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no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER Violência de Gênero e Modelos de Masculinidade 1 Leila Paiva Lélia Rejane Paiva de Souza GRATUITA Esta publicação não pode ser comercializada FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE2 Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 fdr.org.br | fundacao@fdr.org.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Fundação Demócrito Rocha Bibliotecário Me. Francisco Edvander Pires Santos (CRB-3/1212) Copyright © 2021 Fundação Demócrito Rocha FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) Luciana Dummar Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Marcos Tardin Gerente Geral Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos Chico Marinho Gerente do Canal FDR Andrea Araujo Gerente Marketing & Design Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis Analistas de Projetos Isabel Vale Editora de Mídias UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (Uane) Viviane Pereira Gerente Pedagógica Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos Joel Bruno Designer Educacional Isabela Marques Desenvolvedora Front-End CURSO O PAPEL DO HOMEM NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA MULHER Valéria Xavier Concepção e Coordenadora Geral Leila Paiva Coordenadora de Conteúdo Raymundo Netto Coordenador Editorial Andrea Araujo Editora de Design e Projeto Gráfico Miqueias Mesquita Designer Kamilla Damasceno Estagiária de Design Daniela Nogueira Revisora Carlus Campos Ilustrador Beth Lopes Analista de Projetos Fábio Braga Analista de Marketing Este fascículo é parte integrante do curso O Papel do Homem no Enfrentamento à Violência contra Mulher, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e Assembleia Legislativa sob o nº 011/2021. P232 O papel do homem no enfrentamento à violência contra a mulher / Concepção e coordenação geral: Valéria Xavier; coordenação de conteúdo: Leila Paiva; ilustrações: Carlus Campos. – Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2021. 4 fascículos : il. color. ISBN 978-85-7529-964-7 (Coleção) ISBN 978-85-7529-965-4 (Fascículo 1) 1. Direitos humanos. 2. Violência contra a mulher. 3. Feminicídio. 4. Machismo. 5. Gênero e educação. I. Título. CDD 341.27 no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER 3 Introdução 1. Direitos Humanos e Violência Contra a Mulher 2. Construção Histórica das Masculinidades 3. Masculinidades e Violência de Gênero: Cenário Internacional e Nacional Referências 4 6 10 13 15 SUMÁRIO FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE4 INTRODUÇÃO A proposta do curso O Papel do Homem no Enfrentamento da Violência contra a Mulher é contribuir para o conhecimento das diversas faces desse tipo de violência, dos alicerces que foram construídos ao longo da história que ainda justificam tais práticas e de como o universo masculino dialoga com o tema nos dias atuais. Nos quatro fascículos deste curso, será possível ter um panorama do fenô- meno e das relações e tecidos sociais que interferem para a continuidade de práti- cas tão violentas mesmo em sociedades que, como a brasileira, vivem sob a égide de uma legislação considerada avançada para o tema no mundo. O debate é iniciado aqui, a partir do universo de garantia dos direitos huma- nos, os aspectos históricos que fizeram com que esse fenômeno tivesse uma di- mensão tão relevante e os impactos pro- duzidos nas relações de gênero e pelas mudanças e normas. A violência contra a mulher não é um tema dos nossos tempos; é resultado de uma construção histórica, o que nos pos- sibilita a luta pela desconstrução do mo- delo de relações sociais que a legitimou. O modelo que construiu o cenário histórico da violência contra a mulher guarda total relação com temas como: gênero, classe, raça/etnia e relações de poder. no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER 5 Mesmo não sendo um debate novo, a cada momento da história diferentes desa- fios foram apresentados ao universo femi- nino, mas é necessário afirmar que a situa- ção da mulher no mundo recente mudou muito. Se for considerado o período antes e após duas grandes guerras mundiais, é possível verificar grandes alterações. O sé- culo XIX e o início do XX se caracterizam por um mundo que direciona o feminino para o cuidado no ambiente doméstico. Mulhe- res são formadas para o cuidado com o lar e para atividades consideradas como apro- priadas para