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SEÇÃO VIII ► CAPÍTULO 86 Saúde da criança Ana Cecilia Silveira Lins Sucupira Aspectos-chave ► A mortalidade infantil diminuiu muito nas últimas décadas, tendo maior queda a mortalidade pós-neonatal. ► A obesidade infantil e a má qualidade da alimentação superaram a desnutrição como problema de saúde das crianças. ► É preciso superar a visão da puericultura tradicional, restrita à criança menor de 2 anos e limitada às orientações de alimentação, higiene, vacinas e controle do crescimento e do desenvolvimento, para uma puericultura que incorpore conceitos de risco e vulnerabilidade e entenda a criança na sua dimensão psíquica e nas suas relações com a família e com a comunidade que a cerca. ► As primeiras consultas de puericultura devem ser feitas de preferência pelo médico de família e comunidade, mas as demais, para crianças de risco habitual, podem ser feitas exclusivamente por enfermeiros. ► A frequência das consultas de puericultura deve acompanhar os riscos para cada faixa etária. ► Devem ser observados os riscos nutricionais (obesidade) e sociais nas crianças das fases pré-escolar e escolar. A atenção à saúde da criança na atenção primária à saúde (APS) pelo médico de família e comunidade é diferente do que se entende por atenção pediátrica – esta última é específica do atendimento do pediatra. Ambas as especialidades médicas podem ter uma compreensão integral do contexto da criança; entretanto, a atenção à criança, pelo médico de família e comunidade, por atender todos os membros da família e ter instrumentos de trabalho específicos para intervir na família e na comunidade, tem maiores possibilidades de intervenção na APS. A Estratégia Saúde da Família (ESF), com o médico de família e comunidade inserido em equipe multiprofissional, diversifica os olhares sobre a criança e diferencia o potencial de atuação desse profissional em relação ao trabalho do pediatra na Unidade Básica de Saúde (UBS) tradicional. A atuação do pediatra, contudo, é fundamental na retaguarda especializada nos ambulatórios de especialidades, ou mesmo na APS, por meio de sua inserção nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Nesse caso, o pediatra colabora na elaboração dos planos de cuidados de casos específicos e na organização de projetos e programas de atenção à saúde das crianças da comunidade. Este capítulo pretende delinear os princípios que orientam a atenção à saúde da criança, na APS, pelo médico de família e comunidade no estabelecimento de prioridades, na gestão de recursos e na elaboração de estratégias de atuação. A trajetória das mortes infantis A taxa de mortalidade infantil (TMI) é considerada um indicador bastante sensível do grau de desenvolvimento de uma sociedade e do cuidado que é dispensado à criança. No Brasil, esse indicador, até a década de 1990, era muito elevado, com desigualdades regionais importantes. As pressões para a redução dessa taxa, principalmente a partir dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, promoveram o desenvolvimento de várias políticas e estratégias que resultaram na redução significativa da mortalidade infantil. Na década de 1970, a TMI era de 115 óbitos por mil nascidos-vivos (NV) e, em 1980, reduziu para 83 óbitos infantis/1.000 NV, com taxa de queda de 3,2% ao ano. Esse decréscimo na TMI acentuou-se nas décadas de 1980 e 1990, com uma redução anual de 5,5%, alcançando o valor de 47,1 óbitos infantis/1.000 NV no ano de 1990.1 Entre 1990 e 2014, a mortalidade infantil no Brasil teve uma queda de 70%, passando de 47,1, em 1990, para 14,1 óbitos infantis/1.000 NV em 2014.2 A região nordeste, que apresentava as mais altas taxas, foi a que teve maior redução, passando de 75,8 para 16,3 óbitos infantis/1.000 NV, com uma porcentagem de queda de 78,5%. Vale ressaltar, que o perfil da queda da mortalidade infantil mostra uma convergência nas TMI das regiões brasileiras, com grande redução das diferenças entre elas, embora as duas regiões mais pobres, Norte e Nordeste, sejam as que ainda apresentam as maiores TMIs.2 O Brasil conseguiu atingir a meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para redução em dois terços da mortalidade infantil até 2015, já em 2011, com uma TMI de 15,3 óbitos infantis/1.000 NV.3 A redução da mortalidade infantil foi bem mais acentuada nos óbitos pós- neonatais, passando de 24 para 4,3 óbitos infantis/1.000 NV, com uma porcentagem de queda de 82,1%, sobretudo graças à redução nas doenças infecciosas e parasitárias e nos déficits nutricionais. Nesse mesmo período, aumentou a participação dos óbitos neonatais, embora a taxa de mortalidade neonatal (precoce e tardia) tenha reduzido de 23,1 para 9,9 óbitos infantis/1.000 NV. O aumento do componente da mortalidade neonatal foi principalmente pelo aumento da taxa de prematuridade, que passou de 4%, na década 1990, para 11,2% em 2014.2 De acordo com Victora e cols. “[...] a prematuridade é a principal causa de mortes infantis no Brasil, e seu aumento tem anulado os avanços conseguidos na sobrevida de recém-nascidos de baixo peso por conta das melhorias na atenção neonatal”.1 Além do aumento do número de prematuros, em função dos avanços tecnológicos que permitem que gestantes de alto risco possam engravidar e ter seus filhos, há de se considerar o aumento das cesáreas programadas que levam ao nascimento de recém-nascidos (RNs), nem sempre a termo. A mortalidade na infância (menores de 5 anos) reduziu de 53,7, em 1990, para 16,3 óbitos em menores de 5 anos/1.000 NV, com uma porcentagem de queda de 69,6%.2 Em 2014, a TMI da região Norte era de 21, ao passo que na região Sul era de 12,4 óbitos em menores de 5 anos/1.000 NV, mostrando que as diferenças regionais ainda persistem.2 Após grande diminuição das doenças infecciosas, as principais causas de morte nessa faixa de idade são os acidentes e as neoplasias. Apesar da grande redução na TMI, os valores ainda continuam elevados. Desde 2012, apenas 9 Estados brasileiros apresentam TMI abaixo da verificada para o Brasil e, em 2014, apenas 8 Estados apresentaram valores menores do que a TMI verificada para o Brasil. Panorama atual da saúde da criança brasileira Victora e cols., na série de artigos publicados no Lancet (2011) sobre a saúde no Brasil, apontaram as mudanças ocorridas nas últimas décadas, que levaram à redução da mortalidade e à melhoria das condições de saúde da criança.1 As condições socioeconômicas e demográficas foram consideradas fatores determinantes para o atual perfil de saúde da criança brasileira. As mudanças referidas ocorreram devido ao crescimento econômico, à redução das desigualdades de renda, à urbanização, à melhoria no grau de instrução das mulheres e à diminuição da fecundidade, ao aumento da rede de saneamento básico, além da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e da ESF, ampliando o acesso aos cuidados de saúde.1,3 A Organização das Nações Unidas creditou a redução da mortalidade infantil no Brasil às políticas de assistência social, como o Programa de Transferência de Renda Bolsa Família.2 A situação da saúde da criança apresenta, portanto, mudanças significativas, com redução das doenças infecciosas e surgimento de novas morbidades que requerem abordagens diferentes. O aumento da prematuridade e o desenvolvimento de tecnologias sofisticadas, para o cuidado com o RN, possibilitaram a sobrevida de muitas crianças, aumentando o número de bebês de alto risco, que demandam estratégias diferenciadas de seguimento, também na APS.4 O estado nutricional da criança brasileira apresentou melhora importante, sendo a desnutrição quase virtual.De acordo com a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde das crianças e da mulher,5 comparações quanto à prevalência de déficits de peso para altura confirmam a reduzida exposição da população a formas agudas de desnutrição (3% em 1996 e 2% em 2006). Nesse mesmo período, avaliações da prevalência dos déficits de altura mostram redução de cerca de 50% (de 13 para 7%) na prevalência da desnutrição na infância no Brasil. Na região Nordeste, houve a maior queda da desnutrição, de 22,1 para 5,9% (redução de 67%).5 Superando a desnutrição infantil, os maiores problemas nutricionais, atualmente, são a má qualidade da alimentação da criança e a obesidade, que atinge 6 a 7% das crianças.1 A redução da mortalidade por pneumonias e a introdução da terapêutica inalatória na APS tiveram como efeito uma mudança no perfil da demanda por doenças respiratórias, com expressiva redução das internações e maiores possibilidades de controle desses problemas de saúde. O Brasil vive hoje uma situação de transição epidemiológica, na qual se observa a convivência de doenças infecciosas em declínio e doenças crônicas em ascensão. O desenvolvimento de novos antibióticos mais efetivos e os avanços na cirurgia pediátrica e nas terapias intensivas têm possibilitado a melhora no cuidado pediátrico, permitindo que crianças com doenças, antes de alta letalidade, estejam vivendo mais tempo e com qualidade de vida melhor. As doenças que outrora exigiam tratamentos exclusivamente hospitalares, hoje são tratadas em ambulatórios de especialidades, e as crianças portadoras dessas condições podem e devem ser acompanhadas em conjunto na APS. No Brasil, não estão disponíveis dados precisos sobre a prevalência dessas doenças. Nos EUA, em 1962, 2% das crianças americanas tiveram uma doença crônica com limitação de atividades