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1 SEXUALIDADE DE HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA 1 Sumário NOSSA HISTÓRIA ................................................................................................... 2 1 - INTRODUÇÃO..................................................................................................... 4 2 - ANTROPOLOGIA E SEXUALIDADE ................................................................... 5 2.1-Consensos e Conflitos Teóricos em Perspectiva Histórica ................................. 5 2.2 - Primitivos Sexuais ............................................................................................ 6 2.3 - Alteridades Sexuais ........................................................................................ 12 3 - CONSTRUÇÕESSEXUAIS................................................................................ 15 4 - DESCONSTRUÇÕES SEXUAIS ....................................................................... 21 5 - O INSUPORTÁVEL PESO DA INJÚRIA E DA EXCLUSÃO SOCIAL................. 27 6 – NA ESCOLA ..................................................................................................... 28 7 - NA FAMÍLIA ....................................................................................................... 31 BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 34 2 NOSSA HISTÓRIA A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós- Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior. A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação. A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica, excelência no atendimento e valor do serviço oferecido. 3 “Se uma mulher tem inclinações eruditas é porque, em geral, há algo de errado na sua sexualidade. A esterilidade predispõe a uma certa masculinidade do gosto; é que o homem, com vossa licença, é de facto o animal estéril.”Friedrich Nietzsche 4 1 - INTRODUÇÃO “Ser um homem feminino Não fere o meu lado masculino Se Deus é menina ou menino Sou masculino e feminino Olhei tudo e aprendi E um belo dia eu vi Que ser um homem feminino Não fere o meu lado masculino Se Deus é menina ou menino Sou masculino e feminino Olhei tudo e aprendi E um belo dia eu vi E vem de lá o meu sentimento de ser Meu coração mensageiro vem me dizer Salve, salve a alegria A pureza e a fantasia Vou assim todo o tempo Vivendo e aprendendo" (Baby Consuelo, Didi Gomes e Pepeu Gomes) Pensar a sexualidade humana a partir da leitura dessa canção possibilita, no entender, refletir sobre a dicotomia constantemente apresentada ao ser humano - ser 5 masculino ou ser feminino e que lhe exige uma opção muito antes mesmo de ele poder se perceber e sentir. Essa imposição, em muitos casos, impossibilita a vivência da alegria, da pureza e da fantasia que podem (ou poderiam?) caracterizar nossa aprendizagem do que significa ser masculino/ser feminino impedindo, consequentemente, a vivência da complementaridade que tais características ofereceriam, principalmente, ao considerarmos a possibilidade de ser um homem feminino sem com isso ferir o lado masculino. A serviço de que dicotomias dessa natureza têm se perpetuado entre os indivíduos? Será esta uma proposta de debate pertinente? Será adequado refletir sobre as questões latentes no contexto cultural e, nessa direção, nos depararmos com dificuldades tanto na manutenção de comportamentos esperados para homens e mulheres como com as dificuldades decorrentes das tentativas de mudanças de postura destes? Minha proposta, nesse momento, é de refletir sobre a subjetividade existente na sexualidade humana. 2 - ANTROPOLOGIA E SEXUALIDADE 2.1-Consensos e Conflitos Teóricos em Perspectiva Histórica A maior parte dos antropólogos sociais e culturais concordam com a dúvida de que a sexualidade possa, em si mesma, constituir um objeto de estudo . “Em si mesma” significa isolada de instituições e práticas sobre as quais a sexualidade “fala” e que são “faladas” através do idioma da sexualidade. Assim, e para lá do postulado central da antropologia que leva à abordagem dos discursos e práticas humanas em sociedade como formas de significação cultural, por isso, variável e relativa consoante as formações sociais, a disciplina tem abordado o que se pode denominar como “sexualidade” no decurso de investigações sobre instituições e práticas outras, a saber, o parentesco, a família e, mais tarde, o género. Mais recentemente, a sexualidade conquistou alguma autonomia como campo de inquérito devido à definição do sexual como fato social atravessado por tensões e 6 conflitos identitários, sobretudo nas sociedades chamadas modernas e ocidentais (ainda que a globalização permita o atenuar dessas supostas fronteiras tipológicas). Quer as identidades de gênero, quer as identidades com base na orientação sexual têm vindo a ser abordadas pela antropologia contemporânea como arenas de identidade e de poder, correlacionadas e correlacionáveis com outros níveis de identificação, diferenciação e desigualdade, como a “raça”/etnicidade, a classe social, a idade ou o estatuto. Esta tendência vai no sentido de realçar a permeabilidade destes campos uns pelos outros. Assim, é comum fazer análises das metáforas e analogias sexuais nos discursos do nacionalismo ou do colonialismo, por exemplo. Seja como for, as abordagens contemporâneas da sexualidade em antropologia mantêm os pressupostos da disciplina relativos à análise sistémica dos símbolos culturais duma sociedade ou grupo social, do relativismo cultural (a não confundir, todavia, com relativismo moral) e da comparação intercultural. Por fim, se o campo da sexualidade tem vindo a autonomizar-se na nossa sociedade e, por isso, nas ciências sociais, a sua abordagem em antropologia é necessariamente também um esforço de leitura, desconstrução e crítica das abordagens passadas do tema na disciplina. Dessa forma, tem-se uma abordagem das perspectivas evolucionistas (curiosa e preocupantemente sobreviventes no senso comum de hoje, sobretudo por via de vários avatares do darwinismo social); segue-se uma abordagem da viragem culturalista (também ela presente no senso comum de hoje, desta feita o de cariz “liberal”). O construcionismo social decorrente da influência do pensamento feminista na antropologia e os campos correlatos de women’sstudies e genderstudies, constituirá a parte seguinte; segue-se-lhe uma aproximação às influências pós- estruturalistas, através do exemplo da teoria Queer, que reforça a necessidade de os estudos antropológicos abordarem simultaneamente as dimensões das identidades, das comunidades e da política. 2.2 - Primitivos Sexuais Esta viagem começa com o evolucionismo nos países centrais industrializados e colonizadores da Europa. É uma história protagonizada por aquilo que hoje se 7 designa– jocosa mas quiçá acertadamente - por homens brancos, burgueses e heterossexuais, fascinados com os Outros subalternos em casa e no ultramar, crentes na possibilidade de evolução do “infantil”, do “primitivo”, do “feminino”, e preocupados com os perigos do “instinto” (essa “natureza” contra a qual a sociedade se edifica) e da “perversão” (esse desvio à norma cultural dominante). São homens preocupados com as raças e a miscigenação, o sexo e a sexualidade, a higiene e o controlo das estruturas sociais no processo de revolução industrial e urbanização e de construção de estados-nação e de impérios coloniais. É também a época do apogeu da crença na Ciência, da divisão clara entre o natural e o social, bem como dos choques provocados pela teoria da evolução. É uma época de um certo arranjo da “coisa familiar”, através da promoção da família nuclear burguesa - e não de outros. É uma época de atenção à “caixa negra” da sexualidade, que o primitivo e o perverso poderiam, assim se julgava - elucidar. É aqui que nasce também a divisão entre sociologia e antropologia - a primeira vocacionada para o estudo dos distúrbios causados nas sociedades industriais pelo desenvolvimento capitalista acelerado, a segunda vocacionada para o estudo dos distúrbios causados pela descoberta dos Outros e pela colonização. Começa a aventura antropológica propriamente dita, isto é, moderna. Toma-se como exemplo a mulher da época vitoriana. Ela é ao mesmo tempo posta num pedestal e mais reprimida que no século XVIII, devido ao afastamento da economia para fora do lar. A casa passa a ser vista como refúgio do mundo da competição masculina. Numa ambivalência cultural entre a imagem de “anjo” e de “prostituta”, a liberdade pessoal e sexual das mulheres das classes média e alta estava sujeita a um forte controlo social. Mas com o aumento do nível de vida e da idade do casamento, aumenta o número de mulheres solteiras e as dúvidas em relação à procriação. 