elas pelos homens, cobradas por comportamentos sociais voltados para a cooperação com o outro sexo, o que pres- supunha obediência, subordinação, al- truísmo e passividade. As duas grandes guerras trouxeram mudanças no processo de formação das mulheres e no modelo de feminilidade. Fo- ram introduzidos novos papéis ao universo feminino, principalmente impulsionados pela alteração do conceito de família. Contudo, tais alterações guardam uma dualidade. Ao mesmo tempo em que se acompanha a velocidade de participação da mulher nos ambientes externos deter- minadas pela necessidade do mercado, constata-se que essa participação social se dá de forma bastante desigual, impondo diferenças que vão desde acesso aos direi- tos até a imposição da convivência com um modelo de masculinidade violento e opres- sor também nesse ambiente externo. O diálogo que se propõe neste texto pretende contribuir para o entendimento do que são esses direitos, quais os princi- pais direitos violados nesse debate e por que esses têm sido negados às mulheres por diferentes arranjos societários para chegar à análise de quais são os desafios que o século XXI aponta no mundo e no Brasil para homens e mulheres na busca de uma sociedade com igualdade de gêne- ro. A partir de tais premissas, ainda, tentar entender como o modelo de masculinida- de edificado pelos sistemas alicerçados na desigualdade em diversas esferas sociais também impacta no crescente fenômeno da violência contra a mulher. FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE6 1 DIREITOS HUMANOS E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER A Organização das Nações Unidas (ONU) começa a mobilizar os Estados para construir políticas contra essa forma de violência em 1946, com a instituição da Comissão sobre Status da Mulher, criada pelo Con- selho Econômico e Social da ONU após a Conferência de Beijing, com as funções de: preparar relatórios e recomendações ao ECO SOC sobre a promoção dos direitos das mulheres nas áreas política, econômi- ca, civil, social e educacional. Mas qual é a importância dessa ação inicial realizada pela ONU? Bem, a Co- missão sobre o Status da Mulher (CSW) formulou, entre os anos de 1949 e 1962, uma série de tratados baseados em pro- visões da Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Huma- nos, que declara que todos os direitos e liberdades humanos devem ser aplicados igualmente a homens e mulheres, sem distinção de qualquer natureza. Carta das Nações Unidas Documento que afirma expressamente os direitos iguais entre homens e mulheres. no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER 7 Além dos Tratados, a CSW formula recomendações ao ECO SOC sobre pro- blemas de caráter urgente que requerem atenção imediata aos direitos das mulhe- res e acompanha a implementação do Pla- no de Ação de Beijing. A CSW foi determinante para o avanço do debate sobre os Direitos Humanos das Mu- lheres, sobretudo porque influenciou para inclusão do tema na elaboração da Decla- ração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Foi a CSW que imprimiu o olhar sobre as questões de gênero deixando estabele- cido naquele documento a perspectiva da igualdade entre homens e mulheres. Considerando que a história do femini- no foi marcada por profunda invisibilidade determinada pelo imaginário de que o lu- gar do feminino estava na esfera privada (doméstica), e do masculino, pública, isso impossibilitou a politização eo debate VOCÊ SABIA? Durante a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em setembro de 1995, na capital da China, foi aprovada a Declaração de Beijing, em que os governos participantes se comprometeram a cumprir, até o fim do século XX, as estratégias acordadas em Nairóbi, no Quênia, em 1985. Fonte: Agência Câmara de Notícias social de questões vistas como exclusiva- mente privadas (domésticas ou familiares) por muito tempo. A ONU, por meio de seus documentos provoca grandes debates e avanços nas normas e nas relações de desi- gualdade entre homens e mulheres. Ao falarmos de direitos humanos para todas as pessoas, salienta-se que as mu- lheres são sujeitas de direitos dos 30 direi- tos afirmados pela Declaração Universal do Direitos Humanos, conforme traduz a organização Youth for Human Rights: Todos nascemos livres e iguais. 2. Não ser discriminado. 3. O direito à vida. 4. Nenhuma escravatura. 5. Nenhuma tortura. 6. Você tem direitos onde quer que vá. 7. Somos todos iguais perante a Lei. 8. Os direitos humanos são protegidos por lei. 9. Nenhuma detenção injusta. 