e, em 2003, já eram 8% das crianças. Outro dado importante, 12 a 16% das crianças americanas têm necessidades de cuidados especiais.6 Aumenta a demanda por cuidados com a saúde ocular, bucal e auditiva e as queixas referentes à escolarização, ao comportamento e à saúde mental. Surge, assim, uma nova morbidade, determinada pelo modo como a criança vivencia seu processo de socialização na família, nos bairros, na creche, na escola e nos demais espaços coletivos. O uso abusivo de computadores e de jogos eletrônicos começa a trazer para as crianças problemas como lesões por esforço repetitivo, antes exclusivos dos adultos.7 A violência urbana já faz vítimas também entre as crianças. A violência doméstica contra crianças vem crescendo, principalmente na periferia das grandes cidades, com manifestações que vão desde a negligência aos maus-tratos e abusos sexuais. Problemas na relação pais/filhos, separação dos pais e dificuldades com crianças adotadas são queixas frequentes na APS. Acidentes, atropelamentos e mesmo homicídios são novos problemas de saúde da criança nas cidades de grande e médio porte. Essas demandas exigem ações bem diferentes daquelas tradicionalmente propostas nos programas de atenção à criança e para as quais, muitas vezes, os profissionais de saúde não receberam uma formação adequada. Puericultura e propostas de atenção à saúde da criança Historicamente, durante várias décadas, o perfil de morbimortalidade no Brasil definiu a população infantil como prioritária para as ações de saúde. As altas taxas de mortalidade infantil e de prevalência de doenças infectocontagiosas exigiram ações especificamente dirigidas à criança de 0 a 5 anos. Nos anos de 1970, a emergência do Programa Materno-Infantil (PMI) foi uma das tentativas para racionalizar e implementar políticas sociais, em resposta aos movimentos populares por saúde. Uma das propostas desse programa era alternar consultas mensais de puericultura, entre médicos e enfermeiros, para racionalizar o atendimento e aumentar a cobertura, diante de uma demanda de crianças bastante elevada naquela época.8 Atualmente, apesar das mudanças nas condições de saúde da criança e da diminuição da demanda infantil, permanece ainda, em muitos locais, essa lógica de orientação na atenção à saúde da criança. O PMI tinha como proposta intervenções padronizadas para os problemas mais frequentes da população, sem levar em conta as especificidades de cada local. Os pontos fortes eram as orientações alimentares (sobretudo a amamentação, para reduzir a desnutrição e a ocorrência de infecções intestinais) e a terapia de reidratação oral para o tratamento de doenças diarreicas. No início dos anos de 1980, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Criança, na mesma linha, propunha a normatização das cinco ações básicas de saúde: acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento; promoção do aleitamento materno; controle das doenças diarreicas; controle das doenças respiratórias; e controle das doenças imunopreveníveis.8 Durante todo esse período, pode-se notar a influência do discurso da puericultura, no qual a educação é a base da ação sanitária. As orientações incorporavam os modernos preceitos científicos, entretanto, a solução dos problemas ainda estava na educação da população mais pobre. De acordo com Novaes,9 “[...] a puericultura se propunha a normatizar todos os aspectos que dizem respeito à melhor forma de se cuidar de crianças, tendo em vista a obtenção de uma saúde perfeita”. Embora se dirigisse a todas as crianças indistintamente, o alvo principal eram as crianças pobres que apresentavam inúmeros riscos à saúde. E, acrescenta, [...] parte de uma situação que é resultado e a transforma em causa: pensa as más condições de saúde da criança como consequência da falta de informação das pessoas e não como reflexo de uma situação de vida em que a má saúde e a ignorância fazem parte de uma condição social desfavorável.9 As propostas de atenção à criança caracterizavam-se por uma padronização que não considerava as diferenças regionais e a diversidade e especificidade da população infantil e, principalmente, as relações da criança com sua família e seu meio social. Hoje, embora o discurso da puericultura, como uma proposta estruturada que visava à educação em saúde e à normatização da vida, não esteja tão forte nas diretrizes de atendimento à criança na APS, ainda é possível identificar muitos dos seus princípios, que direcionam o acompanhamento da criança nos 2 primeiros anos de vida. Após essa idade, embora as novas demandas comecem a se tornar mais presentes, a criança só será vista nos momentos em que adoece, com um atendimento dirigido especificamente ao agravo. A criança acima de 2 anos e as morbidades que acometem crianças maiores, ainda não foram incorporadas como propostas sistematizadas de atendimento pela APS. Realizar ações que garantissem a sobrevivência das crianças foi o objetivo maior das últimas décadas. Atualmente, não basta sobreviver, é preciso dar condições para a criança viver com qualidade. Ou seja, permitir que a criança realize o seu potencial de desenvolvimento e usufrua dos bens que a sociedade produz. Um novo olhar para a saúde da criança É preciso mudar o modelo de atendimento à criança na APS, que, algumas vezes, ainda mantém as diretrizes da década de 1970, respaldado na puericultura tradicional, restrito à criança menor de 2 anos e limitado às orientações de cunho higienista. A puericultura baseada em propostas comportamentais precisa se atualizar, incorporando conceitos de risco e vulnerabilidade, entendendo a criança na sua dimensão psíquica e nas suas relações com a família e a comunidade. A criança na sociedade atual adquiriu novos contornos,ganhando uma complexidade que demanda um olhar mais ampliado, que a enxergue como um sujeito social, com vivências diversas. Faz-se necessário incorporar a nova realidade da saúde infantil e os avanços no conhecimento científico que deve orientar as estratégias no cuidado com a criança. A APS tem de incluir o escolar e o adolescente, bem como a dinâmica familiar e os espaços sociais onde convivem. O modelo biomédico é insuficiente para dar conta de muitas das queixas atuais. A inserção do médico de família e comunidade na equipe de saúde da família, responsável por uma clientela adscrita, permite uma maior aproximação das realidades da criança, da família e da comunidade, possibilitando maior vínculo com a criança e com a família, bem como o desenvolvimento de ações mais adequadas às demandas apresentadas. O enfoque, mais atual, da promoção da saúde muda o eixo da simples orientação educativa e detecção precoce dos problemas para a intervenção nos determinantes mais gerais do processo saúde/doença. Os olhares da ESF ampliam a percepção da criança e da família. Em especial, o agente comunitário de saúde (ACS) amplia o olhar da equipe, e por pertencer à mesma comunidade da família, pode trazer informações mais específicas que facilitam as propostas de intervenção. São necessários, portanto, novos olhares no cuidado com a saúde da criança. Metas prioritárias A unidade de saúde deve definir seus objetivos e suas metas em relação à criança, para poder analisar seus resultados. As metas prioritárias na atenção à saúde da criança devem ser decididas com a comunidade, no conselho local de saúde, em concordância com as decisões do conselho municipal de saúde. Embora as metas tenham de seguir aquelas definidas para o município, é possível acrescentar outras metas que atendam à realidade do território e da unidade. No Quadro 86.1, são apresentados exemplos de objetivos para a definição de metas para a saúde da criança na APS. Quadro 86.1 | Exemplos de objetivos para a definição de metas ► Garantir atenção integral e de qualidade à criança de 0 a 10 anos ► Reduzir os óbitos evitáveis por condições sensíveis à APS ► Reduzir as internações por condições sensíveis à APS ► Aumentar o aleitamento materno exclusivo ► Aumentar o número de crianças com vacinação em dia ► Reduzir a incidência de acidentes infantis APS, atenção primária à saúde. Entre as condições sensíveis à APS, definidas pelo Ministério da Saúde (MS), destacam-se, para a população infantil: doenças preveníveis por imunização, gastrenterites infecciosas e suas complicações, anemias, infecções otorrinolaringológicas, pneumonias bacterianas, asma e outras doenças pulmonares, infecções do trato urinário, doenças da pele, entre outras.10 Agenda de compromissos para o atendimento à criança Introduzir o conceito de responsabilidade social na atenção à saúde da criança implica definir uma agenda de compromissos, que deve ser pactuada com a comunidade nos conselhos locais de gestão e, inclusive, com o conselho municipal de saúde. Nessa perspectiva, é preciso construir essa agenda, a partir do diagnóstico do território e da comunidade, identificando os principais problemas/necessidades de saúde e definindo compromissos que permitam alcançar as metas definidas previamente. No Quadro 86.2, são listadas algumas ações que podem fazer parte da agenda de compromissos. Quadro 86.2 | Ações que podem fazer parte da agenda de compromissos no atendimento à criança ► Realizar o teste do pezinho, para rastreamento de anemia falciforme, hipotireoidismo e fenilcetonúria em todos os RNs ► Assegurar atenção diferenciada para o bebê conforme a classificação de risco ► Garantir a realização de uma visita domiciliar após a alta