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TEXTOS BÁSICOS DE BIOQUÍMICA CLÍNICA Valdemar Hial Professor Emérito da Universidade Federal do Triângulo Mineiro José Duarte M. Lopes Professor Assistente de Bioquímica, Departamento de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG. Lívia V. L. Teodoro Professora Adjunta de Bioquímica, Departamento de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG. Roseli A. S. Gomes Professora Titular de Bioquímica, Departamento de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG. 1a Edição Uberaba — 2008 Responsabilidade Editorial Valdemar Hial Criação, Diagramação e Arte-final Renata Cristina Oliveira Silva Capa Gilnei Fernandes Gouveia Equipe de Revisores Andréa de Castro Ralize Maria do Carmo Salge Vilma Martins B. L. dos Santos Impressão e acabamento Editora e Gráfica Cenecista Dr. José Ferreira FICHA CATALOGRÁFICA HiAL, Valdemar Textos básicos de bioquímica clínica / Valdemar Hial - Uberaba, MG 244p. ; 19,3x27,3cm. ISBN978-85-908340-0-7 1. Medicina 2. Bioquímica i. HiAL, Valdemar II. Título CDD-610 Apresentação Este livro resultou das aulas que, durante muitos anos, ministramos aos alunos de Medicina e áreas afins. Devido à dificuldade que tivemos em encontrar uma literatura que contemplasse os objetivos do nosso curso de Bioquímica Clínica, escrevíamos os capítulos e distribuíamos aos nossos alunos. Este livro, portanto, representa a reunião daqueles capítulos os quais denominamos Textos Básicos de Bioquímica Clínica. Para uma melhor compreensão dos conhecimentos inter-relacionados, dividimos o livro em quatro partes. Na primeira, mostramos o transporte de gases, os mecanismos homeostásicos ácido-base e hidroeletrolíticos e a função renal. Na segunda, mostramos a regulação hormonal do metabolismo, as inter-relações metabólicas dos tecidos e órgãos e os aspectos moleculares da doença. Na terceira parte, incluímos as proteínas plasmáticas, as lipoproteínas, as enzimas de interesse clínico, a coagulação sangüínea e a bioquímica do eritrócito. Finalmente, na quarta parte, incluímos a bioquímica da digestão e da absorção, a função hepática, com ênfase ao metabolismo da bilirrubina, e uma abordagem das necessidades qualitativa e quantitativa de nutrientes. Não tivemos a intenção de esgotar assuntos, mas de enfatizar a premissa de que toda atividade biológica é o resultado de reações bioquímicas, e que, em cada doença, existe um defeito bioquímico subjacente. Os autores Conteúdo Parte I Transporte de Gases ................................................................. 03 Homeostase Ácido-Base ................................................................. 13 Homeostase Hidroeletrolítica ................................................................. 23 Função Renal ................................................................. 32 Parte II Regulação Hormonal do Metabolismo .............................................. 53 Inter-relações Metabólicas dos Tecidos .............................................. 90 Aspectos Moleculares da Doença .............................................. 108 Parte III Proteínas Plasmáticas ................................................................ 129 Lipoproteínas Plasmáticas ................................................................ 137 Enzimologia Clínica ................................................................ 150 Coagulação Sangüínea ................................................................ 160 Bioquímica do Eritrócito ................................................................ 167 Parte IV Digestão e Absorção no Trato Gastrintestinal ....................................... 187 Função Hepática ....................................... 197 Elementos de Nutrição ....................................... 215 TRANSPORTE DE GASES HOMEOSTASE ÁCIDO-BASE HOMEOSTASE HIDROELETROLÍTICA FUNÇÃO RENAL PARTE I BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 3 2 Tr a n s p o rt e d e G a s e s TRANSPORTE DE GASES 1. Introdução O metabolismo nos mamíferos é possível graças à existência de um mecanismo que assegura um constante aporte de O 2 e remoção do CO 2 . Pela ação da hemoglobina, o O 2 é retirado do ar e levado, em questão de segundos, às partes mais remotas do organismo, numa pressão apenas ligeiramente inferior àquela que apresentava na atmosfera. O CO 2 produzido diariamente pelos tecidos transforma-se em H 2 CO 3 numa quantidade equivalente a 2L de HCl concentrado; todo esse ácido jorra dos tecidos, passa pelo sangue e deixa o organismo através dos pulmões, alterando o pH sangüíneo em apenas centésimos de unidade de pH. 2. Os gases respiratórios O ar atmosférico contém 79% de N 2 ; 20,95% de O ; 0,04% de CO 2 e 0,5% de água. Em uma mistura de gases como o ar, cada gás exerce sua própria pressão parcial. Por exemplo, a pressão parcial do O 2 ao nível do mar será 20,95% da pressão total de 760 mmHg, ou seja, 158,2 mmHg (Tabela 1). Entretanto, após ter sido inspirado, ao atingir os alvéolos, o ar está saturado com água na forma de vapor. Como o vapor de água tem massa, ele ocupa espaço, e a pressão nos pulmões no final da inspiração permanece, contudo, igual à pressão atmosférica(760 mmHg). Segue-se que as pressões parciais dos outros componentes do ar inspirado deverão estar proporcionalmente reduzidas. Tabela 1 – Composição dos gases respiratórios Ar inspirado Ar alveolar Ar expirado mm Hg vol % mm Hg vol % mm Hg vol % O2 158,2 20,95 101,2 14,0 116,2 16,1 CO2 0,3 0,04 40,0 5,6 28,5 4,5 N2 596,5 79,0 571,8 80,0 568,3 79,2 H2O 5,0 47,0 47,0 Total: 760,0 99,9 760,0 99,6 760,0 99,8 A quantidade de um gás dissolvido em um líquido é dependente da: (1) pressão parcial do gás e (2) da solubilidade do gás no líquido em determinada temperatura. Mais especificamente, em condição de equilíbrio, o volume de um gás dissolvido em um determinado líquido, a uma dada pressão parcial é: C = kp em que C representa mililitros de gás por mililitro de solvente, p é a pressão parcial (em mmHg) do gás na fase gasosa, e k é o coeficiente de absorção de Bunsen,uma constante para um dado gás, num dado solvente, a uma dada temperatura. Os valores de k para os gases respiratórios importantes estão na Tabela 2, que também mostra o efeito da temperatura na solubilidade desses gases. BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 4 Tr a n s p o rt e d e G a s e s Tabela 2 – Coeficientes de absorção dos gases respiratórios Temperatura (°C) O2 CO2 N2 Água: 0 0,049 1,71 0,024 20 0,031 0,87 0,016 40 0,023 0,53 0,012 Plasma: 38 0,024 0,510 0,012 Nota: Os valores são mililitros de gás (medidos nas CNTP) dissolvidos em 1 mL do solvente indicado, quando o mesmo está em equilíbrio com determinado gás a 760 mmHg. A velocidade de difusão de um gás em um líquido (ou em um tecido) é diretamente proporcional ao seu coeficiente de absorção, à diferença de pressão parcial do gás nas fases gasosa e líquida e ao peso molecular do gás. 3. Trocas Gasosas Como a pressão parcial do O 2 é de aproximadamente 100 mmHg no ar alveolar e de apenas 50 mmHg ou menos no sangue venoso, existe um gradiente de concentração, e o O 2 difunde-se através da parede do capilar alveolar. Com o fluxo de sangue, o O 2 do gás alveolar e do sangue arterial quase se equilibram; a pO 2 (pressão arterial de O 2 ) do sangue arterial, no homem em repouso,é igual a 100 mmHg, sendo de 95 mmHg durante um exercício intenso. Esse O 2 é então transportado no sangue combinado com a hemoglobina das hemácias e, em quantidade muito pequena, dissolvido no plasma. Devido à sua baixa solubilidade, apenas 0,3 mL de O 2 são transportadas por 100 mL de plasma, quantidade que não satisfaz às necessidades metabólicas do organismo, mesmo com um débito cardíaco consideravelmente aumentado. Contudo, como cada grama de hemoglobina se combina com 1,34 mL de O 2 e o sangue normal contém cerca de 15g de hemoglobina/100 mL, o sangue completamente oxigenado pode conter até 70 vezes mais O 2 que o dissolvido no plasma. Nos tecidos, a pressão parcial de O 2 é de cerca de 30 mmHg o que faz com que o O 2 que a eles chega com uma pO 2 de 100 mmHg passe do sangue para os tecidos. A pressão parcial de CO 2 (pCO 2 ) no sangue arterial é de 40 mmHg e nos tecidos é de cerca de 60 mmHg. Devido a esta diferença de pressão parcial, o CO 2 passa dos tecidos ao sangue, sendo transportado até os pulmões. Como a pCO 2 do ar alveolar é de 40 mmHg, o CO 2 passa do sangue venoso para os alvéolos pulmonares, de onde é expirado (Figura 1). Para que haja passagem de O 2 dos alvéolos para o sangue venoso e do sangue arterial para os tecidos, deve haver uma diferença de pO 2 maior que a necessária para fazer com que o CO2 passe dos tecidos para o sangue venoso para os alvéolos. Tal fato é devido à maior difusibilidade do CO 2 em relação ao O 2 . BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 5 to rn a -s e to rn a -s e Tr a n s p o rt e d e G a s e s Figura 1 – Relações de pressão e direção dos fluxos de O 2 e CO 2 entre tecidos, sangue, pulmões e atmosfera (Fonte: Cantarow e Schepartz, Bioquímica, 4ª Edição, 1973). Células O2 = 20 mmHg O2 = 100 mmHg CO2 = 60 mmHg CO2 = 40 mmHg Sangue arterial Sangue venoso O2 = 40 mmHg CO2 = 46 mmHg Ar alveolar O2 = 101 mmHg CO2 = 40 mmHg O2 = 115 mmHg CO2 = 31 mmHg Ar expirado Ar atmosférico O2 = 158 mmHg CO2 = 0,3 mmHg As trocas gasosas se dão por difusão simples, às custas de diferenças de pressões parciais. 