8 Os anos da década de 1850 viram aparecer os movimentos pelos direitos das mulheres e a lei do divórcio em vários países. Ao mesmo tempo dá-se o debate sobre o casamento “matriarcal” nos incipientes meios antropológicos. O modelo ideal de casamento seria o vitoriano, caracterizado por McLennan em PrimitiveMarriage(1865) como apropriação das mulheres por homens específicos e pelo conceito de fidelidade conjugal. O casamento poliândrico primitivo surgia assim como metáfora da prostituição do século XIX e da depravação moral das mulheres. A evolução da promiscuidade e da poliandria era vista como sendo a evolução das “ideias” de parentesco, esposa e propriedade. Autores como McLennan, Lubbock, Tylor e Spencer não concordaram entre si nos pormenores das suas ideias sobre “a posição das mulheres”, mas todos eles demonstravam uma tendência para ver o casamento em termos de controle da sexualidade humana, tomando por adquirida uma qualquer condição primordial de promiscuidade, seguida de formas matrilineares e, por fim, desembocando na monogamia vitoriana. 9 Não se tratava de um campo de consensos absolutos. Muito do que estes autores diziam podia ser interpretado como contrário ao status quo, como a ideia de “from status tocontract” de Maine podia ser vista com anti patriarcal. A prova está no fato de muitas feministas terem usado as obras dos evolucionistas para defenderem as suas ideias. Mas a perspectiva essencialista era comum a ambos: posto de lado o patriarcado divinamente instituído, a civilização só se atingia com o controle dos instintos. E o instinto rei era o sexo. Os instintos que teriam no passado sido necessários para a conservação da raça, dariam lugar a hábitos e a instituições, resultando na sanção social contra o homem que abandonasse a mulher e os filhos. O matrimónio acabaria, assim, por surgir fundamentado na família e não o contrário. A narrativa do evolucionismo não é linear ou única. Se já o iluminismo dera conta da tensa ambiguidade entre Bom e Mau selvagem, o período do evolucionismo dá conta da ambiguidade entre legitimação extrasocial da ordem estabelecida e contestação da mesma, quer no campo do género e da sexualidade, quer no campo das relações de classe. O que une argumentos e posturas ideológicas e apropriações diversas é, no fundo, a crença na racionalidade científica e na capacidade de explicar origens e mecânicas de instituições e corpos. É o que acontece com a biologia, com a sexologia, mas também com novos determinismos históricos. O século XIX teve dois momentos fulcrais para o surgimento de um pensamento do e sobre o sexual. O primeiro foi o impacte do Darwinismo, com a ideia de que a seleção sexual (a luta pelos parceiros) agia independentemente da seleção natural (a luta pela existência), de modo que a sobrevivência dependeria da sexual. 10 Assim se instituiu a biologia como o caminho privilegiado para desvendar os mistérios da natureza. O segundo momento foi a publicação de Psychopathia Sexualis de Krafft-Ebing, onde surgia o discurso do pervertido. Um dos principais papéis da sexologia primordial terá sido, segundo Weeks (1987) traduzir em termos teóricos aquilo que se entendia como problemas sociais emergentes e concretos: como definir a infância? Como definir a sexualidade feminina? Como lidar com as mudanças nas relações entre os géneros? Como perseguir legalmente a “anormalidade”? Biologia e medicina são chamadas para a exploração meticulosa dos corpos e da espécie, passando rapidamente da descrição para a prescrição. Na antropologia, a atenção vira-se para as origens das instituições. Em 1870 Morgan publicava Systems of Consanguinity... e, sete anos depois, Ancient Society; visita Darwin em 1871 e corresponde-se com Spencer, Bachofen e Maine. Para ele o desenvolvimento do conceito de propriedade na mente humana estaria ligado à implantação da família monogâmica. Uma cópia da obra chegou às mãos de Marx que, antes de morrer, encarregou Engels de terminar o manuscrito que iniciara com base em notas de Ancient Society. Ao fazer notar que quando se deu a suposta mudança da linha feminina para a masculina, tal teria sido prejudicial para a posição social da mulher, Morgan oferecia a Engels argumentos para explicar como o desmoronamento do direito materno constituíra a grande derrota histórica do sexo feminino: “A família moderna contém, em germe, não apenas a escravidão como também a servidão, pois, desde o começo, está relacionada com os serviços na agricultura. Encerra em miniatura todos os antagonismos que se desenvolvem, mais adiante, na sociedade e no seu Estado.” (1976 (1884):77). Para Engels, o triunfo definitivo da família monogâmica baseava-se no predomínio do homem e tinha como finalidade expressa procriar filhos de indiscutível paternidade, permitindo a regulação dos processos de herança de bens do pai. A monogamia não significaria, pois, a reconciliação entre homem e mulher, argumento que reforça com um eloquente trecho de A Ideologia Alemã (1845) em que Marx diz que “a primeira divisão do trabalho é a que se faz entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos.” Para Engels e Marx, o primeiro antagonismo de classes coincidiria com o antagonismo homem-mulher e a opressão do sexo feminino teria sido a primeira forma de opressão de classe. 11 Marx avança, no primeiro volume de O Capital, com a ideia de que a soma dos meios de subsistência necessários para a produção da força de trabalho tem de incluir os meios necessários para a substituição dos trabalhadores, isto é, as crianças (1979 (1867):340)4 . A divisão do trabalho teria surgido, primeiramente, como natural, baseada no fundamento fisiológico. Mas na medida em que a maquinaria vai dispensando o poder muscular, o trabalho das mulheres e das crianças é o primeiroa ser procurado pelos capitalistas; e o valor da força de trabalho era determinado não só pelo tempo de trabalho necessário para manter o trabalhador adulto, mas também pelo tempo de trabalho necessário para manter a família; a população excedentária torna-se numa condição de existência do modo de produção capitalista, criando-se assim o célebre “exército de reserva industrial”. Este exército, durante os períodos de estagnação aligeira o peso do exército de trabalho ativo e durante os períodos de sobreprodução controla as suas pretensões. Se, após a revolução darwiniana, é na economia política de Marx que vamos encontrar a primeira crítica à natureza construída e mutável das instituições familiares, é com Freud que se vai dar o primeiro grande choque sobre a concretização nos indivíduos dos efeitos da estrutura social. A importância da psicanálise reside no facto de desafiar diretamente os conceitos convencionais de sexualidade e gênero, questionando a centralidade da reprodução sexual e a rígida distinção entre homens e mulheres. Com a psicanálise pode ver-se a sexualidade como algo mais do que instintos que agitam o corpo; é uma força construída no processo de entrada no domínio da cultura, da linguagem, do significado. Freud resumia assim os elementos chave do seu conceito de sexualidade: a) A vida sexual não começa só na puberdade, mas sim com manifestações logo a seguir ao nascimento; b) é necessário distinguir entre os conceitos de “sexual” e “genital” (...); c) A vida sexual inclui a função de obtenção de prazer a partir de zonas do corpo, uma função que subsequentemente é posta ao serviço da reprodução. É frequente as duas funções não coincidirem completamente. 