hospitalar do bebê ► Implantar ações voltadas para o desenvolvimento infantil ► Realizar teste de acuidade visual nas crianças de 4 e 7 anos ► Garantir atenção integral às crianças com deficiências e com transtornos do desenvolvimento, assim como garantir o apoio terapêutico para a inclusão dessas crianças nas unidades escolares ► Realizar os procedimentos odontológicos coletivos na faixa etária de 0 a 10 anos ► Implantar estratégias para garantir atenção integral à criança vítima de violência ► Desenvolver projetos para a prevenção das doenças de transmissão vertical ► Elaborar projetos de prevenção ao uso abusivo de drogas RNs, recém-nascidos. Princípios do atendimento à saúde da criança As transformações ocorridas com a implantação do SUS implicaram a reorganização dos serviços de saúde. Na área da criança, o antigo “Posto de puericultura” deixa de ser um serviço cujo objetivo principal eram as orientações educativas, de acordo com os preceitos higienistas da educação em saúde, para se transformar em um serviço de atendimento ambulatorial, com uma proposta de atenção integral que não dissocia a promoção da saúde e a prevenção de doenças das ações de assistência e de recuperação da saúde. O processo saúde/doença da criança compreende um ser que vivencia os diferentes riscos de adoecer e morrer, conforme o momento do seu processo de crescimento e de desenvolvimento e a sua inserção social. Assim, suas necessidades de saúde são decorrentes da condição de ser criança, em uma determinada sociedade e da sua vivência na família e nos diferentes equipamentos e espaços sociais. A criança, de modo geral, é mais suscetível aos agravos infecciosos nos primeiros anos de vida. À medida que a criança cresce, diminui a vulnerabilidade biológica de tal forma que, na idade escolar, se pode esperar uma verdadeira “calmaria biológica”. Entretanto, isso se aplica aos agravos biológicos, mas as situações de risco determinadas pelas condições de vida se mantêm e são determinantes dos principais problemas nessa faixa etária. Isso significa a necessidade de uma mudança de olhar da unidade, atualmente centrada na criança de 0 a 2 anos, para voltar-se também para o pré-escolar e o escolar. O desafio de abordar a saúde da criança aponta para a necessidade de priorizar os problemas/necessidades de saúde e as situações de risco mais importantes, entendendo-as no contexto de vida e identificando as potencialidades de saúde da comunidade onde vive essa criança. O processo de crescimento e de desenvolvimento é um aspecto marcante da infância que deve nortear a atenção à saúde da criança, de tal forma que a vigilância dos fatores que podem interferir nesse processo constitui uma das bases da assistência. Busca-se manter o estado de saúde física e afetiva para que o crescimento e o desenvolvimento possam ocorrer adequadamente. As ações voltadas para o desenvolvimento da criança na primeira infância (0-6 anos) são importantes para o desempenho da criança na fase escolar. A observação do modo como a criança está se desenvolvendo, feita pelo ACS no domicílio, acrescenta dados importantes para a avaliação do desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM) realizada pelo médico de família na consulta. O acompanhamento das crianças pela Unidade de Saúde constitui, portanto, um dos procedimentos importantes para a redução do coeficiente de mortalidade infantil e para que as crianças possam alcançar uma melhor qualidade de vida. Embora seja evidente que as condições de vida, como moradia, educação e saneamento, têm impacto direto nesses indicadores, e o tipo de acompanhamento e a oferta de serviços de saúde são também determinantes das condições de saúde das crianças. Vigilância à saúde da criança O processo de vigilância à saúde não é restrito às ações do médico de família e comunidade, que deve contar com a participação de todos os profissionaisda unidade, em geral da equipe de saúde da família. A diversidade dos olhares permite o acúmulo de informações necessárias para acompanhar os eventos, que interferem no processo saúde/doença da criança. A vigilância à saúde da criança, como já foi apontado, não deve se restringir à criança menor de 2 anos, nem aos problemas nutricionais. Os critérios definidos para a seleção das crianças, que deverão ser priorizadas pela vigilância à saúde, incluem tanto aspectos biológicos como situações de risco social. Esses critérios devem ser revistos à medida que a criança vai crescendo e suas vivências vão se modificando. Ênfase nas ações de promoção da saúde A atenção à criança não se restringe ao atendimento curativo ou mesmo a ações voltadas apenas à prevenção de doenças, mas deve se estruturar visando a ações sobre os determinantes dos agravos e à construção de ambientes e alternativas de vida mais saudáveis. Dessa forma, propostas dirigidas à aquisição de hábitos alimentares mais sadios, ao desenvolvimento de atividades físicas ou a ações que possibilitem a incorporação de conhecimentos sobre o processo saúde/doença constituem caminhos efetivos de promoção da saúde. Diante das evidências de que muitas doenças do adulto têm origem na infância, a promoção de um modo de vida saudável é considerada como meio para prevenir as doenças crônicas do adulto.11 O desafio no atendimento de puericultura é identificar orientações que façam sentido para a população atendida, na perspectiva de construir uma vida saudável. Pensar junto com a família da criança que ações podem ser desenvolvidas para minimizar o efeito das condições adversas que a criança e a família estão vivendo. Encontrar soluções na perspectiva do seu meio sociocultural, evitando imposições vindas de protocolos e recomendações próprias de outras regiões e classes sociais. Acolhimento da demanda, identificando problemas/necessidades de saúde A atenção à criança deve ser orientada tanto para a demanda programática como para a demanda eventual. Assim, é importante atender os problemas de saúde que constituem as queixas/sofrimentos e gerar demandas para o atendimento de necessidades de saúde não percebidas. É fundamental ir além da resolubilidade imediata da queixa trazida, reconhecendo as condições e os fatores envolvidos na produção da queixa, do sofrimento e da saúde. Ampliação do olhar, trabalhando em equipe Outro aspecto importante é que a atenção à saúde da criança não se resume ao atendimento do médico, nem ocorre de forma isolada. O modo como se organizam os serviços de saúde, na perspectiva do SUS, e os novos modelos técnico-assistenciais têm introduzido modificações significativas no trabalho dos profissionais de saúde dirigido à criança. A socialização do atendimento exige maior integração da equipe de saúde que atua junto à criança e sua família. O conceito de anamnese é ampliado, incorporando informações de toda a equipe de saúde. Ao olhar médico, somam-se os olhares de cada um da equipe de saúde e dos familiares. O ACS é fundamental no conhecimento da criança que traz uma queixa de sofrimento, porque ele amplia as informações que se podem obter sobre as relações familiares e as condições de vida, incluindo habitação, formas de lazer e socialização. O olhar do ACS é um olhar que se aproxima da família, por serem da mesma comunidade. As visitas domiciliares realizadas pela equipe de saúde estendem o olhar para além daquilo que é possível observar na Unidade de Saúde. Criança com condição crônica de saúde Em geral, quando se fala em doença crônica, pensa-se logo no especialista e no atendimento hospitalar. A maioria dos textos faz referência à hospitalização da criança, o impacto dessas experiências e os recursos hospitalares necessários. Outra linha de publicações aborda a criança dependente de tecnologia, ou seja, doenças crônicas que levam a criança a depender de aparelhos e equipamentos.4,6 Pouco se escreve sobre as características do acompanhamento de crianças com condições crônicas de saúde na APS. O aumento das doenças crônicas na infância e o desenvolvimento tecnológico, que permite o tratamento dessas crianças em nível ambulatorial, impõem um novo desafio à UBS, que é o de incluir a criança com uma condição crônica de saúde na APS. McMenamy e Perrin12 afirmam a necessidade de um profissional que coordene a atenção à criança com uma condição crônica de saúde, integrando o cuidado realizado na APS com o atendimento do pediatra especialista. A criança com síndrome de Down, artrite reumatoide juvenil, ou nefropatias também apresenta patologias frequentes e necessita de acompanhamento de puericultura. É preciso estabelecer um plano de cuidados, incluindo a reabilitação ou habilitação, em conjunto com os serviços especializados, que inclua um projeto de vida para a criança e a família. Esse é um aspecto importante para desfazer a imagem da criança doente, construída, muitas vezes, pelos serviços de saúde e pela família e, finalmente, assumida pela própria criança. A integração entre os serviços de saúde, com um efetivo sistema de comunicação entre eles, é fundamental para que os dados da criança sejam conhecidos por todos os profissionais que a atendem, nos diferentes locais do sistema de saúde. Essa integração repercute diretamente na qualidade da atenção, ao possibilitar a complementação das informações, que permitem construir a história do sofrimento da criança e estabelecer as estratégias de abordagem dos problemas ou do sofrimento. Relações entre o atendimento do médico de família e comunidade e dos pediatras