10. O direito a julga- mento. 11. Estamos sempre inocentes até prova em contrário. 12. O direito à privacidade. 13. Liberdade para lo- comover. 14. O direito de procurar um lugar seguro para viver. 15. Direito a uma nacionalidade. 16. Casamento e família. 17. O direito às suas próprias coisas. 18. Liberdade de pensamen- to. 19. Liberdade de expressão. 20. O direito de se reunir publicamente. 21. O direito à democracia. 22. Segurança social. 23. Direitos do trabalhador. 24. O direito à diversão. 25. Comida e abrigo para todos. 26. O direito à edu- cação. 27. Direitos de autor. 28. Um mundo justo e livre. 29. Responsabi- lidade. 30. Ninguém pode tirar-lhe os seus direitos humanos.” (Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas - versão simplificada) A Convenção sobre Eliminação de To- das as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (Cedaw, em língua inglesa, Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women) foi pro- mulgada em 1979 pelas Nações Unidas, e no Brasil foi promulgada pelo Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002. Cha- mada de Convenção das Mulheres, é o primeiro tratado internacional que trata dos direitos humanos de mulheres, e de- fine em seu artigo 1º: Artigo 1º - Para os fins da presente Convenção, a expressão “discrimi- nação contra a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restri- ção baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independente- mente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Outro documento relevante para situar a violência contra a mulher no âmbito dos direitos humanos é a Convenção Intera- mericana para Prevenir, Punir e Erradi- car a Violência Contra a Mulher, a qual ocorreu no ano de 1994 em Belém (PA) e definiu o fenômeno como “uma ofensa à dignidade humana e manifestação das relações de poder historicamente desi- guais entre mulheres e homens”. No plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos, não existe uma definição precisa do que é violência de gênero. Por isso, a ONU adota uma con- cepção ampliada da definição de violên- cia contra mulher em alguns tratados in- ternacionais que versam sobre o tema. FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE8 A seguir, alguns documentos internacionais relevantes para o debate da violência doméstica e familiar contra a mulher: • Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) (1979). • Convenção Interamericana Sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher (1948). • Convenção da OIT nº 100 (1951). • Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher (1953). • Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Cerd) (1966). • Protocolo Facultativo à Convenção Sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1999). • Convenção da OIT nº 156 (1981). Dispõe sobre a igualdade de oportunidades e de tratamento para homens e mulheres trabalhadores. • A Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim (1995). • A Resolução 1325 do Conselho de Segurança da ONU sobre Mulheres, Paz e Segurança (2000) e as quatro resoluções adicionais sobre mulheres, paz e segurança: 1820 (2008), 1888 (2009), 1889 (2009) e 1960 (2010). • Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção do Belém do Pará de 1994. • A Declaração do Milênio e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. • Estratégia de Montevidéu para a Implementação da Agenda Regional de Gênero no Âmbito do Desenvolvimento Sustentável. • A partir da mobilização da ONU, várias ações têm sido conduzidas, a âmbito mundial, para a promoção dos direitos da mulher. No que compete ao Brasil, uma série de medidas protetivas vem sendo empregada visando à redução dos alarmantes dados de violência. Há dois grandes marcos normativos: (1) a Lei Maria da Penha e (2) a Lei do Feminicídio. TÁ NA LEI no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER 9 Outra norma determinante no enfren- tamento da violência contra a mulher foi a Lei do Feminicídio, que também cumpriu um papel de possibilitar a visi- bilidade dos homicídios cometidos con- tra mulheres que são consequências de sua condição de mulher. Essa alteração descortina uma série de homicídios que ocorriam todos os dias no Brasil contra mulheres, mas não viravam uma estatís- tica de violência contra a mulher, o que impossibilitava a visibilidade necessária para a formulação das políticas públicas de prevenção