12 Período de conturbados debates disciplinares e políticos, o século XIX e os inícios do século XX podem ser resumidamente descritos como períodos de espanto por parte dos observadores autorizados (cientistas, homens, ocidentais) face a uma mescla de subalternidades políticas e “bizarrias” biomédicas: crianças, mulheres, homossexuais, perversos, primitivos. Este afã classificatório permitia, simultânea e ambiguamente, a prescrição da normalidade e a crítica da normalidade, como fica patente na comparação entre evolucionistas, marxistas e psicanalistas. Uma ambiguidade da qual ainda não nos libertámos completamente. Os primórdios da antropologia marcariam debates duradouros: a oposição natureza / cultura e entre explicações biológicas e explicações sociais; a forma como processos culturais e individuais se determinam ou ligam; e a questão do género e da sexualidade como, simultaneamente, “totem” e “tabu”: a origem por excelência da humanidade e das suas instituições, mas também a área da mais extrema regulação. 2.3 - Alteridades Sexuais O “pai fundador”, B. Malinowski, da moderna antropologia social britânica, viria a reconhecer Totem e Tabu de Freud como demonstrativo da importância do sexo na sociedade. Embora nunca tivesse abandonado por completo a perspectiva evolutiva, ele viria a ser o principal proponente da ideia de que as culturas “primitivas” e a diferença cultural provam não o comportamento dos nossos antepassados, mas sim a variedade de desenvolvimentos sociais: o relativismo surge a par do privilegiar do cultural sobre o natural. A cultura torna-se assim numa série de diferenças incomensuráveis e cada sociedade impõe-se aos seus membros de modo total (na esteira da teoria sociológica de Durkheim). Mas com o relativismo de Malinowski coexiste um modelo das necessidades biofisiológicas humanas, cuja solução estaria visível nas instituições familiares. Malinowski tenta resolver a tensão epistemológica entre o sociologismo de Durkheim e a psicanálise Freudiana, mas viria a afastar-se da última sobretudo pelo carácter transcultural da teoria do complexo de Édipo. Malinowski procurava características gerais da natureza humana que pudessem assumir diferentes formas culturais. Em Sex andReppression, o antropólogo explica como o complexo de Édipo foi descoberto numa sociedade de filiação patrilinear e no seio de uma só classe. Ora, 13 em Trobriand, local do seu profuso trabalho de campo, a filiação é matrilinear, a estratificação social diferente da divisão de classes. Ao tipo europeu de família opunha-se uma família em que o homem não é considerado como progenitor dos filhos da esposa, dada a ignorância dos indígenas em matéria de fisiologia da concepção, sendo o irmão da mãe o homem a quem se respeita em termos de autoridade. Assim, a ambivalência de sentimentos do filho para com o pai só teria uma importância mínima, dando-se antes uma repartição desse sentimento por dois homens que cumprem funções inversas e complementares. Malinowski conclui que o complexo de Édipo não é um fenómeno universal. Mas o modelo Trobriand é uma transformação lógica do freudiano: o desejo reprimido de matar o pai e de casar com a mãe passa a ser a tentação de casar com a irmã e matar o tio materno (The Father in PrimitivePsychology, 1927:80-1 in Pannoff 1974:58). Se o método comparativo leva Malinowski a pôr em causa universais de base biofisológica e psíquica, Margaret Mead procura na comparação a fonte para a transformação e pedagogia sociais no Ocidente - tornar o exótico familiar e o familiar exótico, como sói dizer-se. A antropologia culturalista americana teve origem numa rejeição explícita da teoria dos instintos e de explicações biológicas para fenômenos sociais, como reação à eugenia racial e racista. Em Comingof Age in Samoa , Margaret Mead procura a negative instance sobre as teorias da adolescência americana da sua época e, assim, 14 procura também definir o “sexual” (incluindo o que hoje entendemos por género) como social. A conclusão a que pretende chegar é a de que onde, por razões culturais, não haja noção de pecado e culpa, e onde os conflitos edipianos estejam minimizados, bem como se verifique um desenvolvimento da arte do sexo, os traumas da transição adolescente não se fazem sentir. Assim, a plasticidade humana permitiria que, através da mudança na educação, aquilo que foi socialmente formado possa ser socialmente modificado. Talvez o lado mais positivo da pesquisa de Mead tenha sido mostrar que o género no Ocidente não é nem natural nem o resultado cumulativo de uma evolução humana geral. Mead, aliás, partiu para o terreno com uma pergunta explícita: “A questão que eu me colocava ao partir para Samoa era: os problemas que sofre a nossa adolescência são intrínsecos à natureza da adolescência ou à nossa civilização? A adolescência em condições totalmente diferentes apresenta-se de modo igualmente diferente?” (Mead 1963 (1928):373). As variáveis que ela enumera definem um campo do comportamento sexual comparativo: educação sexual precoce ou tardia, experiência sexual igualmente precoce ou tardia, precocidade encorajada ou não, segregação dos sexos ou educação mista, divisão do trabalho entre os sexos ou atividades comuns. Em Sex andTemperament(1935) a antropóloga liga a questão da personalidade-base e do temperamento à atribuição sexuada das emoções. Entre os Arapesh nota que tanto homens como mulheres apresentam personalidades que ela chama maternais nos seus aspectos parentais e femininas nos seus aspectos sexuais. Diz não ter encontrado a ideia de que o sexo seja uma força impulsionadora forte, quer para os homens quer para as mulheres. Pelo contrário, entre os Mundugumor verificou que tanto homens como mulheres se desenvolviam como indivíduos duros, agressivos e “positivamente sexuados”, com um mínimo de aspectos maternais da personalidade. Entre os Tchambulijulgou encontrar uma inversão das atitudes sexuais da nossa cultura, com as mulheres dominando, “impessoais”, “gestoras”, e os homens como menos responsáveis e mais dependentes emocionalmente (1935).Entretanto, para Mead o limite da diversidade é a fronteira anatómica entre os sexos, o que já se notava em Malinowski. Isto porque nenhum dos dois consegue sair das fronteiras da família biológica como unidade básica natural e social, na qual uma 15 divisão do trabalho entre homens e mulheres é necessária e inevitável (Weeks 1985: 107). Isto não retira valor à principal conquista de Mead: para comprovar a plasticidade humana, ela demonstra que as emoções sexuadas são construções sociais. Fê-lo perante uma conjuntura, no Ocidente, de surgimento da adolescência e da absorção das mulheres no mercado de trabalho no período da segunda grande guerra. A distinção entre sexo e gênero era, a partir daqui, possível: “É-nos permitido, a partir de agora, afirmar que os traços de carácter que qualificamos como masculinos ou femininos são (...) determinados pelo sexo de forma tão superficial como a roupa (...) resultado de um condicionamento social (...) Admitida a plasticidade da natureza humana, de onde provêm as diferenças que constatamos entre os tipos de temperamentos consignados pelas diversas sociedades, seja a todos os seus membros, seja respectivamente a cada sexo? (...) esta diversidade assenta sobre o quê? Já não e possível, à luz dos factos, considerar que traços como a passividade ou a agressividade sejam determinados pelo sexo do indivíduo (...) A nossa hipótese não é mais do que um prolongamento da que avança Ruth Benedict em Patterns of Culture (...) O mesmo se passa com os temperamentos “masculino” e “feminino” no plano social. Certos traços comuns aos homens e às mulheres são consignados a um sexo e recusados a outro» (s.d. (1949): 312-317). A partir de Mead a antropologia estava pronta para o salto qualitativo do feminismo e do construcionismo social. 