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Thais Alves Fagundes ALCOOLISMO DEFINIÇÃO ALCOOLISMO: doença primária crônica com fatores genéticos, psicossociais e ambientais; frequentemente progressiva e fatal; caracterizada por dificuldade em controlar o consumo de bebida (apesar das consequências futuras) e distorções do pensamento, especialmente negação. Em virtude do termo alcoolismo ser muito amplo, este também não é suficientemente preciso para definir todo o espectro dos problemas relacionados ao álcool. Havendo utilização de outros termos: ABSTINENTES: indivíduos que não consomem álcool. BEBER COM MODERAÇÃO: definido como o número médio de doses consumidas diariamente que caracterizam um adulto em uma faixa de baixo risco para problemas com álcool. BEBER EM NÍVEIS DE RISCO: consumo de álcool que impõe riscos à saúde. Beber em níveis de risco é definido de forma diferente para homens com menos de 65 anos do que para mulheres de todas as idades, em função dos pesos corporais, em geral mais baixos, e das menores taxas de metabolismo do álcool das mulheres. A definição para homens acima de 65 anos é igual à das mulheres, em função do aumento de risco de problemas com álcool relacionado à idade, devido, em parte, a mudanças no metabolismo do álcool em indivíduos mais velhos. BEBER COMPULSIVAMENTE/PESADO (“EM BINGE”): corresponde ao consumo episódico de grandes quantidades de álcool, em geral de 5 ou mais doses por ocasião para homens e de quatro ou mais para mulheres. Dose padrão: contém 12 gramas de álcool puro (equivale ao contido em 150 mL de vinho, 350 mlL de cerveja ou 45 mL de destilado 46 graus). PROBLEMA COM BEBIDA/ÁLCOOL: se refere a um nível de consumo de álcool que causa problemas ao paciente (médicos, psiquiátricos, comportamentais ou sociais). ABUSO E DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL: transtornos do uso de álcool e exigem a presença de fenômenos sociais ou clínicos específicos. Abuso de álcool: inclui critérios que indicam disfunção social ou uso em situações de alto risco (p.ex., ao dirigir veículo). Dependência de álcool: inclui consequências sociais juntamente com critérios relacionados aos aspectos físicos de dependência (p. ex., tolerância, perda de controle) e uso apesar de problemas físicos ou psicológicos. OBS.: distinção entre abuso de álcool e dependência ao álcool é importante, devido à necessidade de tratamento mais intensivo para os pacientes que são dependentes ao álcool. TRANSTORNO POR USO DE ÁLCOOL (alcoolismo ou dependência de álcool): problemas repetidos relacionadas com o álcool em múltiplas áreas da vida podem indicar um transtorno por uso de álcool como definido no DSM-5. Sendo que devem ser pelo menos 2 de 11 áreas, que se agrupam no mesmo período de 12 meses Gravidade de um transtorno por uso de álcool baseia-se no número de itens de critério: Leve: 2 ou 3 itens; Moderado: 4 ou 5; Grave: 6 ou mais. Thais Alves Fagundes EPIDEMIOLOGIA No Brasil, o álcool é a droga de entrada na carreira daqueles que desenvolvem dependências. Entre os anos de 2001 e 2004, houve uma evolução de 48,3% para 54,3% de jovens consumidores de bebidas alcoólicas entre 12 e 17 anos. A taxa de dependência nessa população aumentou de 5,2 para 7,0%, sendo que as meninas bebem de forma semelhante aos meninos. Beber do jovem brasileiro é tipicamente em “binges”, ou seja, após passar a semana sem ingerir álcool, às sextas e/ou aos sábados, 18% bebem de forma pesada, que significa mais que 5 doses na mesma situação. Na população geral, 48% se declaram abstêmios de álcool. FATORES DE RISCO PARA O INÍCIO DO CONSUMO DO ÁCOOL SOCIOCULTURAIS Maior disponibilidade de bebidas alcoólicas. Alto grau de estresse coletivo. Estímulo/pressão social. Postura ética ambivalente frente ao álcool. Inexistência de sanções sociais contra a embriaguez e contra o abuso de álcool. Costumes tradicionais que incluem frequência de álcool. BIOLÓGICOS GENÉTICA Predisposição genética: diferenças nas composições enzimáticas e algumas características da personalidade; genes “facilitadores” que são herdados (muitas vezes eles podem não se expressar na ausência de fatores ambientais “provocadores”). 60% do risco de transtornos por uso de álcool é atribuído a genes. Risco quatro vezes maior de uso abusivo de álcool e dependência em crianças com um dos pais com transtorno por uso de álcool (mesmo se forem adotadas no início da vida por não alcoolistas). FISIOPATOLOGIA Níveis sanguíneos de etanol: expressos em miligramas ou gramas de etanol por decilitro (100 mg/dL ou 0,10 g/dL). Ingestão de dose-padrão: nível sanguíneo =~ 0,02 g/dL (10 a 12 g). Equivale: 340 mL de cerveja. 115 mL de vinho não encorpado. o 750 mL de vinho contêm cerca de 60 g de etanol. 43 mL de bebida de teor alcoólico 40% (p. ex., uísque). o 500 mL de bebida de teor alcoólico 40% contêm cerca de 160 g de etanol (cerca de 16 doses) ABSORÇÃO DO ÁLCOOL Bebidas alcoólicas contêm etanol, que atua como uma droga sedativo-hipnótica. Álcool é rapidamente absorvido para a corrente sanguínea a partir do estômago e do trato intestinal. o Absorvido das mucosas da boca e do esôfago (em pequenas quantidades). o Absorvido do estômago e intestino grosso (em quantidades modestas). o Absorvido da parte proximal do intestino delgado (o principal local). Thais Alves Fagundes Taxa de absorção do álcool é aumentada por: esvaziamento gástrico rápido; velocidade de consumo do álcool alta; ausência de proteínas, gorduras ou carboidratos (que interferem na absorção); ingestão de bebidas gaseificadas. Etanol se distribui rapidamente por quase todos os tecidos do corpo, atravessando rapidamente barreiras placentária e hematoencefálica. Álcool-desidrogenase: enzima responsável pelo metabolismo inicial do álcool. Mulheres têm níveis menores de álcool-desidrogenase no estômago e apresentam maior concentração sanguínea que homens que consomem quantidades próximas de álcool por quilograma de peso corporal. METABOLISMO DO ÁLCOOL EXCREÇÃO: entre 2% (em baixas concentrações sanguíneas de álcool) e 