especialistas No contexto do SUS, o clínico geral e o enfermeiro são competentes para o atendimento na atenção primária, lidando com os diferentes níveis de complexidade dos problemas de saúde mais frequentes. O pediatra especializado deve lidar com os problemas de saúde, cuja abordagem envolve uma densidade tecnológica maior, em termos de equipamentos, e exigem um acúmulo de experiência específica naquele tipo de doença, que é menos frequente na população. O referenciamento para outros serviços da Rede de Atenção à Saúde deve considerar, portanto, as características do problema trazido, detectadas no atendimento inicial pelo médico de família e comunidade. Esse referenciamento obedecerá à necessidade de utilização de tecnologias mais especializadas e de uso mais restrito. Assim, as infecções respiratórias, responsáveis pela grande maioria da demanda de crianças aos serviços de saúde, devem ser tratadas pelo médico de família. Os casos em que é necessária a investigação de outros fatores que podem estar interferindo na frequência e na gravidade dos episódios respiratórios deverão contar com o apoio do pediatra no NASF. Apenas alguns poucos casos, que requeiram tecnologias mais especializadas, como a realização de provas específicas de função pulmonar ou investigação específica de distúrbios de imunidade, deverão ser remetidos às clínicas de especialidades para serem vistos pelo pediatra especialista em pneumologia. Puericultura e conceito de risco e vulnerabilidade As propostas na área da puericultura, não mais orientadas com o objetivo de normatizar as condutas no cuidado com a criança, mas tendo como eixo principal o conceito de risco e vulnerabilidade, podem efetivamente intervir na condição de saúde das crianças. Os avanços nos conhecimentos sobre os fatores envolvidos na produção das doenças e, mais amplamente, do sofrimento, geraram um novo campo de atuação para o profissional de saúde. Assim, o conceito de risco e a identificação de situações e comportamentos de risco possibilitamavanços na prática da puericultura, colocando-a como uma atividade que é parte da atenção à criança em qualquer nível de atendimento. O enfoque de risco consiste na constatação de que diferentes grupos populacionais apresentam riscos diferenciados de danos à saúde, em decorrência de características individuais, exposições ambientais ou circunstâncias sociais: os chamados fatores de risco. A identificação dos fatores de risco tem ampla operacionalidade pela sua capacidade preditiva e pela possibilidade de controle ou de eliminação desses fatores e consequente redução da probabilidade de ocorrência dos agravos/danos. Além disso, permite a identificação dos grupos de maior risco, que devem ser priorizados pelos serviços de saúde. A incorporação do conceito de vulnerabilidade amplia a compreensão da criança e da família ao considerar, como propõe Ayres, a dimensão individual (os aspectos biológicos, comportamentais e afetivos), que implica exposição e suscetibilidade; a social (o contexto e as relações sociais) e a programática (políticas, serviços e ações).13 Ou seja, as características e os comportamentos do indivíduo, as condições em que ele vive, as relações que estabelece nesse contexto e as oportunidades de acesso aos serviços que são ofertados o tornam mais ou menos suscetível a determinados agravos. No caso da criança, podem-se entender as características individuais (baixo peso ao nascer, obesidade, deficiências imunológicas), a dinâmica familiar e o modo como a criança se expressa (agressividade, agitação, timidez), nos ambientes em que convive (a escola, espaços de lazer) e o acesso aos serviços de saúde. Outro fato importante, que vem dando um novo direcionamento para a puericultura, é a hipótese das origens desenvolvimentistas da saúde e da doença do adulto. Estudos epidemiológicos e biológicos demonstraram que há uma relação entre agravos ocorridos em fases iniciais do desenvolvimento somático e a amplificação do risco para doenças crônicas ao longo da vida, tais como obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares (DCVs). O crescimento intrauterino restrito estaria associado ao aparecimento de fatores de risco para DCVs na idade adulta.11 Nessa perspectiva, o período do crescimento intrauterino e o acompanhamento da saúde da criança são, portanto, fundamentais para a vida futura do indivíduo. A puericultura, além da criança de 0 a 2 anos, deve abranger o pré-escolar e o escolar, identificando grupos de risco, por apresentarem características clínicas como obesidade, doenças crônicas, mas, principalmente, condições emocionais ou sociais de risco. Não se pode pensar em atendimentos sequenciais padronizados para o acompanhamento dessas crianças, mas a elaboração, pela ESF, de estratégias de abordagem e cronogramas de atendimento específicos que permitam dar conta das necessidades individuais dessas crianças. Atendimentos em grupos (não necessariamente organizados pelo médico) e incorporação de atividades nos espaços de convivência dessas crianças são atividades a serem consideradas para as crianças maiores. Impõe-se repensar a puericultura como um campo que permite atuar sobre os fatores e as situações que podem favorecer o aparecimento de determinados problemas de saúde, a partir do reconhecimento das condições concretas em que ocorre o processo saúde/doença, no contexto de vida de cada criança específica. Prioridades no atendimento à criança O predomínio da mortalidade neonatal e a importância de se evitar agravos na vida intrauterina e no início da vida pós-natal, com o objetivo também de evitar doenças na idade adulta, demandam mais qualidade na assistência à gestante, ao parto e à criança no primeiro ano de vida. Nesse sentido, o médico de família, que tem a oportunidade de conhecer a família e atender a mãe durante o pré- natal e o puerpério, terá mais informações para o atendimento do RN. Atendimento diferenciado às crianças de acordo com os conceitos de risco e a vulnerabilidade A equidade pressupõe atendimento diferenciado de acordo com as necessidades de cada criança. É preciso, portanto, diferenciar o atendimento, segundo os fatores de risco e a situação de vulnerabilidade. Considera-se aqui que todos os RNs vivenciam situações de maior vulnerabilidade que variam de acordo com o seu grau de risco. Podem-se diferenciar os RNs de acordo com suas características biológicas e as condições de vida da família, o risco individual. Durante o acompanhamento da criança, é possível identificar novos fatores de risco e situações de vulnerabilidade que a tornem mais suscetível à ocorrência de agravos. A proposta aqui apresentada classifica a criança ao nascimento, sendo possível, refazer esta classificação durante o acompanhamento. Tradicionalmente se costuma classificar em RN de alto risco e baixo risco, ou, ainda, RN normal. Os RNs de alto risco podem ser normais, mas apresentam riscos e vulnerabilidade por diversas razões. Em Sobral, no Ceará, foi proposta uma forma diferente de classificação de risco. Inicialmente, passou-se a classificar a gestante em risco clínico, social ou habitual. Em seguida, o protocolo da criança adotou também essa classificação.14,15 Atualmente, no atendimento às crianças no Centro de Saúde-escola do Butantã (CSEB), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, utiliza-se essa classificação, diferindo apenas na adequação dos critérios de risco, em função da realidade local. A classificação do RN, logo após o nascimento, utiliza as três categorias: RN de risco clínico, RN de risco social ou RN de risco habitual. O risco clínico é identificado quando estão presentes condições biológicas decorrentes da gestação, do parto ou do período neonatal, que vão exigir cuidados mais diferenciados. O risco social refere-se às condições familiares que caracterizam maior vulnerabilidade ao RN. No risco habitual, os fatores de risco são definidos pela própria condição de ser criança, quando não estão presentes as condições que poderiam classificá-la como de risco clínico ou social. A criança, em especial o RN, apresenta riscos decorrentes da sua imaturidade imunológica e das características do seu desenvolvimento. Durante o acompanhamento, a criança pode vir a ser classificada como risco social, quando apresentar as condições que já foram mencionadas para o RN. O risco clínico passa a ser chamado de risco clínico adquirido e mantém-se a classificação de risco habitual, quando a criança segue sua vida sem alterações na sua condição clínica e social e com os mesmos fatores de risco decorrentes de sua condição de ser criança. Para a identificação da criança quanto ao tipo de risco, são colocadas etiquetas no envelope ou na capa do prontuário. Considerando que o problema mais difícil de resolver são as questões sociais, requerendo mais atenção, a etiqueta vermelha significa o risco social. A etiqueta amarela define o risco clínico ao nascer, e a laranja, o risco clínico adquirido. Os RNs e as crianças de risco habitual recebem a etiqueta verde. Critérios para identificar as crianças de risco social, clínico e habitual A definição dos critérios de risco clínico e social pode variar de uma região para outra, dependendo das características demográficas e socioeconômicas locais, bem como dos recursos humanos disponíveis nos serviços de saúde. Levou-se em consideração que os critérios selecionados devem eleger crianças que realmente precisam de cuidados mais específicos