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APOSTILA-SEXUALIDADE-DE-HISTÓRIA-E-ANTROPOLOGIA

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1 
 
 
 SEXUALIDADE DE HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA 
1 
 
 
Sumário 
NOSSA HISTÓRIA ................................................................................................... 2 
1 - INTRODUÇÃO..................................................................................................... 4 
2 - ANTROPOLOGIA E SEXUALIDADE ................................................................... 5 
2.1-Consensos e Conflitos Teóricos em Perspectiva Histórica ................................. 5 
2.2 - Primitivos Sexuais ............................................................................................ 6 
2.3 - Alteridades Sexuais ........................................................................................ 12 
3 - CONSTRUÇÕESSEXUAIS................................................................................ 15 
4 - DESCONSTRUÇÕES SEXUAIS ....................................................................... 21 
5 - O INSUPORTÁVEL PESO DA INJÚRIA E DA EXCLUSÃO SOCIAL................. 27 
6 – NA ESCOLA ..................................................................................................... 28 
7 - NA FAMÍLIA ....................................................................................................... 31 
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 34 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2 
 
 
 
 
NOSSA HISTÓRIA 
 
 
A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários, 
em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-
Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo 
serviços educacionais em nível superior. 
A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de 
conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação 
no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua. 
Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que 
constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de 
publicação ou outras normas de comunicação. 
A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma 
confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base 
profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições 
modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica, 
excelência no atendimento e valor do serviço oferecido. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
3 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Se uma mulher tem inclinações eruditas é porque, em geral, há algo de errado 
na sua sexualidade. A esterilidade predispõe a uma certa masculinidade do 
gosto; é que o homem, com vossa licença, é de facto o animal estéril.”Friedrich 
Nietzsche 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
4 
 
 
 
1 - INTRODUÇÃO 
“Ser um homem feminino 
Não fere o meu lado masculino 
Se Deus é menina ou menino 
Sou masculino e feminino 
Olhei tudo e aprendi 
E um belo dia eu vi 
Que ser um homem feminino 
Não fere o meu lado masculino 
Se Deus é menina ou menino 
 
Sou masculino e feminino 
Olhei tudo e aprendi 
E um belo dia eu vi 
E vem de lá o meu sentimento de ser 
Meu coração mensageiro vem me dizer 
Salve, salve a alegria 
A pureza e a fantasia 
Vou assim todo o tempo 
Vivendo e aprendendo" 
(Baby Consuelo, Didi Gomes e Pepeu Gomes) 
Pensar a sexualidade humana a partir da leitura dessa canção possibilita, no 
entender, refletir sobre a dicotomia constantemente apresentada ao ser humano - ser 
5 
 
 
masculino ou ser feminino e que lhe exige uma opção muito antes mesmo de ele 
poder se perceber e sentir. 
Essa imposição, em muitos casos, impossibilita a vivência da alegria, da pureza e da 
fantasia que podem (ou poderiam?) caracterizar nossa aprendizagem do que significa 
ser masculino/ser feminino impedindo, consequentemente, a vivência da 
complementaridade que tais características ofereceriam, principalmente, ao 
considerarmos a possibilidade de ser um homem feminino sem com isso ferir o lado 
masculino. 
A serviço de que dicotomias dessa natureza têm se perpetuado entre os indivíduos? 
Será esta uma proposta de debate pertinente? Será adequado refletir sobre as 
questões latentes no contexto cultural e, nessa direção, nos depararmos com 
dificuldades tanto na manutenção de comportamentos esperados para homens e 
mulheres como com as dificuldades decorrentes das tentativas de mudanças de 
postura destes? Minha proposta, nesse momento, é de refletir sobre a 
subjetividade existente na sexualidade humana. 
2 - ANTROPOLOGIA E SEXUALIDADE 
2.1-Consensos e Conflitos Teóricos em Perspectiva Histórica 
 
A maior parte dos antropólogos sociais e culturais concordam com a dúvida de que a 
sexualidade possa, em si mesma, constituir um objeto de estudo . “Em si mesma” 
significa isolada de instituições e práticas sobre as quais a sexualidade “fala” e que 
são “faladas” através do idioma da sexualidade. Assim, e para lá do postulado central 
da antropologia que leva à abordagem dos discursos e práticas humanas em 
sociedade como formas de significação cultural, por isso, variável e relativa consoante 
as formações sociais, a disciplina tem abordado o que se pode denominar como 
“sexualidade” no decurso de investigações sobre instituições e práticas outras, a 
saber, o parentesco, a família e, mais tarde, o género. 
Mais recentemente, a sexualidade conquistou alguma autonomia como campo de 
inquérito devido à definição do sexual como fato social atravessado por tensões e 
6 
 
 
conflitos identitários, sobretudo nas sociedades chamadas modernas e ocidentais 
(ainda que a globalização permita o atenuar dessas supostas fronteiras tipológicas). 
Quer as identidades de gênero, quer as identidades com base na orientação sexual 
têm vindo a ser abordadas pela antropologia contemporânea como arenas de 
identidade e de poder, correlacionadas e correlacionáveis com outros níveis de 
identificação, diferenciação e desigualdade, como a “raça”/etnicidade, a classe social, 
a idade ou o estatuto. Esta tendência vai no sentido de realçar a permeabilidade 
destes campos uns pelos outros. Assim, é comum fazer análises das metáforas e 
analogias sexuais nos discursos do nacionalismo ou do colonialismo, por exemplo. 
Seja como for, as abordagens contemporâneas da sexualidade em antropologia 
mantêm os pressupostos da disciplina relativos à análise sistémica dos símbolos 
culturais duma sociedade ou grupo social, do relativismo cultural (a não confundir, 
todavia, com relativismo moral) e da comparação intercultural. 
Por fim, se o campo da sexualidade tem vindo a autonomizar-se na nossa sociedade 
e, por isso, nas ciências sociais, a sua abordagem em antropologia é 
necessariamente também um esforço de leitura, desconstrução e crítica das 
abordagens passadas do tema na disciplina. 
Dessa forma, tem-se uma abordagem das perspectivas evolucionistas (curiosa e 
preocupantemente sobreviventes no senso comum de hoje, sobretudo por via de 
vários avatares do darwinismo social); segue-se uma abordagem da viragem 
culturalista (também ela presente no senso comum de hoje, desta feita o de cariz 
“liberal”). O construcionismo social decorrente da influência do pensamento feminista 
na antropologia e os campos correlatos de women’sstudies e genderstudies, 
constituirá a parte seguinte; segue-se-lhe uma aproximação às influências pós-
estruturalistas, através do exemplo da teoria Queer, que reforça a necessidade de os 
estudos antropológicos abordarem simultaneamente as dimensões das identidades, 
das comunidades e da política. 
 2.2 - Primitivos Sexuais 
 
Esta viagem começa com o evolucionismo nos países centrais industrializados e 
colonizadores da Europa. É uma história protagonizada por aquilo que hoje se 
7 
 
 
designa– jocosa mas quiçá acertadamente - por homens brancos, burgueses e 
heterossexuais, fascinados com os Outros subalternos em casa e no ultramar, crentes 
na possibilidade de evolução do “infantil”, do “primitivo”, do “feminino”, e preocupados 
com os perigos do “instinto” (essa “natureza” contra a qual a sociedade se edifica) e 
da “perversão” (esse desvio à norma cultural dominante). São homens preocupados 
com as raças e a miscigenação, o sexo e a sexualidade, a higiene e o controlo das 
estruturas sociais no processo de revolução industrial e urbanização e de construção 
de estados-nação e de impérios coloniais. 
É também a época do apogeu da crença na Ciência, da divisão clara entre o natural 
e o social, bem como dos choques provocados pela teoria da evolução. 
É uma época de um certo arranjo da “coisa familiar”, através da promoção da família 
nuclear burguesa - e não de outros. É uma época de atenção à “caixa negra” da 
sexualidade, que o primitivo e o perverso poderiam, assim se julgava - elucidar. É 
aqui que nasce também a divisão entre sociologia e antropologia - a primeira 
vocacionada para o estudo dos distúrbios causados nas sociedades industriais pelo 
desenvolvimento capitalista acelerado, a segunda vocacionada para o estudo dos 
distúrbios causados pela descoberta dos Outros e pela colonização. Começa a 
aventura antropológica propriamente dita, isto é, moderna. 
Toma-se como exemplo a mulher da época vitoriana. Ela é ao mesmo tempo posta 
num pedestal e mais reprimida que no século XVIII, devido ao afastamento da 
economia para fora do lar. A casa passa a ser vista como refúgio do mundo da 
competição masculina. Numa ambivalência cultural entre a imagem de “anjo” e de 
“prostituta”, a liberdade pessoal e sexual das mulheres das classes média e alta 
estava sujeita a um forte controlo social. Mas com o aumento do nível de vida e da 
idade do casamento, aumenta o número de mulheres solteiras e as dúvidas em 
relação à procriação. 
 
