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19
Vesálio e Harvey : a conexão moderna 
 
"O que os fundadores da ciência moderna, entre os quais Gali leu, t inham 
que fazer , não era cr i t icar e combater cer tas teor ias erradas, para corr igi-
las ou subst i tuí-las por outras melhores. T inham de fazer algo 
inteiramente diverso. T inham de destruir um mundo e subst i tuí-lo por 
outro . T inham de reformar a estrutura de nossa própria intel igência , 
reformular e rever seus conceitos, encarar o Ser de uma nova maneira , 
e laborar um novo conceito de conhecimento, um novo conceito da 
ciência" . 
 "Gali leu e Platão" - Alexandre Koyré 
 
O “nascimento” da clínica que hoje em dia praticamos deu-se no início do século XIX. Há 
muito pouco tempo, portanto. Como caracterizar este momento? Como distinguir esta medicina da que 
a antecedeu? 
Basicamente, a medicina moderna inaugurou um novo objeto e uma nova maneira de estudá-lo 
e conhecê-lo. A medicina passa a ver um outro mundo e o descreve de outra forma. Até então, a 
doença não coincidia com o corpo do doente; a clínica, portanto, se fazia através de um olhar 
“superficial” e seu conhecimento partia da enumeração dos sintomas e não de qualquer exame do 
corpo humano. A seguir, a anátomo-clínica levou a doença para dentro do corpo. Assim, o olhar 
médico se tornou “vertical e profundo”, sempre a procurar uma correlação entre os sintomas e as 
lesões dos órgãos, que explicavam os sintomas. Além disso, esta busca passou a seguir um certo rigor 
objetivo e quantitativo, quer dizer, científico. 
Como foram possíveis estas mudanças? De onde surgiram este novo objeto e esta nova 
linguagem? Para que estas transformações se dessem foi preciso emergirem, com antecedência 
bastante, novos conhecimentos sobre o corpo humano e novos métodos de trabalho. É desta conexão - 
fundadora da medicina moderna - que trata este capítulo. 
 
I - Claudio Galeno 
 
A principal autoridade em ciência 
médica e na prática efetiva da Medicina até o 
século XVII ir bem adiantado foi Claudio 
Galeno (130-201). A deficiência técnica, o 
fato de Galeno nunca ter dissecado um corpo 
humano completo, não era objeto de crítica ou 
motivo para rejeição de suas teorias. Não é 
fácil, hoje em dia, avaliar plenamente a força 
e a longevidade da tradição galênica. Esta 
admiração (ou temor) era tão pródiga, que os 
primeiros anatomistas, quando não 
confirmavam as descrições galênicas, 
 20
atribuíam o fato à sua própria falta de 
habilidade, e não à de Galeno. Só muito 
gradualmente puderam aprender a ver, até 
mesmo as estruturas mais grosseiras do corpo, 
com outros olhos que não os de Galeno. 
A fisiologia foi uma constante sedução 
na obra de Claudio Galeno, que concebeu uma 
pormenorizada teoria circulatória. Ele 
considerava o fígado o principal órgão 
funcional, pois era o local de transformação 
da comida ingerida em sangue, que se movia 
para o exterior, e formava toda a estrutura 
corporal - ossos, carne, nervos, etc. 
Entretanto, ele não concebia esse 
"movimento" do sangue como fluindo 
unidirecional, centrífugo, mas como um 
misterioso fluxo e refluxo. Essa era uma teoria 
de circulação qualitativa, não-matemática, 
preocupada com a classificação e o 
deslocamento de espíritos pelo corpo humano. 
O sangue fluía como a água que, se 
canalizada, "irrigava" o solo. Os conceitos de 
tempo e número lhe eram absolutamente 
estranhos. 
Galeno estava longe de ser um 
empirista. Para interpretar o que via, 
introduziu certos “princípios” não-empíricos, 
tais como a associação entre forma e função 
(o fígado seria o órgão de origem do sangue 
porque se parece com o sangue coagulado) e, 
em especial, o princípio de que a natureza 
nada faz em vão. Assim, cada traço do corpo 
tem uma finalidade que pode ser apreendida e 
que é perfeita para a vida dos homens. 
 