e em número adequado à capacidade da equipe de saúde de garantir atendimento diferenciado. No Quadro 86.3, sãoapresentados os critérios de risco social ao nascer e risco social adquirido, utilizados no CSEB. No Quadro 86.4, são apresentados os critérios de risco clínico ao nascer e risco clínico adquirido, utilizados no CSEB. É importante lembrar-se de que os RNs que apresentam, por exemplo, doenças genéticas, lesões neurológicas ou doenças de transmissão vertical preencherão o critério de internação após a alta materna, sendo classificados como de risco clínico. No Quadro 86.5, são apresentados os critérios de risco habitual ao nascer e risco habitual adquirido, utilizados no CSEB. Os critérios devem ser discriminativos, ou seja, incluam apenas aquelas crianças que realmente precisam de cuidados mais diferenciados. A inclusão de muitos critérios pode levar à seleção de um contingente muito grande de crianças, dificultando a priorização dos cuidados. Quadro 86.3 | Critérios para classificação do recém-nascido de risco social ao nascer e risco social adquirido Risco social O risco social* deve ser estabelecido logo no primeiro atendimento da criança Reavaliações devem ser feitas a cada 6 meses Em todos os atendimentos, devem ser considerados os riscos sociais adquiridos A etiqueta será sempre vermelha Ao nascimento ► Mãe adolescente abaixo de 15 anos ► Mãe analfabeta ► Mãe sem apoio familiar ► Família proveniente de área de risco social ► Chefe da família sem fonte de renda ► Migração da família há menos de 1 ano ► Morte evitável de criança menor de 5 anos na família ► Mãe com problema psiquiátrico que impossibilite os cuidados com a criança ► Mãe com algum tipo de deficiência que impossibilite os cuidados com a criança ► Mãe dependente de álcool e/ou drogas ► Criança manifestamente indesejada ► Mãe com três filhos menores de 5 anos Risco social adquirido São válidos todos os critérios referidos para o nascimento e mais: ► Criança que se tornou manifestamente indesejada ► Criança com suspeita de maus-tratos, negligência e abuso sexual ► Família com problemas de relacionamento repercutindo na criança *Na definição do RN de risco social, alguns fatores, como criança manifestamente indesejada, ou mãe dependente de álcool ou drogas ilícitas, podem ser únicos. Outros aspectos deverão exigir associação com outros critérios. Mãe adolescente que tem o apoio da avó nos cuidados da criança pode não definir um risco social. Quadro 86.4 | Critérios para classificação do recém-nascido de risco clínico ao nascer e risco clínico adquirido Risco clínico O risco clínico tem critérios bem objetivos e deve ser definido na primeira consulta do paciente Para o segundo critério, reavaliações devem ser feitas a cada 6 meses O risco clínico adquirido deve ser definido durante o seguimento da criança Reavaliações devem ser feitas em todas as consultas A etiqueta será laranja Ao nascimento ► Peso ao nascer < 2.500 g ► Internação após a alta materna Risco clínico adquirido ► Criança com três ou mais atendimentos em serviços de pronto-atendimento, em um período de 3 meses ► Após a segunda internação, em um período de 1 ano ► Crescimento ou desenvolvimento inadequado ► Criança com sobrepeso ou obesidade ► Criança portadora de condição clínica crônica Quadro 86.5 | Critérios para classificação do recém-nascido de risco habitual ao nascer e risco habitual adquirido Risco habitual A etiqueta será sempre verde Ao nascimento RN cujos fatores de risco são definidos pela condição de ser criança e que não apresentam as condições clínicas e sociais listadas Risco habitual no seguimento As crianças que seguem sua vida sem alterações na sua condição clínica e social, com os mesmos fatores de risco decorrentes de sua condição de ser criança A identificação dos RNs de risco clínico pode ser feita durante o pré-natal, na maternidade, ou, ainda, pelo ACS no primeiro contato com a mãe em visita domiciliar, uma vez que os critérios são objetivos e fáceis de identificar. A definição do risco social deve ser feita na discussão com a equipe de saúde da família. A utilização dessa classificação de risco, adotada há mais de 3 anos, tem mostrado bons resultados, tanto em Sobral como no CSEB. Visita na primeira semana de vida A visita da equipe de saúde, na primeira semana de vida após a alta hospitalar, é de grande importância para a mulher que, naquele momento, vivencia a primeira ou uma nova experiência de ser mãe, o que é sempre uma experiência singular. A classificação de risco feita inicialmente pelo ACS, logo após a alta da maternidade, pode ser revista pela equipe nessa visita. O MS recomenda que para o RN de alto risco, a visita seja feita nos primeiros 3 dias após a alta hospitalar, e para o RN de baixo risco, ela poderá ser feita até o final da primeira semana após a alta hospitalar. Diante da classificação recomendada aqui, os RNs de risco clínico ou social devem receber a visita domiciliar nos três primeiros dias após a alta hospitalar. Na visita, é importante identificar as inseguranças da família em relação ao cuidado com a criança. Os principais objetivos da visita são: ● Observar o acolhimento do RN, as condições em que a família vive e a relação dos pais com a criança. ● Estabelecer um vínculo com a família para o acompanhamento da criança. ● Avaliar o estado geral do RN e o estado de saúde da mãe. Nessa visita, são de fundamental importância dar orientações sobre a amamentação, os cuidados com o bebê e o cronograma de consultas e vacinas. As informações coletadas na visita permitem que as orientações sobre o cuidado com o bebê sejam mais adequadas ao contexto de vida da família. Pode-se afirmar que essa visita é decisiva para a construção de uma proposta de cuidado para aquela criança, que deverá orientar todo o acompanhamento posterior. Registro dos atendimentos à criança O registro das informações obtidas pelos diferentes olhares, no atendimento à criança, tem importância fundamental, que deve ser vista em diferentes ângulos. Em primeiro lugar, a informação sistematizada da criança permite conhecê-la ao longo do tempo e saber todos os modos de manifestação de um ou vários dos seus problemas de saúde. Em segundo lugar, o registro dos dados obtidos no atendimento de cada profissional possibilita a socialização do conhecimento sobre a criança, de modo que todos possam se apropriar desse conhecimento para subsidiar o planejamento de sua atuação. Por fim, o registro dos dados constitui a base epidemiológica para o planejamento das ações pela unidade, contribuindo para a eficiência e a racionalização do atendimento.16 Dessa forma, é fundamental que as informações obtidas no atendimento de cada profissional sejam adequadamente registradas, em um prontuário, para que todos, inclusive a família, possam ter acesso. Em se tratando da criança, cuja principal característica é o processo de crescimento e de desenvolvimento, a anotação dos dados em cada atendimento é necessária, a fim de se ter uma noção da tendência desses processos, afastando ou confirmando problemas. A ausência do prontuário, no qual se registram os dados obtidos no atendimento, representa dupla negação por parte do profissional. Ele nega a existência da pessoa em tratamento, ao mesmo tempo em que faz a sua própria negação, a negação do seu trabalho. Anotar as informações sobre uma criança, coletadas tanto junto à mãe quanto diretamente com a criança, ou por meio de algum procedimento, significa assumir a responsabilidade pela criança, o que se concretiza no momento em que se subscreve o atendimento realizado. Ao não haver um registro do atendimento, o profissional isenta-se de “prestar contas” do seu trabalho, ao mesmo tempo em que inviabiliza a socialização das informações em serviços nos quais vários profissionais podemprestar atendimento à mesma pessoa.16 Momento da consulta Na consulta, as informações obtidas vão revelando quem é essa criança. No registro da consulta, propõe-se que se anotem os principais dados da anamnese que têm por finalidade conhecer a queixa e o sofrimento trazidos pela família. Assim, a queixa deve ser ampliada em uma história com início, meio e fim. O passado da criança é recuperado pelos antecedentes pessoais, que incluem os dados do pré-natal, do nascimento e do período neonatal, assim como das intercorrências mórbidas. A situação da criança no presente pode ser avaliada pelos dados de alimentação, rotina de vida, desenvolvimento e imunização. O conhecimento da criança completa-se com o genograma, ou seja, as condições de saúde de cada membro da família e os antecedentes hereditários. Mas ainda é necessário identificar que família é essa, que começa a ser vista ao se saber o ambiente de vida, ou seja, onde mora e quais as condições dessa moradia, tanto no aspecto da salubridade como do conforto. Finalmente, esse conhecer fica completo ao se saber a inserção social da família, por meio da escolaridade e ocupação dos pais, que determina condições sociais de vida, trabalho e acesso às informações de saúde.17 No exame físico, não podem faltar os dados de peso, altura, perímetro cefálico (nos menores de 2 anos). A utilização dos gráficos de peso e altura é fundamental para o acompanhamento do crescimento da criança. Atualmente, estão disponíveis as curvas de crescimento da Organização Mundial da Saúde, que, pela metodologia adotada na sua construção, constituem o melhor instrumento para avaliar o crescimento pondero-estatural da