4. O ciclo respiratório 4.1. Combinação da hemoglobina com o oxigênio A principal característica da hemoglobina é a sua capacidade de se combinar reversivelmente com o O 2 . A ferroporfirina e muitos de seus hemocromógenos podem também ligar-se ao oxigênio e, nesses casos, o Fe2+ é rapidamente oxidado a Fe3+, ao passo que, na hemoglobina, ele se mantém no estado ferroso (Fe2+). Tal comportamento peculiar da hemoglobina deve-se ao fato de grande parte do heme estar alojado no interior de um ambiente hidrofóbico, de constante dielétrica relativamente baixa; tal região da porção globina é por vezes denominada “bolsão do heme”. Portanto, parte da estrutura da própria hemoglobina é utilizada para inibir a oxidação do Fe2+ pelo oxigênio ligado à molécula. Existem alguns tipos mutantes de hemoglobina, nos quais, por substituição de aminoácidos importantes na manutenção da estrutura do bolsão do heme, o ferro do heme encontra-se desprotegido contra a oxidação, podendo ser encontrado na forma de Fe3+, o qual tem baixa afinidade pelo O . A hemoglobina com Fe3+ é denominada metemoglobina. 2 Mesmo na hemoglobina normal, o ferro se oxida lentamente, porém de forma significativa, e, por isso, os eritrócitos necessitam de um mecanismo para restaurar a condição do Fe2+. Este mecanismo envolve a NADH-citocromo b5-redutase. Outra importantíssima propriedade da hemoglobina é o fato de o ferro do heme estar em coordenação quíntupla, com quatro ligações dirigidas aos nitrogênios pirrólicos e uma ao grupo imidazólico da histidina 92 ou 87 (os números indicam a posição do resíduo na seqüência da cadeia protéica) da globina; a sexta posição está vazia. Assim, o O 2 pode combinar-se rapidamente com o ferro sem ter que deslocar outro ligante, que no caso da metemoglobina é a água (Figura 2). BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 6 3 O 3 3 Tr a n s p o rt e d e G a s e s % d e s a tu ra ç ã o 2 3 2 Figura 2 – Estrutura do Heme em ligação com nitrogênio do anel imidazólico da Histidina e o O 2 . H C His CH CH H C N N CH 2 HC Fe CH N N H C CH C H HOOC COOH Uma das características peculiares da combinação do O 2 com a hemoglobina é a interação cooperativa entre os sítios de ligação do heme, freqüentemente denominada interação heme-heme. Apesar de não haver nenhum contato físico direto entre os quatro grupos heme, a cooperatividade da ligação do O 2 reflete-se no fato de que, durante a oxigenação da hemoglobina, a adição das moléculas de O 2 torna-se crescentemente mais fácil, isto é, a adição da 2a molécula de O 2 é mais fácil que a primeira, a 3a mais fácil que a 2a e a 4a mais fácil que a 3a. É útil analisar em primeiro lugar a ligação do O 2 com a mioglobina, uma hemeproteína monomérica encontrada no tecido muscular. A relação entre pO 2 e a formação de oximioglobina (MbO 2 ) pode ser vista na Figura 3. 100 50 0 0 50 100 pO2,mmHg Figura 3. Oxigenação da mioglobina em função da tensão de O 2 . A curva apresentada é uma hipérbole retangular, de acordo com a lei de ação das massas para a dissociação da oximioglobina, formulada como: MbO 2 Mb+ O 2 . BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 7 3 2 Tr a n s p o rt e d e G a s e s 2 2 Em contraste, a curva de dissociação da oxiemoglobina ( HbO 2 ) do sangue humano normal ou do sangue de muitas outras espécies é sigmoidal (Figura 4). A curva sigmoidal indica que a presença de O 2 em um dos grupos heme da hemoglobina possui um efeito sobre as constantes de dissociação dos outros grupos heme da mesma molécula, efeito que, pela forma da curva, deve ser mais intenso para a quarta dissociação. Em condições fisiológicas, a diferença na afinidade da Hb (desoxiemoglobina) e da HbO 2 (totalmente oxigenada) pelo O 2 é de cerca de 500 vezes, indicando que, à medida que as primeiras moléculas de O 2 são fixadas, a hemoglobina parcialmente saturada aumenta a sua afinidade pelo O 2 . O caráter sigmoidal da curva de dissociação da HbO 2 tem grande significado fisiológico, como se vê na Figura 4, visto que a saturação da hemoglobina é afetada pela pO 2 numa larga faixa de pressão (20-30mmHg), sendo a hemoglobina do sangue arterial quase que totalmente saturada com uma pO 2 inferior à normal do sangue arterial (100 mmHg). As curvas sigmoidais são encontradas apenas em algumas formas multiméricas de proteínas respiratórias. 4.1.1. Fatores que influenciam a combinação da hemoglobina com o O 2 4.1.1.1. Influência da pCO e do pH: o efeito Bohr O equilíbrio do sistema Hb-HbO 2 é alterado variando-se a pCO 2 do meio que circunda a hemácia, fenômeno conhecido como efeito Bohr. Este efeito pode ser também atribuído à variação de pH ocasionada por uma mudança na pCO 2 . O CO 2 altera a concentração de H+ porque é + rapidamente hidratado nos eritrócitos, produzindo H 2 CO 3 que se dissocia em H e HCO CO + H 2 O H 2 CO 3 H + + HCO − A oxigenação da hemoglobina resulta em alteração do pKa aparente de alguns grupos ácidos da mesma, de 7,71 a 6,17; por conseguinte, a HbO 2 atua como ácido mais forte do que a Hb (hemoglobina reduzida). Assim, a reação reversível que descreve o efeito Bohr pode ser representada esquematicamente da seguinte maneira: HHb+ + O HbO 2 + H+ (2) A relação não é estequiométrica: cerca de 0,7 moles de H+ são liberados para cada equivalente de O 2 ligado. O efeito Bohr possui considerável importância fisiológica. À medida que o sangue arterialbanha os tecidos, o CO 2 difunde-se para os eritrócitos, é hidratado, o H 2 CO 3 produzido se dissocia em − + , fazendo HCO 3 e H , e esta dissociação reduz potencialmente o pH e afinidade da Hb pelo O 2 com que a reação (2) fique deslocada para a esquerda. Nos pulmões, a perda de CO 2 , que eleva potencialmente o pH, aumenta a afinidade da Hb pelo O 2 , permitindo, desse modo, a saturação da Hb com o O 2 em pO 2 mais baixa. BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 8 Tr a n s p o rt e d e G a s e s % d e s a tu ra ç ã o % d e s a tu ra ç ã o d a H b 5 0 1 0 0 Figura 4 – Curva de saturação da hemoglobina em diferentes tensões de CO 2 pCO2 = 60 mmHg (pH = 7.22) pCO2 = 40 mmHg (pH = 7.40) 0 20 40 60 80 100 pO2 mmHg 4.1.1.2. Influência do 2,3-Bifosfoglicerato O 2,3-Bifosfoglicerato (BPG) é um composto que tem como precursor o 1,3-bifosfoglicerato, um intermediário da via glicolítica. No eritrócito, uma molécula de BPG liga-se de maneira não-covalente aos grupos -amino dos resíduos de valina NH2-terminais das duas cadeias da hemoglobina, estabelecendo uma espécie de "ponte" entre estas duas subunidades. Esta ligação ocorre somente com a hemoglobina desoxigenada, mas não com a oxiemoglobina. Devido a isso, há diminuição da afinidade da hemoglobina pelo O 2 (Figura 5). Quanto maior a concentração de BPG, mais favorecido será o estado desoxigenado da hemoglobina. Os níveis de BPG nos eritrócitos são aumentados por hipóxia (tal como ocorre em altitudes acima de 2.500m, nas anemias ou doenças pulmonares) como resultado de um processo de adaptação a baixas concentraçãoes de O 2. Durante estocagem de sangue para transfusões,ocorre aumento da afinidade da Hb pelo O 2 dimuindo a habilidade de liberar O 2 para os tecidos. Esse aumento da afinidade por O 2 é devido à incapacidade de o eritrócito manter níveis altos de 2,3- BPG. Figura 5. Curvas de saturação da Hb pelo Oxigênio na presença de CO 2 e de CO 2 + BPG 100 50 Hb Hb+CO2 Hb+CO2 +BPG 0 20 40 60 80 100 pO2 mmHg 4.1.1.3. Outros fatores que influenciam a desoxigenação da Hb O aumento da temperatura corporal e o exercício físico intenso também favorecem a dissociação da oxiemoglobina. No exercício, as grandes quantidades de CO 2 liberadas pela musculatura, juntamente com os ácidos liberados pelos músculos em atividade, aumentam a concentração hidrogeniônica no sangue capilar muscular. Além disso, a temperatura do músculo muitas vezes aumenta em 3-4°C, o que favorece ainda mais a dissociação da HbO 2 . BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 9 2 2 Tr a n s p o rt e d e G a s e s 4.2. Transporte de oxigênio No pulmão, o O 2 difunde-se através da parede do capilar alveolar, de acordo com o gradiente ali existente, e daí para o plasma e eritrócitos. A pO 2 nos eritrócitos que deixam os pulmões é de cerca de 100 mmHg, sendo a pCO 2 do sangue arterial da ordem de 40 mmHg. A hemoglobina do sangue arterial tem uma saturação de cerca de 96%. A pO 2 no líquido intersticial que circunda os capilares extrapulmonares não pode ser determinada com precisão, mas é de 35 mmHg. Por conseguinte, o O 2 difunde-se dos eritrócitos através do plasma e líquido intersticial para as células teciduais, enquanto o CO 2 se desloca em sentido contrário. Nesse caso também, apesar da rápida passagem do sangue através do capilar, o equilíbrio é quase completo, de modo que o sangue venoso possui uma pCO 2 de 46 mmHg e pO 2 de cerca de 40 mmHg. Como o coeficiente de difusão do CO 2 é 30 vezes maior que o do O 2 , o gradiente de pressão não precisa ser tão elevado para o primeiro gás. Nessas circunstâncias, a hemoglobina venosa apresenta uma saturação pelo O 2 de cerca de 64%. A diferença, isto é, 32% do O 2 foi fornecida aos tecidos. Admitindo-se a existência de 15g de hemoglobina por decilitro de sangue, e considerando-se que cada grama de hemoglobina pode se combinar com 1,34 mL de O 2 , verificamos que 6,4 mL de O 2 foram fornecidos aos tecidos para cada decilitro de sangue fluindo pelos capilares. Evidentemente que nesse cálculo foi desprezada, por ser insignificante, a quantidade de O 2 transportada na forma dissolvida. Durante o exercício, à medida que a pO 2 nos tecidos diminui a pCO 2 aumenta, esse mecanismo torna-se cada vez mais eficiente para a liberação de O 2 . 