10% (em altas concentrações sanguíneas de álcool) do etanol é excretado diretamente pelos pulmões, pela urina ou pelo suor. Porém a maior parte é metabolizada em acetaldeído, sobretudo no fígado. METABOLIZAÇÃO EM ACETALDEÍDO: Via mais importante ocorre no citosol celular, em que a álcool-desidrogenase (ADH) produz acetaldeído, sendo em seguida rapidamente convertido pela aldeído-desidrogenase (ALDH) em acetaldeído e acetato. Segunda via ocorre nos microssomos do retículo endoplasmático liso (sistema microssomal de oxidação de etanol - MEOS), responsável por ≥ 10% da oxidação do etanol em concentrações sanguíneas de álcool elevadas. Metabolismo é proporcional ao peso corporal do indivíduo, mas diversos outros fatores podem afetá-lo. IMPACTO NUTRICIONAL Dose-padrão contém aproximadamente 70 a 100 kcal. Mas são desprovidas de nutrientes, como minerais, proteínas e vitaminas. Álcool interfere na absorção de vitaminas no intestino delgado e reduz seu armazenamento no fígado: ácido fólico (folacina), piridoxina (B6), tiamina (B1), ácido nicotínico (niacina, B3) e vitamina A. Ingestão pesada de bebida em um indivíduo saudável em jejum pode produzir hipoglicemia transitória: o Hipoglicemia ocorre dentro de 6 a 36 horas. o Resultado das ações agudas do etanol que reduzem a gliconeogênese. o Pode gerar temporariamente resultados alterados em testes de tolerância à glicose (diagnóstico errôneo de diabetes melito). Sendo necessária abstinência de 2 a 4 semanas para exames. Cetoacidose alcoólica pode ser diagnosticada de forma errônea como cetose diabética. o Cetoacidose alcoólica reflete a diminuição na oxidação dos ácidos graxos junto com dieta inadequada ou vômitos recorrentes. o Na cetoacidose alcoólica, pacientes apresentam um aumento dos corpos cetônicos séricos,além de um leve aumento na glicose. Thais Alves Fagundes CÉREBRO Álcool afeta quase todos os sistemas neurotransmissores, incluindo receptores de ácido γ- aminobutírico (GABA), Nmetil-D-aspartato e dos opioides. Receptores glicinúricos e serotoninérgicos Ações mais proeminentes relacionadas com estimulação da atividade do ácido γ-aminobutírico (GABA), nos receptores de GABAA, com efeitos anticonvulsivantes, indutores do sono, ansiolíticos e de relaxamento muscular. o Álcool administrado de maneira aguda produz uma liberação de GABA. o Álcool em uso continuado aumenta a densidade dos receptores GABAA. o Estados de abstinência do álcool reduzem a atividade relacionada com GABA. Fenômenos de recompensa e de adaptação celular são parcialmente responsáveis por influenciar comportamentos de dependência de álcool. Álcool tem propriedades de reforço, uma vez que a abstinência do etanol e sua própria ingestão promovem consumo subsequente de álcool. Exposição aguda ao álcool: Ingestão aguda de álcool aumenta os níveis de dopamina no tegmento ventral e regiões cerebrais relacionadas. o Dopamina desempenha papel importante sobre uso continuado de álcool, fissura e recaída. o Alterações nas vias dopaminérgicas estão ligadas a aumentos dos “hormônios do estresse”, incluindo cortisol e hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) durante a intoxicação e no contexto do estresse da abstinência. o Alterações nas vias dopaminérgicas contribuem para sentimentos de recompensa durante a intoxicação e depressão durante a queda da alcoolemia. Ligadas a alterações na dopamina (em especial no nucleus accumbens), ocorrem alterações induzidas pelo álcool nos receptores opioides, com uso agudo de álcool causando liberação de β-endorfinas. Aumentos nos níveis sinápticos de serotonina durante intoxicação aguda e suprarregulação subsequente dos receptores da serotonina. Aumentos agudos nos sistemas nicotínicos de acetilcolina contribuem para o impacto do álcool na região tegmentar ventral, que ocorre em consonância com o aumento da atividade da dopamina. Álcool exerce impacto nos receptores canabinoides, com liberação resultante de dopamina, GABA e glutamato, assim como efeitos subsequentes nos circuitos de recompensa cerebrais. Exposição crônica ao álcool: Neurônios cerebrais aparentemente se adaptam a essa exposição, ajustando sua resposta aos estímulos normais. Aptação responsável pelo fenômeno de tolerância. Tolerância: quantidades cada vez maiores de álcool são necessárias para atingir os efeitos desejados. Observação de transtornos neuropsicológicos em associação com o uso crônico de etanol, como o comprometimento da memória de curto prazo, disfunção cognitiva e alteração da percepção. OBS.: uso agudo do álcool de inibe receptores glutamatérgicos sinápticos excitatórios N-metil-D-aspartato (NMDA), enquanto a ingestão crônica de bebida e a abstinência estão associadas a uma suprarregulação dessas subunidades excitatórias do receptor. As relações entre atividade maior de GABA e atividade reduzida de NMDA durante a intoxicação aguda e ações GABA reduzidas com ações de NMDA aumentadas durante a abstinência de álcool explicam grande parte da intoxicação e do fenômeno de abstinência. Thais Alves Fagundes MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS Álcool tem diversos efeitos agudos e crônicos específicos. Efeitos agudos mais observados são a intoxicação alcoólica e a abstinência. Efeitos clínicos crônicos do álcool afetam praticamente todos os sistemas orgânicos. EFEITOS AGUDOS INTOXICAÇÃO ALCOÓLICA Após entrar na corrente sanguínea, o álcool atravessa rapidamente a barreira hematoencefálica. Manifestações clínicas da intoxicação pelo álcool têm relação direta com o nível sanguíneo de álcool. Em função do fenômeno de tolerância, os indivíduos cronicamente expostos ao álcool costumam apresentar efeitos menos intensos para os mesmos níveis de álcool sanguíneo do que indivíduos que não são expostos cronicamente à substância. TOLERÂNCIA ADQUIRIDA: uso repetido de álcool contribui para a necessidade de maior número de doses-padrão de modo a produzir os efeitos originalmente obtidos com menor número de doses, um fenômeno que envolve pelo menos três mecanismos compensatórios. (1) Após 1 a 