e proteção. Para entender a relação de violência que marcou a história do universo mas- culino e feminino, é preciso avançar no conceito específico e trazer para o debate outros fatores, como aspectos culturais, dados e normas, que ajudam a entender a prática mundial da violência doméstica. A ONU conceitua violência de gênero como “qualquer tipo de agressão física, psicológica, sexual ou simbólica contra alguém em situação de vulnerabilidade devido à sua identidade de gênero ou orientação sexual”. Apesar dos vários esforços das organizações internacionais, esse é um fenômeno mundial, o que de- monstra a urgência de ampliação do de- bate para além das instituições de direitos ou de atendimento às mulheres vítimas e ainda – não envolver apenas o universo fe- minino. É preciso debater entender e reco- locar o papel dos modelos de masculinida- de no crescimento desse tipo de violência. VOCÊ SABIA? Em 2006, foi promulgada a lei nº 11.340/2006, de 7 de agosto de 2006, designada Lei Maria da Penha (Brasil 2006), e, em 2015, entrava em vigor a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/15). A partir da mobilização da ONU, vá- rias ações têm sido conduzidas, a âmbito mundial, para a promoção dos direitos da mulher. No que compete ao Brasil, uma série de medidas protetivas vem sendo empregada visando à redução dos alarmantes dados de violência. Há dois grandes marcos normativos: (1) a Lei Ma- ria da Penha e (2) a Lei do Feminicídio. A Lei Maria da Penha e a Lei do Femi- nicídio serão detalhadas no decorrer do curso, mais especificamente no módulo 3. Neste momento, é importante chamar atenção para as características desses dois marcos normativos nacionais. A Lei Maria da Penha, que completa, em 2021, 15 anos, foi um divisor de águas no tema. Foi a Lei Maria da Penha que demonstrou a existência desse tipo de delito no inte- rior das “famílias” brasileiras, tipificando o crime da violência doméstica. No ima- ginário nacional, reinava a ideia de que o lar guardava as relações sagradas e, por conseguinte, harmônicas. A Lei Maria da Penha prestou esse indispensável servi- ço e descortinou a triste realidade dos al- tos índicesde violência contra a mulher. FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE10 2 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DAS MASCULINIDADES Para enfrentar a violência contra mulher, é necessário entender que ela não acontece isolada-mente. A violência de gênero faz parte de um sistema que estrutura o poder e a divisão sexual do trabalho. O pa- triarcado impôs a mulher ao lugar de cui- dados com o lar, dentro de relações com a família. Mas é claro que essa estrutura não seria possível se não fosse atribuída à mu- lher a condição de menor capacidade para atividades intelectuais e frágeis, criando o estereótipo ideal para a condição de sub- jugada. Esse modelo de masculinidade, construído de forma conjunta com o mo- delo da incapacidade feminina, até hoje vê a mulher como objeto do homem. O modelo construído de homem, que tem mais força e maior racionalidade ao ponto de não chorar, determina compor- tamentos mais violentos, incapazes de dialogar de forma mais equilibrada e inca- pazes de práticas conciliatórias. Assim, essa masculinidade “tóxica”, apontada como um dos fatores por trás de problemas vividos pela sociedade atual, que afetam vários países, com o número crescente de violência doméstica sobretudo durante a pandemia, e que levou as mulhe- res a ficarem no mesmo ambiente violento com estresse pandêmico e violência, preci- sa ser confrontada por homens e mulheres. Patriarcado Sistema sociopolítico que coloca os homens em situação de poder. Esta foi, sem dúvida, mais uma das di- versas consequências nefastas da pande- mia causada pela covid-19: o aumento da violência doméstica que atinge, na maio- ria, mulheres. (ONU BRASIL, 2020) Além de deixar as mulheres mais ex- postas, por ficarem isoladas junto ao seu agressor, a pandemia acirra a desigualda- de social e de gênero. No contexto de denúncias de condutas sexualmente abusivas e violentas de ho- mens, surge o debate mais público sobre os atributos do que se entende tradicio- nalmente por “ser homem” e os modelos de masculinidade que foram aceitos sem questionamentos e que impactavam nos comportamentos masculinos caracteri- zados por homens que não falam de seus sentimentos, não cuidam da própria saú- de, não demonstram fragilidade e resol- vem seus conflitos de forma violenta. Alterar o