4.3. Transporte de CO O conteúdo de CO 2 do sangue arterial é cerca de 50 mL/dL, às vezes citado como 50 vol %, enquanto o do sangue venoso pode ser de 55 a 60 vol%. Assim, cada decilitro de sangue transporta 5 a 10 mL de CO 2 dos tecidos para os pulmões. Contudo, a diferença de pCO 2 permitiria a solução física de apenas uma quantidade adicional de 0,4 vol % de CO 2 . Além disso, mesmo esse pequeno incremento em seu teor reduziria acentuadamente o pH do sangue venoso, embora se observe uma modificação bem menor. Como, então, se realiza o transporte de CO 2 ? Para compreender esse processo, é necessário descrever inicialmente várias condições: (1) o seu verdadeiro estado no sangue arterial e venoso, (2) a reação direta entre CO 2 e proteína, (3) o comportamento relativo da Hb e HbO 2 como ácidos e (4) a composição eletrolítica dos eritrócitos e do plasma. 4.3.1. O CO no sangue encontra-se em vários estados. Ele é transportado, principalmente, no − plasma e nos eritrócitos, como HCO 3 , e se difunde dos tecidos através da parede capilar. Além disso, está, em grande parte, em solução como moléculas de CO 2 , visto que a hidratação para formar H 2 CO 3 é uma reação lenta. O CO 2 produzido na forma de CO 2 molecular pelas várias reações de descarboxilação do metabolismo intermediário difunde-se, principalmente nesta forma, das células para o plasma, através do líquido intersticial, sendo apenas uma pequena fração hidratada a ácido carbônico. Ao penetrar nos eritrócitos, a hidratação do CO 2 é catalisada pela anidrase carbônica: CO 2 + H 2 O H 2 CO 3 A anidrase carbônica apresenta um átomo de Zn por molécula, sendo inibida por drogas como a acetazolamida e várias sulfonamidas. BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 10 2 2 − 2 3 3 2 3 3 2 3 − Tr a n s p o rt e d e G a s e s 2 4.3.2. O CO compostos. reage com grupos NH 2 alifáticos não-dissociados formando carbamino- R-NH + CO R-NHCOO— + H+ Assim, uma fração do CO 2 no plasma, de cerca de 0,5 mmol/L, liga-se às proteínas plasmáticas. A pequena diferença no conteúdo carbamino das proteínas plasmáticas entre o sangue arterial e venoso, em condições basais, indica que as proteínas plasmáticas não têm participação significativa no transporte de CO 2 , que pode ser também transportado combinado com a hemoglobina, constituindo a carbamino-hemoglobina (Hb-NH-COO—) . Nessa, ele está ligado aos grupos - amino terminais das cadeias e . A desóxiemoglobina (HHb) liga-se mais facilmente ao CO 2 do que a oxiemoglobina (HbO 2 ). A contribuição da carbamino-hemoglobina para o transporte de CO 2 como um todo também é pequena. 4.3.3. Conforme mencionado anteriormente, a desoxiemoglobina (Hb) é funcionalmente um ácido mais fraco que a HbO 2 . 4.3.4. Tanto os eritrócitos como o plasma contêm HCO 3 e H CO . Se essas fossem as únicas 2 3 formas de CO 2 presentes no sangue, baseando-se na equação de Henderson-Hasselbalch, a relação [Base] / [Ácido] será: pH = pK + log [ HCO −] / [H CO ] No pH normal do sangue (7,4) e, como o pK a do H 2 CO 3 é de 6,1, o log [Base] / [Ácido] é igual a 1,3 e a relação HCO −/H CO de 20:1. Portanto, na faixa fisiológica de pH, a principal porção do CO total presente no plasma e eritrócitos encontra-se na forma de HCO −. 5. Deslocamento isoídrico Conhecendo-seos fatores anteriormente descritos, é possível delinear, com a ajuda da Figura 6, os eventos que ocorrem no transporte de CO 2 dos tecidos para o ar alveolar. Quando o sangue arterial chega aos capilares teciduais, cerca de 96% da hemoglobina estão oxigenados. Devido ao aumento na tensão de CO 2 e redução da tensão de O 2 , ocorre dissociação da HbO 2 ; o O 2 difunde- se para o líquido intersticial e o CO 2 difunde-se para o eritrócito. Uma pequena fração liga-se imediatamente à Hb formando carbamino-hemoglobina. Todavia, existe um grande excesso de CO 2 , que deve ser eliminado por outros meios. Pela ação da anidrase carbônica, este CO 2 é rapidamente hidratado a H 2 CO 3 , que se dissocia em seguida. Dois fenômenos opostos entram em ação: (1) o H 2 CO 3 tenderia a abaixar o pH no interior do eritrócito, mas (2) a transformação da HbO 2 em Hb envolve uma mudança de pK, de 6,2 para 7,7, tendendo a elevar o pH dentro do eritrócito. Por conseguinte, os prótons formados pela dissociação do H 2 CO 3 são aceitos pelos grupos da Hb que participam do efeito Bohr. O resultado final desses dois processos consiste em manter praticamente inalterado o pH, enquanto os íons K+ no interior do eritrócito, anteriormente complexados com − a HbO 2 , são agora complexados com os íons HCO 3 recém-formados. Em conseqüência, a maior parte do CO 2 que se difunde dos tecidos para os eritrócitos abandona o capilar no sangue venoso como HCO 3 eritrocitário. Esta série de transformações é denominada deslocamento isoídrico (pH sangüíneo constante). BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 11 3 − 3 2 2 3 2 3 2 3 3 3 Tr a n s p o rt e d e G a s e s + 6. Deslocamento dos cloretos Devido ao deslocamento isoídrico, a tendência de HCO − a escapar das células aumenta, sendo o HCO 3 substituído pelo Cl- do plasma até que se estabeleça um novo equilíbrio (Figura 6). O resultado dessa transformação é que uma parte efetiva do CO 2 total que entrou no eritrócito, foi hidratado e dissociou-se, encontra-se agora no plasma venoso, na forma de HCO −. Como a quantidade de Hb não varia, o resultado combinado dos deslocamentos isoídrico e dos cloretos consiste em aumentar o número total de partículas e, assim, aumentar a pressão osmótica efetiva na célula. Em conseqüência, ocorre redistribuição de água entre as células e o plasma, de tal modo que o volume relativo ocupado pelos eritrócitos (hematócrito) no sangue venoso é apreciavelmente maior que no sangue arterial, elevando-se de 45 para 48 ou 49%. Quando o sangue venoso atinge os capilares pulmonares, toda a seqüência anteriormente descrita é invertida. A menor pCO 2 nos alvéolos resulta num gradiente de concentração de CO 2 dos eritrócitos para o plasma e, daí, para o espaço alveolar. Simultaneamente, o O 2 migra dos alvéolos para os eritrócitos, e, com a diminuição da pCO e o aumento da pO , ocorre oxigenação da Hb. O HCO- plasmático penetra nos eritrócitos e combina-se com prótons liberados pela HbO 2 recém-formada. A anidrase carbônica catalisa a desidratação do H CO , de modo que o CO formado a partir do HCO- plasmático pode difundir-se do eritrócito para o plasma e o espaço alveolar. O CO 2 presente como carbamino-CO 2 é também liberado, em conseqüência da baixa tensão de CO 2 e da conversão de Hb em HbO 2 . O resultado final consiste no transporte de O 2 dos pulmões para os tecidos, numa quantidade suficiente para suprir as necessidades metabólicas, bem como no transporte de CO 2 formado durante o metabolismo até os pulmões, sem qualquer modificação no padrão ácido-básico do líquido extracelular ou dos eritrócitos (Figura 7). Tecidos Plasma Eritrócitos Hb-NH 2 Hb-NH -COO − + H + H2 O + CO2 CO2 CO2 + H2O Metabolismo Celular Anidrase carbônica H2CO3 Cl − Cl − HCO – HCO − + H + O2 O2 O2 + HHb HbO2+ H H2O H2O BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 10 Figura 6 – Representação esquemática dos deslocamentos isoídrico e dos cloretos. BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 12 2 + Tr a n s p o rt e d e G a s e s 2 Sangue venoso Sangue arterial H + Hb + O HbO2 + H + HbO + H + H + Hb + O2 Pulmões − + HCO3 + H − HCO3+ H Tecidos CO2 + H 2 O H2CO3 H2CO3 H 2O + CO 2 Figura 7 – Reações que ocorrem nos eritrócitos e no plasma durante o transporte de O 2 e CO 2. 6. Objetivos a serem alcançados 1. Descrever eventos físico-químicos que afetam a difusão dos gases respiratórios. 2. Definir coeficiente de absorção de Bunsen. 3. Descrever as trocas gasosas entre os tecidos e o sangue arterial e entre o sangue venoso e o ar alveolar. 4. Descrever as conseqüências da elevação ou da diminuição da pCO 2 e do pH sobre o controle da respiração. 5. Descrever o transporte de O 2 do ar atmosférico às células. 6. Mostrar, através de esquema, como o O 2 se liga à hemoglobina e à mioglobina. 7. Descrever os mecanismos pelos quais o ferro do heme é mantido no estado de oxidação +2. 8. Mostrar, através de gráficos, como o O 2 se liga à hemoglobina e à mioglobina. 9. Explicar o caráter sigmoidal da curva de saturação da hemoglobina pelo O 2. 10. Descrever a influência da PCO 2 , do pH, da temperatura, e da concentração eritrocitária de 2,3-bifosfoglicerato (BPG) sobre a saturação da hemoglobina pelo O 2 . 11. Definir efeito Böhr. 12. Citar as formas pelas quais o CO 2 é transportado pelo sangue. 13. Descrever o papel da hemoglobina como agente tampão. 14. Descrever o deslocamento isoídrico. 15. Descrever o deslocamento dos cloretos. BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 13 3 2 3. 3 3 2 3 3 2 3 3 3 − H O M E O S TA S E Á C ID O -B A S E − HOMEOSTASE ÁCIDO-BASE 1. Introdução O pH do líquido extracelular é estreitamente regulado, sendo de cerca de 7,4 em condições normais, com faixa de 7,35 a 7,45. A faixa de pH do líquido extracelular compatível com a vida é de cerca de 7,0 a 7,6. Dispomos de informações muito menos precisas a respeito do pH intracelular, embora as existentes indiquem que ele é inferior ao do plasma, tendo-se observado valores entre 6,0 e 7,0. Devido à compartimentalização do meio intracelular, parece provável que o pH não seja uniforme em toda a célula. Três mecanismos interrelacionados atuam para proteger o pH dos líquidos corporais contra alterações ocasionadas pela produção normal de ácido carbônico e ácidos não-voláteis, bem como por uma variedade de alterações patológicas do equilíbrio ácido-base. Estes mecanismos são: (1) os sistemas-tampão químicos do corpo; (2) a excreção pulmonar de CO 2 e (3) a excreção renal de H+. 