II - Idade Média 
 
 
 
Na Idade Média, a natureza estava 
como que "encantada". Não cabia aos 
homens, portanto, interferir em suas 
harmonias. A uma época que produziu as 
grandes catedrais góticas, que inseriu em 
nossa civilização a bússola, a pólvora, a 
balança, o relógio mecânico e as lentes, não se 
pode negar o mérito da criatividade. Ocorre, 
no entanto, que a maior parte destes 
progressos foi obra de artesãos, desenvolveu-
se ao nível do "senso comum", sem qualquer 
apoio em "teorias". Os métodos, então 
utilizados, tinham caráter eminentemente 
prático, não pressupunham uma formulação 
teórica que lhes desse sustentação. Por outro 
lado, os homens de cultura, encerrados em 
seus gabinetes, negavam qualquer validade às 
observações de técnicos iletrados. Por isso, 
embora os artesãos tenham tido intuições 
notáveis, a utilização mais generalizada das 
mesmas esbarrou na grande limitação da 
ciência medieval: a ausência de um 
simbolismo científico capaz de traduzir, em 
fórmulas claras e aplicáveis, os princípios de 
“sua” ciência. 
A ciência medieval não tinha um 
alcance mundial, nem era precisa na 
exposição e exatidão dos fatos. As teorias, 
contudo, eram muito firmemente articuladas e 
enredadas. A articulação entre a idéia dos 
elementos (terra. água …) às qualidades 
(quente, úmido …) - na física - aos humores 
 21
(sangue, fleugma) e, depois, na medicina, aos 
temperamentos (sangüíneo, fleumático …), é 
um exemplo óbvio dessas teorias, ainda que 
elementar. Assim, a visão do mundo 
medieval, por absurda que nos pareça, possuía 
uma espécie de solidariedade monolítica, o 
que impedia mudanças graduais: qualquer 
transformação precisaria ser verossímil no seu 
todo. Por outro lado, progressos técnicos de 
natureza aparentemente não-filosófica podiam 
ser aceitos muito mais prontamente, já que 
não constituíam ameaça à ordem científica. 
Durante a Idade Média, o médico 
profissional recebia ensino em certas 
universidades. O ofício de cirurgião, muito 
mais humilde, se adquiria como qualquer 
outro, por aprendizado. A medicina, como 
todas as matérias universitárias aprendia-se, 
exclusivamente, nos livros. Nesta fase, por 
exemplo, o ensino da anatomia a estudantes 
de medicina teria sido uma perda de tempo, já 
que a disfunção orgânica não era apresentada 
como causa de falta de saúde e o médico não 
agia diretamente sobre o corpo. 
O “fígado” (na qualidade de fabricante 
de um humor, o sangue) era muito importante 
para o médico como conceito, mas não como 
órgão. O principal esforço intelectual era 
dominar as “antigas” teorias da saúde e da 
doença e aplicá-las ao alívio do paciente. 
Procurar novos esclarecimentos, investigar a 
realidade fora destes sistemas, teria parecido 
presunçoso, irrelevante e inútil. 
Além disso, a Igreja opunha-se 
vigorosamente aos estudos anatômicos. No 
século XIV, ameaçou de excomunhão todo 
aquele que tentasse desvendar o corpo 
humano por meio de cutelos. Também 
desencorajou a cirurgia, atividade degradante, 
confiada a gente de baixo quilate. Entretanto, 
além da Igreja, também o povo se opunha a 
que se violassem um cadáver humano, pois, 
acreditava na ressurreição dos corpos e, assim, 
a ninguém deveria ser permitido mutilá-los, 
para que os corpospudessem apresentar-se 
íntegros e imaculados perante a misericórdia 
divina. Nos longos períodos de guerras, nas 
inúmeras execuções, nunca houvera tal 
respeito pelo corpo humano. 
Na segunda metade da Idade Média, a 
Igreja passou a autorizar a dissecção dos 
corpos dos condenados. O estudo anatômico 
medieval atingiu o seu ápice com Mondino 
dei Luizzi (1275-1326), o primeiro anatomista 
na Europa Ocidental, professor da 
Universidade de Bolonha e autor de um 
manual que esteve em uso por quase duzentos 
anos (tendo sido publicado em latim, italiano 
e francês). Mondino consolidou o método da 
“cerimônia anatômica”: após a execução, 
entregava-se o cadáver aos mestres 
missionários, que deveriam convidar as 
autoridades para assistir à dissecção. 
Antes da primeira incisão, lia-se a bula 
papal aos presentes e se apunhao selo da 
universidade no cadáver. Obedecendo-se ao 
preceito de ser o cérebro a sede da alma, 
erguia-se a cabeça do cadáver. Após essa 
formalidade, rezava-se uma oração e os 
médicos cantavam em resposta. Dava-se, 
então, início a uma dissecção muito sumária. 
Os médicos não tocavam no corpo. Um 
servente (o “ostensor”) o abria e apontava 
para a estrutura que estava sendo descrita pelo 
 22
médico. Um segundo auxiliar (o 
“demonstrator”, um cirurgião), procedia à 
dissecção propriamente dita, para mostrar as 
estruturas. 
Durante este tempo, o mestre lia em voz 
alta uma passagem de Galeno, assinalando 
com um ponteiro as diferentes estruturas 
enumeradas no texto. Essa metódica 
exposição durava seis dias, iniciando-se com 
generalidades e uma discussão das 
autoridades, seguida pela dissecção das partes 
moles do abdome. A seguir, passava-se aos 
órgãos da reprodução, ao tórax, à cabeça, ao 
esqueleto e às partes periféricas. Tendo em 
vista a carência de meios para defender os 
corpos da decomposição, queimavam-se 
plantas odoríferas, cuja espessa fumaça, além 
de corrigir insuficientemente o fedor 
cadavérico, acabava por ser insuportável. O 
ato terminava com uma reunião solene, que 
incluía um concerto, um banquete e uma 
representação teatral. Tudo isso se prolongava 
por dois dias e culminava na cerimônia do 
enterro do cadáver, ligeiramente mutilado. 
O livro era muito mais importante do 
que o corpo e, o estudante, um mero 
espectador, que se dava por extremamente 
feliz se conseguisse ver alguma coisa das 
estruturas mais delicadas. Na verdade, a 
demonstração não tinha o propósito de 
demonstrar as virtudes da prática como 
método.
 