contexto social que cons- trói ambiência para uma masculinidade tóxica pressupõe o necessário cuidado para que sejam promovidas reais trans- formações nas relações. O modelo de masculinidade que foi elaborado com características tão violentas não será vencido apenas com imposição legal. Certamente, isso evitará que os homens pratiquem crimes previstos na legislação, mas isso não é suficiente. no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER 11 É preciso romper com os modelos cul- turais dos estereótipos do feminino e do masculino. Recente episódio de violên- cia física contra a mulher envolvendo um músico famoso no Brasil chamou atenção pela disparidade de comportamento com a música e com a família e o comporta- mento com a mulher. Nesse sentido, é urgente ampliar o de- bate com o universo masculino. Assumir que, da mesma forma que as realidades sociais são múltiplas e dinâmicas, assim se comportam as masculinidades. É preci- so contar com partes das masculinidades que também se sentem oprimidas pelo modelo que lhes foi imposto. No Brasil e no mundo, várias iniciati- vas surgem no sentido de dialogar com esses homens. O primeiro programa de intervenção com homens autores de vio- lência (Emerge) foi criado em Boston, nos Estados Unidos, em 1977, a partir dos movimentos de mulheres contra a violên- cia de gênero e dos primeiros serviços de apoio para mulheres. Nos anos 1990, algumas iniciativas de atendimento aos homens envolvidos com violência contra a mulher foram iniciadas, porém essa entrada se dava a partir do sistema de justiça, ou seja, a vio- lência já tinha ocorrido. Outras ações encontradas foram a do Núcleo de Atendimento à Família e aos Autores de Violência Doméstica, criado em 2003, no Distrito Federal, e alguns que sugiram em outros estados, como Santa Catarina e Minas Gerais. Em 2008, na esfera das ações do Pac- to Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, a Secretaria de Políti- cas para Mulheres da Presidência da Re- pública (SPM) desenvolveu as Diretrizes Gerais dos Serviços de Responsabilização e Educação do Agressor, documento que integra as orientações sobre a Rede de En- frentamento à Violência (BRASIL, 2011). SAIBA MAIS O movimento “#MeToo” ganhou força em 2017, quando a atriz Alyssa Milano publicou no seu perfil no Twitter um pedido para que todas as pessoas que já sofreram assédio sexual usassem a hashtag #MeToo. O termo viralizou não só em Hollywood, mas no mundo todo. Homens e mulheres compartilharam inúmeras histórias de abusos e assédios sexuais. Leia sobre o assunto em: https://veja.abril. com.br/videos/veja-explica/voce-sabe-o- que-e-o-movimento-metoo-veja-explica/ FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE12 No contexto pós-Lei Maria da Penha, o primeiro serviço criado de acordo com seus artigos 35 e 45 foi o Serviço de Educa- ção e Responsabilização para Homens au- tores de violência contra mulher (SERH), no âmbito do Ministério da Justiça. Uma contribuição importante foi o Relatório mapeamento de serviços de atenção grupal a homens autores de vio- lência contra mulheres no contexto bra- sileiro, publicado em 2014 pelo Instituto Noos. Foram encontrados, na época, 25 programas em diferentes estados brasi- leiros, obtendo informações mais deta- lhadas sobre 19 deles. Atualmente várias iniciativas tanto no âmbito da justiça quanto em perspectiva preventiva ocorrem no Brasil. É o caso do programa PapodeHomem, que aborda esse modelo possível de masculinidade mais sensível às questões privadas e sociais. PapodeHomem É tempo de homens possíveis. É um espaço criado, no qual todos são bem-vindos, independentemente de sexo, gênero, orientação sexual, credo ou raça. Implementa diálogos permanentes sobre o tema dos modelos de masculinidades que precisam ser alterados para pensarmos em uma sociedade mais justa e igualitária. Conheça: papodehomem.com.br no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER 13 MASCULINIDADES E VIOLÊNCIA DE GÊNERO: CENÁRIO INTERNACIONAL E NACIONAL 3 Os dados demonstram que é necessário aumentar as polí-ticas públicas destinadas ao enfrentamento da violência contra a mulher. É preciso um esforço conjunto e mundial. Em números absolutos, nosso país é um dos que mais matam mulheres no mundo. Um levantamento do Fórum Bra- sileiro de Segurança Pública, publicado no início de julho/2021, traçou um mapa da violência contra a mulher nos meses da pandemia de covid-19. Os dados foram le- vantados pelo