2. Os sistemas-tampão O principal tampão do líquido extracelular é o sistema HCO −/H CO Sua importância resulta de vários fatores: (1) há uma quantidade consideravelmente maior de HCO- no líquido extracelular do que qualquer outro componente-tampão, (2) há um suprimento ilimitado de CO 2 ; (3) existem mecanismos fisiológicos que mantêm o pH extracelular normal controlando a concentração de HCO- ou a de CO neste fluido; (4) o sistema-tampão HCO −/H CO opera 3 2 3 2 3 juntamente com a hemoglobina, conforme descrito anteriormente. Como em todos os sistemas-tampão, o pH não depende das concentrações absolutas dos constituintes do sistema, mas da sua proporção, como enunciado na equação de Henderson- Hasselbalch: pH = pK + log [A−] / [HA] que, para o sistema HCO −/H CO é: − − pH = 6,1 + log [HCO 3 ] / [H 2 CO 3 ] = 6,1 + log [HCO 3 ] / pCO 2 x 0,03 No pH fisiológico do sangue (pH = 7,4), a relação [HCO −] / [H CO ] será de 20:1. Como a concentração de H 2 CO 3 é determinada apenas pela tensão alveolar de CO 2 e não se altera pelaadição de ácido ou álcali, o sistema é muito mais eficiente para manter o pH 7,4 do que os tampões usualmente empregados em laboratório. O poder tamponante do sistema HCO 3 / H 2 CO 3 é ainda aumentado pela presença dos eritrócitos. À medida que o CO 2 se difunde para dentro dos eritrócitos, há formação de H 2 CO 3 , que se dissocia em H+ e HCO −, e este entra no plasma trocado por Cl- (e o H+ é tamponado pela Hb). Essa troca não depende da desoxigenação da Hb, mas é conseguida mais rapidamente e com menor variação de pH quando a desoxigenação é simultânea. Por outro lado, a diminuição na tensão de CO 2 resulta em reversão do processo, com conseqüente redução na concentração plasmática de HCO −. É preciso ressaltar que o HCO 3 , apesar de ser a mais importante e a mais abundante, não representa a única base atuante na capacidade de tamponamento do líquido extracelular. O fosfato e as proteínas plasmáticas também participam do processo. 14 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 3 3 3 2 3 H O M E O S TA S E Á C ID O -B A S E 3. Regulação respiratória do pH do líquido extracelular Ao contrário da concentração de HCO −, ou do teor constante de ânions, a concentração de H 2 CO 3 é determinada exclusivamente pela pressão parcial de CO 2 no ar alveolar em equilíbrio com o líquido extracelular. Esta, por sua vez, depende da velocidade com que o CO 2 , ao deixar o sangue pulmonar, se dilui no ar atmosférico, dependendo, portanto, da freqüência e da profundidade da respiração. Essas são reguladas pelo sistema nervoso, ao nível do centro respiratório, que é sensível ao pH e pCO 2 do líquido extracelular. Quando ocorre uma queda do pH do líquido extracelular para valores abaixo do normal, com redução nas concentrações de HCO −, a respiração é estimulada, reduzindo a pCO 2 alveolar e, portanto, o nível extracelular de H 2 CO 3 .Tal processo tende a levar a relação [HCO −] / [H CO ] de volta ao seu valor normal de 20:1, restabelecendo, assim, o pH para 7,4. A conseqüente queda na tensão plasmática de CO 2 afeta as células nervosas de maneira oposta, de modo que a compensação resultante jamais seria completa se esse fosse o único mecanismo regulador. Com pH plasmático alto, a freqüência respiratória cai, com aumento da pCO 2 alveolar e, portanto, da concentração plasmática de H 2 CO 3 , verificando-se retorno do pH para 7,4. Nesse caso também não há compensação perfeita, visto que a concentração plasmática aumentada de H 2 CO 3 se opõe ao efeito do pH elevado sobre o centro respiratório. A compensação definitiva dos distúrbios citados (aumento ou diminuição do pH do líquido extracelular) é feita pelos rins. A compensação pulmonar é extremamente rápida, porém jamais completa; em contraste, a compensação renal é mais demorada, mas pode restabelecer por completo o pH normal. 4. Regulação renal do pH do líquido extracelular Os rins funcionam a fim de excretar o H+ produzido pelo metabolismo endógeno. A excreção atinge cerca de 60 a 100 mEq/dia. A excreção renal desta carga de ácido é efetuada por três − + mecanismos interrelacionados: (1) reabsorção de HCO 3 , resultante da secreção de H ; (2) acidificação da urina, algumas vezes conhecida como excreção de “ácido titulável”, e (3) excreção renal de amônia. Esses mecanismos estão ilustrados na Figura 1. 15 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L − 1c H O M E O S TA S E Á C ID O -B A S E Capilar Peritubular Células Tubulares Renais Luz Tubular Renal + + + Na Na Na − HCO3 1a − + HCO 3 + H + − H + HCO 3 H 2 CO3 H 2 CO 3 H 2 O + CO2 CO2 + H2 O Capilar Peritubular Células Tubulares Renais Luz Tubular Renal Urina + + + Na Na Na − HCO 3 1b − + HCO3 + H + = H + HPO4 H2 CO3 CO2 + H2 O − H2 PO 4 Capilar Peritubular Células Tubulares Renais Luz Tubular Renal Urina + + Na Na Na + − HCO3 − + + HCO 3 + H H 1c H2 CO 3 + CO2+ H2 O H + + NH 3 NH 3 NH 4 Glutamina Glutamato + NH3 Urina Figura 1. Regulação Renal do pH: 1a. Reabsorção de HCO 3 ; 1b. Excreção de “ácido titulável” e . Excreção de íons amônio. 16 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 3 3 3 3 3 3 4 3 3 3 2 4 4 H O M E O S TA S E Á C ID O -B A S E 4.1. Reabsorção de bicarbonato No adulto, cerca de 4.000 nmoles de HCO –aparecem diariamente no filtrado glomerular. A manutenção da homeostase ácido-básica requer que toda esta quantidade seja reabsorvida. O mecanismo de reabsorção ocorre ao nível do túbulo proximal, conforme indicado no esquema da Figura 1a. No interior da célula tubular renal, o CO 2 combina-se com a água, formando H 2 CO 3 numa reação catalisada pela anidrase carbônica. O H+ é secretado na luz tubular através de um mecanismo que transporta simultaneamente o Na+ da luz para a célula. Esse é um exemplo de sistema recíproco de Na+, no qual o transporte deste íon ao longo de seu gradiente impulsiona, de modo acoplado, o transporte de H+ contra o seu gradiente. Na luz tubular, o H+ combina-se − com o HCO 3 do filtrado, formando H 2 CO 3 na urina, que se decompõe em CO 2 e H 2 O. Esta reação é catalisada por uma anidrase carbônica. O CO 2 formado, por ser muito difusível, sai da luz tubular e alcança a corrente sangüínea. O Na+, que foi reabsorvido em troca da secreção de H+, alcança a corrente sangüínea juntamente com o HCO −. Assim, o resultado líquido deste processo consiste na reabsorção de um HCO − − para cada molécula filtrada, embora, na realidade, o HCO 3 produzido na célula tubular seja aquele que retorna à circulação. Esse processo opera de modo que, em concentrações plasmáticas de HCO − retorne ao plasma. 4.2. Excreção de “ácido titulável” de até 24-28 mEq/L, todo o HCO − filtrado O termo “ácido titulável” refere-se à quantidade determinada (em mEq) de NaOH que devemos adicionar a 1 litro de urina para que o seu pH seja 7,4. O principal tampão urinário é o fosfato. A titulação do tampão fosfato pelo H+ secretado tem início nos túbulos proximais e completa-se nos túbulos distais e canais coletores. O mecanismo pelo qual se forma o ácido titulável é ilustrado na Figura 1b e está relacionado aos processos descritos acima para a reabsorção de HCO −. Conforme indicado, após ocorrer a troca Na+/H+, o H+ secretado combina-se com HPO =, convertendo-o em − + − H 2 PO 4 . O Na reabsorvido retorna ao sangue, com produção de HCO 3 na célula renal. Todavia, neste caso, ocorre secreção de um H+ na urina, à medida que se forma o novo HCO −, resultando, = − assim, em uma perda de ácido. No líquido extracelular, com pH 7,4, a relação [HPO 4 ] / [H 2 PO 4 ] é de 4:1. Tal aspecto é determinado pela equação de Henderson-Hasselbalch: = − 7,4 = 6,8 + log [ HPO 4 ] / [H 2 PO 4 ] Na urina, em conseqüência desse processo de acidificação, a relação é desviada para valores inferiores. Nos limites inferiores do pH urinário, cerca de 4,5, praticamente todo o fosfato encontra- se na forma de H PO- . Observe que esse pH representa uma concentração hidrogeniônica cerca de 1.000 vezes a do plasma. Em conseqüência da ação desse mecanismo, o organismo pode enfrentar a constante entrada de ácido nos líquidos extracelulares sem depleção apreciável na concentração plasmática de HCO −. Grande parte do H+ secretado nos túbulos proximais está associada à reabsorção de HCO − (Figura 1a), resultando em pouca modificação do pH urinário. Em contraste, quando a urina − atinge o néfron distal, todo o HCO 3 já foi normalmente removido, de modo que a secreção de H+ resulta em queda do pH urinário para seus valores finais. 