 
 
 
8 
 
 
 
 
 
 
 
Os anos da década de 1850 viram aparecer os movimentos pelos direitos das 
mulheres e a lei do divórcio em vários países. Ao mesmo tempo dá-se o debate sobre 
o casamento “matriarcal” nos incipientes meios antropológicos. O modelo ideal de 
casamento seria o vitoriano, caracterizado por McLennan em PrimitiveMarriage(1865) 
como apropriação das mulheres por homens específicos e pelo conceito de fidelidade 
conjugal. 
O casamento poliândrico primitivo surgia assim como metáfora da prostituição do 
século XIX e da depravação moral das mulheres. A evolução da promiscuidade e da 
poliandria era vista como sendo a evolução das “ideias” de parentesco, esposa e 
propriedade. Autores como McLennan, Lubbock, Tylor e Spencer não concordaram 
entre si nos pormenores das suas ideias sobre “a posição das mulheres”, mas todos 
eles demonstravam uma tendência para ver o casamento em termos de controle da 
sexualidade humana, tomando por adquirida uma qualquer condição primordial de 
promiscuidade, seguida de formas matrilineares e, por fim, desembocando na 
monogamia vitoriana. 
 
 
 
 
 
 
 
 
9 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Não se tratava de um campo de consensos absolutos. Muito do que estes autores 
diziam podia ser interpretado como contrário ao status quo, como a ideia de “from 
status tocontract” de Maine podia ser vista com anti patriarcal. A prova está no fato 
de muitas feministas terem usado as obras dos evolucionistas para defenderem as 
suas ideias. Mas a perspectiva essencialista era comum a ambos: posto de lado o 
patriarcado divinamente instituído, a civilização só se atingia com o controle dos 
instintos. E o instinto rei era o sexo. Os instintos que teriam no passado sido 
necessários para a conservação da raça, dariam lugar a hábitos e a instituições, 
resultando na sanção social contra o homem que abandonasse a mulher e os filhos. 
O matrimónio acabaria, assim, por surgir fundamentado na família e não o contrário. 
A narrativa do evolucionismo não é linear ou única. Se já o iluminismo dera conta da 
tensa ambiguidade entre Bom e Mau selvagem, o período do evolucionismo dá conta 
da ambiguidade entre legitimação extrasocial da ordem estabelecida e contestação 
da mesma, quer no campo do género e da sexualidade, quer no campo das relações 
de classe. O que une argumentos e posturas ideológicas e apropriações diversas é, 
no fundo, a crença na racionalidade científica e na capacidade de explicar origens e 
mecânicas de instituições e corpos. É o que acontece com a biologia, com a 
sexologia, mas também com novos determinismos históricos. 
O século XIX teve dois momentos fulcrais para o surgimento de um pensamento do 
e sobre o sexual. O primeiro foi o impacte do Darwinismo, com a ideia de que a 
seleção sexual (a luta pelos parceiros) agia independentemente da seleção natural (a 
luta pela existência), de modo que a sobrevivência dependeria da sexual. 
10 
 
 
Assim se instituiu a biologia como o caminho privilegiado para desvendar os mistérios 
da natureza. O segundo momento foi a publicação de Psychopathia Sexualis de 
Krafft-Ebing, onde surgia o discurso do pervertido. 
Um dos principais papéis da sexologia primordial terá sido, segundo Weeks (1987) 
traduzir em termos teóricos aquilo que se entendia como problemas sociais 
emergentes e concretos: como definir a infância? Como definir a sexualidade 
feminina? Como lidar com as mudanças nas relações entre os géneros? Como 
perseguir legalmente a “anormalidade”? Biologia e medicina são chamadas para a 
exploração meticulosa dos corpos e da espécie, passando rapidamente da descrição 
para a prescrição. 
Na antropologia, a atenção vira-se para as origens das instituições. Em 1870 Morgan 
publicava Systems of Consanguinity... e, sete anos depois, Ancient Society; visita 
Darwin em 1871 e corresponde-se com Spencer, Bachofen e Maine. Para ele o 
desenvolvimento do conceito de propriedade na mente humana estaria ligado à 
implantação da família monogâmica. Uma cópia da obra chegou às mãos de Marx 
que, antes de morrer, encarregou Engels de terminar o manuscrito que iniciara com 
base em notas de Ancient Society. Ao fazer notar que quando se deu a suposta 
mudança da linha feminina para a masculina, tal teria sido prejudicial para a posição 
social da mulher, Morgan oferecia a Engels argumentos para explicar como o 
desmoronamento do direito materno constituíra a grande derrota histórica do sexo 
feminino: “A família moderna contém, em germe, não apenas a escravidão como 
também a servidão, pois, desde o começo, está relacionada com os serviços na 
agricultura. Encerra em miniatura todos os antagonismos que se desenvolvem, mais 
adiante, na sociedade e no seu Estado.” (1976 (1884):77). 
Para Engels, o triunfo definitivo da família monogâmica baseava-se no predomínio do 
homem e tinha como finalidade expressa procriar filhos de indiscutível paternidade, 
permitindo a regulação dos processos de herança de bens do pai. A monogamia não 
significaria, pois, a reconciliação entre homem e mulher, argumento que reforça com 
um eloquente trecho de A Ideologia Alemã (1845) em que Marx diz que “a primeira 
divisão do trabalho é a que se faz entre o homem e a mulher para a procriação dos 
filhos.” Para Engels e Marx, o primeiro antagonismo de classes coincidiria com o 
antagonismo homem-mulher e a opressão do sexo feminino teria sido a primeira 
forma de opressão de classe. 
11 
 
 
Marx avança, no primeiro volume de O Capital, com a ideia de que a soma dos meios 
de subsistência necessários para a produção da força de trabalho tem de incluir os 
meios necessários para a substituição dos trabalhadores, isto é, as crianças (1979 
(1867):340)4 . A divisão do trabalho teria surgido, primeiramente, como natural, 
baseada no fundamento fisiológico. Mas na medida em que a maquinaria vai 
dispensando o poder muscular, o trabalho das mulheres e das crianças é o primeiroa ser procurado pelos capitalistas; e o valor da força de trabalho era determinado não 
só pelo tempo de trabalho necessário para manter o trabalhador adulto, mas também 
pelo tempo de trabalho necessário para manter a família; a população excedentária 
torna-se numa condição de existência do modo de produção capitalista, criando-se 
assim o célebre “exército de reserva industrial”. Este exército, durante os períodos de 
estagnação aligeira o peso do exército de trabalho ativo e durante os períodos de 
sobreprodução controla as suas pretensões. 
Se, após a revolução darwiniana, é na economia política de Marx que vamos 
encontrar a primeira crítica à natureza construída e mutável das instituições 
familiares, é com Freud que se vai dar o primeiro grande choque sobre a 
concretização nos indivíduos dos efeitos da estrutura social. A importância da 
psicanálise reside no facto de desafiar diretamente os conceitos convencionais de 
sexualidade e gênero, questionando a centralidade da reprodução sexual e a rígida 
distinção entre homens e mulheres. 
Com a psicanálise pode ver-se a sexualidade como algo mais do que instintos que 
agitam o corpo; é uma força construída no processo de entrada no domínio da cultura, 
da linguagem, do significado. Freud resumia assim os elementos chave do seu 
conceito de sexualidade: 
a) A vida sexual não começa só na puberdade, mas sim com manifestações 
logo a seguir ao nascimento; 
 b) é necessário distinguir entre os conceitos de “sexual” e “genital” (...); 
c) A vida sexual inclui a função de obtenção de prazer a partir de zonas do 
corpo, uma função que subsequentemente é posta ao serviço da reprodução. 
É frequente as duas funções não coincidirem completamente. 
12 
 
