sualidade e substituí-Ia por uma concepção circular. Saber "quem
começou" não tinha mais sentido, assim como não tinha sentido
se perguntar quem armou a cilada para o outro. Passamos de um
universo no qual buscávamos um culpado (quem fez isso? o que
um fez para o outro?) para um mundo no qual nos interessamos
54 55
Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar
Capítulo 5
Meu filho se recusa a
estudar e a trabalhar
O casal que entra no meu consultório me impressiona. pelas maneiras afáveis. Ambos estão na faixa dos qua-renta anos e exercem profissões liberais. Vivem juntos
há mais de dez anos. O homem toma a palavra e, com voz firme,
explica a razão da consulta: Damien - filho da sua mulher, a
quem é muito ligado - se recusa a continuar os estudos ou a
procurar um emprego. A mulher intervém, visivelmente aborre-
ida, pois acha que Damien se comporta como um preguiçoso:
"Ele é passivo em relação à vida, espera que as coisas se realizem
ozinhas! Eu, que, ao contrário, sou impaciente, ao menos no que
e refere a de, continuo a ajuda-lo, a estimulã-Io. Queria muito
que ele fizesse as provas finais do ensino médio!".
Nesse ponto, o método materno deu frutos, mas, em
seguida, as coisas pioraram, pois o rapaz decidiu adiar a en-
trada na faculdade. Ele negociou com os pais a possibilidade
de trabalhar enquanto se decidia, pois, segundo suas próprias
palavras, "não gostava de estudar". Alguns meses depois, ele
já havia recusado todo tipo de trabalho e não dava mostras
de procurar outro! Esse comportamento provocava constante
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I~
Como sobreviver à própria família Meu {ilho se recusa a estudar e a trabalhar
conflito entre ele e os pais. E eis que eles estavam na minha
frente, solicitando ajuda para sair desse impasse. Damien não
quisera acompanhá-los.
Diante de uma situação como essa, é difícil não ter uma rea-
ção banal ou superficial: "Esses pais", somos tentados a pensar,
"estão diante de um filho difícil, que só quer fazer o que tem vonta-
de e a quem, como diz a mãe, 'é preciso empurrar'!". Mas, eviden-
temente, o terapeuta não pode parar por aí. Precisa tentar compre-
ender as razões do comportamento do adolescente e a verdadeira
natureza do que, exteriormente, é percebido como preguiça.
Eu quis, então, ver sob outra perspectiva a situação da fa-
mília que estava à minha frente. Talvez precisasse saber mais sobre
as gerações anteriores para compreender melhor o que se passava
com a atual. Interroguei a mãe sobre sua família e sobre os homens
que faziam parte dela. Ela começou a falar sobre o pai: "Era um
homem, como posso dizer, sem energia. Ele se queixava o tempo
todo da conduta da mulher diante dos próprios filhos. Era frágil,
como o meu filho!". Quanto mais ela falava sobre o pai, mais eu
percebia que usava os mesmos qualificativos para descrever o filho
e, além do mais, pintava mais ou menos o mesmo retrato de outto
homem que havia desempenhado um papel importante na família
e, também, "se sujeitava à vida", sem ter nenhuma influência sobre
ela. Em seguida, ela voltou a Damien: sempre sentira que ele era
"frágil" e acabou por se indagar se, pelo fato de estar constantemen-
te "por trás" dele, querendo ajuda-lo, não havia cometido um erro;
o rapaz não lhe agradecia por todos os seus esforços!
Eu lhe disse que fiquei surpreso com a similitude dos ter-
mos que ela usava para qualificar o comportamento do filho e
dos homens que considerava importantes na sua família. Ela
concordou: "É, tenho medo de que meu filho se pareça com
eles ... ". O padrasto, em silêncio até aquele momento, confessou
sua impotência diante do menino, sobre o qual reconhecia não
ter nenhuma influência; ele chegara a cometer pequenos furtos.
Todas as vezes que tentava interferir, a esposa fazia de tudo para
mantê-lo afastado no momento das decisões. Essa atitude lhe
dava um sentimento de exclusão e desvalorização: "Gastei tan-
ta energia", suspirou, "cuidando desse menino ... ". Esforcei-me
para pôr as palavras dele numa perspectiva transgeracional e
consegui saber que, na juventude, havia sentido a mesma coisa,
pois tinha a impressão recorrente de que, para a mãe, ele era
menos importante do que os irmãos.
Portanto, ficou nítido que, com o comportamento de Da-
mien, que eles qualificavam de irresponsável e preguiçoso, os pais
reviviam uma mesma situação, o que ampliava as dificuldades
das quais se queixavam. Ao ser confrontada com Damien, não
era tanto o filho que essa mãe via e sim um homem com quem já
convivera e cuja incapacidade de tomar decisões e agir ela pude-
ra, dolorosamente, avaliar. E, quando impedia a interferência do
marido, não desconfiava que este último passava novamente pela
experiência de desvalorização vivenciada com a própria mãe.
Quando, na terapia familiar, tentamos trazer à luz certos fa-
tos do passado relacionados à situação presente, esse tipo de análi-
se vem constantemente à tona. No entanto, não associamos uma
relação desse gênero à simples ligação de causa e efeito. Quanto
aos sintomas, tínhamos de lidar com uma dupla remissão: o com-
portamento de Damien tinha uma função para a família e para
os pais no aqui e agora (função que, naquele momento da terapia,
eu ainda não havia compreendido), e tinha também uma "uti-
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Como sobreviver à própria fàmília Meu filho se recusa a estudar e a trabalhar
lidade", ou um sentido, que só se podia entender se levássemos
em conta o passado - ele reforçava crenças profundas na mãe e
no padrasto, construções do mundo estabelecidas (eu me sinto
tentado a dizer "enquistadas") desde a infância.
No fim dessa sessão decisiva, pedi ao casal que viesse com
o filho na sessão seguinte. Eu insisti: "Para lhes dar uma resposta,
é muito importante que eu veja toda a família". Quinze dias de-
pois, Damien estava na minha frente. Sem pestanejar, ele ouviu
a mãe repetir o quanto estava irritada por ele não ter cumprido a
promessa que fizera - trabalhar antes de retomar os estudos.
Surpreendente, o filho "preguiçoso" me explicou o tipo de
estudo que queria seguir e me deu a impressão, apesar de usar
expressões não muito exatas, de que tinha uma idéia do que
poderia fazer mais tarde. A mãe voltou ao assunto do prazo que
lhe havia dado para encontrar um trabalho, "um prazo", disse
ela, "não respeitado".
Nessa sessão, também fiquei sabendo que o pai de Damien
interferia muito pouco e que o rapaz tinha mais intimidade

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