2 semanas de ingestão diária de bebida, a tolerância metabólica ou farmacocinética pode ser observada, com até 30% de aumentos na taxa de metabolismo hepático do etanol. Essa alteração desaparece quase tão rapidamente quanto se desenvolve. (2) A tolerância celular ou farmacodinâmica desenvolve-se por meio de mecanismos neuroquímicos que mantêm o funcionamento fisiológico relativamente normal apesar da presença do álcool. Reduções subsequentes nos níveis sanguíneos contribuem para os sintomas de abstinência. (3) Os indivíduos adaptam seu comportamento de maneira a conseguir funcionar melhor do que o esperado sob a influência da substância (tolerância aprendida ou comportamental). MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DE ACORDO COM O NÍVEL SANGUÍNEO DE ÁLCOL Níveis sanguíneos de álcool entre 20 e 100 mg/dL: sintomas de intoxicação leve pelo álcool em indivíduos sem tolerância e incluem euforia, discreta falta de coordenação muscular e leve disfunção cognitiva. Alterações comportamentais, psicomotoras e cognitivas em níveis baixos 0,02 a 0,04 g/dL (1 a 2 drinques). Níveis de álcool no sangue ficam mais altos, entre 100 a 200 mg/dL: ocorrem disfunções neurológicas mais substanciais, como comprometimento mental mais grave, ataxia e prolongamento do tempo de reação. Indivíduos com níveis de álcool sanguíneo nessas faixas podem ficar obviamente alcoolizados, com fala arrastada e perda da coordenação. Sono profundo, porém conturbado, com níveis de 0,15 g/dL em indivíduos que não desenvolveram tolerância. Esses efeitos progridem à medida que o nível sanguíneo de álcool ascende para níveis maiores, quando os níveis são superiores a 300 a 400 mg/dL, podem ocorrer: Torpor (sentimento de mal-estar caracterizado pela diminuição da sensibilidade e do movimento), coma e óbito, especialmente em indivíduos sem tolerância aos efeitos do álcool. o Óbito mais comumente causado por depressão respiratória e hipotensão em indivíduos com níveis sanguíneos de álcool muito elevados. Thais Alves Fagundes SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA ALCOÓLICA Abstinência alcoólica pode ocorrer quando os indivíduos reduzem a quantidade de álcool ou interrompem totalmente o consumo. Gravidade dos sintomas pode variar muito. Muitas pessoas apresentam abstinência de álcool sem precisar procurar atendimento médico, enquanto outras exigem internação por sintomas graves. Como o álcool é um depressor do sistema nervoso central, a resposta natural do corpo à abstinência da substância é um estado neurológico de hiperexcitabilidade. o Esse estado resulta de mecanismos neurológicos adaptativos não mais inibidos pelo álcool, com uma liberação subsequente de diversas substâncias neuro-humorais (inclusive noradrenalina). Exposição crônica ao álcool resulta em uma diminuição do número de receptores GABA e prejudica sua função. Manifestações clínicas da abstinência do álcool: 1. Hiperatividade, que provoca taquicardia e diaforese (transpiração intensa). 2. Tremores, ansiedade e insônia. Tremores leves tipicamente envolvam as mãos, tremores mais graves podem acometer todo o corpo e prejudicar muito diversas funções motoras básicas. Tremores estão entre os primeiros sintomas, e podem iniciar até 8 horas após a última bebida. Sintomas de tremores e hiperatividade motora tipicamente atingem um pico em 24 a 48 horas. 3. Abstinência alcoólica mais grave pode resultar em náuseas e vômitos, que podem exacerbar os distúrbios metabólicos. 4. Anormalidades da percepção, incluindo alucinações visuais e auditivas e agitação psicomotora, são manifestações comuns da abstinênciamoderada a grave do álcool. Alterações da percepção iniciam-se entre 24 e 36 horas após a última bebida e regridem em alguns dias. 5. Crises convulsivas do tipo “grande mal” são comuns na síndrome de abstinência alcoólica, embora não costumem exigir tratamento depois da fase aguda da abstinência. Quando ocorrem convulsões associadas à abstinência, tipicamente são tônico-clônicas generalizadas e costumam ocorrer 12 a 24 horas após a redução do consumo de álcool. Entretanto, também podem ocorrer convulsões em períodos posteriores. DELIRIUM TREMENS: manifestação mais grave da síndrome de abstinência do álcool. Consiste em um complexo sintomático que inclui desorientação, confusão, alucinação, diaforese, febre e taquicardia. Inicia-se tipicamente após dois a quatro dias de abstinência, e suas formas mais graves podem provocar óbito. EFEITOS CRÔNICOS Manifestações crônicas tendem a ser mais variadas. Muitos pacientes com dependência alcoólica podem não apresentar evidência alguma de manifestações clínicas crônicas durante muitos anos. Entretanto, com o decorrer do tempo aumenta consideravelmente a probabilidade de ocorrerem uma ou mais dessas manifestações. Todos os sistemas orgânicos podem ser afetados, mas os principais sistemas envolvidos são sistema nervoso, sistema cardiovascular, fígado, sistema gastrointestinal, pâncreas, sistema hematopoético e sistema endócrino. Além de maior risco para diversas neoplasias malignas, como cânceres de cabeça e pescoço, esôfago e fígado. Thais Alves Fagundes SISTEMA NERVOSO Principal efeito é a disfunção cognitiva. Pacientes podem exibir problemas leves a moderados na memória de curto ou de longo prazo ou apresentar um quadro de demência grave, semelhante à doença de Alzheimer. Álcool provoca uma polineuropatia, que se expressa por parestesias, dormência, fraqueza e dor crônica, Degeneração da linha média cerebelar, que se manifesta por uma síndrome de postura e marcha instáveis progressivas, frequentemente acompanhadas de nistagmo leve (parcela pequena < 1% dos pacientes dependentes de álcool). Neuropatia periférica, à semelhança do diabetes, os pacientes apresentam dormência, formigamento e parestesias bilaterais nos membros, que são mais pronunciados distalmente. Síndrome de Wernicke: oftalmoparesia, ataxia e encefalopatia. Síndrome de Korsakoff: amnésia retrógrada e anterógrada grave. o Tais síndromes decorrem dos níveis baixos de tiamina, sobretudo