 
Período de conturbados debates disciplinares e políticos, o século XIX e os inícios do 
século XX podem ser resumidamente descritos como períodos de espanto por parte 
dos observadores autorizados (cientistas, homens, ocidentais) face a uma mescla de 
subalternidades políticas e “bizarrias” biomédicas: crianças, mulheres, homossexuais, 
perversos, primitivos. Este afã classificatório permitia, simultânea e ambiguamente, a 
prescrição da normalidade e a crítica da normalidade, como fica patente na 
comparação entre evolucionistas, marxistas e psicanalistas. Uma ambiguidade da 
qual ainda não nos libertámos completamente. Os primórdios da antropologia 
marcariam debates duradouros: a oposição natureza / cultura e entre explicações 
biológicas e explicações sociais; a forma como processos culturais e individuais se 
determinam ou ligam; e a questão do género e da sexualidade como, 
simultaneamente, “totem” e “tabu”: a origem por excelência da humanidade e das 
suas instituições, mas também a área da mais extrema regulação. 
2.3 - Alteridades Sexuais 
 
O “pai fundador”, B. Malinowski, da moderna antropologia social britânica, viria a 
reconhecer Totem e Tabu de Freud como demonstrativo da importância do sexo na 
sociedade. Embora nunca tivesse abandonado por completo a perspectiva evolutiva, 
ele viria a ser o principal proponente da ideia de que as culturas “primitivas” e a 
diferença cultural provam não o comportamento dos nossos antepassados, mas sim 
a variedade de desenvolvimentos sociais: o relativismo surge a par do privilegiar do 
cultural sobre o natural. A cultura torna-se assim numa série de diferenças 
incomensuráveis e cada sociedade impõe-se aos seus membros de modo total (na 
esteira da teoria sociológica de Durkheim). Mas com o relativismo de Malinowski 
coexiste um modelo das necessidades biofisiológicas humanas, cuja solução estaria 
visível nas instituições familiares. Malinowski tenta resolver a tensão epistemológica 
entre o sociologismo de Durkheim e a psicanálise Freudiana, mas viria a afastar-se 
da última sobretudo pelo carácter transcultural da teoria do complexo de Édipo. 
Malinowski procurava características gerais da natureza humana que pudessem 
assumir diferentes formas culturais. 
Em Sex andReppression, o antropólogo explica como o complexo de Édipo foi 
descoberto numa sociedade de filiação patrilinear e no seio de uma só classe. Ora, 
13 
 
 
em Trobriand, local do seu profuso trabalho de campo, a filiação é matrilinear, a 
estratificação social diferente da divisão de classes. Ao tipo europeu de família 
opunha-se uma família em que o homem não é considerado como progenitor dos 
filhos da esposa, dada a ignorância dos indígenas em matéria de fisiologia da 
concepção, sendo o irmão da mãe o homem a quem se respeita em termos de 
autoridade. Assim, a ambivalência de sentimentos do filho para com o pai só teria 
uma importância mínima, dando-se antes uma repartição desse sentimento por dois 
homens que cumprem funções inversas e complementares. Malinowski conclui que o 
complexo de Édipo não é um fenómeno universal. Mas o modelo Trobriand é uma 
transformação lógica do freudiano: o desejo reprimido de matar o pai e de casar com 
a mãe passa a ser a tentação de casar com a irmã e matar o tio materno (The Father 
in PrimitivePsychology, 1927:80-1 in Pannoff 1974:58). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Se o método comparativo leva Malinowski a pôr em causa universais de base 
biofisológica e psíquica, Margaret Mead procura na comparação a fonte para a 
transformação e pedagogia sociais no Ocidente - tornar o exótico familiar e o familiar 
exótico, como sói dizer-se. 
A antropologia culturalista americana teve origem numa rejeição explícita da teoria 
dos instintos e de explicações biológicas para fenômenos sociais, como reação à 
eugenia racial e racista. Em Comingof Age in Samoa , Margaret Mead procura a 
negative instance sobre as teorias da adolescência americana da sua época e, assim, 
14 
 
 
procura também definir o “sexual” (incluindo o que hoje entendemos por género) como 
social. 
A conclusão a que pretende chegar é a de que onde, por razões culturais, não haja 
noção de pecado e culpa, e onde os conflitos edipianos estejam minimizados, bem 
como se verifique um desenvolvimento da arte do sexo, os traumas da transição 
adolescente não se fazem sentir. Assim, a plasticidade humana permitiria que, 
através da mudança na educação, aquilo que foi socialmente formado possa ser 
socialmente modificado. Talvez o lado mais positivo da pesquisa de Mead tenha sido 
mostrar que o género no Ocidente não é nem natural nem o resultado cumulativo de 
uma evolução humana geral. Mead, aliás, partiu para o terreno com uma pergunta 
explícita: “A questão que eu me colocava ao partir para Samoa era: os problemas que 
sofre a nossa adolescência são intrínsecos à natureza da adolescência ou à nossa 
civilização? A adolescência em condições totalmente diferentes apresenta-se de 
modo igualmente diferente?” (Mead 1963 (1928):373). 
As variáveis que ela enumera definem um campo do comportamento sexual 
comparativo: educação sexual precoce ou tardia, experiência sexual igualmente 
precoce ou tardia, precocidade encorajada ou não, segregação dos sexos ou 
educação mista, divisão do trabalho entre os sexos ou atividades comuns. 
Em Sex andTemperament(1935) a antropóloga liga a questão da personalidade-base 
e do temperamento à atribuição sexuada das emoções. Entre os Arapesh nota que 
tanto homens como mulheres apresentam personalidades que ela chama maternais 
nos seus aspectos parentais e femininas nos seus aspectos sexuais. Diz não ter 
encontrado a ideia de que o sexo seja uma força impulsionadora forte, quer para os 
homens quer para as mulheres. Pelo contrário, entre os Mundugumor verificou que 
tanto homens como mulheres se desenvolviam como indivíduos duros, agressivos e 
“positivamente sexuados”, com um mínimo de aspectos maternais da personalidade. 
Entre os Tchambulijulgou encontrar uma inversão das atitudes sexuais da nossa 
cultura, com as mulheres dominando, “impessoais”, “gestoras”, e os homens como 
menos responsáveis e mais dependentes emocionalmente (1935).Entretanto, para Mead o limite da diversidade é a fronteira anatómica entre os sexos, 
o que já se notava em Malinowski. Isto porque nenhum dos dois consegue sair das 
fronteiras da família biológica como unidade básica natural e social, na qual uma 
15 
 
 
divisão do trabalho entre homens e mulheres é necessária e inevitável (Weeks 1985: 
107). Isto não retira valor à principal conquista de Mead: para comprovar a 
plasticidade humana, ela demonstra que as emoções sexuadas são construções 
sociais. Fê-lo perante uma conjuntura, no Ocidente, de surgimento da adolescência 
e da absorção das mulheres no mercado de trabalho no período da segunda grande 
guerra. 
A distinção entre sexo e gênero era, a partir daqui, possível: 
 “É-nos permitido, a partir de agora, afirmar que os traços de carácter que 
qualificamos como masculinos ou femininos são (...) determinados pelo sexo 
de forma tão superficial como a roupa (...) resultado de um condicionamento 
social (...) Admitida a plasticidade da natureza humana, de onde provêm as 
diferenças que constatamos entre os tipos de temperamentos consignados 
pelas diversas sociedades, seja a todos os seus membros, seja 
respectivamente a cada sexo? (...) esta diversidade assenta sobre o quê? Já 
não e possível, à luz dos factos, considerar que traços como a passividade 
ou a agressividade sejam determinados pelo sexo do indivíduo (...) A nossa 
hipótese não é mais do que um prolongamento da que avança Ruth Benedict 
em Patterns of Culture (...) O mesmo se passa com os temperamentos 
“masculino” e “feminino” no plano social. Certos traços comuns aos homens 
e às mulheres são consignados a um sexo e recusados a outro» (s.d. (1949): 
312-317). 
A partir de Mead a antropologia estava pronta para o salto qualitativo do feminismo e 
do construcionismo social. 
3 - CONSTRUÇÕESSEXUAIS 
 