criança (ver Apêndice 1, Curvas de crescimento e desenvolvimento). Após a descrição do exame físico, anotam-se os diagnósticos, utilizando o acrônimo SOAP: Subjetivo, Objetivo, Avaliação e Plano,[NA] que devem dar conta dos principais aspectos da vida da criança. Assim, propõe-se que, em toda consulta programática, sejam preenchidos pelo médico ou pelo enfermeiro os diagnósticos que compõem o item A (Avaliação) do SOAP. Além desses cinco diagnósticos básicos (Quadro 86.6), os outros problemas de saúde da criança devem ser anotados, mesmo quando ainda não for possível enquadrá-los em um diagnóstico. Assim, muitas vezes, a queixa ou o sintoma aparece como, por exemplo, “febre a esclarecer” “dor em membros” ou “problemas escolares”. Vale ressaltar que também devem ser descritos problemas e condições que podem interferir na saúde da criança, como conflitos familiares, cuidador com transtorno mental incapacitante, entre outros.16 Quadro 86.6 | Registro da avaliação a do SOAP 1. Crescimento: (Anotar o percentil ou o desvio-padrão) □ normal □ baixa estatura 2. Estado nutricional: (Anotar o percentil ou o desvio-padrão) □ eutrófico □ distrófico 3. Desenvolvimento: □ normal □ com risco de atraso □ atrasado 4. Alimentação: □ adequada □ inadequada 5. Imunização: □ completa □ incompleta Uma prática interessante é convencionar que o primeiro diagnóstico, depois destes cinco, seja sempre o motivo principal que trouxe a criança ao atendimento. Esse diagnóstico de número 6 é o mais importante para a família, por isso, é fundamental que ela receba uma resposta. Outros diagnósticos vão sendo acrescentados a cada consulta e devem ser levados à lista de problemas, quando relevantes. O registro da consulta completa-se pela construção e anotação de uma proposta terapêutica para cada diagnóstico. A perspectiva de um atendimento sequencial da criança permite que os profissionais estabeleçam um plano terapêutico que priorize, em cada atendimento, os problemas mais importantes e considere o contexto de vida da criança e da família.16 A anotação dos diagnósticos por número facilita ao profissional acompanhar os problemas da criança. Assim, por exemplo, para saber o que aconteceu com o diagnóstico de anemia, é só verificar em cada consulta o número correspondente àquele diagnóstico. Ao ser resolvido um determinado problema, diante do número correspondente deve ser registrada a data da resolução. Fundamentos para o seguimento da criança de risco habitual Considerando as novas propostas do atendimento de puericultura, que passa a ter como principal fundamento o conceito de risco e vulnerabilidade, o planejamento das ações na unidade de saúde deve levar em conta as características da criança, nas diferentes faixas etárias, a composição etária da população e as condições de vida da clientela, os critérios de risco, além da disponibilidade de recursos humanos da unidade. Para o planejamento do cronograma de consultas, é preciso ter como base a vulnerabilidade que ela apresenta. Nos 2 primeiros anos de vida, nos quais o processo de crescimento e de desenvolvimento é mais intenso, os olhares devem ser mais frequentes. Para a determinação da frequência e do espaçamento das consultas, é importante definir quais os riscos que se pretende avaliar, identificando os melhores momentos para essa avaliação (Quadro 86.7). Quadro 86.7 | Esquema mínimo de visitas nos dois primeiros anos de vida Risco de agravos: Risco nutricional: Risco no desenvol-vimento: Risco de infecções: 1o 1o 1o 2o 2o 2o 2o 4o 4o 4o 6o 6o 9o 9o 12o 12o 18o 18o Total: 1o 2o 4o 6o 9o 12o 18o 24o Fonte: Sucupira e Bresolin18 e Brasil.19 ● Risco de agravos existentes desde o nascimento. Consultas no 1o e no 2o mês, realizadas pelo médico em função do conhecimento semiológico mais específico que detém. É importante avaliar as condições de vitalidade, a presença de malformações e de doenças congênitas. Além disso, o médico de família que acompanhou o pré-natal e atende a mulher no puerpério tem condições de, na primeira consulta, reavaliar a classificação de risco feita inicialmente. ● Risco de agravos nutricionais. É importante avaliar o risco de desmame. As consultas têm a finalidade de entender os fatores, que naquela criança, intervêm na amamentação e possibilitar o apoio para que a amamentação não seja interrompida. Nesse sentido, as visitas no 1o e no 2o mês são fundamentais. Aos 4 e 6 meses, quando ocorre o processo do desmame (dependendo do tempo de licença-gestante da mãe), caracterizado pela introdução progressiva de alimentos complementares, as orientações são importantes para dar início à alimentação saudável. Aos 9 e 12 meses, fase de aquisição dos hábitos alimentares familiares, as consultas terão como objetivo identificar problemas e orientar a nutrição adequada. ● Risco de comprometimento do desenvolvimento. Existem alguns marcos do desenvolvimento motor que expressam o modo como a criança vem se desenvolvendo, alertando para a existência de possíveis problemas. Assim, toda criança nascida a termo, aos 4 meses, deve estar sustentando a cabeça, aos 9 meses, deve sentar-se sem apoio, e, aos 18 meses, deve andar sem apoio. Outro aspecto importante é avaliar, entre 2 e 3 meses, a presença do sorriso social. As consultas aos 2, 4, 9, e 18 meses permitem ter um bom acompanhamento do processo de desenvolvimento da criança. ● Risco de infecções. A imunização correta previne a ocorrência de doenças infecciosas imunopreveníveis. As vacinas são recomendadas nas seguintes idades: ao nascimento, com 1, 2, 3, 4, 5, 6, 12 e 15 meses. A verificação do cartão de vacinação com 1, 2, 4, 6 e 12 meses garante que a criança esteja sendo protegida desses agravos. A consulta aos 18 meses permite, ainda, verificar se a criança fez a vacinação de reforço aos 15 meses.18,19 As consultas aos 12 e 24 meses constituem marcos para o seguimento posterior nas datas do aniversário da criança.Outros momentos de avaliação ocorrerão conforme a necessidade determinada por problemas de saúde. Vale lembrar que, em todas as consultas, é obrigatório o preenchimento do gráfico de peso, altura, índice de massa corporal (IMC), perímetro cefálico e verificação da carteira de vacinação. Com exceção das consultas do 1o e 2o meses que, preferencialmente, devem ser feitas pelo médico, como já foi referido, os demais atendimentos podem ser realizados pela enfermeira, liberando o médico para o atendimento das consultas com queixas e para o atendimento dos bebês de risco clínico. Nos meses em que não há consultas marcadas, se há uma demanda da família para verificar peso e altura, essa avaliação pode ser feita pelo técnico de enfermagem. Essa é uma proposta mínima e suficiente de seguimento da criança de risco habitual. Para essas crianças, não há necessidade de consultas mensais no 1o ano ou bimensais no 2o ano, como os antigos programas da criança prescreviam. O controle rígido de peso e altura desses programas visava à identificação precoce da desnutrição. Atualmente, parece que o fantasma da desnutrição ainda orienta tais procedimentos, porque se esses controles fossem para a obesidade, deveriam ser também para crianças em idades maiores. O acúmulo de consultas, mesmo com atendimentos alternados com a enfermagem, tem levado ao preenchimento das vagas na unidade, de tal forma que não há espaço para as intercorrências. Dessa forma, a criança consultada mensalmente, como sadia, na hora em que adoece, não é atendida, sendo encaminhada para o pronto-atendimento, para ser vista por médicos que não conhecem sua história de saúde. No dizer de uma mãe, “[...] quando não precisa tem consulta marcada, quando fica doente, não tem vaga”.14 É preciso refletir sobre qual é o fundamento dessa proposta em alternar consultas médicas e de enfermagem mensalmente, a não ser por uma suposta intenção de racionalizar os recursos, que foi uma alternativa encontrada nos tempos em que a população infantil era a principal demanda das unidades, e as TMIS, muito elevadas. Fundamentos para o seguimento da criança de risco clínico O seguimento do RN de risco clínico, após a alta hospitalar, tem por objetivo acompanhar aquelas crianças com maior risco de morrer ou de apresentar problemas capazes de interferir na sua qualidade de vida. Esse acompanhamento permite a intervenção precoce nos problemas já identificados por ocasião da alta hospitalar, bem como a prevenção de outros, passíveis de ocorrerem durante os primeiros anos de vida. Os RNs considerados de risco clínico necessitam, muitas vezes, de acompanhamento com o pediatra especialista ou outro profissional em centros de referência. Entretanto, a equipe de saúde da família deve acompanhar também essa criança, coordenando as necessidades específicas de atendimento que ela vai demandar. Na unidade de saúde, o acompanhamento diferenciado segue o esquema, que é definido pela equipe de saúde da família, o qual pode ser reavaliado após o 6o mês de vida e depois dos 2 anos. Dessa forma, é possível obter uma avaliação confiável do desenvolvimento da criança, bem como intervir e tratar adequadamente as principais intercorrências capazes de levar ao óbito, nessa fase da vida. A sequência de consultas deve ser estabelecida pela equipe, em função das condições de saúde do RN, Entretanto, é importante que esses bebês sejam vistos mensalmente, pelo menos nos primeiros 6 meses de vida. Acompanhamento do recém-nascido de risco social O acompanhamento do RN de risco social deve ser