4.3. Produção renal de amônia Outro mecanismo pelo qual o rim excreta uma sobrecarga de ácido consiste na formaçãode NH 3 e, subseqüentemente, NH+ , conforme ilustrado na Figura 1C. A quantidade de ácido titulável 17 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 4 4 4 4 4 4 4 3 H O M E O S TA S E Á C ID O -B A S E capaz de ser excretada pelos rins é determinada por vários fatores. Um deles é o limite mais baixo do pH urinário (cerca de 4,5), que reflete, por sua vez, o gradiente de concentração máxima, de 1.000 vezes, de H+ entre o plasma e a urina, que pode ser estabelecido pelo sistema tubular de secreção de H+. Outro fator é a quantidade de ânions tampões presente na urina. Todavia, a excreção de NH+ fornece um meio para eliminar prótons adicionais. O NH 3 , produzido nas células tubulares distais e proximais, entra no líquido tubular e combina-se com um H+, formando NH+ . Como a membrana celular não é permeável ao NH+ , este não é reabsorvido, sendo excretado na urina. A amônia é produzida nas células epiteliais renais, em grande parte por desamidação da glutamina proveniente da circulação, através da reação: Glutamina + H 2 O Glutamato + NH 3 Essa reação é catalisada por uma enzima mitocondrial, a glutaminase. O glutamato formado é posteriormente metabolizado pela glutamato desidrogenase, resultando na liberação de -cetoglutarato e NH+ . Por conseguinte, essa via leva à liberação de 2 moles de NH por mol de 4 glutamina metabolizada. Quando de acidose, a excreção urinária de NH+ 3 aumenta muito. Porém, são desconhecidos os sítios no rim no qual a acidose atua no sentido de aumentar a produção de NH+ . Dos 70 mEq de H+ que devem ser metabolizados diariamente por um indivíduo que consome uma dieta normal, cerca de 30 mEq são excretados como ácido titulável, ao passo que cerca de 40 mEq são eliminados na forma de NH+ . Durante estados de acidose crônica, até 400 mEq de H+ podem ser diariamente excretados pelo mecanismo do NH+ . 5. Tamponamento celular nos distúrbios do pH extracelular O espaço intracelular e outros compartimentos líquidos que não pertencem ao espaço convencionalmente definido (como, por exemplo, partes de osso) também participam na regulação do pH extracelular. As células musculares, o epitélio tubular renal e talvez as células em geral possuem um mecanismo de troca iônica que determina uma permuta, através da membrana celular, de Na+ por K+ ou por H+, ou por ambos. Essa troca permite a suplementação, pelos constituintes celulares, dos demais mecanismos de controle do pH extracelular. Quando aumenta o [HCO −] extracelular, o Na+ − entra nas células em troca de K+ ou H+. Os prótons reagem com o HCO 3 − extracelular, e o CO 2 resultante é expirado. O resultado final é a + redução do HCO 3 extracelular em grau equivalente ao Na que penetra nas células. Na queda de pH, os prótons penetram nas células, enquanto o Na+ e/ou K+ saem delas. Pode-se também atribuir ao osso uma porcentagem significativa do tamponamento intracelular de ácido. Assim, o Na+ ligado aos cristais do osso participa no intercâmbio com H+. O osso representa = também uma fonte importante de base, em grande parte na forma de íons CO 3 que fazem parte = da rede cristalina da hidroxiapatita. Durante a acidose, verifica-se uma perda de CO 3 do osso. Eventualmente, pode haver dissolução do osso, com liberação de Ca2+, Pi e hidroxiapatita, que são excretados na urina. 6. Fatores que alteram o pH do fluido extracelular Por causa da acidez do resíduo carbônico da maioria dos alimentos e dos ácidos orgânicos que surgem nos processos metabólicos, ocorre constantemente adição de ácido ao fluido extracelular. Por isso, a urina humana geralmente é ácida. O controle compensatório exercido pelo rim evita a perda de Na+, e o líquido extracelular normal mostra-se notadamente constante em sua composição, pH e volume. 18 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 2 2 3 − 3 3 3 2 3 3 3 3 − H O M E O S TA S E Á C ID O -B A S E 3 7. Alterações na concentração de H CO (pCO ) O sistema respiratório foi considerado em seu papel compensatório, mas é, por vezes, o principal malfeitor. Assim, adultos histéricos ou crianças com meningite hiperventilam acentuadamente, reduzindo a concentração extracelular de H 2 CO 3 e, portanto, elevando o pH. Essa condição é chamada alcalose respiratória. Como, nessa condição, a pCO 2 arterial é inferior ao normal, a operação do mecanismo tampão da Hb diminui automaticamente a concentração plasmática de HCO −, tendendo a evitar o aumento do pH plasmático. Esse mecanismo não é capaz de compensar adequadamente a concentração diminuída de H 2 CO 3 , e, assim, a hiperventilação pode elevar, dentro de poucos minutos, o pH extracelular. A hipoventilação de qualquer origem (pneumonia, edema pulmonar, enfisema, envenenamento por morfina, etc.) possui efeito oposto e reduz o pH extracelular. A pCO 2 aumentada determina também uma elevação na concentração plasmática − de HCO 3 por causa do mecanismo de tamponamento da Hb, e indivíduos com hipoventilação podem exibir imediatamente um pH plasmático baixo, com elevação nas concentrações de H 2 CO 3 e HCO 3 , isto é, acidose respiratória. A compensação para qualquer um dos distúrbios acima, relativos à concentração extracelular alterada de H 2 CO 3, é efetuada em grande parte pelos rins. No primeiro caso, há excreção de urina alcalina e, no segundo, de urina mais ácida. A excreção de grandes quantidades de urina pode determinar contração isotônica, porém de pequena intensidade. Os mecanismos celulares de troca também operam nesses distúrbios. Na alcalose respiratória, o Na+ é trocado por K+ e H+ celulares, como anteriormente descrito, melhorando a alcalose extracelular, apesar de alcalinizar os conteúdos celulares. Na acidose respiratória, verifica-se remoção de Na+ e K+ das células, que são acidificadas pela entrada de prótons. 8. Alterações na concentração de HCO— As situações em que a alteração do pH se encontra primariamente associada a mudanças na concentração de HCO- são mais freqüentes e mais graves. No caso mais simples, pode-se esperar o abaixamento da concentração de HCO- pela adição ao líquido extracelular de ácidos mais fortes que o H 2 CO 3 , como, por exemplo, o ácido acetoacético. A condição toma o nome de acidose metabólica, em contraste com a acidose respiratória anteriormente descrita. À medida que, na acidose metabólica, cai a concentração plasmática de HCO- , o HCO- dos 3 3 eritrócitos penetra no plasma em troca de Cl-. Com a pCO 2 constante dentro dos eritrócitos, há redução do pH e repressão da dissociação da Hb, H CO + Hb HCO − + HHb+ produzindo mais HCO − para o plasma, o que tenderia a normalizar o pH plasmático. Entretanto, − isso não é suficiente para compensar as reduções drásticas do HCO 3 plasmático; são necessários os mecanismos de compensação pulmonar e renal, bem como a troca de prótons, por Na+ e K+ celulares. A elevação do HCO − plasmático é compensada pelos mesmos mecanismos operando em sentido oposto: a troca do cloreto, hipoventilação, urina alcalina e troca do Na+ plasmático por H+ celular. A elevação do HCO 3 plasmático, condição denominada alcalose metabólica, pode ser causada por várias situações, incluindo ingestão excessiva de antiácidos alcalinos, perda extra-renal de ácido como nos vômitos, hipersecreção córtico-adrenal e terapia com agentes diuréticos. 19 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 3 3 3 3 3 3 3 2 3 H O M E O S TA S E Á C ID O -B A S E 9. Alterações devidas à perda de líquidos Dentre as circunstâncias mais graves e mais freqüentes na prática médica, destacam-se as alterações do pH em conseqüência de perdas excessivas de líquido, particularmente das várias secreções do trato gastrointestinal. A compreensão do problema requer o conhecimento da composição destes líquidose dos volumes envolvidos. Cada um dos líquidos secretados é elaborado a partir do fluido extracelular, sendo o principal cátion o Na+, exceto no suco gástrico. Todavia, o padrão aniônico pode diferir consideravelmente daquele observado no líquido extracelular. O efeito sobre o pH extracelular é determinado, conseqüentemente, pela diferença existente entre a secreção envolvida e o líquido extracelular. A perda de um líquido cuja composição se assemelha estreitamente à do líquido extracelular é pouco freqüente, mas pode ocorrer em certas ocasiões quando se introduz um tubo de sucção constante no duodeno e jejuno; além disso, pode ocorrer em hemorragias isoladas e após a perda de exsudatos serosos, como, por exemplo, em queimaduras extensas. Nessas circunstâncias, a perda de líquido pode não exercer um efeito significativo sobre o pH, mas pode ocorrer desidratação grave, devido à contração isotônica. No líquido extracelular normal, a relação [Cl−] / [HCO −] é de cerca de 4; se essa relação excede a 4 no líquido perdido, a concentração de Cl- no líquido extracelular restante deve cair, enquanto aumenta a concentração de HCO −, elevando, assim, o pH. Tal processo é mais freqüentemente observado após vômitos causados por obstrução pilórica ou duodenal ou por outras causas. Não é necessária a presença de ácido livre no vômito para haver desenvolvimento de alcalose. Basta a perda de um líquido cuja relação [Cl-] / [HCO −] seja superior a 4. Com efeito, nos vômitos prolongados, verifica-se a perda de pequenas quantidades de suco gástrico ácido; o líquido perdido consiste, em grande parte, em muco gástrico, que pode estar contaminado com conteúdos duodenais regurgitados. Esse quadro ocorre em lactentes que vomitam e cujos estômagos secretam pouco ou nenhum HCl livre. Contudo, a perda de ácido livre aumenta a gravidade da alcalose, visto − que cada mol de ácido secretado resulta em aumento equivalente do teor de HCO 3 extracelular. no líquido Quando a relação [Cl−] / [HCO −] do líquido perdido é inferior a 4, ocorre acidose. O principal exemplo desse tipo de perda de líquido é a diarréia. O líquido perdido é