Segundo CaroleVance (1991) a teoria do construcionismo social desafiou os modelos 
antropológicos tradicionais, tendo dado origem a uma explosão de pesquisas sobre a 
sexualidade a partir de meados dos anos setenta. A distinção entre sexo e gênero é 
o ponto de partida fundamental. Baseada na distinção que a antropologia promoveu 
entre biologia e cultura, e elaborada a partir dos anos sessenta pela teoria crítica 
feminista, a separação conceptual entre sexo e gênero dá a entender que o segundo 
é a elaboração cultural do primeiro. A variação cultural (e histórica) dos papéis 
femininos e masculinos, bem como dos traços de personalidade-tipo tidos como 
16 
 
 
normais para cada sexo em cada cultura trazia o determinismo cultural para o campo 
da sexualidade. 
Em 1981, já amadurecido o movimento feminista em antropologia e genericamente 
aceite o campo de estudos sobre género, Ortner e Whitehead, abrem Sexual 
Meanings dizendo que: “os traços naturais do gênero, bem como os processos 
naturais do sexo e da reprodução, são apenas um pano de fundo sugestivo e ambíguo 
para a organização cultural do género e da sexualidade. O que o género é, o que os 
homens e mulheres são, e o tipo de relações que acontecem entre eles – todas estas 
noções não são simples reflexos ou elaborações de “dados” biológicos, mas sim (em 
grande medida) produtos de processos culturais e sociais.” 
O gênero tem que ser visto no cruzamento de várias instituições e relações sociais 
permeadas por esquemas de identidade e diferença, sendo a diferenciação um 
processo intimamente ligado ao poder. 
Marilyn Strathern, por exemplo, entende 
por género as categorizações de pessoas, artefactos, eventos, sequências 
etc., que se baseiam numa imagética sexual, nos modos como o carácter 
distintivo das características macho e fêmea concretizam as ideias das 
pessoas acerca da natureza das relações sociais. (1988:ix, tradução livre). 
 
O androcentrismo de que antropologia foi acusada pelas mulheres antropólogas e 
pelas e pelos feministas impediu que se ouvisse a voz das mulheres nas etnografias, 
e impediu também a diversidade de vozes masculinas ou qualquer visão dissidente 
da homologia masculino / público / político, em síntese, da masculinidade hegemónica 
como modelo central excludente de mulheres, homossexuais e de homens 
heterossexuais com traços de identidade não centrais (negros, pobres, etc.). 
O gênero (e a sexualidade) é uma área de estudos e do real que introduz significativa 
novidade epistemológica. Ao contrário da classe ou das instituições sociais como a 
família, o gênero cruza-as, por assim dizer, transversalmente. Não só é um corte nas 
metáforas verticais de estrutura, hierarquia ou níveis, como constitui também um tema 
de recente e difícil introdução nas ciências sociais, porque de difícil introdução na 
própria vida social. Isto torna-se evidente quando se pensa que em relação à “raça” 
quase ninguém pensa hoje que é na cor da pele (mas sim no racismo) que reside em 
17 
 
 
última instância a causalidade das desigualdades nas relações “raciais”; mas no 
respeitante ao gênero, é culturalmente difícil não cair na tentação de ver no sexo e no 
corpo a raiz do gênero. Por isso o gênero é uma das últimas fronteiras da reflexividade 
crítica das ciências sociais. Constituinte de identidades sociais e pessoais, o gênero 
não cria, porém, grupos sociais, mas sim categorias. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O livro colectivo editado por RaynaReiter em 1975 foi de certo modo a obra fundadora 
do feminismo enquanto teoria crítica na antropologia. O artigo da coletânea que maior 
influência viria a ter na vaga feminista seria o de Gayle Rubin que se propunha 
perceber o sistema de relações de opressão da mulher sobrepondo as grelhas 
analíticas de Freud e Lévi-Strauss (sobretudo a partir do contributo de Lacan) de 
maneira análoga à que Marx fizera com os economistas políticos clássicos. 
Para Rubin, explicar a utilidade da mulher para o capitalismo é diferente de dizer que 
esta utilidade explica a gênese da opressão da mulher. Ou seja, há um elemento 
histórico e moral, como o próprio Marx dissera, na determinação do valor da força de 
trabalho que é diferente do caso das outras mercadorias. Baseando-se então no fato 
de Engels ter distinguido entre relações de produção e relações de sexualidade, ela 
passa a explicar o que entende por “sistema de sexo/gênero” (reconhecendo que 
outros nomes possíveis seriam “modo de reprodução” ou “patriarcado”): “Um sistema 
de sexo/gênero não é apenas o momento reprodutivo de um “modo de produção”. 
18 
 
 
A formação da identidade de gênero é um exemplo de produção no reino do sistema 
sexual. E um sistema de sexo/gênero envolve mais do que as “relações de produção” 
(a reprodução no seu sentido biológico). 
É assim que se deve procurar na área do parentesco o locus para a reprodução do 
sistema de sexo/gênero, pois os sistemas de parentesco podem ser muitas coisas, 
mas aquilo que reproduzem de facto e de que são feitos são, antes do mais, formas 
concretas de sexualidade organizada. 
Para Rubin, a divisão do trabalho pelo sexo seria na esteira da teoria estruturalista do 
tabu do incesto, um tabu contra a semelhança entre homens e mulheres. Este tabu, 
exacerbando as diferenças biológicas entre os sexos, criaria o gênero. Este tabu é o 
também em relação a tudo o que não seja o emparelhamento de homem e mulher: 
“Em termos gerais, a organização social do sexo assenta no gênero, na 
heterossexualidade obrigatória e no constrangimento da sexualidade feminina.” Os 
indivíduos seriam, então, “engendrados” para garantir o casamento. A 
heterossexualidade pode ser vista como um processo instituído, e o tabu do incesto 
pressupõe um tabu anterior sobre a homossexualidade. 
Seguindo o projeto de uma articulação entre Freud e Levi-Strauss via Lacan, a 
dinâmica do sistema poderia ser resumida assim: “Os sistemas de parentesco 
requerem uma divisão dos sexos. A fase edipiana divide os sexos. Os sistemas de 
parentesco incluem conjuntos de regras que governama sexualidade. A crise 
edipiana é a assimilação dessas regras e tabus. A heterossexualidade obrigatória é 
o produto do parentesco. A fase edipiana constitui o desejo heterossexual. O 
parentesco assenta numa diferença radical entre os direitos de homens e mulheres. 
O complexo de Édipo confere direitos masculinos ao rapaz e força a rapariga a 
acomodar-se a menos direitos”. 
A teoria crítica feminista dá entrada na antropologia através da crítica da ausência 
das mulheres na etnografia. A questão assenta no poder: os informantes são homens 
porque mais próximos do poder público e político no sentido institucional. Após o 
lançamento, pelo feminismo, da ideia de que “o privado é político”, a antropologia 
registou uma explosão de obras escritas por e sobre mulheres e uma reavaliação das 
áreas do parentesco e família, pessoa e emoções, corpo, gênero e sexualidade. 
19 
 