3 - CONSTRUÇÕESSEXUAIS Segundo CaroleVance (1991) a teoria do construcionismo social desafiou os modelos antropológicos tradicionais, tendo dado origem a uma explosão de pesquisas sobre a sexualidade a partir de meados dos anos setenta. A distinção entre sexo e gênero é o ponto de partida fundamental. Baseada na distinção que a antropologia promoveu entre biologia e cultura, e elaborada a partir dos anos sessenta pela teoria crítica feminista, a separação conceptual entre sexo e gênero dá a entender que o segundo é a elaboração cultural do primeiro. A variação cultural (e histórica) dos papéis femininos e masculinos, bem como dos traços de personalidade-tipo tidos como 16 normais para cada sexo em cada cultura trazia o determinismo cultural para o campo da sexualidade. Em 1981, já amadurecido o movimento feminista em antropologia e genericamente aceite o campo de estudos sobre género, Ortner e Whitehead, abrem Sexual Meanings dizendo que: “os traços naturais do gênero, bem como os processos naturais do sexo e da reprodução, são apenas um pano de fundo sugestivo e ambíguo para a organização cultural do género e da sexualidade. O que o género é, o que os homens e mulheres são, e o tipo de relações que acontecem entre eles – todas estas noções não são simples reflexos ou elaborações de “dados” biológicos, mas sim (em grande medida) produtos de processos culturais e sociais.” O gênero tem que ser visto no cruzamento de várias instituições e relações sociais permeadas por esquemas de identidade e diferença, sendo a diferenciação um processo intimamente ligado ao poder. Marilyn Strathern, por exemplo, entende por género as categorizações de pessoas, artefactos, eventos, sequências etc., que se baseiam numa imagética sexual, nos modos como o carácter distintivo das características macho e fêmea concretizam as ideias das pessoas acerca da natureza das relações sociais. (1988:ix, tradução livre). O androcentrismo de que antropologia foi acusada pelas mulheres antropólogas e pelas e pelos feministas impediu que se ouvisse a voz das mulheres nas etnografias, e impediu também a diversidade de vozes masculinas ou qualquer visão dissidente da homologia masculino / público / político, em síntese, da masculinidade hegemónica como modelo central excludente de mulheres, homossexuais e de homens heterossexuais com traços de identidade não centrais (negros, pobres, etc.). O gênero (e a sexualidade) é uma área de estudos e do real que introduz significativa novidade epistemológica. Ao contrário da classe ou das instituições sociais como a família, o gênero cruza-as, por assim dizer, transversalmente. Não só é um corte nas metáforas verticais de estrutura, hierarquia ou níveis, como constitui também um tema de recente e difícil introdução nas ciências sociais, porque de difícil introdução na própria vida social. Isto torna-se evidente quando se pensa que em relação à “raça” quase ninguém pensa hoje que é na cor da pele (mas sim no racismo) que reside em 17 última instância a causalidade das desigualdades nas relações “raciais”; mas no respeitante ao gênero, é culturalmente difícil não cair na tentação de ver no sexo e no corpo a raiz do gênero. Por isso o gênero é uma das últimas fronteiras da reflexividade crítica das ciências sociais. Constituinte de identidades sociais e pessoais, o gênero não cria, porém, grupos sociais, mas sim categorias. O livro colectivo editado por RaynaReiter em 1975 foi de certo modo a obra fundadora do feminismo enquanto teoria crítica na antropologia. O artigo da coletânea que maior influência viria a ter na vaga feminista seria o de Gayle Rubin que se propunha perceber o sistema de relações de opressão da mulher sobrepondo as grelhas analíticas de Freud e Lévi-Strauss (sobretudo a partir do contributo de Lacan) de maneira análoga à que Marx fizera com os economistas políticos clássicos. Para Rubin, explicar a utilidade da mulher para o capitalismo é diferente de dizer que esta utilidade explica a gênese da opressão da mulher. Ou seja, há um elemento histórico e moral, como o próprio Marx dissera, na determinação do valor da força de trabalho que é diferente do caso das outras mercadorias. Baseando-se então no fato de Engels ter distinguido entre relações de produção e relações de sexualidade, ela passa a explicar o que entende por “sistema de sexo/gênero” (reconhecendo que outros nomes possíveis seriam “modo de reprodução” ou “patriarcado”): “Um sistema de sexo/gênero não é apenas o momento reprodutivo de um “modo de produção”. 18 A formação da identidade de gênero é um exemplo de produção no reino do sistema sexual. E um sistema de sexo/gênero envolve mais do que as “relações de produção” (a reprodução no seu sentido biológico). É assim que se deve procurar na área do parentesco o locus para a reprodução do sistema de sexo/gênero, pois os sistemas de parentesco podem ser muitas coisas, mas aquilo que reproduzem de facto e de que são feitos são, antes do mais, formas concretas de sexualidade organizada. Para Rubin, a divisão do trabalho pelo sexo seria na esteira da teoria estruturalista do tabu do incesto, um tabu contra a semelhança entre homens e mulheres. Este tabu, exacerbando as diferenças biológicas entre os sexos, criaria o gênero. Este tabu é o também em relação a tudo o que não seja o emparelhamento de homem e mulher: “Em termos gerais, a organização social do sexo assenta no gênero, na heterossexualidade obrigatória e no constrangimento da sexualidade feminina.” Os indivíduos seriam, então, “engendrados” para garantir o casamento. A heterossexualidade pode ser vista como um processo instituído, e o tabu do incesto pressupõe um tabu anterior sobre a homossexualidade. Seguindo o projeto de uma articulação entre Freud e Levi-Strauss via Lacan, a dinâmica do sistema poderia ser resumida assim: “Os sistemas de parentesco requerem uma divisão dos sexos. A fase edipiana divide os sexos. Os sistemas de parentesco incluem conjuntos de regras que governama sexualidade. A crise edipiana é a assimilação dessas regras e tabus. A heterossexualidade obrigatória é o produto do parentesco. A fase edipiana constitui o desejo heterossexual. O parentesco assenta numa diferença radical entre os direitos de homens e mulheres. O complexo de Édipo confere direitos masculinos ao rapaz e força a rapariga a acomodar-se a menos direitos”. A teoria crítica feminista dá entrada na antropologia através da crítica da ausência das mulheres na etnografia. A questão assenta no poder: os informantes são homens porque mais próximos do poder público e político no sentido institucional. Após o lançamento, pelo feminismo, da ideia de que “o privado é político”, a antropologia registou uma explosão de obras escritas por e sobre mulheres e uma reavaliação das áreas do parentesco e família, pessoa e emoções, corpo, gênero e sexualidade. 