composto de secreções mistas do pâncreas e do intestino, bem como de bile. Pode-se observar que os exemplos fornecidos acima sobre alterações devidas à perda de líquidos refletem contrações do volume do líquido extracelular, com conseqüente alcalose ou acidose. A expansão desse volume também pode produzir acidose. Por conseguinte, na infusão endovenosa rápida de NaCl isotônico (soro fisiológico), a relação dos dois íons administrados difere significativamente daquela observada no líquido extracelular normal. Em conseqüência, ocorre diminuição de HCO −, resultando em queda do pH. O rápido aumento compensatório da respiração reduzirá a pCO 2 , normalizando o pH. 10. Alterações devidas à cetose Anteriormente, salientou-se que a acidose pode ocorrer sempre que um ácido HA, mais forte do que o H 2 CO 3 , entrar na circulação numa velocidade superior àquela com a qual pode ser removido. Tal processo determina acúmulo do ânion A−, com diminuição equivalente de HCO − em conseqüência da reação: HA + HCO − H CO + A−. Essa situação é observada no acúmulo de corpos cetônicos (ácidos acetoacético e -hidroxibutírico) em pacientes diabéticos e durante a inanição. A cetose não é um fenômeno patológico isolado e, em geral, surge como complicação de outros quadros. Assim, no diabético, a cetose complica a desidratação estabelecida pela glicosúria, podendo a compensação renal da acidose agravar ainda mais a desidratação. A cetose também ocorre rapidamente em lactentes e crianças que não se alimentam, constituindo, assim, um acompanhamento freqüente dos vômitos e diarréias das crianças. BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 20 3 3 3 H O M E O S TA S E Á C ID O -B A S E 2 11. Diferença de ânions (Hiato aniônico) In vivo, a concentração de ânions deve ser igual à concentração de cátions, medidas em mEq/L. Contudo, nem todos os cátions e ânions são medidos. Os ânions tais como fosfatos, sulfatos, ânions de proteínas e de ácidos orgânicos não são ordinariamente determinados e, portanto, a soma dos cátions medidos (Na+,K+,Ca2+) será maior do que a soma dos ânions medidos (HCO- e Cl-). Essa diferença é conhecida como diferença de ânions. A diferença de ânions é calculada por uma das seguintes fórmulas: Na+ − (Cl− + HCO −) ou (Na+ + K+) − (Cl− + HCO −) 3 3 A diferença de ânions normal é 12 mEq/L usando a primeira fórmula (8 a 16 mEq/L) e 15 mEq/L usando a fórmula seguinte (10 a 20 mEq/L). Quando há acidose metabólica com uma diferença de ânions anormal, o valor dessa diferença é habitualmente maior do que 22 mEq/L. Clinicamente, a diferença de ânions é importante para se distinguirem diferentes tipos de acidose metabólica. Por exemplo, na acidose lática, há o acúmulo de ânions lactato não-medidos; na cetoacidose diabética, de ânions acetoacetato não-medidos e assim por diante. 12. Determinação prática do equilíbrio ácido-base Em geral, a avaliação do equilíbrio ácido-base de um paciente baseia-se na determinação dos eletrólitos séricos (Na+,Cl-, HCO −), bem como nos resultados da gasometria do sangue arterial, incluindo pCO 2 , pO 2 e pH. Os padrões que caracterizam os quatro distúrbios primários do equilíbrio ácido-básico são apresentados na Tabela 1. Tabela 1 - Avaliação do equilíbrio ácido-básico pH pCO [HCO −] [Cl−] Acidose respiratória Alcalose respiratória Acidose metabólica Alcalose metabólica * = aumento; = diminuição Para ajudar a interpretação dos distúrbios ácido-bases, pode-se utilizar o nomograma ácido-base da Figura 2. Certas circunstâncias podem complicar as análises dos distúrbios ácido-básicos. O padrão dos valores eletrolíticos e da gasometria do sangue pode mudar com a atuação dos mecanismos de compensação. Assim, é necessário um período de seis a doze horas para obter uma resposta respiratória completa a um distúrbio metabólico, enquanto são necessários três a cinco dias para surgir uma resposta renal completa a um distúrbio respiratório. A anamnese (história clínica) do paciente é indispensável para a interação correta desses dados. BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 21 2 3 2 3 2 2 2 2 3 3 2 2 - [H C O 3 ] m E q IL p C O 2 n o rm a l 4 5 m m H g 4 0 m m H g 3 5 m m H g H O M E O S TA S E Á C ID O -B A S E 2 2 2 2 13. Alguns parâmetros utilizados na avaliação do equilíbrio ácido-base 13.1. Conteúdo de CO ou CO total — é medido acidificando-se o plasma e extraindo- se a vácuo o CO 2 . Representa a soma do CO 2 dissolvido fisicamente, do ácido carbônico e do bicarbonato. CO total = CO dis. + [H CO ] + [HCO −]. Como a quantidade de CO 2 dissolvido é muito pequena em relação às concentrações de H 2 CO 3 e de HCO −, pode-se considerar: CO total = [HCO −] + [pCO x 0,03] Valores de referência: 21-30 mmol/L 13.2. Capacidade de CO ou poder de combinação do CO — é determinada equilibrando-se o sangue a 38oC com uma atmosfera contendo 5,5% de CO , uma pressão parcial de CO 2 de 40 mmHg, idêntica à pCO 2 normal do ar alveolar. O plasma, obtido por centrifugação anaeróbica do sangue tratado dessa maneira, é chamado de “plasma verdadeiro”, e o CO 2 dele obtido por acidificação e baixa da pressão fornece a capacidade de CO 2 . Valores de referência: 24-30 mmol/L (53-78 vol%) 13.3. Bicarbonato padrão — é obtido subtraindo-se da capacidade de CO , o CO dissolvido fisicamente e aquele sob a forma de H 2 CO 3 . O seu valor normal é em torno de 24 mEq.L (22 a 26 mEq/L) 13.4. Excesso de base (Base Excess, B.E.) — mostra o aumento ou a diminuição do bicarbonato-padrão e revela as alterações metabólicas do equilíbrio ácido-base. Valores positivosindicam excesso de base, e os negativos denotam sua deficiência (ou excesso de ácidos fixos). Seus valores normais estão compreendidos entre + 2,5 e -2,5 mEq/L. Figura 2. Nomograma Ácido-Base Alcalose Metabólica pura 40 35 Acidose Respiratoria pura A I Acidose Respiratória F e Alcalose Metabólica J Alcalose Metabólica 30 e Respiratoria 28 c - Alcalose Respiratória pura 25 [HCO3] normal D 22 Acidose 20 Metabólica e Respiratória H 15 E pH normal B Alcalose Respiratória e Acidose Metabólica G 10 7,0 7,1 7,2 7,3 7,4 pH 7,5 7,6 7,7 Acidose Metabólica pura Acidose Metabólica e Alcadose Respiratória BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 22 3 2 2 3 - H O M E O S TA S E Á C ID O -B A S E 14. Objetivos a serem alcançados 1. Justificar a necessidade de o organismo manter constante o pH do meio interno. 2. Citar as variações normais do pH sangüíneo e os mecanismos físico-químicos e fisiológicos que contribuem para a manutenção do pH nesses valores. 3. Comparar, utilizando a equação de Henderson-Hasselbalch, a eficiência de um tampão em pH próximo e distante do seu pK. 4. Citar os principais sistemas-tampões dos eritrócitos, plasma e demais líquidos do organismo. - 5. Citar os valores normais das concentrações de H 2 CO 3 e HCO 3 - no plasma e discorrer sobre a importância do estudo do sistema HCO 3 /H 2 CO 3 como índice do estado ácido-base do organismo. 6. Usar a equação de Henderson-Hasselbalch para cálculo de uma variável, sendo dados os valores das outras duas. 7. Descrever o mecanismo respiratório envolvido na manutenção do pH do líquido extracelular. 8. Descrever os mecanismos renais envolvidos na manutenção do pH do líquido extracelular. 9. Demonstrar porque os H+ resultantes da dissociação de ácidos fixos produzidos ou introduzidos no organismo, somente são eliminados pelos rins. 10. Definir “acidez titulável” e explicar por que este parâmetro, juntamente com a dosagem de amônia na urina, pode servir como índice de avaliação do estado ácido-base do organismo. 11. Utilizando a equação de Henderson-Hasselbalch, descrever as alterações respiratórias e metabólicas do equilíbrio ácido-base. 12. Descrever as relações Cl–/HCO – nas secreções digestivas e citar as alterações do equilíbrio ácido-base, quando ocorre a perda de grandes quantidades dessas secreções. 13. Descrever as alterações das concentrações de K+ e Na+ no líquido extracelular devido a distúrbios ácido-base, explicando os mecanismos envolvidos e sua importância fisiopatológica. 14. Dar o significado dos termos: capacidade de CO , CO total, HCO - padrão, Base Excess e hiato iônico (anion gap) e explicar como esses parâmetros se comportam nos diferentes distúrbios do equilíbrio ácido-base. 15. Em situações representadas por pontos no diagrama pH x [HCO 3 ] (contendo isóbaras de pCO 2 ), identificar o estado-ácido-base do organismo. BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 23 A 3 H O M E O S TA S E H ID R O E LE T R O LÍ T IC A HOMEOSTASE HIDROELETROLÍTICA habilidade dos animais em manter constante a composição do fluido extracelular representa uma das mais significativas conquistas da evolução, desde que, por meio dessa, os animais se tornaram independentes de muitas modificações do seu meio ambiente. 