 
Contudo, à exceção de Rubin, a maior parte dos estudos feministas partilhava o 
pressuposto da heterossexualidade natural. E se se atacava o patriarcado, se se 
procurava encontrar a sua origem e mecanismos de reprodução, sobretudo 
explicitando os mecanismos de opressão da mulher e a quem serviam, esqueceu-se 
também a análise específica da masculinidade. 
No volume de Ortner e Whitehead, dedicado a uma análise mais cultural do que social 
dos sentidos de gênero e sexualidade enquanto símbolos, encontramos explicitadas, 
na maior parte dos casos etnográficos, oposições binárias metafóricas como 
Natureza/Cultura ou auto-interesse/bem social, para definir a “linguagem” do género. 
Em quase todos os casos se verifica que: 
 os homens surgem definidos por categorias de status ou papel social; 
 ao passo que as mulheres são definidas por e em relação aos homens e/ou 
parentes; 
 os mesmos eixos que separam as mulheres dos homens atravessam as 
categorias de género no seu interior 
 em todos se dá a separação conceptual entre um mundo dos homens e um 
mundo das relações homens-mulheres. 
Yanagisako (1988) afirma que a separação dos fatos biológicos do sexo dos fatos 
culturais do gênero abriu caminho para o tipo de projeto delineado por Ortner e 
Whitehead: a interpretação do género como um sistema de símbolos e significados 
influenciadores e influenciados de e por práticas e experiências culturais. 
O gênero é visto como a elaboração de uma diferença biológica e levou às dicotomias 
público/doméstico (Rosaldo 1974), natureza/cultura (Ortner 1974), 
produção/reprodução (Harris e Young 1981). Para estes autores, a cópula 
heterossexual, para eles natural, cria parentesco e gênero junto com bebês. Mas 
Yanagisako, pegando também no exemplo de como quando analisamos a “raça” já 
não achamos que a diferença física tenha de fato importância, avança com três 
questões problematizadoras: 
1) Como é que as pessoas são constituídas como sujeitos com género em 
sistemas culturais específicos?; 
20 
 
 
2) Como é que as categorias de gênero são definidas? (não podemos crer 
que resultem em toda a parte da mesma diferença); 
3) Quando o sexo é a base do gênero devemo-nos perguntar como é que 
este sistema auto-referencial é construído. 
As práticas através das quais um sistema de diferenças entre pessoas é feito de modo 
a parecer invariável. Agora que questionámos o nosso modelo de base natural do 
sexo, diz ela, e começamos a explorar as práticas culturais através das quais as 
pessoas são sexualmente constituídas como sujeitos sexuais, temos que 
salvaguardar o caráter gendereddessas práticas. Não podemos deixar de lado o sexo 
nas nossas análises de gênero porque ele é o espaço discursivo a partir do qual 
iniciamos estudos comparativos de gênero. 
Strathern (1988) também acha que algo falhou na estratégia dos anos setenta de 
desconstrução dos papéis sexuais, porque “macho” e “fêmea” permaneceram como 
pontos de referência fixos. No Ocidente, de fato a domesticidade assemelha-se à 
infantilidade e esta à ausência de autonomia, porque está fora da esfera do salário, 
do local de trabalho, da produção cultural. Mas noutros sítios pode não ser assim. 
As noções de “Pessoa” tornam-se fulcrais para Strathern, que diz que o sexo demarca 
diferentes tipos de agência, de ação social subjetivada. Por isso critica agora a ideia 
de “construção social”. 
Os estudos de gênero e sexualidade na antropologia contemporânea têm, pois, sido 
permeados quer pela teoria da prática (derivada de críticas ao marxismo ortodoxo), 
quer por modelos de relação entre estrutura e prática (por exemplo, as obras de P. 
Bourdieu ou A. Giddens), quer pela análise contextual do self, da ação pessoal e da 
intersubjectividade. 
Para Connell,que sintetiza estas tendências, a divisão do trabalho, a estrutura do 
poder e a estrutura da cathexis (sentimentos e emoções) seriam os principais 
elementos de qualquer Ordem do Género ou Regime do Género analisável por um 
cientista social. 
A banalizada expressão “construção social” deve ser usada com cuidado. Na posição 
construcionista, tal como nas teorias da socialização, as categorias de gênero 
parecem pressupor uma dicotomia de gênero incontornável, a qual só poderá, 
21 
 
 
logicamente, assentar sobre uma diferença biológica de tipo essencialista. Ora, a 
diferença biológica é ela mesma histórica e culturalmente relativa, como demonstrado 
pelos estudos sobre ciência (Laqueur 1990). 
O construcionismo corre o risco de nos deixar com as categorias dicotômicas de 
homens e mulheres; parte do princípio de que existem indivíduos unitários mas por 
(con)formar através dos papéis de gênero e da socialização; recusando o sexo, 
afasta-se de uma análise da incorporação e da constituição do corpo (não abordando 
como o sexo é construído); ao localizar o gênero na pessoa unitária, reproduz ideias 
ocidentais sobre o indivíduo e a lógica mercantil; e por fim as relações entre homens 
e mulheres são vistas em termos de entidades polarizadas e fixas (ver Cornwall e 
Lindisfarne 1994) . 
4 - DESCONSTRUÇÕES SEXUAIS 
 
Nas sociedades cosmopolitas do Ocidente, sobretudo no mundo anglo-saxónico, o 
século XXI começou marcado pela ideia “queer”, num propósito explícito de recusar 
o alinhamento segundo categorias específicas de identidade. Esta posição é desde 
logo colocada como antagónica de categorias mais estáveis e reconhecíveis, como 
‘lésbica’ ou ‘gay’. 
Os estudos gay e lésbicos, uma área surgida na esteira dos women’sstudies seriam 
alvo de um processo de queering, processo esse que nos é apresentado como 
constituindo um violento debate, entre os que dizem que esse processo pretende 
acabar com os últimos traços de uma coerência de gênero opressiva, e os que 
criticam o queer como reacionário e mesmo não feminista. 
 
 
 
 
 
 
22 
 
 
 
 
 
Propondo uma definição, Jagose diz que 
“queer descreve os gestos ou modelos analíticos que dramatizam as 
incoerências nas relações supostamente estáveis entre sexo 
cromossomático, gênero e desejo sexual”(1996:3). 
 
No entanto, esta definição é indissociável de uma tomada de posição epistemológica: 
“A teoria queerdesenvolve-se a partir de um reordenamento gay e lésbico das 
representações pós-estruturalistas da identidade como constelação de posições 
múltiplas e instáveis” (1996:3). 
O problema está colocado como uma tensão: como é possível subscrever a 
maleabilidade identitária a partir de movimentos e teorias que tentaram validar a 
existência (e definição) de identidades minoritárias? Sobretudo, quando esse carácter 
minoritário (relacionado com a marginalização, a falta de poder, etc.) parece 
necessitar quer do paradigma “étnico”, quer de um certo grau de “essencialismo 
estratégico”? De fato, os debates sobre o que constitui a homossexualidade (à 
semelhança daqueles sobre o gênero) podem ser vistos em termos de uma 
negociação entre posições essencialistas e posições construcionistas. 
Enquanto as primeiras encaram a identidadecomo natural, fixa e inata, as segundas 
entendem-na como fluida e como efeito do condicionamento social e dos modelos 
culturais disponíveis. A posição da autora, é que a identidade não é uma categoria 
empírica demonstrável, mas sim o produto de processos de identificação em 
ambiente de relações de poder desigual. 
A posição construcionista, subscrita pela maior parte dos estudos gay e lésbicos tem, 
segundo a autora a sua raiz no trabalho de Foucault. Este argumentava que a 
homossexualidade era necessariamente uma formação moderna porque, embora 
anteriormente existissem atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, não haveria 
uma categoria de identificação correspondente. A noção do homossexual como um 
tipo identificável de pessoa emerge na segunda metade do século XIX, definido 
23 
 