19 Contudo, à exceção de Rubin, a maior parte dos estudos feministas partilhava o pressuposto da heterossexualidade natural. E se se atacava o patriarcado, se se procurava encontrar a sua origem e mecanismos de reprodução, sobretudo explicitando os mecanismos de opressão da mulher e a quem serviam, esqueceu-se também a análise específica da masculinidade. No volume de Ortner e Whitehead, dedicado a uma análise mais cultural do que social dos sentidos de gênero e sexualidade enquanto símbolos, encontramos explicitadas, na maior parte dos casos etnográficos, oposições binárias metafóricas como Natureza/Cultura ou auto-interesse/bem social, para definir a “linguagem” do género. Em quase todos os casos se verifica que: os homens surgem definidos por categorias de status ou papel social; ao passo que as mulheres são definidas por e em relação aos homens e/ou parentes; os mesmos eixos que separam as mulheres dos homens atravessam as categorias de género no seu interior em todos se dá a separação conceptual entre um mundo dos homens e um mundo das relações homens-mulheres. Yanagisako (1988) afirma que a separação dos fatos biológicos do sexo dos fatos culturais do gênero abriu caminho para o tipo de projeto delineado por Ortner e Whitehead: a interpretação do género como um sistema de símbolos e significados influenciadores e influenciados de e por práticas e experiências culturais. O gênero é visto como a elaboração de uma diferença biológica e levou às dicotomias público/doméstico (Rosaldo 1974), natureza/cultura (Ortner 1974), produção/reprodução (Harris e Young 1981). Para estes autores, a cópula heterossexual, para eles natural, cria parentesco e gênero junto com bebês. Mas Yanagisako, pegando também no exemplo de como quando analisamos a “raça” já não achamos que a diferença física tenha de fato importância, avança com três questões problematizadoras: 1) Como é que as pessoas são constituídas como sujeitos com género em sistemas culturais específicos?; 20 2) Como é que as categorias de gênero são definidas? (não podemos crer que resultem em toda a parte da mesma diferença); 3) Quando o sexo é a base do gênero devemo-nos perguntar como é que este sistema auto-referencial é construído. As práticas através das quais um sistema de diferenças entre pessoas é feito de modo a parecer invariável. Agora que questionámos o nosso modelo de base natural do sexo, diz ela, e começamos a explorar as práticas culturais através das quais as pessoas são sexualmente constituídas como sujeitos sexuais, temos que salvaguardar o caráter gendereddessas práticas. Não podemos deixar de lado o sexo nas nossas análises de gênero porque ele é o espaço discursivo a partir do qual iniciamos estudos comparativos de gênero. Strathern (1988) também acha que algo falhou na estratégia dos anos setenta de desconstrução dos papéis sexuais, porque “macho” e “fêmea” permaneceram como pontos de referência fixos. No Ocidente, de fato a domesticidade assemelha-se à infantilidade e esta à ausência de autonomia, porque está fora da esfera do salário, do local de trabalho, da produção cultural. Mas noutros sítios pode não ser assim. As noções de “Pessoa” tornam-se fulcrais para Strathern, que diz que o sexo demarca diferentes tipos de agência, de ação social subjetivada. Por isso critica agora a ideia de “construção social”. Os estudos de gênero e sexualidade na antropologia contemporânea têm, pois, sido permeados quer pela teoria da prática (derivada de críticas ao marxismo ortodoxo), quer por modelos de relação entre estrutura e prática (por exemplo, as obras de P. Bourdieu ou A. Giddens), quer pela análise contextual do self, da ação pessoal e da intersubjectividade. Para Connell,que sintetiza estas tendências, a divisão do trabalho, a estrutura do poder e a estrutura da cathexis (sentimentos e emoções) seriam os principais elementos de qualquer Ordem do Género ou Regime do Género analisável por um cientista social. A banalizada expressão “construção social” deve ser usada com cuidado. Na posição construcionista, tal como nas teorias da socialização, as categorias de gênero parecem pressupor uma dicotomia de gênero incontornável, a qual só poderá, 21 logicamente, assentar sobre uma diferença biológica de tipo essencialista. Ora, a diferença biológica é ela mesma histórica e culturalmente relativa, como demonstrado pelos estudos sobre ciência (Laqueur 1990). O construcionismo corre o risco de nos deixar com as categorias dicotômicas de homens e mulheres; parte do princípio de que existem indivíduos unitários mas por (con)formar através dos papéis de gênero e da socialização; recusando o sexo, afasta-se de uma análise da incorporação e da constituição do corpo (não abordando como o sexo é construído); ao localizar o gênero na pessoa unitária, reproduz ideias ocidentais sobre o indivíduo e a lógica mercantil; e por fim as relações entre homens e mulheres são vistas em termos de entidades polarizadas e fixas (ver Cornwall e Lindisfarne 1994) . 4 - DESCONSTRUÇÕES SEXUAIS Nas sociedades cosmopolitas do Ocidente, sobretudo no mundo anglo-saxónico, o século XXI começou marcado pela ideia “queer”, num propósito explícito de recusar o alinhamento segundo categorias específicas de identidade. Esta posição é desde logo colocada como antagónica de categorias mais estáveis e reconhecíveis, como ‘lésbica’ ou ‘gay’. Os estudos gay e lésbicos, uma área surgida na esteira dos women’sstudies seriam alvo de um processo de queering, processo esse que nos é apresentado como constituindo um violento debate, entre os que dizem que esse processo pretende acabar com os últimos traços de uma coerência de gênero opressiva, e os que criticam o queer como reacionário e mesmo não feminista. 22 Propondo uma definição, Jagose diz que “queer descreve os gestos ou modelos analíticos que dramatizam as incoerências nas relações supostamente estáveis entre sexo cromossomático, gênero e desejo sexual”(1996:3). No entanto, esta definição é indissociável de uma tomada de posição epistemológica: “A teoria queerdesenvolve-se a partir de um reordenamento gay e lésbico das representações pós-estruturalistas da identidade como constelação de posições múltiplas e instáveis” (1996:3). O problema está colocado como uma tensão: como é possível subscrever a maleabilidade identitária a partir de movimentos e teorias que tentaram validar a existência (e definição) de identidades minoritárias? Sobretudo, quando esse carácter minoritário (relacionado com a marginalização, a falta de poder, etc.) parece necessitar quer do paradigma “étnico”, quer de um certo grau de “essencialismo estratégico”? De fato, os debates sobre o que constitui a homossexualidade (à semelhança daqueles sobre o gênero) podem ser vistos em termos de uma negociação entre posições essencialistas e posições construcionistas. Enquanto as primeiras encaram a identidadecomo natural, fixa e inata, as segundas entendem-na como fluida e como efeito do condicionamento social e dos modelos culturais disponíveis. A posição da autora, é que a identidade não é uma categoria empírica demonstrável, mas sim o produto de processos de identificação em ambiente de relações de poder desigual. A posição construcionista, subscrita pela maior parte dos estudos gay e lésbicos tem, segundo a autora a sua raiz no trabalho de Foucault. Este argumentava que a homossexualidade era necessariamente uma formação moderna porque, embora anteriormente existissem atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, não haveria uma categoria de identificação correspondente. A noção do homossexual como um tipo identificável de pessoa emerge na segunda metade do século XIX, definido 23 fundamentalmente em termos daqueles mesmos atos sexuais. Passava-se assim do sodomita como aberração temporária para o homossexual como uma espécie. o epítome do próprio gênero. O pensamento “queer” tem uma relação estreita com o pós-estruturalismo, ao propor a substituição de uma política da identidade por uma política da diferença; a retórica da diferença substituiu o ênfase mais assimilacionista e liberal na similaridade com outros