nos indivíduos com deficiência de transcetolase. Outros efeitos nocivos do álcool: Blackout: episódio de amnésia anterógrada temporária, em que o indivíduo está acordado, porém esquece tudo (blackouts em bloco com níveis sanguíneos de álcool > 0,20 mg/dL) ou parte (blackouts fragmentados com níveis > 0,12 mg/dL) do que ocorreu durante um período de embriaguez. Perturbação do sono. Embora possa, a princípio, ajudar uma pessoa a adormecer, o álcool compromete o sono no resto da noite. Os estágios do sono são alterados, e o tempo decorrido durante o sono de movimentos oculares rápidos (REM) e sono profundo no início da noite é reduzido. Álcool relaxa os músculos na faringe, o que pode causar roncos e exacerbar a apneia do sono. Pacientes podem ter sonhos proeminentes e algumas vezes perturbadores tarde da noite. Comprometimento do julgamento e da coordenação, aumentando o risco de lesões, até mesmo com níveis relativamente baixos de álcool. Consumo pesado de álcool também pode estar associado à cefaleia, sede, náusea, vômitos e fadiga no dia seguinte, uma síndrome de ressaca, que é responsável por grande parte do absenteísmo no trabalho e na escola e por déficits cognitivos temporários. Comorbidade psiquiátrica: Síndrome psiquiátrica induzida por substância independente ou temporária, conforme definido na 5ª edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5). Pacientes com transtornos psiquiátricos independentes (não apenas sintomas temporários observados somente durante a intoxicação ou abstinência) está relacionada com um transtorno de personalidade antissocial (TPAS) preexistente, manifestado na forma de impulsividade e desinibição graves, que contribui para os transtornos por uso de álcool e de substâncias. Indivíduos com transtornos por uso de álcool e com síndrome psiquiátrica independente apresentam condições preexistentes, como esquizofrenia ou transtorno do humor bipolar, ou síndromes de ansiedade, como transtorno do pânico. Muitas síndromes psiquiátricas observadas temporariamente durante o consumo pesado de álcool e abstinência subsequente: o Tristeza intensa: de vários dias a semanas de duração durante o consumo pesado, tende a desaparecer no decorrer de várias semanas de abstinência (transtorno do humor induzido por álcool). o Ansiedade intensa temporária: frequentemente começa durante a abstinência do álcool e que pode persistir por 1 mês ou mais após a interrupção do consumo de álcool (transtorno de ansiedade induzido por álcool). Thais Alves Fagundes o Alucinações auditivas e/ou delírios paranoides enquanto estão alertas e orientados nos demais aspectos (transtorno psicótico induzido por álcool). SISTEMA CARDIOVASCULAR Etanol diminui a contratilidade miocárdica e causa vasodilatação periférica, com resultante diminuição na pressão arterial e aumento compensatório no débito cardíaco. Consumo de três ou mais doses por dia resulta em um aumento da pressão arterial dose-dependente, que retorna ao normal com algumas semanas de abstinência. Assim, o beber pesado é um fator importante para a hipertensão leve a moderada. Beber pesado crônico também aumenta em seis vezes o risco de doença arterial coronariana relacionada, em parte, a aumento do colesterol da lipoproteína de baixa densidade (LDL) e eleva o risco de miocardiopatia por meio de efeitos diretos do álcool no músculo cardíaco. Sintomas incluem arritmias inexplicadas na presença de disfunção ventricular esquerda, insuficiência cardíaca, hipocontratilidade do músculo cardíaco e dilatação das quatro câmaras cardíacas com trombos murais associados e insuficiência da válvula mitral. Miocardiopatia, hipertensão e arritmias supraventriculares. Arritmias mais comuns associadas ao uso crônico do álcool incluem fibrilação atrial e taquicardia supraventricular; esses quadros são comumente observados na intoxicação aguda e na abstinência. FÍGADO Álcool prejudica a gliconeogênese no fígado, com resultante queda na quantidade de glicose produzida a partir do glicogênio, aumento da produção de lactato e diminuição da oxidação dos ácidos graxos, que contribui para um aumento no acúmulo de gordura nos hepatócitos. Com exposição repetida ao etanol, particularmente com o consumo pesado diário, ocorrem alterações hepáticas mais graves, incluindo hepatite induzida por álcool, esclerose perivenular e cirros. Esteatose hepática aguda, hepatite alcoólica e cirrose. Esteatose hepática associada à ingestão de álcool pode ser assintomática ou causar apenas desconforto abdominal inespecífico; costuma melhorar com a abstinência de álcool. Hepatite alcoólica pode ser assintomática, identificada por anormalidades das enzimas hepáticas ou como um episódio agudo de dor abdominal, náuseas, vômitos e febre. Cirrose muitas vezes é assintomática, mas a cirrose mais avançada pode apresentar diversos sinais e sintomas, como icterícia, ascite e coagulopatia. Mecanismo fisiopatológico: incluem liberação direta de toxinas e a formação de radicais livres, capazes de interagir de modo negativo com proteínas, lipídios e DNA hepáticos. DOENÇA GASTROINTESTINAL Problemas de esôfago, como varizes esofagianas, lacerações de Mallory-Weiss e carcinoma de células escamosas do esôfago. Inflamação do esôfago e estômago, causando desconforto epigástrico e hemorragia digestiva. Gastrite hemorrágica. Vômitos violentos podem produzir sangramento intenso por lesão de Mallory-Weiss, uma laceração longitudinal da mucosa na junção gastresofágica. PÂNCREAS Risco de pancreatite em indivíduos dependentes de álcool é aproximadamente quatro vezes maior do que o da população geral. Thais Alves Fagundes Pancreatite alcoólica aguda, que pode se manifestar por dor abdominal intensa, náuseas, vômitos, febre e hipotensão, pode ser fatal. Indivíduos que apresentam pancreatite aguda recorrente podem desenvolver pancreatite crônica, que tipicamente se expressa como dor abdominal crônica, má absorção, perda de peso e desnutrição. SISTEMA HEMATOPOÉTICO Anemia comumente observada em pacientes com problemas crônicos por álcool pode ser