 
fundamentalmente em termos daqueles mesmos atos sexuais. Passava-se assim do 
sodomita como aberração temporária para o homossexual como uma espécie. o 
epítome do próprio gênero. 
O pensamento “queer” tem uma relação estreita com o pós-estruturalismo, ao propor 
a substituição de uma política da identidade por uma política da diferença; a retórica 
da diferença substituiu o ênfase mais assimilacionista e liberal na similaridade com 
outros grupos. No descentramento final do sujeito cartesiano, a identidade foi 
reconceptualizada como mito ou fantasia cultural. 
A tese de Althusser de que não pré-existimos como sujeitos mas somos constituídos 
enquanto tais pela ideologia, bem como as ideias de Foucault seriam desenvolvidas, 
na área do pensamento social sobre a sexualidade, por Judith Butler. Ela procura 
sofisticar o argumento sobre as operações do poder e da resistência de modo a 
demonstrar os modos como as identidades marginalizadas são cúmplices dos 
sistemas identificatórios que procuram contrariar. 
Butler argumenta que o feminismo trabalha contra os seus propósitos explícitos 
quando toma as “mulheres” como categoria âncora, pois o termo “mulher” não 
significa uma unidade natural, mas uma ficção regulatória. E em vez de naturalizar o 
desejo pelo mesmo sexo, a estratégia usual dos movimentos gay, Butler contesta a 
verdade do gênero em si, argumentando que qualquer compromisso com a identidade 
de gênero funciona em última instância contra a legitimação dos sujeitos 
homossexuais. 
O gênero é, para Butler, uma ficção cultural, o efeito performativo de atos reiterativos. 
A razão porque não há identidade de gênero por detrás das expressões do gênero é 
que a identidade é performativamente constituída pelas próprias expressões que são 
vistas como sendo o seu resultado. Butler advoga a contestação dessa naturalização 
através da repetição deslocada da sua performatividade, chamando assim atenção 
para os processos que consolidam as identidades sexuais. Uma das estratégias 
recomendadas é a repetição paródica das normas de gênero. Foca, pois, no drag .O 
gênero é, então, performativo, não porque seja algo que o sujeito assume 
deliberadamente, mas porque, através da reiteração, consolida o sujeito. Não se trata, 
contudo, do mesmo que simplesmente “vestir roupa”: o constrangimento é o pré-
requisito da performatividade. Embora esta ressalva tente ultrapassar o carácter 
24 
 
 
difuso da localização do poder a la Foucault, não indica, a meu ver, com a clareza 
suficiente, quais as instituições e lugares de poder onde o género e a sexualidade são 
formados e reproduzidos. 
Mais do que de transformações em instituições sociais como a família, a teoria 
queeradvém de transformações no activismo social permeado pela própria teoria 
social. É o caso de novas formas de fazer política sexual e, simultaneamente, de 
entender as identidades (ou a fragilidade destas): exemplo disso será o discurso 
sobre o HIV/Sida, que questionou o estatuto do sujeito no discurso biomédico; 
enfatizou as práticas sexuais e não as identidades; promoveu uma política de 
coligação que repensou a identidade em termos de afinidade e não de essência; e 
entendeu o discurso como uma realidade não separada da prática ou de segunda 
ordem (Jagose 1996). 
Se é comum pensar que Queerfunciona sobretudo como modismo para distinguir 
gays de “velho estilo” dos de “novo estilo”, é certo que o termo pode ser usado para 
descrever uma população aberta, cujas características partilhadas não são a 
identidade mas um posicionamento anti-normativo em relação à sexualidade. Como 
no início do liberacionismo gay, queer confunde as categorias que autorizam a 
normatividade sexual; mas difere de “gay” porque evita a ilusão de que o seu projeto 
seja inventar ou desvelar uma qualquer sexualidade livre, natural ou primordial. 
Ao confrontar já não apenas os essencialismos das estruturas sociais e do 
conhecimento, mas também o essencialismo estratégico dos movimentos identitários 
sexuais, a teoria queerlança como urgente a necessidade de repensar as noções de 
identidade, comunidade e política. Curiosamente, são estas as noções que 
constituem o próprio objeto da atenção antropológica contemporânea e que estavam 
implícitos no projeto da disciplina já nos idos do século XIX, quando o “selvagem 
sexual” (ou o sexual selvagem...) foi descoberto pela atenção Ocidental. 
Falar de sexualidade humana significa reconhecer algo que diz respeito a palavras, 
imagens, rituais, fantasias e corpo (Lehmiller, 2014; Weeks, 2005, 2011). É possível 
que, para um pensamento mais obediente face aos desígnios da ordem moderna 
ocidental, refletir sobre a construção histórica e discursiva das sexualidades 
masculinas, tal como propomos, possa parecer estranho ou até, no limite, 
desnecessário. Afinal, haverá mais do que uma sexualidade? A resposta é sim, ainda 
25 
 
 
que a Organização Mundial de Saúde, na sua definição de sexualidade, permeável 
ao discurso de alguns técnicos elevados ao “estatuto de gurus” (Vaz, 2003, p. 38), 
aparentemente, não o reconheça na sua plenitude. 
De fato, tal como Connell (1995) identifica diferentes masculinidades, associando a 
estas diferentes níveis de poder, assim Plummer (2005) reconhece múltiplas 
sexualidades masculinas, ainda que, sublinha, ensombradas e reguladas por um 
modelo hegemônico assente na normatividade heterossexual. 
Todavia, ainda que fundamental, pensar exclusivamente no modelo hegemônico da 
sexualidade não será suficiente, adverte Connell (1995), dada, por um lado, a 
diversidade como característica da existência humana, e não como excepção, e o 
fato dos seres humanos se constituírem agentes e atores com capacidades de 
resistência e transformação das hegemonias, por outro. 
Aliás, se acrescentarmos a necessidade, como tão oportunamente reivindica Naphy 
(2006), de analisarmos as histórias não ocidentais associadas às 
homossexualidades, ou de estudar as sexualidades (im)possíveis problematizadas 
por Moita (2003), ou as influências da religião sobre estas (Pacheco, 2003), ou ainda 
as leituras da antropologia a propósito das mesmas (Vale de Almeida, 2003), 
rapidamente compreendemos, por um lado, o quão complexa poderá ser a construção 
histórica e discursiva das sexualidades em geral e, por outro, que a história ocidental 
não corresponde, afinal, à História, até porque “importantes civilizações se 
desenvolveram e continuam a existir à margem dos padrões das culturas cristãs do 
Ocidente” (Naphy, 2006, p. 16). 
Foi precisamente com base no reconhecimento e legitimação da pluralidade sexual 
que emergiram os estudos das novas sexualidades, configuradas por leituras 
associadas ao pós-modernismo (Plummer, 2005). Estas novas teorias das 
sexualidades têm em conta uma organização social que enquadra as sexualidades 
de acordo com diferentes scripts, discursos e histórias, distanciando-se, deste modo, 
das clássicas visões puramente essencialistas (e.g., Foucault, 1994; Gagnon& 
Simon, 1973; Lehmiller, 2014; Plummer, 2005). 
Inscritas nas novas teorias das sexualidades, destacamos, a par deJohnson (2002), 
a importância que os estudos feministas, lésbicos, gay e queer representaram, e 
continuam a representar, para a quebra de um silêncio que, de acordo com as leituras 
26 
 
 
hegemônicas, nega a existência da diferença, apoiando a falsa ideia de que a cultura 
dominante seria a única cultura (Santos, 2009). O fato do pensamento hegemônico 
privilegiar a associação entre heteronormatividade e cidadania (Johnson, 2002) 
confere às sexualidades não heterossexuais uma espécie de cidadania de segunda 
classe (Steinberg, 2007), e ao não heterossexual o estatuto de “o outro” (Eribon, 
2008). Além disso, e à luz dos pressupostos pós-modernos, constitui ainda uma 
violação de direitos humanos fundamentais, pela negação do direito à diferença 
(Steinberg, 2007). 
 