grupos. No descentramento final do sujeito cartesiano, a identidade foi reconceptualizada como mito ou fantasia cultural. A tese de Althusser de que não pré-existimos como sujeitos mas somos constituídos enquanto tais pela ideologia, bem como as ideias de Foucault seriam desenvolvidas, na área do pensamento social sobre a sexualidade, por Judith Butler. Ela procura sofisticar o argumento sobre as operações do poder e da resistência de modo a demonstrar os modos como as identidades marginalizadas são cúmplices dos sistemas identificatórios que procuram contrariar. Butler argumenta que o feminismo trabalha contra os seus propósitos explícitos quando toma as “mulheres” como categoria âncora, pois o termo “mulher” não significa uma unidade natural, mas uma ficção regulatória. E em vez de naturalizar o desejo pelo mesmo sexo, a estratégia usual dos movimentos gay, Butler contesta a verdade do gênero em si, argumentando que qualquer compromisso com a identidade de gênero funciona em última instância contra a legitimação dos sujeitos homossexuais. O gênero é, para Butler, uma ficção cultural, o efeito performativo de atos reiterativos. A razão porque não há identidade de gênero por detrás das expressões do gênero é que a identidade é performativamente constituída pelas próprias expressões que são vistas como sendo o seu resultado. Butler advoga a contestação dessa naturalização através da repetição deslocada da sua performatividade, chamando assim atenção para os processos que consolidam as identidades sexuais. Uma das estratégias recomendadas é a repetição paródica das normas de gênero. Foca, pois, no drag .O gênero é, então, performativo, não porque seja algo que o sujeito assume deliberadamente, mas porque, através da reiteração, consolida o sujeito. Não se trata, contudo, do mesmo que simplesmente “vestir roupa”: o constrangimento é o pré- requisito da performatividade. Embora esta ressalva tente ultrapassar o carácter 24 difuso da localização do poder a la Foucault, não indica, a meu ver, com a clareza suficiente, quais as instituições e lugares de poder onde o género e a sexualidade são formados e reproduzidos. Mais do que de transformações em instituições sociais como a família, a teoria queeradvém de transformações no activismo social permeado pela própria teoria social. É o caso de novas formas de fazer política sexual e, simultaneamente, de entender as identidades (ou a fragilidade destas): exemplo disso será o discurso sobre o HIV/Sida, que questionou o estatuto do sujeito no discurso biomédico; enfatizou as práticas sexuais e não as identidades; promoveu uma política de coligação que repensou a identidade em termos de afinidade e não de essência; e entendeu o discurso como uma realidade não separada da prática ou de segunda ordem (Jagose 1996). Se é comum pensar que Queerfunciona sobretudo como modismo para distinguir gays de “velho estilo” dos de “novo estilo”, é certo que o termo pode ser usado para descrever uma população aberta, cujas características partilhadas não são a identidade mas um posicionamento anti-normativo em relação à sexualidade. Como no início do liberacionismo gay, queer confunde as categorias que autorizam a normatividade sexual; mas difere de “gay” porque evita a ilusão de que o seu projeto seja inventar ou desvelar uma qualquer sexualidade livre, natural ou primordial. Ao confrontar já não apenas os essencialismos das estruturas sociais e do conhecimento, mas também o essencialismo estratégico dos movimentos identitários sexuais, a teoria queerlança como urgente a necessidade de repensar as noções de identidade, comunidade e política. Curiosamente, são estas as noções que constituem o próprio objeto da atenção antropológica contemporânea e que estavam implícitos no projeto da disciplina já nos idos do século XIX, quando o “selvagem sexual” (ou o sexual selvagem...) foi descoberto pela atenção Ocidental. Falar de sexualidade humana significa reconhecer algo que diz respeito a palavras, imagens, rituais, fantasias e corpo (Lehmiller, 2014; Weeks, 2005, 2011). É possível que, para um pensamento mais obediente face aos desígnios da ordem moderna ocidental, refletir sobre a construção histórica e discursiva das sexualidades masculinas, tal como propomos, possa parecer estranho ou até, no limite, desnecessário. Afinal, haverá mais do que uma sexualidade? A resposta é sim, ainda 25 que a Organização Mundial de Saúde, na sua definição de sexualidade, permeável ao discurso de alguns técnicos elevados ao “estatuto de gurus” (Vaz, 2003, p. 38), aparentemente, não o reconheça na sua plenitude. De fato, tal como Connell (1995) identifica diferentes masculinidades, associando a estas diferentes níveis de poder, assim Plummer (2005) reconhece múltiplas sexualidades masculinas, ainda que, sublinha, ensombradas e reguladas por um modelo hegemônico assente na normatividade heterossexual. Todavia, ainda que fundamental, pensar exclusivamente no modelo hegemônico da sexualidade não será suficiente, adverte Connell (1995), dada, por um lado, a diversidade como característica da existência humana, e não como excepção, e o fato dos seres humanos se constituírem agentes e atores com capacidades de resistência e transformação das hegemonias, por outro. Aliás, se acrescentarmos a necessidade, como tão oportunamente reivindica Naphy (2006), de analisarmos as histórias não ocidentais associadas às homossexualidades, ou de estudar as sexualidades (im)possíveis problematizadas por Moita (2003), ou as influências da religião sobre estas (Pacheco, 2003), ou ainda as leituras da antropologia a propósito das mesmas (Vale de Almeida, 2003), rapidamente compreendemos, por um lado, o quão complexa poderá ser a construção histórica e discursiva das sexualidades em geral e, por outro, que a história ocidental não corresponde, afinal, à História, até porque “importantes civilizações se desenvolveram e continuam a existir à margem dos padrões das culturas cristãs do Ocidente” (Naphy, 2006, p. 16). Foi precisamente com base no reconhecimento e legitimação da pluralidade sexual que emergiram os estudos das novas sexualidades, configuradas por leituras associadas ao pós-modernismo (Plummer, 2005). Estas novas teorias das sexualidades têm em conta uma organização social que enquadra as sexualidades de acordo com diferentes scripts, discursos e histórias, distanciando-se, deste modo, das clássicas visões puramente essencialistas (e.g., Foucault, 1994; Gagnon& Simon, 1973; Lehmiller, 2014; Plummer, 2005). Inscritas nas novas teorias das sexualidades, destacamos, a par deJohnson (2002), a importância que os estudos feministas, lésbicos, gay e queer representaram, e continuam a representar, para a quebra de um silêncio que, de acordo com as leituras 26 hegemônicas, nega a existência da diferença, apoiando a falsa ideia de que a cultura dominante seria a única cultura (Santos, 2009). O fato do pensamento hegemônico privilegiar a associação entre heteronormatividade e cidadania (Johnson, 2002) confere às sexualidades não heterossexuais uma espécie de cidadania de segunda classe (Steinberg, 2007), e ao não heterossexual o estatuto de “o outro” (Eribon, 2008). Além disso, e à luz dos pressupostos pós-modernos, constitui ainda uma violação de direitos humanos fundamentais, pela negação do direito à diferença (Steinberg, 2007). Tal pensamento promove, por essa razão, políticas de “passing” (Johnson, 2002, p. 320), o que, por outras palavras, significa que o fato de se promover discursiva e oficialmente a heterossexualidade, como se de uma categoria estanque se tratasse, em detrimento das homossexualidades ou outras categorias identitárias não dominantes, constitui um forte incentivo com vista a que todas as pessoas se façam passar por heterossexuais. Por outro lado, tal pensamento hegemônico parece ignorar o fato de que as fronteiras das identidades sexuais, não sendo estanques, convidam a uma exploração, reconhecimento e aceitação da diversidade dentro de cada categoria, seja ela heterossexual, lésbica, bissexual, homossexual ou outra (Lev, 2006; McClellan, 2006; McKinney, 2006; Parks, 2006; Santos, 2009). Entretanto, e na impossibilidade de mapear aqui cabalmente a construção histórica e discursiva das sexualidades masculinas, até porque o próprio entendimento de história é complexo (Vaz, 2003), regressamos a uma ideia central para, a propósito do enunciado pelo modelo hegemônico da sexualidade, argumentar que a linguagem quotidiana é atravessada por relações de força, marcadas pelo poder e pela violência simbólica, isto é, um tipo de violência que se exerce, no essencial, pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou, mais concretamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, no limite, do sentimento (Bourdieu, 1999, 2007). 