definido na reunião da equipe de saúde da família responsável pela família do bebê. O risco social é muitas vezes um fator agravante do risco clínico, somando-se assim dois fatores importantes de risco para a sobrevivência do bebê. No acompanhamento dessas crianças, a equipe de saúde da família tem um papel decisivo, na medida em que cada membro da equipe terá informações específicas, que poderão construir uma visão mais geral da situação da família e do bebê. O ACS, membro da comunidade e da equipe, que tem sob sua responsabilidade visitas mais frequentes a essas famílias, é um elemento central no acompanhamento dessas crianças. Além do acompanhamento nas consultas, deve ser definido pela equipe o cronograma das visitas domiciliares, nas quais poderão participar tanto o médico como a enfermeira. A criança com risco adquirido Durante o acompanhamento na unidade de saúde, algumas crianças que foram classificadas como de risco habitual ao nascer podem passar a apresentar importantes fatores de risco ou vivenciar situações de maior vulnerabilidade, demandando cuidados mais diferenciados. Essas crianças precisam ser identificadas pela equipe e classificadas como crianças de risco adquirido clínico ou social. O olhar dirigido à criança nos dois primeiros anos de vida Esse olhar está dirigido ao modo como se estabelecem e se desenvolvem as relações mãe/filho e pai/filho. A amamentação é o foco principal no atendimento à criança nos primeiros meses de vida. As orientações sobre as vacinas, a alimentação complementar, o DNPM, os cuidados para a prevenção de acidentes e o acompanhamento do crescimento por meio dos gráficos específicos são os pontos importantes para os quais esse olhar sobre a criança deve estar dirigido. O acompanhamento do pré-escolar e do escolar (2-10 anos) Uma das características da criança pré-escolar e escolar é a frequência aos centros de educação infantil, escolas e centros esportivos, experimentando uma convivência com outras crianças em um espaço que não é mais o do convívio da família. O processo de escolarização implica a separação dos pais e o estabelecimento de novas relações, que podem ocorrer de forma tranquila ou já expressar problemas na relação mãe/filho ou pai/filho. Muitas vezes, essas situações podem se expressar por somatização, com queixas de problemas de saúde. O acompanhamento da criança pré-escolar e escolar de forma programática pode ser feito com consultas anuais, desde que as consultas eventuais por doenças sejam momentos em que um olhar mais atento possa indicar a necessidade de uma consulta de rotina, para avaliação mais geral da criança. As necessidades de saúde da criança em idade pré-escolar e escolar podem ser entendidas sob dois aspectos: ● Problemas decorrentes da condição de ser criança em uma determinada sociedade: ■ O modo como a criança experimenta os diferentes riscos de adoecer e morrer conforme o momento do seu processo de crescimento e de desenvolvimento é singular, em função de sua inserção familiar e social e da sua vivência nos diferentes espaços sociais. ● Problemas decorrentes da vivência em espaços coletivos: ■ Convivência em grupos – Disseminação de doenças infectocontagiosas. ■ Condições do ambiente físico – Acidentes. ■ Relações que se produzem no ambiente escolar – Problemas de comportamento, agressividade, timidez. Convivência em grupos A convivência em espaços coletivos, ou seja, em grupos de crianças, vai se caracterizar na fase pré-escolar pelos frequentes episódios de doenças infecciosas, nos quais predominam as infecções respiratórias, as pediculoses e outras doenças de pele, que se disseminam no espaço da escola. As infecções respiratórias assumem importância maior, pelas características da árvore respiratória na infância e pelo fato de o sistema imune ainda estar em desenvolvimento. A presença de crises de sibilância nessa fase é indicativa para que essas crianças, além do atendimento eventual, recebam um acompanhamento com consultas mais frequentes,para avaliar os fatores que intervêm no desencadeamento dos episódios de sibilância e acompanhar o efeito das intervenções terapêuticas. As crianças em idade escolar de 6 a 10 anos tendem a apresentar menos episódios de infecções agudas, entretanto, aquelas nas quais já se definiu um quadro de asma necessitam também de acompanhamento mais frequente na APS. Condições do ambiente físico Os espaços de convivência da criança pré-escolar e escolar podem propiciar tanto a frequência das doenças infectocontagiosas como a ocorrência de acidentes. As ações coletivas de saúde desenvolvidas pela enfermeira e discutidas com a equipe de saúde da família são importantes para orientar intervenções que minimizem esses eventos. A avaliação do ambiente físico e dos riscos de acidentes, nos Centros de Educação Infantil e nas escolas de Ensino Fundamental, deve fazer parte dessas ações coletivas de saúde, com a elaboração de recomendações para que esses espaços ofereçam melhores condições de convívio para as crianças. Relações que se produzem no ambiente escolar A convivência, nos espaços escolares ou de esportes, cria novas relações da criança, agora com colegas e professores. O modo como a criança vivencia essas relações pode desencadear situações de conflito que vão se expressar, muitas vezes, em queixas clínicas, como enurese, cefaleia, dor abdominal, entre outras. É na escola que acontecem muitas situações de violência física ou emocional geradas entre as crianças ou na relação professor/aluno. As agressões denominadas bullying[NA] começam a ser queixas trazidas para o médico de família e comunidade. Um aspecto importante decorrente, muitas vezes, das relações que se produzem na escola são as queixas referentes a problemas de comportamento e dificuldades na aprendizagem. Queixas de cunho social ou pedagógico que são frequentemente transformadas em problemas médicos, recebendo abordagens no modelo biomédico com intervenções medicamentosas. Esse é o caso das crianças com queixas de comportamento agitado ou distraído, que recebem diagnósticos de déficit de atenção e hiperatividade e medicamentos que apresentam inúmeros efeitos colaterais. Avaliações de saúde da criança pré-escolar e escolar Nas consultas anuais da criança acima de 2 anos, o estado nutricional passa a ser de grande importância em função da prevalência atual de obesidade. As avaliações do peso, da altura e do IMC precisam ser registradas para acompanhamento da evolução nutricional. Em relação à nutrição, as informações sobre o padrão alimentar da criança e da família são importantes para as orientações visando a uma alimentação saudável, com o objetivo de evitar o sobrepeso e a obesidade, ou fundamentar o tratamento das crianças já obesas. No acompanhamento das crianças pré-escolares e escolares, é preciso incluir as crianças com doenças crônicas ou com condição crônica de saúde, como aquelas com síndrome de Down, as cardiopatas, entre outras, que são parte da clientela infantil do território do médico de família e comunidade. O papel do médico de família, na coordenação do cuidado a essas crianças e no apoio às famílias, é fundamental. Entre as demandas ao médico de família nesse período da vida, destacam-se as queixas na área da saúde mental. Frequentemente, entretanto, essas queixas aparecem como sintomas orgânicos, que, dependendo do olhar do profissional, podem gerar investigações e intervenções clínicas desnecessárias, quando, na verdade, uma atenção direcionada às relações familiares pode ajudar a entender essas queixas trazidas pela família. Da mesma forma, a suspeita de maus-tratos e abusos sexuais pode surgir na consulta a partir de queixas clínicas. Nesse sentido, os instrumentos de que o médico de família e comunidade tem à disposição, como o Apgar familiar, o genograma (ou familiograma) e o mapa de rede social (ecomapa, ou mapa dos cinco campos), podem ser úteis na detecção inicial desses problemas e como ferramentas diagnósticas e terapêuticas de abordagem familiar e comunitária. O médico de família e comunidade tem ainda condições de identificar situações de violência doméstica, que se expressam em queixas de saúde, a partir de visitas domiciliares ou por informações trazidas pelos demais profissionais da equipe de saúde da família. Nesse sentido, o papel do ACS, como já foi comentado, é fundamental para ampliar o alcance da anamnese das queixas trazidas. Ações coletivas de saúde Para a realização de algumas avaliações específicas de saúde para os pré- escolares e escolares, as ações realizadas em espaços coletivos, como creches ou escolas, têm um efeito maior do que quando dirigidas individualmente às crianças. Em especial as ações de promoção da saúde bucal, tais como a escovação supervisionada e as orientações de educação em saúde bucal e os testes de acuidade visual, apresentam resultados melhores quando são precedidas de preparo em grupo e realizadas pelos profissionais de saúde, de forma integrada com os profissionais da educação. Outras propostas de educação em saúde, realizadas pelos profissionais de saúde nas escolas, nem sempre alcançam bons resultados, na maioria das vezes, por serem pontuais e não envolverem os professores. É importante que as ações que visem à promoção da saúde sejam integradas à grade curricular, sendo desenvolvidas em conjunto com os professores. Nos ambientes de convivência da criança, são importantes as ações que visem à promoção de um ambiente saudável. Para a conscientização