Instituto Datafolha, que fez 2.079 entrevistas em 130 cidades em maio de 2021. O levantamento mostra que um quarto das mulheres entrevistadas rela- tou ter sofrido violência física, sexual ou verbal nos 12 meses anteriores. De acordo com o Fórum de Segurança Pública, o número de vítimas de feminicí- dio foi recorde em 2020. Houve 1.350 víti- mas, um aumento de quase 1% em relação ao ano anterior. Ainda segundo o estudo, quase 15% dos homicídios de mulheres cometidos em 2020, em que os autores do crime eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas, não foram registrados como femi- nicídio. Esse dado demonstra que ainda é preciso investir muito na formação do sistema de segurança para que se tenha a real dimensão do fenômeno no Brasil. Os dados indicam que 9 em cada 10 mulheres vítimas de feminicídio morre- ram pela ação do companheiro, do ex- -companheiro ou de algum parente. Essa é a forma mais impactante de vio- lência contra a mulher e atinge o maior direito: o direito à vida. Considerando que as mulheres têm sido assassinadas por sua condição de mulher, mas que a maioria dos casos aponta o seu parceiro íntimo como autor, éclaro que o papel do homem nesse contexto é determinante. É preciso incluir os homens no processo de desconstrução desse modelo tão violen- to de relações sociais. Outro contexto que assusta são os am- bientes de trabalho. São ambientes ex- tremamente machistas, com homens ocu- pando mais os postos de poder, e acabam sendo bastante violentos com mulheres, porém são ambientes propícios para os debates necessários sobre masculinidade. Apesar de ser um grande instrumento de empoderamento feminino, o mercado de trabalho ainda violenta muito as mu- lheres. Nesse caso, em comum com os outros, ocorrem diversas formas de vio- lência, que alertam para a necessidade de inclusão do universo masculino nas políticas de prevenção. Um dos comportamentos mais graves e o mais conhecido é o assédio sexual, conduta que se manifesta por meio de contato físico, palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostas, que causam constrangimento ou violam a liberdade sexual da mulher. É importante ressaltar que, sob o aspecto tra- balhista, nesse caso não é necessária supe- rioridade hierárquica para sua ocorrência. O assédio moral é caracterizado pela abordagem abusiva, reiterada e sistemáti- ca, realizada por meio de gestos, palavras, agressões ou comportamentos, que atin- gem a vítima causando-lhe humilhação e constrangimento. FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE14 O preconceito de gênero, que gera distinção, exclusão ou preferência injusti- ficada em relação à mulher, a coloca em situações desafiadoras para se manter no emprego. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva em 2020, 40% das mulheres afirmam ter sofrido supervisão excessiva do trabalho. A cada 10 mulheres, 7 têm mais medo de relatar gravidez ao superior do que a um homem que será pai. Além disso, é importante ressaltar que os comentários relacionados às ca- racterísticas físicas da mulher se natu- ralizaram. A pesquisa apontou que 57% das entrevistadas concordaram que a aparência física de uma pessoa conta na contratação. Esse comportamento não só aprisiona as mulheres em padrões es- tabelecidos pelos homens como também gera clima de competitividade e insegu- rança entre as mulheres. Em contrapartida, pouco se fala sobre a punição aos agressores. O estudo des- tacou que, em apenas 28% dos casos, as vítimas souberam que o agressor sofreu algum tipo de penalidade pelo fato. As diversas faces da violência contra a mulher demandam formação continuada e atualização frente as alterações da legis- lação como forma de melhor preparar os diversos profissionais que atuam com o tema. Nesse sentido, é preciso considerar VOCÊ SABIA? Como Denunciar • Disque 180: O Disque 180 é o telefone exclusivo do Governo Federal para atendimento à mulher. O número presta apoio e escuta mulheres em situação de qualquer tipo de violação ou violência de gênero. Por meio do canal, os casos são encaminhados a órgãos competentes. • Delegacias de Defesa da Mulher nos Estados e Distrito Federal. • Casa da Mulher Brasileira nos Estados. no seu enfrentamento o quanto ele foi mo- vido pela pandemia da covid-19. No ano passado, os canais Disque 100 e Ligue 180 receberam uma denúncia de violência contra a mulher a cada cinco minutos. Segundo o Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, 72% des- sas