multifatorial (p. ex., perda sanguínea, deficiência de nutrientes, secundária à hepatopatia e ao hiperesplenismo). Etanol aumenta o tamanho dos eritrócitos (volume corpuscular médio [VCM]), que reflete seus efeitos sobre as células-tronco. Se a ingestão contumaz de álcool for acompanhada por deficiência de ácido fólico, também poderá haver neutrófilos hipersegmentados, reticulocitopenia e medula óssea hiperplásica. Se houver desnutrição, também poderão ser observadas alterações sideroblásticas. Consumo pesado crônico pode diminuir a produção dos leucócitos, a mobilidade e aderência dos granulócitos, bem como prejudicar a resposta de hipersensibilidade tardia a novos antígenos. Deficiências imunológicas associadas podem contribuir para vulnerabilidade a infecções, como hepatite e HIV, e interferir em seu tratamento. NEOPLASIAS MALIGNAS Consumo de álcool está associado a neoplasias malignas das vias digestórias superiores, respiratórias e hepáticas. Uso de álcool está associado a carcinomas de células escamosas do esôfago e da cabeça e do pescoço. Uso crônico de álcool foi associado a neoplasias malignas de mama, próstata, pâncreas, colo do útero, pulmão e cólon. Mulheres que consomem mais de uma a duas doses alcoólicas por dia podem aumentar seu risco de câncer de mama em 1,5 vez ou mais. Essas consequências podem resultar diretamente de efeitos promotores do câncer decorrentes do álcool e acetaldeído ou indiretamente por interferir na homeostase imunológica SISTEMA GENITURINÁRIO, FUNÇÃO SEXUAL E DESENVOLVIMENTO FETAL Consumo pesado de álcool na adolescência pode afetar o desenvolvimento sexual normal e o início da reprodução. Em qualquer idade, doses modestas de etanol podem aumentar o impulso sexual, mas diminuir a capacidade erétil nos homens. Alcoolistas crônicos mostra atrofia testicular irreversível com a retração dos túbulos seminíferos, diminuição no volume de ejaculado e menor contagem de espermatozoides. Ingestão repetida de altas doses de etanol por mulheres pode resultar em amenorreia, diminuição no tamanho dos ovários, ausência de corpo lúteo com infertilidade associada e aumento no risco de aborto espontâneo. Beber pesado durante a gravidez resulta na rápida transferência placentária de etanol e acetaldeído, que pode contribuir para uma gama de consequências conhecidas como o transtorno do espectro alcoólico fetal (TEAF). o Síndrome alcoólica fetal (SAF), que pode incluir qualquer um dos seguintes: alterações faciais com pregas oculares de epicanto; pavilhão auricular malformado; dentes pequenos com esmalte defeituoso; comunicação interatrial ou interventricular; prega palmar aberrante e limitação dos movimentos articulares; e microcefalia com deficiência intelectual. o Características de TEAF menos invasivas incluem combinações de baixo peso ao nascer, menor quociente de inteligência (QI), comportamento hiperativo e alguns déficits cognitivos modestos. Thais Alves Fagundes OUTROS EFEITOS Fraqueza da musculatura esquelética causada por miopatia alcoólica aguda. Sistema esquelético: alterações no metabolismo do cálcio, densidade óssea mais baixa e menor crescimento nas epífises, com risco aumentado de fraturas e osteonecrose da cabeça do fêmur. A Alterações hormonais: aumento dos níveis de cortisol, que podem permanecer elevados durante o consumo pesado; inibição da secreção de vasopressina com elevação das concentrações sanguíneas de álcool; redução modesta e reversível da tiroxina (T4) sérica; e diminuição mais acentuada da tri-iodotironina (T3) sérica. DIAGNÓSTICO PERGUNTA INICIAL 1. QUESTIONÁRIO CAGE Inclui quatro perguntas e é pontuado atribuindo-se um ponto a cada resposta positiva. Tendo em vista que a expressão “em algum momento” é usada em todas a perguntas do CAGE, este instrumento foi, por definição, elaborado para detectar problemas com álcool ao longo da vida, e não diferencia problemas ao longo da vida de problemas atuais. Resposta afirmativa em 2 ou mais é um indicativo diagnóstico de dependência do álcool. 2. TRANSTORNOS POR USO DE ÁLCOOL (DSM-5) Thais Alves Fagundes TERMOS E CRITÉRIOS DE PADRÕES DE CONSUMO BEBIDA DE RISCO Homens (< 65 anos): > 14 doses/semana ou > 4 bebidas/dia Mulheres e homens (> 65 anos): > 7 doses/semana ou > 3 bebidas/dia ABUSO DE ÁLCOOL Padrão de uso mal adaptado de álcool levando a prejuízo ou sofrimento clinicamente significativo, manifestado em um período de 12 meses por uma ou mais das seguintes opções: Ingestão de bebida resulta em falha recorrente para cumprir obrigações, no trabalho, na escola, em casa... Ingestão de bebida recorrente em situações prejudiciais/perigosas. Ingestão contínua de bebida apesar de problemas sociais ou interpessoais relacionados com o álcool. DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL Padrão de uso mal adaptado de álcool levando a prejuízo ou sofrimento clinicamente significativo, manifestado em um período de 12 meses por uma ou mais das seguintes opções: Tolerância: crescentes quantidades utilizadas ou diminuídos efeitos com a mesma quantidade. Abstinência: sintomas de abstinência ou uso de substância para alívio/evitação de abstinência. Beber em grandes quantidades ou por mais tempo do que o pretendido. Desejo persistente/tentativas malsucedidas de parar ou reduzir o uso de álcool. Muito tempo gasto para obtenção, uso ou recuperação de seus efeitos. Atividades importantes abandonadas/reduzidas em virtude do uso de álcool. Ingestão contínua apesar da consciência de ter um problema físico ou psicológico associado ao álcool Fissura por álcool CID10 TESTE DE IDENTIFICAÇÃO DE PROBLEMAS RELACIONADOS AO USO DE ÁLCOOL (AUDIT) Dez perguntas do AUDIT cobrem quantidade e frequência de uso de álcool, comportamentos de consumo de bebida, sintomas psicológicos adversos e problemas relacionados ao álcool. Instrumento foi desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde para identificar consumo perigoso (p. ex., de risco) e nocivo (p. ex., uso de álcool que gera danos físico e psicológico). Ao contrário do questionário CAGE, o AUDIT