1. Compartimentos fluidos do organismo No homem adulto, a quantidade de água representa aproximadamente 60% de seu peso corporal. Aproximadamente, 2/3 desta água está contido no compartimento intracelular e 1/3, no extracelular. O fluido extracelular pode ainda ser dividido em vários subcompartimentos, dos quais os maiores são o líquido intersticial, que banha a maioria das células e representa 15% do peso corporal, o plasma sangüíneo, o veículo de transporte através do qual as células se comunicam entre si e com o meio exterior, representando cerca de 5% do peso corporal, e os líquidos: cerebrospinhal, linfa, líquido sinovial, humor aquoso, etc. 2. Composição dos fluidos corpóreos A Figura 1 e a Tabela 1 mostram a composição eletrolítica dos líquidos corpóreos. Enquanto, o Na+ é o principal cátion extracelular, o K+ e o Mg2+ são os principais cátions intracelulares. Os ânions que predominam fora das células são o Cl- e no HCO- , enquanto os fosfatos, sulfatos e proteínas constituem os principais ânions intracelulares. Entre, os espaços extracelular e intracelular os íons encontram-se distribuídos de maneira muito desigual. Essa distribuição desigual se fundamenta, em parte, no equilíbrio de Donnan que mostra que no compartimento onde existem íons não difusíveis como proteinatos, o número de cátions é maior. A concentração de proteínas, que no pH fisiológico ocorrem como ânions, é muito maior na célula do que no líquido extracelular e isto explica, em parte, o maior número de miliequivalentes por litro de solução no interior da célula. A Tabela 1 mostra, ainda, que o equilíbrio entre cátions e ãnions somente é possível quando expressamos as suas concentrações em mEq/L e jamais em mg/L. O desequilíbrio entre Na+ e K+, é causado e mantido, principalmente, por um transporte ativo pela adenosinatrifosfatase íon dependente (Na+ - K+ - ATPase). A distribuição desigual de Na+ e K+ é uma condição para a excitabilidade das membranas, principalmente das membranas das células nervosas. A despeito da distribuição desigual de íons, o espaço intracelular têm, em geral, a mesma osmolaridade como mostra a Tabela 1. 24 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 3 3 4 20 Ac.Orgânicos SO HPO = H O M E O S TA S E H ID R O E LE T R O LÍ T IC A 4 mEq/L 200 190 Líquido Extracelular H2CO3 180 HCO− 170 160 150 HCO − 140 H2CO3 Não Eletrólitos − HPO= 130 120 HCO3 4 Orgânico 110 K+ 100 Na+ 90 Cl Na+ Cl 80 70 SO= 60 50 40 Pro = HPO4 Mg++ 30 te = = 4 ína K+ SO4 10 Mg++ K++ Ca++ Ca++ Na+ Proteína Mg++ Ac.Orgânicos Proteína Plasma Líquido Intersticial Líquido Celular Figura 1. Composição eletrolítica dos líquidos corpóreos (segundo Gamble). 25 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 2 3 4 H O M E O S TA S E H ID R O E LE T R O LÍ T IC A Tabela 1. Composição Média dos Eletrólitos nos Fluidos Corporais Extracelular Intracelular Vascular Intersticial mg/L mEq/L mEq/L mEq/L Plasma Plasma Fluido H O Na+ 3.260 142 145 10 K+ 200 5 4 150 Ca++ 100 5 2 2 Mg++ 36 3 2 40 Total de cátions 3.596 155 153 202 Cl- 3.692 104 114 2 HCO - 1.647 27 30 10 Fosfato 106 2 2 140 SO -2 16 1 1 5 Ânions de ácidos orgânicos 150 5 5 5 Proteinatos 65.000 16 1 40 Total de ânions 70.611 155 153 202 Total de mEq/L 310 306 404 Total de mOsm/L 310 310 310 A composição do líquido intracelular, indicada na Figura 1 e Tabela 1, representa a média geral das células. Embora essa afirmação possa ser considerada como válida para o conteúdo total de uma célula individual, é provável que existam subcompartimentos intracelulares contendo concentrações incomuns de certos constituintes, em parte por causa da capacidade variável de fixação por parte de diferentes moléculas protéicas e, em parte, refletindo mecanismos seletivos de transporte. 3. Controle do compartimento do líquido extracelular Diversos mecanismos evoluíram para regular o volume e a tonicidade dos líquidos corporais dentro de limites bastante estreitos.Tais mecanismos fornecem exemplos notáveis do conceito de regulação da homeostase, isto é, regulação da constância do meio interno do organismo. Em geral, os distúrbios do equilíbrio hidroeletrolítico originam-se no compartimento de líquido extracelular, que é o compartimentoacessível a determinações. 26 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L H O M E O S TA S E H ID R O E LE T R O LÍ T IC A 4. Necessidades diárias de água e eletrólitos Nas condições ambientais usuais, o adulto normal tem uma perda obrigatória diária de cerca de 1.500 mL de água. Dessa quantidade, cerca de 600 mL são perdidos pela pele como transpiração insensível, de 400 mL no ar expirado e de 500 mL, na urina. Qualquer excesso na ingestão de água acima desses níveis aparecerá como volume urinário aumentado. Como a oxidação da glicose e dos lipídeos, em quantidade suficiente para liberar 2.000 kcal/dia, resulta na formação de 300 mL de água, existe ainda a necessidade de uma ingestão obrigatória de água da ordem de 1.200 mL/dia. Por outro lado, em condições normais, não há perda obrigatória de Na+ ou Cl-. Adultos submetidos a uma dieta carente em Na+ e Cl- perdem esses íons na urina durante poucos dias, após os quais a urina se torna praticamente isenta de Na+ e Cl-, se mantidas constantes todas as circunstâncias. A dieta normal fornece 100 a 200 mEq de Na+ e Cl- por dia, que são excretados na urina, com exceção de pequenas quantidades perdidas no suor e nas fezes. Na ausência de K+ na dieta, verifica-se, durante poucos dias, uma excreção urinária diária de 40 a 60 mEq, após o que as perdas urinárias diminuem para cerca de 10 mEq/dia. Os distúrbios das relações normais do líquido extracelular podem ser considerados sob quatro pontos de vista:(1) pressão osmótica, (2) volume, (3) composição e (4) pH. 5. Controle da pressão osmótica Nenhum desvio considerável da pressão osmótica do líquido intracelular pode ser tolerado por muito tempo pelo organismo: tanto a hipertonicidade quanto a hipotonicidade levam a lesões irreversíveis e letais do sistema nervoso central. Contudo, não há mecanismo para controle direto da pressão osmótica do líquido intracelular, o qual está em equilíbrio osmótico permanente com o líquido extracelular. A pressão osmótica deste é regulada por um dos mecanismos homeostásicos mais complexos dos animais, o qual, como todos os mecanismos homeostásicos, opera por meio de vários dispositivos de retroalimentação. A manutenção da tonicidade dos líquidos corporais é efetuada, em grande parte, pela regulação da ingestão e da excreção de água. A ingestão de água é regulada pelos mecanismos pouco compreendidos da sede, que é desencadeada mesmo por aumentos discretos da tonicidade do líquido extracelular. O rim do indivíduo adulto pode elaborar urina cujo teor de NaCl varia de 0 a 340 mmoles/L, sendo a concentração salina da urina determinada instante a instante pela influência de dois hormônios sobre o rim.A Vasopressina(Hormônio Anti-Diurético), liberada pela neuro-hipófise, estimula a reabsorção de água, e a Aldosterona, liberada pela córtex adrenal, estimula a reabsorção de Na+. O nível circulante destes hormônios é, por sua vez, influenciado pela pressão osmótica e a concentração de Na+ no líquido extracelular. Quando a tonicidade do líquido extracelular cai, ocorre aumento da secreção de aldosterona e diminuição da secreção de vasopressina; por conseguinte, há eliminação de urina hipotônica. Por outro lado, quando o líquido extracelular encontra-se hipertônico, o rim passa a eliminar urina hipertônica, em decorrência de um aumento da secreção de vasopressina e diminuição da secreção de aldosterona. 27 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L H O M E O S TA S E H ID R O E LE T R O LÍ T IC A 6. Controle do volume do líquido extracelular As proteínas plasmáticas, principalmente a albumina, desempenham papel central na regulação do balanço osmótico entre o líquido intersticial e o plasma. Portanto, o volume plasmático está geralmente relacionado à taxa de proteínas plasmáticas, sobretudo à albumina. A depleção protéica acentuada resulta em diminuição não só da albumina, mas também do volume plasmático. O volume do líquido extracelular é determinado pelo seu teor de Na+, sendo regulado pelo controle deste teor. Tal regulação é efetuada através da excreção renal de Na+. A ocorrência de aumentos no volume intensifica a excreção de Na+, enquanto reduções do volume diminuem a sua excreção. Vários mecanismos regulam a excreção renal de Na+ em resposta a modificações do volume extracelular, sendo os mais importantes a taxa de filtração glomerular e o sistema Renina- Angiotensina-Aldosterona (Figura 2). A ingestão de sal em excesso ocasiona um aumento na perfusão dos rins, com consequente aumento na taxa de filtração glomerular, com conseqüente aumento da excreção urinária de Na+ e diminuição do volume do líquido extracelular. Observam-se alterações opostas quando de contração do volume do líquido extracelular. Além da taxa de filtração glomerular e do sistema renina-angiotensina-aldosterona, devem existir outros fatores que promovem a excreção de sal na presença de expansão do volume do líquido extracelular. A expansão do volume do líquido extracelular por infusão salina provoca um acentuado aumento da excreção de Na+, independentemente da taxa de filtração glomerular e da secreção de aldosterona. Acredita-se que, nesta circunstância, atue o chamado fator atrial natriurético, peptídeo hormonal produzido e secretado pelo coração e que tem atividade natriurética. 7. Alterações do metabolismo hidroeletrolítico Se desprezarmos as alterações do pH e da composição, existirão seis circunstâncias que poderão afetar a pressão osmótica e o volume do líquido extracelular. Elas estão referidas na Tabela 2 e podem ser reproduzidas em laboratório, sendo que todas elas foram observadas clinicamente.Para análise destas alterações, podemos usar a seguinte fórmula empírica: Tonicidade(Pressão Osmótica) = [ Na+] / Água Total Orgânica(ATO) 7.1. Expansão hipotônica — Esta situação ocorre quando há acúmulo de água sem quantidade equivalente de sal, como, por exemplo, nos casos em que se administram grandes quantidades de líquidos isentos de sal (tais como soluções de glicose) a indivíduos com função renal prejudicada. A água acumulada distribui-se osmoticamente por todos os compartimentos. As células do sistema nervoso central também são envolvidas, podendo ocorrer convulsões( intoxicação hídrica ) e mesmo a morte. 