dos alunos sobre a responsabilidade de toda a comunidade e a adoção de medidas de respeito ao ambiente, é importante que a escola ofereça um ambiente seguro e saudável para seus alunos. Nesse ponto, o médico de família, junto com a equipe, precisa participar das ações de vigilância sanitária, no que diz respeito às práticas educativas em relação ao ambiente. Atendimento em grupo de mães e crianças Uma alternativa interessante, que caracteriza outro esquema de consultas de acompanhamento das crianças na APS, é a realização de atendimentos em grupo de crianças e pais. A seguir, descreve-se uma experiência de atendimento em “grupos de mães” realizada pela autora.20 O atendimento de puericultura em grupo, no primeiro ano de vida, contou com a participação de dois profissionais, no caso, uma médica e uma enfermeira. Após a primeira consulta feita pela médica, as mães das crianças de baixo risco eram convidadas a participar do atendimento em grupo, que contava com, no máximo, 10 crianças. Os grupos tinham encontros mensais e cada atendimento compreendia uma parte inicial individual, na qual se indagava sobre possíveis queixas, avaliava-se o peso e a altura e era feito o exame físico com um olhar sobre o desenvolvimento. Esse momento, embora individual, ocorria no mesmo ambiente onde estavam as outras mães e crianças. Em seguida, era feita a discussão em grupo, na qual se avaliavam coletivamente a imunização, a alimentação, o desenvolvimento e outras questões colocadas pelo grupo. No final, entregavam-se as receitas com as prescrições medicamentosas, quando necessário. Havendo necessidade, era agendada uma consulta individual, para avaliação de problemas específicos. Nessa experiência de atendimento em grupo de mães, durante 9 anos, os principais resultados foram o prolongamento do tempo de amamentação exclusiva e a diminuição dos atendimentos não agendados por intercorrências de doenças, como expressão do empoderamento e da autonomia das mãesna resolução de problemas frequentes de saúde.20 Além do atendimento em grupos de mães, podem ser realizados grupos educativos, com temas transversais, que não precisam ser conduzidos pelo médico, sem haver necessariamente uma vinculação com o atendimento clínico. Exemplos de grupos educativos com escolares são os grupos de educação alimentar ou mesmo de obesos, grupos de crianças com asma, grupos para discussão da violência, entre outros. Avaliações específicas de saúde Nos recém-nascidos ● Programa Nacional de Triagem Neonatal. A Triagem Neonatal, conhecida como Teste de Pezinho, foi instituída como prática obrigatória no país desde 2001 e inclui os testes de rastreamento para anemia falciforme, hipotireoidismo congênito, fenilcetonúria e fibrose cística.21 ● Triagem auditiva. Existe a recomendação para o rastreamento das perdas auditivas em todos os RNs antes de completarem 1 mês de vida, com o teste da orelhinha, que inclui a emissão otoacústica seguida da resposta auditiva do tronco cerebral.21 ● Teste do reflexo vermelho. Essa avaliação da transparência e da integridade das câmaras oculares deve ser feita com o oftalmoscópio, logo ao nascer e nas consultas subsequentes.21 Nos pré-escolares e escolares ● Triagem da acuidade visual. A realização do teste de Snellen para avaliação da acuidade visual pode ser feita nas consultas de rotina da criança a partir dos 4 anos de vida. Entretanto, como já foi comentado, a operacionalização desse exame feito nas escolas, aos 4 anos, apresenta melhores resultados, principalmente em função da participação dos professores no preparo das crianças para o teste. Recomenda-se também a realização desse teste aos 7 anos para abranger as crianças que não frequentaram pré-escola e, por isso, não tiveram acesso ao exame previamente. ● Levantamento epidemiológico da cárie e de doença periodontal. Esses procedimentos fazem parte das ações dirigidas aos pré-escolares e escolares realizados nas escolas e são parte das ações coletivas em saúde bucal. Avaliação das condições de saúde da população infantil Para avaliação da saúde da criança, estão disponíveis os indicadores clássicos de morbidade e mortalidade. Entretanto, para avaliação da saúde do pré-escolar e do escolar, novos indicadores deverão ser construídos, tanto para avaliar a qualidade de saúde dessa população como o desempenho da ESF no cuidado com a criança (Quadro 86.7). Quadro 86.7 | Possíveis indicadores a serem monitorados ► Mortalidade infantil, em geral por causas infecciosas (diarreia e pneumonias) ► Sobrevida de RNs de risco clínico ou social ► Associação entre agravos intraútero e no início da vida, com as doenças crônicas na vida adulta ► Avaliações do desenvolvimento da criança realizadas nas consultas de puericultura ► Morbimortalidade por causas externas ► Taxas de sobrepeso e obesidade ► Número de crianças encaminhadas das escolas com dificuldades escolares ► Número de crianças com doenças crônicas em seguimento na unidade de APS ► Prevalência de queixas na área de saúde mental ► Prevalência de violência urbana e doméstica contra crianças RNs, recém-nascidos; APS, atenção primária à saúde. Essa nova morbidade exige uma mudança na atenção à criança, para que além da atenção ao RN e ao lactente, o pré-escolar e o escolar passem a receber os cuidados adequados às suas principais necessidades de saúde. Para isso, são necessárias novas modalidades de ações, com novos olhares que ampliem a abordagem centrada no modelo biomédico e incorporem outras áreas do conhecimento que permitam entender a criança nas suas relações com a família, em diferentes contextos sociais. O que não deve ser feito na avaliação das crianças Um costume frequente nas unidades de saúde é a solicitação, por parte dos pais, da realização de check-up em crianças por meio de hemograma, exame de fezes e de urina. Essa prática não se justifica na rotina de saúde da criança, em função da ausência de suporte científico.21 Em condições específicas, o médico de família e comunidade deverá avaliar a necessidade de solicitar cada um desses exames. REFERÊNCIAS 1. Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Saúde de mães e crianças no Brasil: progressos e desafios. Lancet. 2011;6736(11)60138-4. 2. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Saúde Brasil 2015/2016: uma análise da situação de saúde e da epidemia pelo vírus Zika e por outras doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. Brasília; 2017. p. 37. 3. Fundo das Nações Unidas para a Infância. O compromisso com a sobrevivência infantil. Brasília; 2015. 4. Moreira MEL, Goldani MZ. A criança é o pai do homem: novos desafios para a área de saúde da criança. Ciênc Saúde Coletiva. 2010;15(2):321-327. 5. Brasil. Ministério da Saúde. Pesquisa nacional de demografia e saúde da criança e da mulher. Brasília; 2006. 6. Caraffa RC, Sucupira ACSL. Papel do pediatra geral nas condições crônicas de saúde. In: Sucupira ACSL. Pediatria em consultório. 5. ed. São Paulo: Sarvier; 2010. 7. Zuccolotto SMC, Sucupira ACSL, Almeida da Silva CA. Dores recorrentes em membros. In: Sucupira ACSL. Pediatria em consultório. 5. ed. São Paulo: Sarvier; 2010. 8. Sucupira ACSL. Repensando a atenção à saúde da criança e do adolescente na perspectiva intersetorial. RAP. 1998;32(2):61-78. 9. Novaes HMD. A puericultura em questão. In: Mota A, Schraiber LB. Infância e saúde: perspectivas históricas. São Paulo: Hucitec; 2009. 10. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria n. 221, de 17 de abril de 2008 [Internet]. Brasília; 2008 [capturado em 13 jul. 2018]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/sa udelegis/sas/2008/prt0221_17_04_2008.html. 11. Barker DJ. The origins of the developmental origins theory. J Intern Med. 2007;261(5):412-7. 12. McMenamy JM, Perrin EC. Filling the GAPS: description and evaluation of a primary care intervention for children with chronic health conditions. Ambul Pediatr. 2004;4(3):249-256. 13. Ayres JRCM. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde Soc. 2009;18(Supl. 2):11-23. 14. Dorneles JA. Protocolo de saúde da gestante de Sobral. Sobral: Secretaria Municipal de Saúde de Sobral; 2015. 15. Sucupira ACSL. Protocolo de Saúde da Criança. Secretaria Municipal de Saúde de Sobral. 2015. 16. Sucupira ACSL, Novaes HMD. Prática pediátrica no consultório. In: Sucupira ACSL. Pediatria em consultório. 5. ed. São Paulo: Sarvier; 2010. 17. Sucupira ACSL. Estrutura da consulta. In: Leite AJM, Caprara A, Coelho Filho JM. Habilidades de comunicação com pacientes e famílias. São Paulo: Sarvier; 2007. 18. Sucupira ACSL, Bresolin AMB. Os fundamentos para o seguimento da criança de baixo risco. São Paulo: Secretaria de Saúde do Município de São Paulo; 2003. 19. Brasil. Ministério da Saúde. Coordenação de Saúde da Criança e Aleitamento Materno. Caderneta de saúde da criança. Brasília; 2007. 20. Sucupira ACSL, Morano R, Costa MZA. Grupo de mães: uma experiência de ensino da puericultura. Pediatria (São Paulo). 1987;9(2):53-58. 21. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: crescimento e desenvolvimento. Brasília; 2012. [Plano] Ver Cap. 49, Registro de saúde orientado por problemas. [bullying] Bullying é o fenômeno que se caracteriza pela violência física ou psicológica, intencional e repetida, praticada por um indivíduo ou grupo de indivíduos com o objetivo de intimidar ou agredir outro indivíduo (ou grupo de indivíduos) incapaz de se defender.
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