27 5 - O INSUPORTÁVEL PESO DA INJÚRIA E DA EXCLUSÃO SOCIAL Não me podiam bater à vista de todos, não eram assim tão estúpidos, poderiam ser expulsos. Contentavam-se com uma injúria, apenas paneleiro (ou outra coisa). Ninguém, à minha volta, intervinha, mas todos ouviam. Penso que todos ouviam porque me lembro dos sorrisos de satisfação visíveis no rosto de outros no pátio ou no corredor, assim como o prazer de ver e ouvir o matulão de cabelos ruivos e o pequeno de costas arqueadas a fazer justiça, a dizer o que todos pensavam em voz baixa e cochichavam quando eu passava, eu bem ouvia Olha, é o Bellegueule, a bicha. (Louis, 2014, pp. 18-19). A injúria é um enunciado performativo, uma forma última de um continuumlinguístico que engloba a alusão, a insinuação, as palavras maldosas ou o boato, assim como qualquer brincadeira mais ou menos explícita protagonizada por indivíduos, grupos ou instituições (Eribon, 2008). Visa um indivíduo em particular, associando-o negativamente a um grupo ou categoria (e.g., homossexuais) e opera por generalização (Lehmiller, 2014). A injúria tem como função produzir determinados efeitos entre eles o de instituir ou perpetuar a fronteira entre os socialmente produzidos como os normais (Eribon, 2008) e os estigmatizados (Goffman, 1963; Hatzenbueleret al., 2014), fazendo-os interiorizar de forma indelével e inequívoca essa realidade. A sua força pode ser tal que instiga qualquer indivíduo do outro lado da linha, como qualquer cidadão socialmente percebido como não heterossexual, a fazer tudo para não ser considerado um dos membros do conjunto designado e constituído pela injúria (Eribon, 2008). Nesse sentido, a injúria associada a uma qualquer orientação sexual não normativa simboliza a ocorrência de múltiplas experiências de exclusão social, rejeição, ostracismo, discriminação e estigmatização (Kit, 2016; Riva &Eck, 2016), todas elas passíveis de configurar situações de bullyinghomofóbico (Rivers, 2011). Em termos globais, a vivência de tais experiências faz com que o indivíduo identifique subjetivamente um conjunto de pistas exteriores, verbais e não verbais, interpretando- as frequentemente como sinais mais ou menos óbvios de uma desvalorização de si, 28 da sua condição ou situação, por parte de alguém em particular, um grupo ou mesmo a sociedade como um todo. De acordo com a evidência científica mais recente, a injúria e a exclusão social veiculadas em espaços como a escola e a família parecem exercer um importante papel no desenvolvimento e manutenção de diversas perturbações, tais como a ansiedade (e.g., Yap, Pilkington, Ryan &Jorm, 2014), a ansiedade social (e.g., Modin, Östberg&Alquist, 2011), o pânico e a agorafobia (e.g., McCabe, Miller, Laugesen, Antony & Young, 2010), a ansiedade generalizada (e.g., Scharfstein, Alfano, Beidel& Wong, 2011), a depressão (e.g., Platt, Kadosh&Lau, 2013), as perturbações de sintomas somáticos (e.g., Gini&Pozzoli, 2013), ou da alimentação e da ingestão (e.g., Hilbert, Hartmann, Czaja&Schoebi, 2013). Existe ainda evidência científica que associa a injúria e a exclusão social a uma maior prevalência de comportamentos autolesivos (Beckerman, 2017) e a um risco acrescido de suicídio em jovens entre os 15 e os 17 anos com orientação sexual não normativa (Santos & Neves, 2014). 6 – NA ESCOLA Na escola tudo mudou. Vi-me rodeado de pessoas que não conhecia. A minha diferença, a minha maneira de me deslocar, as minhas posturas, punham em causa todos os valores que os tinham formado, a eles, que eram duros. Um dia, no pátio, o Maxime (...) tinhame pedido para correr, ali, diante dele e dos rapazes com quem estava. Tinha-lhes dito Vão ver como ele corre como uma bicha, jurando-lhes que iriam rir. Como tinha recusado, ele acrescentara que não tinha escolha, pagaria se não obedecesse Parto-te a cara se não o fizeres. Corri à frente deles, humilhado, com vontade de chorar (...). Eles riram. (...). Ninguém mostrava vontade de me falar: o estigma era contaminante; ser o amigo do paneleiro era mal visto. (Louis, 2014, pp. 34- 35). A escola é uma das instituições sociais mais importantes da sociedade. Como qualquer outra instituição social, a sua organização e funcionamento correspondem a um conjunto de valores e regras social e culturalmente estabelecidos. Frequentar a escola é, regra geral, uma experiência crucial na vida da maior parte dos jovens. Para 29 além das aprendizagens formais, realizadas e consolidadas durante vários anos, nela se criam e desenvolvem amizades, aprendem normas sociais e se preparam os futuros adultos, num ambiente que se espera seguro, construtivo, atento e respeitador da diversidade humana. Regra geral, nela se criam ambientes de suporte e se desenvolvem relações de confiança com os educadores formais, como os professores e todos os restantes agentes da comunidade educativa (Graybill&Proctor, 2016). Quando pensamos no domínio da sexualidade, a escola, particularmente a de nível secundário, continua a evidenciar-se como um espaço de aprendizagem de normas e regras associadas a uma ideologia dominante em termos de gênero e de sexualidade, contribuindo fortemente para a produção de identidades heterossexuais (Sauntson, 2017). Na verdade, não é invulgar diferentes jovens socialmente percebidos como homossexuais, lésbicas, bissexuais ou transgêneroexperienciarem situações de assédio e discriminação nas escolas que frequentam (Graybill&Proctor, 2016), fato que, nos últimos anos, tem motivado a comunidade científica a estudar o bullyingna escola (Russell, Day, Ioverno&Toomey,2016) e o bullyinghomofóbico, em particular (António, Pinto, Pereira &Farcas, 2012; Bucchianeri, Gower, McMorris&Eisenberg, 2016; Burke et al., 2017; Espelage, 2016; González-Jiménez & Fischer, 2017; Rivers, 2011). O bullying corresponde a uma forma específica de violência frequentemente perpetrada na escola e que, de acordo com Rivers (2011), se traduz no fato de um aluno ser reiteradamente alvo de ações negativas por parte de uma ou mais pessoas. De acordo com António et al. (2012, p. 18), tais “ações negativas podem ser verbais (e.g., chamar nomes), físicas (e.g., bater), sexuais (e.g., tocar em partes do corpo do outro, deixando-o desconfortável), ou sociais (e.g., excluir)”. Quando essas ações envolvem um ataque explícito a uma vítima configuram uma situação de bullying direto e quando as mesmas se traduzem na exclusão e isolamento da mesma estamos perante uma situação de bullyingindirecto (António et al., 2012). 