7.2. Expansão isotônica — O acúmulo de água e sal em quantidades isotônicas expande o compartimento extracelular, sem alterar o volume ou a composição intracelulares. O líquido distribui-se entre o fluido intersticial e o plasma, reduzindo, assim, a concentração de proteínas plasmáticas e o hematócrito. O quadro pode manifestar-se na forma de edema das extremidades ou pulmonar, constituindo uma complicação ocasionalmente grave da hidratação parenteral. 28 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L H O M E O S TA S E H ID R O E LE T R O LÍ T IC A Figura 2 - Sistema Renina-Angiotensina-aldosterona e o controle do volume do líquido extracelular. [Na+] ou Pressão arterial Renina Angiotensinogênio Angiotensina I Enzima conversora de Angiotensina (ECA) Angiotensina II Secreção Constricção de arteriolar Aldosterona Retenção de Na+ e H2O Aumento do V.E.C Aumento da P.A. = aumento = diminuição. V.E.C. = volume extracelular. P.A. = pressão arterial 29 BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L C O N T R A Ç Ã O ( D ê s i d ra ta ç ã o) E X P A N S Ã O ( H i d ra ta ç ã o ) H O M E O S TA S E H ID R O E LE T R O LÍ T IC A Tabela 2 – Alteações do Volume e da Composição dos Líquidos Corporais Variações de volume e deslocamento de líquidos Volume intracelular Volume extracelular Na + plasmático Hematócrito e Proteínas plasmáticas Excreção urinária de Na+ H2O ISOTÔNICA HIPERTÔNICAHIPOTÔNICA ISOTÔNICA HIPOTÔNICA HIPERTÔNICA 7.3. Expansão hipertônica — O acúmulo ou a retenção de sódio leva a uma expansão do compartimento extracelular. Se, contudo, esse sódio não se acompanhar de quantidade equivalente de água, o fluido extracelular será hipertônico, e haverá transferência de água das células para o compartimento extracelular, até atingir o equilíbrio osmótico. Assim, o líquido extracelular expande-se às custas das células. Essa é uma eventualidade rara, mas pode ser ilustrada pelos eventos dramáticos que se seguem à ingestão de água do mar, a qual contém duas vezes mais sódio do que a mais concentrada urina de um adulto normal. Se o processo continua, pode sobrevir a morte por lesão do sistema nervoso central. BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 30 H O M E O S TA S E H ID R O E LE T R O LÍ T IC A 7.4. Contração hipotônica — Ocorre quando há perda de sal pelo organismo, sem perda equivalente de água. Tal situação pode ser observada no caso de uso excessivo de diuréticos, na insuficiência da córtex adrenal e em certas doenças renais com sudorese excessiva. Neste caso, há perda do controle renal da excreção de Na+, e a urina apresenta grandes concentrações de sal. A água remanescente é distribuída entre todos os compartimentos líquidos, de modo que as células se expandem. Todavia, os aspectos mais graves do quadro são devidos à redução do volume plasmático e à insuficiência circulatória, incluindo hipotensão, taquicardia e, eventualmente, choque. 7.5. Contração isotônica Trata-se do distúrbio mais freqüente. Como não há perda obrigatória normal de Na+, a contração isotônica, como a hipotônica, só pode ocorrer em conseqüência de perda anormal de Na+ pelo organismo, mais comumente em uma ou mais secreções do trato gastrointestinal. Essas secreções são praticamente isotônicas em relação ao plasma. Além disso, como é evidente na Tabela 3, a produção diária total dessas secreções é igual a 65% do volume de todo o líquido extracelular, de tal modo que a perda contínua dessas secreções torna- se progressivamente grave. Como todos estes fluidos são isotônicos, suas perdas não determinam alterações do volume intracelular, e a perda total é exclusiva do fluido extracelular, que contrai proporcionalmente. Tabela 3 - Volume diário das secreções digestivas de um adulto normal Secreção Volume (mL) Saliva 1.500 Secreções gástricas 2.500 Bile 500 Suco pancreático 700 Secreções intestinais 3.000 Total 8.200 Plasma 3.500 Fluido extracelular total 14.000 O fluido intersticial e o plasma encontram-se, normalmente, numa relação de volume de 3:1, sendo que, na contração isotônica, a perda de líquido ocorre mais às expensas do fluido intersticial, por causa do aumento da pressão osmótica efetiva das proteínas plasmáticas. As características clínicas deste estado devem-se principalmente aos distúrbios cardiovasculares resultantes da redução do volume plasmático. Mas, quando são produzidos volumes aparentemente adequados de urina, a insuficiência renal torna-se evidente pela concentração sangüínea aumentada de nitrogênio não- protéico. O rim responde excretando volumes mínimos de urina, mas sem suprimento externo de água e sal, o volume do líquido extracelular não pode ser restaurado. A oligúria é seguida de anúria e, por fim, o paciente pode tornar-se comatoso e morrer de colapso circulatório. BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 31 H O M E O S TA S E H ID R O E LE T R O LÍ T IC A 7.6. Contração hipertônica A perda de água sem perda concomitante de Na+ resulta em contração dos compartimentos intra- e extracelular. Tal processo ocorre quando as perdas obrigatórias de água não são compensadas, como no caso de pessoas privadas de água, pacientes idosos e debilitados, incapazes de se alimentar, pessoas doentes abandonadas, as que não respondem ao estímulo normal da sede e pacientes com diabetes insipidus ou mellitus, que perdem grandes quantidades de água na urina, sem ingestão equivalente de líquidos. Como as membranas celulares são bastante permeáveis à água, a pressão osmótica nos compartimentos intra- e extracelular aumenta de modo equivalente. Antes de surgir uma disfunção grave, em conseqüência da contração do plasma, a ocorrência de alterações no sistema nervoso central pode constituir a característica dominante dessa síndrome, como na expansão hipertônica. Na prática, raramente encontramos exemplos puros de uma só dessas circunstâncias. Embora a diarréia e/ou os vômitos possam dar origem à contração isotônica, o indivíduo pode não ingerir água suficiente para cobrir as perdas obrigatórias, convertendo o quadro numa contração hipertônica. As ocorrências normais da existência podem determinar pequenas alterações dos fluidos corporais que, se não compensadas, podem levar a uma das seis situações anteriormente descritas. O fato de serem notavelmente constantes, o volume do líquido extracelular e a concentração de Na+ retratam a eficiência dos mecanismos da homeostase. 8. Objetivos a serem alcançados 1. Conhecer a composição hidroeletrolítica dos compartimentos biológicos. 2. Explicar as diferenças das concentrações eletrolíticas dentro e fora da célula. 3. Conhecer os mecanismos pelos quais é mantida a homeostase hidroeletrolítica. 4. Identificar as alterações hidroeletrolíticas decorrentes dos distúrbios do equilíbrio de fluidos e eletrólitos. 5. Associar situações clínicas com as alterações hidroeletrolíticas. BIOQUÍMICA CLÍNICA H I A L 32 FU N Ç Ã O R E N A L FUNÇÃO RENAL 1. Introdução Os rins são os principais órgãos envolvidos na manutenção do volume, da osmolalidade, do pH e da composição do líquido extracelular. A regulação da homeostase por este órgão é feita através de quatro processos principais: (1) Filtração do plasma através da membrana glomerular. (2) Reabsorção tubular seletiva de água e solutos. (3) Secreção tubular seletiva de solutos. (4) Secreção de hormônios (por exemplo: 1,25 diidroxicolecalciferol, eritropoietina e renina) 2. Filtração glomerular e formação da urina O sangue chega aos rins pela artéria renal, percorre seus ramos, atinge as arteríolas aferentes e entra nos capilares glomerulares. Ao passar por esses capilares, parte do plasma é filtrada e entra na luz tubular. O restante do sangue percorre as arteríolas eferentes, capilares peritubulares, vênulas e veias e deixa os rins pela veia renal. A filtração glomerular é a primeira fase na formação da urina. A formação do filtrado glomerular é regulada pela diferença da variação (∆) da pressão hidrostática transcapilar (P) e da pressão osmótica (π). A velocidade ou taxa de formação do filtrado em um único glomérulo é dada pela expressão: SNGFR = K f . A . [(P g - P t ) - (π g - π t )], onde: SNGFR é a taxa de filtração para um único nefron, K f e A são, respectivamente, o coeficiente de permeabilidade e a área da membrana glomerular, P g e P t são, respectivamente, as pressões hidrostáticas intracapilar e no interior da cápsula de Bowman, π g é a pressão osmótica dentro do capilar glomerular e π t é a pressão osmótica no interior da cápsula de Bowman (Figura 1). Segundo a Figura 1, o aumento da pressão intratubular renal pode também levar à redução da pressão efetiva de filtração. Isso ocorre, por exemplo, nas lesões da membrana glomerular que permitem a passagem de grandes quantidades de proteínas para o interior dos túbulos renais. Em um indivíduo normal adulto (80 kg), são filtrados 1.000 a 1.500 mL de sangue/minuto, sendo produzidos 120-125 mL de filtrado/minuto, o que corresponde à taxa de filtração glomerular (TFG). A determinação da taxa de filtração glomerular é um meio para avaliar a função de filtração glomerular. A medida
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