denúncias eram relacionadas a casos de violência doméstica e familiar. As ca- racterísticas do fenômeno, multifaceta- do, demandam soluções amplas e que atendam a sua diversidade. Assim, além de métodos diferenciados e estudos para melhor conhecer e acom- panhar como se manifesta essa violência, é preciso abrir os espaços de debate, chamar todos e todas para somar na busca de solu- ções conjuntas e ganhar novos braços para obter mais força de reação a fim de enten- der e vencer esse grave problema que tem crescido no Brasil. Não é possível enfrentar a violência sem contar com o público mas- culino. Enfrentar a violência é enfrentar o modelo de masculinidade que a perpetua. O tema demanda alteração de estratégias para avançar no sentido de reduzir esse tipo de violência. É muito ruim que se perceba que até agora as políticas estejam voltadas apenas a evitar conflitos ou punir agressores. É necessário promover uma alteração significativa nas relações de gênero e esta- belecer políticas que efetivem o caminho para a igualdade de gênero. no Enfrentamento à Violência CONTRA MULHER 15 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Casa Civil, 1988. Disponível em: << http://www4.planalto.gov.br/legislacao >>. Acesso em: 16 de setembro de 2020. _________ Cartilha - Ligue 180 – http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/ cartilhas/protecao%20a%20mulher/BOOKLET%20 180%20EM%20ORDEM.pdf/view Acesso em 27 de setembro de 2020. Cadernos Pagu - Print version ISSN 0104-8333On-line version ISSN 1809-4449. Cad. Pagu no.31 Campinas July/Dec. 2008. https://doi.org/10.1590/S0104- 83332008000200024. RESENHAS - Feminismo: velhos e novos dilemas uma contribuição de Joan Scott* ONU MULHERES. Documentos de referência – http://www.onumulheres. org.br/onu-mulheres/documentos-de- referencia/#:~:text=V%C3%A1rios%20acordos%20 internacionais%20orientam%20o,os%20 programas%20da%20ONU%20Mulheres. Acesso em 24 de setembro de 2020. Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19. Disponível em: https://forumseguranca.org. br/wp-content/uploads/2018/05/violencia-domestica- covid-19-v3.pdf Acesso em: 10 de setembro de 2020. YOUNG FOR HUMAN RIGHTS - DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM DAS NAÇÕES UNIDAS. Versão Simplificada dos 30 Artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Disponível em: http:// br.youthforhumanrights.org/what-are-human-rights/ universal-declaration-of-human-rights/articles-1-15. html Acesso em 28 de julho de 2021. INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO: https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/ pesquisa-revela-76-das-mulheres-ja-sofreram- violencia-e-assedio-no-trabalho/ https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/ noticia/2020-12/estudo-mostra-que-76-das- mulheres-sofreram-violencia-no-trabalho https://movimentomulher360.com.br/wp-content/ uploads/2019/01/cartilha_violenciagenero-11.pdf TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO https:// www.trt13.jus.br/informe-se/noticias/2020/08/ tribunal-lanca-cartilha-violencias-contra-a-mulher- no-trabalho/cartilha-violencia-contra-a-mulher-no- trabalho-versao-final.pdf REFERÊNCIAS FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE16 AUTORAS Leila Paiva é advogada e mestra em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB). É especialista em Direito Público e Processo Penal pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-CE. É professora de Direitos Humanos e Direito Tributário e consultora na área de Direitos Humanos, Direitos da Criança, Gênero, Tributação e Direitos Humanos e Advocacy. Atuou como coordenadora do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes da SDH/Presidência da República e do Serviço Disque 100. É assessora parlamentar. Lélia Rejane Paiva de Souza é advogada com MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestranda em Administração pela Universidade de Fortaleza (Unifor), com estudos na área de governança e compliance. É funcionária do Banco do Nordeste desde 2004, onde atualmente gerencia a Assessoria a Comitês e Colegiados Estatutários da empresa. ILUSTRADOR Carlus Campos é artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na construção do seu trabalho, aborda várias técnicas como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção gráfica ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. PatrocínioApoio Realização
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