 
 
 
 Tal pensamento promove, por essa razão, políticas de “passing” (Johnson, 2002, p. 
320), o que, por outras palavras, significa que o fato de se promover discursiva e 
oficialmente a heterossexualidade, como se de uma categoria estanque se tratasse, 
em detrimento das homossexualidades ou outras categorias identitárias não 
dominantes, constitui um forte incentivo com vista a que todas as pessoas se façam 
passar por heterossexuais. Por outro lado, tal pensamento hegemônico parece 
ignorar o fato de que as fronteiras das identidades sexuais, não sendo estanques, 
convidam a uma exploração, reconhecimento e aceitação da diversidade dentro de 
cada categoria, seja ela heterossexual, lésbica, bissexual, homossexual ou outra 
(Lev, 2006; McClellan, 2006; McKinney, 2006; Parks, 2006; Santos, 2009). 
Entretanto, e na impossibilidade de mapear aqui cabalmente a construção histórica e 
discursiva das sexualidades masculinas, até porque o próprio entendimento de 
história é complexo (Vaz, 2003), regressamos a uma ideia central para, a propósito 
do enunciado pelo modelo hegemônico da sexualidade, argumentar que a linguagem 
quotidiana é atravessada por relações de força, marcadas pelo poder e pela violência 
simbólica, isto é, um tipo de violência que se exerce, no essencial, pelas vias 
puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou, mais concretamente, 
do desconhecimento, do reconhecimento ou, no limite, do sentimento (Bourdieu, 
1999, 2007). 
27 
 
 
 
5 - O INSUPORTÁVEL PESO DA INJÚRIA E DA EXCLUSÃO SOCIAL 
 
Não me podiam bater à vista de todos, não eram assim tão estúpidos, 
poderiam ser expulsos. Contentavam-se com uma injúria, apenas paneleiro 
(ou outra coisa). Ninguém, à minha volta, intervinha, mas todos ouviam. 
Penso que todos ouviam porque me lembro dos sorrisos de satisfação 
visíveis no rosto de outros no pátio ou no corredor, assim como o prazer de 
ver e ouvir o matulão de cabelos ruivos e o pequeno de costas arqueadas a 
fazer justiça, a dizer o que todos pensavam em voz baixa e cochichavam 
quando eu passava, eu bem ouvia Olha, é o Bellegueule, a bicha. (Louis, 
2014, pp. 18-19). 
 
A injúria é um enunciado performativo, uma forma última de um continuumlinguístico 
que engloba a alusão, a insinuação, as palavras maldosas ou o boato, assim como 
qualquer brincadeira mais ou menos explícita protagonizada por indivíduos, grupos 
ou instituições (Eribon, 2008). Visa um indivíduo em particular, associando-o 
negativamente a um grupo ou categoria (e.g., homossexuais) e opera por 
generalização (Lehmiller, 2014). 
A injúria tem como função produzir determinados efeitos entre eles o de instituir ou 
perpetuar a fronteira entre os socialmente produzidos como os normais (Eribon, 2008) 
e os estigmatizados (Goffman, 1963; Hatzenbueleret al., 2014), fazendo-os 
interiorizar de forma indelével e inequívoca essa realidade. A sua força pode ser tal 
que instiga qualquer indivíduo do outro lado da linha, como qualquer cidadão 
socialmente percebido como não heterossexual, a fazer tudo para não ser 
considerado um dos membros do conjunto designado e constituído pela injúria 
(Eribon, 2008). Nesse sentido, a injúria associada a uma qualquer orientação sexual 
não normativa simboliza a ocorrência de múltiplas experiências de exclusão social, 
rejeição, ostracismo, discriminação e estigmatização (Kit, 2016; Riva &Eck, 2016), 
todas elas passíveis de configurar situações de bullyinghomofóbico (Rivers, 2011). 
Em termos globais, a vivência de tais experiências faz com que o indivíduo identifique 
subjetivamente um conjunto de pistas exteriores, verbais e não verbais, interpretando-
as frequentemente como sinais mais ou menos óbvios de uma desvalorização de si, 
28 
 
 
da sua condição ou situação, por parte de alguém em particular, um grupo ou mesmo 
a sociedade como um todo. 
De acordo com a evidência científica mais recente, a injúria e a exclusão social 
veiculadas em espaços como a escola e a família parecem exercer um importante 
papel no desenvolvimento e manutenção de diversas perturbações, tais como a 
ansiedade (e.g., Yap, Pilkington, Ryan &Jorm, 2014), a ansiedade social (e.g., Modin, 
Östberg&Alquist, 2011), o pânico e a agorafobia (e.g., McCabe, Miller, Laugesen, 
Antony & Young, 2010), a ansiedade generalizada (e.g., Scharfstein, Alfano, Beidel& 
Wong, 2011), a depressão (e.g., Platt, Kadosh&Lau, 2013), as perturbações de 
sintomas somáticos (e.g., Gini&Pozzoli, 2013), ou da alimentação e da ingestão (e.g., 
Hilbert, Hartmann, Czaja&Schoebi, 2013). 
Existe ainda evidência científica que associa a injúria e a exclusão social a uma maior 
prevalência de comportamentos autolesivos (Beckerman, 2017) e a um risco 
acrescido de suicídio em jovens entre os 15 e os 17 anos com orientação sexual não 
normativa (Santos & Neves, 2014). 
 
6 – NA ESCOLA 
 
Na escola tudo mudou. Vi-me rodeado de pessoas que não conhecia. A 
minha diferença, a minha maneira de me deslocar, as minhas posturas, 
punham em causa todos os valores que os tinham formado, a eles, que eram 
duros. Um dia, no pátio, o Maxime (...) tinhame pedido para correr, ali, diante 
dele e dos rapazes com quem estava. Tinha-lhes dito Vão ver como ele corre 
como uma bicha, jurando-lhes que iriam rir. Como tinha recusado, ele 
acrescentara que não tinha escolha, pagaria se não obedecesse Parto-te a 
cara se não o fizeres. Corri à frente deles, humilhado, com vontade de chorar 
(...). Eles riram. (...). Ninguém mostrava vontade de me falar: o estigma era 
contaminante; ser o amigo do paneleiro era mal visto. (Louis, 2014, pp. 34-
35). 
A escola é uma das instituições sociais mais importantes da sociedade. Como 
qualquer outra instituição social, a sua organização e funcionamento correspondem 
a um conjunto de valores e regras social e culturalmente estabelecidos. Frequentar a 
escola é, regra geral, uma experiência crucial na vida da maior parte dos jovens. Para 
29 
 
 
além das aprendizagens formais, realizadas e consolidadas durante vários anos, nela 
se criam e desenvolvem amizades, aprendem normas sociais e se preparam os 
futuros adultos, num ambiente que se espera seguro, construtivo, atento e respeitador 
da diversidade humana. Regra geral, nela se criam ambientes de suporte e se 
desenvolvem relações de confiança com os educadores formais, como os professores 
e todos os restantes agentes da comunidade educativa (Graybill&Proctor, 2016). 
Quando pensamos no domínio da sexualidade, a escola, particularmente a de nível 
secundário, continua a evidenciar-se como um espaço de aprendizagem de normas 
e regras associadas a uma ideologia dominante em termos de gênero e de 
sexualidade, contribuindo fortemente para a produção de identidades heterossexuais 
(Sauntson, 2017). 
Na verdade, não é invulgar diferentes jovens socialmente percebidos como 
homossexuais, lésbicas, bissexuais ou transgêneroexperienciarem situações de 
assédio e discriminação nas escolas que frequentam (Graybill&Proctor, 2016), fato 
que, nos últimos anos, tem motivado a comunidade científica a estudar o bullyingna 
escola (Russell, Day, Ioverno&Toomey,2016) e o bullyinghomofóbico, em particular 
(António, Pinto, Pereira &Farcas, 2012; Bucchianeri, Gower, McMorris&Eisenberg, 
2016; Burke et al., 2017; Espelage, 2016; González-Jiménez & Fischer, 2017; Rivers, 
2011). 
O bullying corresponde a uma forma específica de violência frequentemente 
perpetrada na escola e que, de acordo com Rivers (2011), se traduz no fato de um 
aluno ser reiteradamente alvo de ações negativas por parte de uma ou mais pessoas. 
De acordo com António et al. (2012, p. 18), tais “ações negativas podem ser verbais 
(e.g., chamar nomes), físicas (e.g., bater), sexuais (e.g., tocar em partes do corpo do 
outro, deixando-o desconfortável), ou sociais (e.g., excluir)”. Quando essas ações 
envolvem um ataque explícito a uma vítima configuram uma situação de bullying 
direto e quando as mesmas se traduzem na exclusão e isolamento da mesma 
estamos perante uma situação de bullyingindirecto (António et al., 2012). 
 