enfoca comportamento recente com relação à bebida (atual e até o ano anterior). Cada pergunta recebe pontuações de 0 a 4 (a pontuação total varia de 0 a 40). Pontuação de 8 ou mais é considerada resultado positivo. o Se igual ou maior que 8, indica uso nocivo. o Se maior que 13, em mulheres, ou maior que 15, em homens, dependência. Thais Alves Fagundes EXAMES LABORATORIAIS Exames laboratoriais que podem refletir um consumo regular de 6 a 8 ou mais drinques por dia. Dois exames de sangue com sensibilidade e especificidade de 60% ou mais para o consumo pesado de álcool são γ-glutamiltransferase (GGT) (> 35 U) e a transferrina deficiente em carboidrato (CDT) (> 20 U/L ou > 2,6%). Outros exames de sangue úteis consistem em VCM normal-alto (≥ 91 μm3) e ácido úrico sérico (> 416 mmol/L, ou 7 mg/dL). TRATAMENTO A maioria dos pacientes pode ser tratada em ambulatórios, mas pacientes com dependência mais grave de álcoolou comorbidades podem, de início, necessitar de tratamento em regime de internação, programas de aconselhamento específicos e tratamento farmacológico. GESTÃO NA ABSTINÊNCIA DE ÁLCOOL Pacientes com abstinências leves a moderadas em geral podem ser tratados com segurança no ambulatório com um acompanhamento de perto. Pacientes com abstinência moderada a grave, expressa por hipertensão, tremores e quaisquer alterações das funções mentais, principalmente pacientes com doenças médicas e psiquiátricas concomitantes, em geral são melhor tratados em regime de internação. Pacientes com histórico de abstinência grave no passado (p. ex., delirium tremens) ou de convulsões por abstinência de álcool também devem ser internados. Os três principais objetivos da condução clínica na abstinência são: minimizar a intensidade dos sintomas relacionados à abstinência, prevenir complicações específicas relacionadas à abstinência (como convulsões e delirium tremens) e garantir encaminhamento a tratamentos de prevenção da recaída. Foi avaliada a efetividade de um amplo acervo de medicamentos para controle da síndrome de abstinência do álcool (Tabela 31-5). Benzodiazepínicos de duração mais longa são os preferidos, pois tornam a abstinência mais suave. Benzodiazepínicos de ação mais curta, como oxazepam, podem ser indicados em indivíduos com hepatopatia grave. A estratégia mais comum é administrar uma dose-padrão de benzodiazepínicos com doses adicionais “conforme necessidade”, com base nos sintomas de abstinência. Thais Alves Fagundes TRATAMENTO CONDIÇÕES RELACIONADAS COM O ÁLCOOL INTOXICAÇÃO AGUDA: A prioridade ao tratar a intoxicação grave é avaliar os sinais vitais e manejar a depressão respiratória, a arritmia cardíaca ou a instabilidade da pressão arterial, se presentes. Deve-se considerar a possibilidade de intoxicação por outras substâncias mediante obtenção de exames toxicológicos de rastreamento para outros depressores do sistema nervoso central (SNC), como benzodiazepínicos, e para opioides. O comportamento agressivo deve ser tratado oferecendo-se tranquilização, mas também considerando uma possível demonstração de força com uma equipe de intervenção. Se o comportamento agressivo continuar, poderão ser usadas doses relativamente baixas de um benzodiazepínico de ação curta, como o lorazepam (p. ex., 1 a 2 mg VO ou IV), que pode ser repetido se necessário, mas deve-se tomar cuidado para não desestabilizar os sinais vitais nem piorar a confusão. Uma abordagem alternativa é prescrever um antipsicótico (p. ex., 0,5 a 5 mg de haloperidol VO ou IM a cada 4 a 8 horas, se necessário, ou olanzapina, 2,5 a 10 mg IM, repetidos após 2 e 6 horas, se necessário). INTERVENÇÃO Existem dois elementos principais para ressaltar a necessidade de adesão ao tratamento em um indivíduo com transtorno por uso de álcool: entrevista motivacional e intervenções breves. Durante a entrevista motivacional, o médico ajuda o paciente a considerar os recursos (p. ex., conforto em situações sociais) e as responsabilidades (p. ex., problemas de saúde e interpessoais relacionados) do padrão atual de beber. As respostas do paciente são fundamentais, e o médico deve ouvir com empatia, ajudando o paciente a analisar as opções e encorajando-o a assumir a responsabilidade pelas mudanças necessárias. Os pacientes devem ser lembrados de que apenas eles podem decidir evitar as consequências que irão ocorrer sem mudanças no beber. O processo da abordagem semelhante, a intervenção breve, foi resumido pelo acrônimo FRAMES: Feedback para o paciente; Responsabilidade a ser assumida pelo paciente; Aconselhamento, e não ordens, sobre o que deve ser feito; Menus de opções que poderiam ser consideradas; Empatia para compreender os pensamentos e sentimentos do paciente; e autoeficácia (do inglês Self-efficacy), ou seja, oferecer apoio para a capacidade do paciente de ser bem-sucedido ao fazer mudanças. Thais Alves Fagundes Quando o paciente começa a considerar uma mudança, a discussão pode se concentrar mais nas consequências do alto consumo de álcool, em abordagens sugeridas para interromper o consumo de álcool e no auxílio para reconhecer e evitar situações que tendem a levar a um consumo pesado. Tanto a entrevista motivacional quanto as intervenções breves podem ser realizadas em sessões de 15 minutos; entretanto, como os pacientes com frequência não modificam imediatamente o comportamento, são frequentemente necessários vários encontros para explorar o problema e as possíveis opções, discutir tratamentos ideais e explicar os benefícios da abstinência. ABSTINÊNCIA DO ÁLCOOL Se o paciente concordar em parar de beber, reduções súbitas na ingestão de álcool podem produzir sintomas de abstinência, sendo que muitos deles são o oposto daqueles produzidos pela intoxicação. As características incluem tremor das mãos; agitação e ansiedade; excesso de atividade do sistema nervoso autônomo como aumento de frequência cardíaca e respiratória, sudorese e temperatura corporal; e insônia. Esses sintomas em geral começam depois de 5 a 10 horas da redução da ingestão de etanol, atingem o pico nos dias 2 