30 O bullying homofóbico caracteriza-se de forma idêntica ao bullying geral, mas revestido de teor homofóbico, isto é, de qualquer forma de discriminação baseada numa fobia relativamente a qualquer orientação sexual não normativa (Weinberg, 1972). Associado a esta última forma de bullying pode estar o caráter heteronormativo do ambiente escolar, onde, por um lado, impera a vigilância dos comportamentos e dos discursos e, por outro, os comportamentos discriminatórios e persecutórios contra pessoas não heterossexuais (Antonio et al, 2012). A investigação tem vindo a sugerir uma elevada prevalência do bullying homofóbico na escola (António et al., 2012; Beckerman, 2017; Poteat & Espelage, 2005; Santos & Neves, 2014). Frazão (2014) destaca, a este propósito, que a população de jovens não heterossexuais tem 1,5 a três vezes mais probabilidade de apresentar ideação suicida do que os jovens heterossexuais e entre 1,5 a sete vezes mais de ter efetuado uma tentativa de suicídio. Lowry et al. (2017) e Mereish et al. (2017) acrescentam que os 31 jovens não heterossexuais apresentam maiores fatores de risco, como falta de apoio familiar, escolar e abuso de substâncias. Face ao reconhecimento da gravidade desta forma de violência na escola, que envolve não apenas alunos assumidamente não heterossexuais, como também todos os socialmente percebidos enquanto tal, a UNESCO (2012) sugere um conjunto de ações com vista a interromper a violência de género e sexual nas escolas, das quais se destacam: a adopção de uma abordagem holística da sexualidade, envolvendo estudantes e toda a comunidade educativa (e.g., assistentes operacionais, professores, pais e comunidade em geral); envolver os alunos na prevenção da violência; recurso a métodos e técnicas construtivos; assumir uma postura ativa de combate ao bullying; investir na resiliência dos alunos, ajudando-os a responder de forma construtiva aos desafios da vida; assumir uma postura pública e firme contra a violência de gênero e sexual; a criação de espaços de recepção e boas-vindas a todos os alunos; a aprendizagem de técnicas construtivas de resolução de conflitos; o reconhecimento de situações de violência e discriminação de alunos pertencentes a uma minoria sexual. 7 - NA FAMÍLIA Muito rapidamente frustrei as esperanças e os sonhos do meu pai. (...). Quando comecei a exprimir-me, a adquirir linguagem, a minha voz (...) era mais aguda da que a dos outros rapazes. Cada vez que tomava a palavra, as minhas mãos agitavam-se freneticamente, em todas as direcções, torciam-se, agitavam-se no ar. Os meus pais chamavam a isso ares, diziam- me Pára com os teus ares. Interrogavam-se Por que é que o Eddy se comporta como uma gaja? Ordenavam-me: Acalma-te, não podes parar com esses gestos de louca? Pensavam que eu tinha escolhido ser efeminado, como uma estética a que me tivesse obrigado para lhes desagradar. (...). À medida que crescia, sentia os olhares cada vez mais pesados que o meu pai me dirigia, o terror que o assaltava, a sua impotência perante o monstro que tinha criado e que, cada dia que passava, confirmava um pouco mais a sua 32 anomalia. A minha mãe parecia ultrapassada pela situação e muito cedo baixou os braços. (Louis, 2014, pp. 27-29). Aceite como a mais antiga das instituições sociais humanas, a família apresenta-se com um carácter universal, embora com variações de sociedade para sociedade e em função da geração, quanto às suas formas de organização e funcionamento (Browning & Pasley, 2015). De acordo com a teoria dos sistemas familiares, a família não representa apenas um conjunto de indivíduos, mas antes uma rede de relacionamentos entre todos (Guttman, 1991). Nesse sentido, os problemas surgem nas famílias quando estas, por uma ou várias razões, experienciam dificuldades em adaptar-se de forma flexível à mudança de um dos seus membros, quer se trate de uma mudança desenvolvimental ou de estatuto (Micucci, 2015). A família, regra geral, não está preparada para lidar com o fato de ter um/a filho/a não heterossexual. Também não é raro a família revelar falta de informação sobre sexualidade em geral, sendo que, quando se trata de orientações sexuais não normativas, a probabilidade de existir informação deturpada pelos estereótipos e preconceitos associados à população não heterossexual será seguramente mais elevada (Morrow, 2006). Por essa razão, muitos filhos optam por não partilhar com os seus pais a sua orientação sexual, mantendo-a em segredo, ainda que, frequentemente, com custos mais ou menos severos para o seu bem-estar físico e psicológico. Na verdade, a investigação tem revelado que as relações entre os adolescentes e os seus progenitores são frequentemente desafiadas (Ryan, Russell, Huebner, Díaz & Sanchez, 2010) quando estes revelam aos seus pais uma identidade sexual não normativa (D’Augelli, Grossman&Starks, 2005; Frazão, 2014; Micucci, 2015) ou quando os pais, por uma razão qualquer, suspeitam que os seus filhos possam não ser heterossexuais. De acordo com a AMPLOS (2010): quando os filhos partilham com os seus pais a sua orientação sexual não normativa, não é raro estes perguntarem-se a razão pela qual os seus filhos tiveram necessidade de lhes contar, dado o desconforto que passaram a 33 sentir gerado pela notícia. É também frequente o desenvolvimento de sentimentos de culpa por parte dos pais, como se a orientação sexual dos filhos fosse da sua responsabilidade. Mas são também comuns outras dúvidas e medos dos pais, como saber se o seu filho terá sido alguma vez discriminado, se irá ficar só ou constituir família, ou se a notícia deverá ser partilhada com os restantes familiares ou vizinhos. Alguns pais poderão sentir falta de ajuda psicológica (Micucci, 2015). A acontecer, esta deverá proporcionar um ambiente seguro, empático, não restringindo a atenção apenas à orientação sexual dos filhos, mas expandindo-a ao funcionamento da família como um sistema, respeitando sempre as suas idiossincrasias e valores, procedendo- se a uma avaliação compreensiva, isenta de julgamentos precipitados, e focada no fornecimento de informação adequada e suporte colaborativamente avaliado como necessário. Nas últimas décadas, poucas coisas terão sofrido alterações tão profundas como as formas de falar sobre a sexualidade, bem como de viver a vida sexual. De acordo com os estudos dedicados às novas sexualidades humanas, estas são entendidas como interativas, relacionais, estruturais, incorporadas e organizadas num quadro de relações de poder (Lehmiller, 2014). Estão associadas a diferentes identidades, interações e instituições, cuja coexistência, em pleno Século XXI, está ainda sujeita a várias tensões e desequilíbrios. Continuam a verificar-se discursos e práticas de teor homofóbico e heterossexista, bem como umacontínua violência sexual (Plummer, 2005), face aos quais a sociedade e, em particular, a escola e a família não podem continuar indiferentes. Conforme sustenta Whitehead (2002), as sexualidades humanas são tão diversas, confusas e culturalmente informadas, que o seu entendimento está muito provavelmente para lá de qualquer compreensão una. Importa, por isso, conforme defendem González-Jiménez e Fischer (2017), reforçar a aposta na concepção e dinamização de programas de educação sexual que abordem e legitimem a diversidade sexual, desconstruindo a heteronormatividade (Abbott & Abbott, 2015) e que mobilizem toda a comunidade educativa, num esforço conjunto de afirmação de direitos, liberdades e garantias para todos, independentemente da orientação sexual. 34 BIBLIOGRAFIA Parte substancial dos materiais utilizados para este texto provêm do meu livro Senhores de Si: Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade, Lisboa: Fim de Século, 2000 (segunda edição). Weeks, Jeffrey, 1987, “QuestionsofIdentity” in Caplan, P., org., The CulturalConstructionofSexuality, Londres: Routledge, pp 31-51. Engels, F., 1976 (1884), A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Lisboa: Presença. Marx, K., 1979 (1867), Capital, Nova Iorque: InternationalPublishers. Malinowski, B., 1927, Sex andRepression in SavageSociety, Londres. 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