 
 
30 
 
 
 
 
 
 
 
O bullying homofóbico caracteriza-se de forma idêntica ao bullying geral, mas 
revestido de teor homofóbico, isto é, de qualquer forma de discriminação baseada 
numa fobia relativamente a qualquer orientação sexual não normativa (Weinberg, 
1972). Associado a esta última forma de bullying pode estar o caráter heteronormativo 
do ambiente escolar, onde, por um lado, impera a vigilância dos comportamentos e 
dos discursos e, por outro, os comportamentos discriminatórios e persecutórios contra 
pessoas não heterossexuais (Antonio et al, 2012). 
 
 
 
 
 
 
 
 
A investigação tem vindo a sugerir uma elevada prevalência do bullying homofóbico 
na escola (António et al., 2012; Beckerman, 2017; Poteat & Espelage, 2005; Santos 
& Neves, 2014). 
Frazão (2014) destaca, a este propósito, que a população de jovens não 
heterossexuais tem 1,5 a três vezes mais probabilidade de apresentar ideação suicida 
do que os jovens heterossexuais e entre 1,5 a sete vezes mais de ter efetuado uma 
tentativa de suicídio. Lowry et al. (2017) e Mereish et al. (2017) acrescentam que os 
31 
 
 
jovens não heterossexuais apresentam maiores fatores de risco, como falta de apoio 
familiar, escolar e abuso de substâncias. 
Face ao reconhecimento da gravidade desta forma de violência na escola, que 
envolve não apenas alunos assumidamente não heterossexuais, como também todos 
os socialmente percebidos enquanto tal, a UNESCO (2012) sugere um conjunto de 
ações com vista a interromper a violência de género e sexual nas escolas, das quais 
se destacam: 
 a adopção de uma abordagem holística da sexualidade, envolvendo 
estudantes e toda a comunidade educativa (e.g., assistentes operacionais, 
professores, pais e comunidade em geral); 
 envolver os alunos na prevenção da violência; 
 recurso a métodos e técnicas construtivos; 
 assumir uma postura ativa de combate ao bullying; 
 investir na resiliência dos alunos, ajudando-os a responder de forma 
construtiva aos desafios da vida; 
 assumir uma postura pública e firme contra a violência de gênero e sexual; 
 a criação de espaços de recepção e boas-vindas a todos os alunos; 
 a aprendizagem de técnicas construtivas de resolução de conflitos; 
 o reconhecimento de situações de violência e discriminação de alunos 
pertencentes a uma minoria sexual. 
7 - NA FAMÍLIA 
 
Muito rapidamente frustrei as esperanças e os sonhos do meu pai. (...). 
Quando comecei a exprimir-me, a adquirir linguagem, a minha voz (...) era 
mais aguda da que a dos outros rapazes. Cada vez que tomava a palavra, 
as minhas mãos agitavam-se freneticamente, em todas as direcções, 
torciam-se, agitavam-se no ar. Os meus pais chamavam a isso ares, diziam-
me Pára com os teus ares. Interrogavam-se Por que é que o Eddy se 
comporta como uma gaja? Ordenavam-me: Acalma-te, não podes parar com 
esses gestos de louca? Pensavam que eu tinha escolhido ser efeminado, 
como uma estética a que me tivesse obrigado para lhes desagradar. (...). À 
medida que crescia, sentia os olhares cada vez mais pesados que o meu pai 
me dirigia, o terror que o assaltava, a sua impotência perante o monstro que 
tinha criado e que, cada dia que passava, confirmava um pouco mais a sua 
32 
 
 
anomalia. A minha mãe parecia ultrapassada pela situação e muito cedo 
baixou os braços. (Louis, 2014, pp. 27-29). 
 
Aceite como a mais antiga das instituições sociais humanas, a família apresenta-se 
com um carácter universal, embora com variações de sociedade para sociedade e 
em função da geração, quanto às suas formas de organização e funcionamento 
(Browning & Pasley, 2015). 
De acordo com a teoria dos sistemas familiares, a família não representa apenas um 
conjunto de indivíduos, mas antes uma rede de relacionamentos entre todos 
(Guttman, 1991). Nesse sentido, os problemas surgem nas famílias quando estas, 
por uma ou várias razões, experienciam dificuldades em adaptar-se de forma flexível 
à mudança de um dos seus membros, quer se trate de uma mudança 
desenvolvimental ou de estatuto (Micucci, 2015). 
A família, regra geral, não está preparada para lidar com o fato de ter um/a filho/a não 
heterossexual. Também não é raro a família revelar falta de informação sobre 
sexualidade em geral, sendo que, quando se trata de orientações sexuais não 
normativas, a probabilidade de existir informação deturpada pelos estereótipos e 
preconceitos associados à população não heterossexual será seguramente mais 
elevada (Morrow, 2006). Por essa razão, muitos filhos optam por não partilhar com os 
seus pais a sua orientação sexual, mantendo-a em segredo, ainda que, 
frequentemente, com custos mais ou menos severos para o seu bem-estar físico e 
psicológico. 
Na verdade, a investigação tem revelado que as relações entre os adolescentes e os 
seus progenitores são frequentemente desafiadas (Ryan, Russell, Huebner, Díaz & 
Sanchez, 2010) quando estes revelam aos seus pais uma identidade sexual não 
normativa (D’Augelli, Grossman&Starks, 2005; Frazão, 2014; Micucci, 2015) ou 
quando os pais, por uma razão qualquer, suspeitam que os seus filhos possam não 
ser heterossexuais. 
De acordo com a AMPLOS (2010): 
quando os filhos partilham com os seus pais a sua orientação sexual não 
normativa, não é raro estes perguntarem-se a razão pela qual os seus filhos 
tiveram necessidade de lhes contar, dado o desconforto que passaram a 
33 
 
 
sentir gerado pela notícia. É também frequente o desenvolvimento de 
sentimentos de culpa por parte dos pais, como se a orientação sexual dos 
filhos fosse da sua responsabilidade. Mas são também comuns outras 
dúvidas e medos dos pais, como saber se o seu filho terá sido alguma vez 
discriminado, se irá ficar só ou constituir família, ou se a notícia deverá ser 
partilhada com os restantes familiares ou vizinhos. 
Alguns pais poderão sentir falta de ajuda psicológica (Micucci, 2015). A acontecer, 
esta deverá proporcionar um ambiente seguro, empático, não restringindo a atenção 
apenas à orientação sexual dos filhos, mas expandindo-a ao funcionamento da família 
como um sistema, respeitando sempre as suas idiossincrasias e valores, procedendo-
se a uma avaliação compreensiva, isenta de julgamentos precipitados, e focada no 
fornecimento de informação adequada e suporte colaborativamente avaliado como 
necessário. 
Nas últimas décadas, poucas coisas terão sofrido alterações tão profundas como as 
formas de falar sobre a sexualidade, bem como de viver a vida sexual. 
De acordo com os estudos dedicados às novas sexualidades humanas, estas são 
entendidas como interativas, relacionais, estruturais, incorporadas e organizadas num 
quadro de relações de poder (Lehmiller, 2014). Estão associadas a diferentes 
identidades, interações e instituições, cuja coexistência, em pleno Século XXI, está 
ainda sujeita a várias tensões e desequilíbrios. Continuam a verificar-se discursos e 
práticas de teor homofóbico e heterossexista, bem como umacontínua violência 
sexual (Plummer, 2005), face aos quais a sociedade e, em particular, a escola e a 
família não podem continuar indiferentes. Conforme sustenta Whitehead (2002), as 
sexualidades humanas são tão diversas, confusas e culturalmente informadas, que o 
seu entendimento está muito provavelmente para lá de qualquer compreensão una. 
Importa, por isso, conforme defendem González-Jiménez e Fischer (2017), reforçar a 
aposta na concepção e dinamização de programas de educação sexual que abordem 
e legitimem a diversidade sexual, desconstruindo a heteronormatividade (Abbott & 
Abbott, 2015) e que mobilizem toda a comunidade educativa, num esforço conjunto 
de afirmação de direitos, liberdades e garantias para todos, independentemente da 
orientação sexual. 
 
 
34 
 
 
BIBLIOGRAFIA 
 
Parte substancial dos materiais utilizados para este texto provêm do meu livro 
Senhores de Si: Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade, Lisboa: Fim de 
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