ou 3 e melhoram no dia 4 ou 5, embora níveis leves desses problemas possam persistir por 4 a 6 meses como uma síndrome de abstinência protraída. Cerca de 2% dos indivíduos com transtornos por uso de álcool apresentam uma crise convulsiva por abstinência, com aumento do risco no contexto da idade avançada, problemas clínicos concomitantes, uso indevido de outras substâncias e quantidades maiores de álcool. Os mesmos fatores de risco também contribuem para a taxa ainda mais baixa de delirium por abstinência, também conhecido como delirium tremens (DT), em que a abstinência inclui delirium (confusão mental, agitação e níveis flutuantes de consciência) associado a tremor e hiperatividade autonômica (p. ex., aumento pronunciado da frequência cardíaca, da pressão arterial e das respirações). Os riscos de convulsões e DT podem ser reduzidos identificando-se e tratando qualquer condição clínica subjacente no início do curso da abstinência. Por conseguinte, a primeira etapa na abordagem aos possíveis fenômenos de abstinência é um exame físico minucioso em todos os consumidores pesados de álcool que estejam considerando a abstinência. Isso inclui uma pesquisa de evidências de insuficiência hepática, hemorragia digestiva, arritmias cardíacas, infecção e desequilíbrio da glicose ou dos eletrólitos. Também é importante oferecer nutrição adequada e múltiplas vitaminas B orais, incluindo 50 a 100 mg de tiamina ao dia durante 1 semana ou mais. Como a maioria dos pacientes com transtornos por uso de álcool que entram em abstinência têm uma hidratação normal ou estão levemente hiperidratados, deve- se evitar o uso de líquidos IV, a não ser que haja um problema clínico relevante ou sangramento recente significativo, vômitos ou diarreia. A etapa seguinte é reconhecer que, pelo fato de os sintomas de abstinência refletirem a remoção rápida de um depressor do SNC, o álcool, os sintomas podem ser controlados pela administração de qualquer depressor que diminua os sintomas (p. ex., frequência cardíaca rápida e tremor) e em seguida com diminuição gradual da dose ao longo de 3 a 5 dias. Embora a maioria dos depressores seja eficaz, os benzodiazepínicos (Cap. 444) são os que têm mais dados que sustentam o seu uso nessa situação, maior margem de segurança e menor custo, sendo portanto a classe de fármacos preferida. Os benzodiazepínicos de meia-vida curta podem ser considerados para os pacientes com disfunção hepática grave ou evidências de lesão cerebral significativa, mas devem ser administrados a cada 4 horas para evitar flutuações abruptas no nível sanguíneo que possam aumentar o risco de crises convulsivas. Por isso, a maioria dos médicos usa fármacos com meias-vidas mais longas (p. ex., clordiazepóxido), ajustando a dose se ossinais de abstinência aumentarem progressivamente e evitando-os se o paciente estiver dormindo ou apresentar hipotensão ortostática. O paciente, em média, requer 25 a 50 mg de clordiazepóxido ou 10 mg VO de diazepam a cada 4 a 6 horas no primeiro dia, com doses reduzidas para zero nos próximos 5 dias. Embora a abstinência de álcool possa ser tratada em um hospital, os pacientes com boa condição física que demonstram sinais leves de abstinência apesar de baixas concentrações de álcool no sangue e que não têm história prévia de DT ou convulsões por abstinência podem ser considerados para desintoxicação ambulatorial. Nos próximos 4 ou 5 dias, esses pacientes https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter444.xhtml Thais Alves Fagundes devem receber medicamentos durante apenas 1 ou 2 dias de cada vez e devem retornar diariamente para avaliação dos sinais vitais. Podem ser hospitalizados se houver aumento acentuado dos sinais e sintomas de abstinência. O tratamento do paciente com DT pode ser difícil, sendo provável que o transtorno siga seu curso por 3 a 5 dias independentemente da terapia empregada. Entretanto, as condições que preenchem os critérios para DT delineados anteriormente representam emergências médicas que estão associadas a uma taxa de mortalidade estimada de até 5%, de modo que o tratamento é mais bem realizado em uma unidade de terapia intensiva com médicos bem treinados que monitoram rigorosamente os sinais vitais. Os medicamentos podem incluir benzodiazepínicos em altas doses (p. ex., até 800 mg/dia de clordiazepóxido) ou, para os que não respondem a esse esquema, doses rigorosamente monitoradas de propofol ou dexmedetomidina. O enfoque da assistência é identificar os problemas clínicos e corrigí-los, controlar o comportamento e prevenir lesões. Não recomendamos o uso de antipsicóticos no tratamento dos sintomas de abstinência de álcool; embora os antipsicóticos tenham menos tendência a exacerbar confusão do que os benzodiazepínicos, eles podem aumentar o risco de crises convulsivas. As convulsões generalizadas por abstinência raramente exigem mais do que a administração de uma dose adequada de benzodiazepínicos. Há poucas evidências de que os anticonvulsivantes, como a fenitoína ou a gabapentina, sejam mais efetivos do que os benzodiazepínicos para as convulsões por abstinência de álcool, e o risco de convulsão habitualmente terá passado quando forem alcançados níveis efetivos do fármaco. O raro paciente com estado de mal epiléptico deve ser tratado de maneira agressiva (Cap. 418). FASE DE REABILITAÇÃO Visão geral Após completar a reabilitação alcoólica, ≥ 60% dos indivíduos com transtornos por uso de álcool, particularmente pacientes altamente funcionais, mantêm a abstinência durante pelo menos 1 ano; muitos também conseguem manter uma sobriedade em longo prazo. Os componentes fundamentais da fase de reabilitação do tratamento incluem abordagens cognitivo-comportamentais para ajudar os pacientes a reconhecer a necessidade de mudança, enquanto se trabalha com eles para modificar seus comportamentos, de modo a melhorar a adesão. Uma etapa fundamental é otimizar a motivação para a abstinência por meio de educação dos pacientes e outras pessoas significativas sobre os transtornos por uso de álcool e a sua provável evolução com o passar do tempo. Depois de anos de consumo pesado de álcool, muitos pacientes também necessitam de aconselhamento vocacional e não vocacional para ajudar a estruturar seus dias, e todos devem tentar procurar grupos de autoajuda, como os Alcoólicos Anônimos (AA), para ajudá-los a desenvolver um grupo de pares sóbrios e aprender como lidar com os estresses da vida permanecendo sóbrios. A educação sobre prevenção de recaída ajuda os pacientes a identificar situações nas quais é provável um retorno ao consumo de álcool (p. ex., passar um tempo com amigos que fazem consumo pesado ou parar em um bar para encontrar amigos, porém planejando tomar apenas uma bebida não alcoólica), formular maneiras de evitar a situação perigosa e, se isso não for possível, reduzir os riscos aos quais ficam expostos. É também importante desenvolver estratégias de enfrentamento, que aumentam as probabilidades de rápido retorno à abstinência depois de um episódio de consumo de álcool. Embora muitos pacientes possam ser tratados de modo ambulatorial, as intervenções mais intensas são mais efetivas, e alguns indivíduos com transtornos por uso de álcool não respondem aos AA ou a grupos de atendimento ambulatorial. Independentemente do local, o contato subsequente com a equipe de tratamento ambulatorial deve ser mantido por pelo menos 6 meses e de preferência por 1 ano após a abstinência. O aconselhamento concentra-se em áreas de melhora do funcionamento na ausência de álcool (i.e., porque é uma boa ideia continuar mantendo a abstinência), ajudando pacientes a gerenciar o tempo livre sem álcool, incentivando-os a formar um grupo de amigos que não bebem e discutindo maneiras de lidar com o estresse sem beber. O médico desempenha um importante papel na identificação do problema relacionado com o álcool, no diagnóstico e tratamento das síndromes clínicas e psiquiátricas independentes ou induzidas por substâncias, na supervisão da desintoxicação, no encaminhamento do paciente a programas de reabilitação de base ambulatorial ou com internação, no fornecimento de aconselhamento e, se for apropriado, na seleção do medicamento (se houver https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter418.xhtml Thais Alves Fagundes algum) que possa ser necessário. Quanto à insônia, os pacientes devem ser tranquilizados de que o sono prejudicado é temporário após a abstinência de álcool e irá melhorar nas próximas semanas. Devem-se ensinar os elementos da “higiene do sono”, incluindo manter horários consistentes para deitar e acordar, evitar exercícios ou grandes refeições antes do deitar e manter o quarto frio, escuro e silencioso à noite (Cap. 27). Os medicamentos depressores para o sono não são a abordagem ideal para esse tipo de insônia, que frequentemente continua por várias semanas ou meses. Os pacientes têm probabilidade de desenvolver insônia de rebote quando a dose do depressor é reduzida ou interrompida. O rebote aumenta a probabilidade de que eles irão aumentar a dose e desenvolver potencialmente problemas controlando o medicamento depressor prescrito. Antidepressivos sedativos (p. ex., trazodona) não devem ser usados, pois interferem no funcionamento cognitivo na manhã seguinte e perturbam a arquitetura normal do sono, mas o uso ocasional de medicamentos para o sono sem prescrição (anti- histamínicos sedativos) pode ser considerado. Um problema adicional, os sintomas de ansiedade, pode ser abordado aumentando a compreensão do paciente sobre a natureza temporária dos sintomas e ajudando-os a desenvolver estratégias para obter um relaxamento com o uso de formas de terapia cognitiva. MEDICAMENTOS PARA A FASE DE REABILITAÇÃO Vários medicamentos têm benefícios modestos quando usados nos primeiros 6 a 12 meses de recuperação. A naltrexona, um antagonista opioide, pode reduzir as recaídas subsequentes, podendo ser utilizada na forma oral (50 a 150 mg/dia) ou em injeção de 380 mg uma vez por mês. Mediante o bloqueio dos receptores opioides, a naltrexona diminui a atividade no sistema de recompensa tegmentar ventral rico em dopamina e reduz a sensação de prazer ou recompensa se for ingerido álcool. Uma segunda medicação, o acamprosato (cerca de 2 g/dia fracionados em três doses orais), tem efeitos modestos semelhantes. O acamprosato inibe os receptores NMDA, reduzindo os sintomas leves de abstinência prolongada. Vários ensaios clínicos sobre a combinação de naltrexona e acamprosato relataram que ela é bem tolerada, podendo a eficácia ser superior a cada fármaco isoladamente, embora nem todos osestudos concordem. É mais difícil estabelecer a relação vantagem-risco de um terceiro fármaco, o dissulfiram, inibidor da ALDH, usado em doses de 250 mg/dia. Esse fármaco produz vômitos e instabilidade do sistema nervoso autônomo na presença de álcool, como resultado de rápida elevação dos níveis sanguíneos do acetaldeído. Essa reação pode ser perigosa, sobretudo para os pacientes com cardiopatia, AVC, diabetes melito e hipertensão arterial. O fármaco em si tem riscos potenciais de sintomas depressivos ou psicóticos temporários, neuropatia periférica e lesão hepática. O dissulfiram é mais bem administrado sob supervisão de outro indivíduo (como o cônjuge), especialmente durante situações de alto risco de ingestão de bebidas (como o feriado de Natal). Outros fármacos sob investigação incluem o antagonista opioide nalmefeno, o agonista do receptor nicotínico vareniclina, o antagonista da serotonina ondansetrona, o agonista α-adrenérgico prazosina, o agonista do receptor de GABAB baclofeno, o anticonvulsivante topiramato e os antagonistas do receptor de canabinol. Hoje, não há dados suficientes para determinar a relação vantagem-desvantagem desses medicamentos no tratamento dos transtornos por uso de álcool e, portanto, há poucos dados que ofereçam um suporte sólido para o seu uso rotineiro em contextos clínicos. https://jigsaw.minhabiblioteca.com.br/books/9788580556346/epub/OEBPS/Text/chapter27.xhtml
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