III – Renascimento 
 
 
 
O Renascimento surgiu como um 
movimento cultural das cidades italianas em 
que a burguesia tinha vencido a aristocracia 
feudal. Só no século XVI o Renascimento se 
tornou aristocrático, não mais a serviço do 
feudalismo e, sim, das novas monarquias, 
como na França. Ele não deve ser confundido 
com o Humanismo que, certamente, tem 
raízes mais antigas, medievais. 
A arte renascentista conseguiu 
encontrar o meio termo entre o primitivismo 
ingênuo da Idade Média e a exaltação 
artificial do Barroco. Pelo estudo do sereno 
equilíbrio dos gregos, os artistas da 
Renascença conseguiram o equilíbrio entre 
idealismo e realismo e fundaram uma nova 
arte clássica. Esta conquista não se limitou à 
arquitetura, à escultura e à pintura. O 
Renascimento recuperou o mundo exterior, 
que a Idade Média cristã havia renegado, 
descobriu a beleza física do homem e da 
mulher e, no centro deste novo mundo, o 
indivíduo. 
No Renascimento, no final do século 
XV, a anatomia estava associada ao texto 
impresso e às vantagens da ilustração em 
xilogravura, e ao vigor renovado da medicina. 
A primeira metade do século XVI revelou 
uma grupo considerável de anatomistas 
práticos e competentes, na sua maior parte 
italianos. Uma importante fonte de inspiração 
e, igualmente, um poderoso meio de 
comunicação, veio do movimento naturalista 
na arte. Os pintores e escultores italianos 
 23
tinham estudado o corpo humano em busca de 
realismo gráfico, já antes do final do século 
XV. 
Leonardo da Vinci (1452-1519) 
avançou muito neste caminho e deixou grande 
quantidade de desenhos anatômicos, desde 
esboços grosseiros, aparentemente obtidos a 
partir de membros dissecados, até desenhos 
elaborados que, em geral incorporavam 
crenças tradicionais, ainda que errôneas. Uma 
avaliação justa destas obras requer um olho 
conhecedor pois, ao contrário do que se possa 
pensar, artistas como da Vinci não 
representavam apenas o que viam, pois 
revelam um ar “naturalista”, mesmo quando 
mostram formas impossíveis. Fiéis ou não, 
estas figuras constituem o primeiro esforço 
cuidadoso, em toda a história, de “fotografar” 
estruturas dissecadas, bem como de estudar 
comparativamente as formas - em especial o 
esqueleto - de diversas espécies. 
Estes estudos tiveram início nos 
primórdios da década de 1490 e precedem de 
meio século as figuras impressas de Vesálio. 
O sigilo que rodeava as folhas de trabalho de 
da Vinci impediu que tivessem qualquer efeito 
significativo nos seus sucessores imediatos. O 
que Leonardo prova, de fato, é a fertilidade e a 
necessidade de estudar o livro e o corpo ao 
mesmo tempo. 
 
IV - André Vesálio e a nova Anatomia 
 
A imprensa moderna nasceu de uma 
invenção de Johannes Guttenberg, em 
Mogúncia, Alemanha, no século XV: a 
composição de palavras em caracteres móveis, 
ou seja, a tipografia. No ano de 1543, foram 
publicados dois livros que se tornaram 
clássicos da história da ciência, o “De 
Humanis Corporis Fabrica”, de Andreas 
Vesalius (1514-1564), e o “De Revolutionibus 
Orbium Coelestium”, de Nicolau Copérnico 
(1473-1543). Nenhum dos dois livros era 
moderno no conteúdo, mas ambos inspiraram 
ramos de atividade que haveriam de levar à 
criação de concepções completamente 
diferentes, em poucas gerações. 
O título da obra de Vesálio é sugestivo 
da chegada do imaginário mecânico à 
medicina: o corpo humano é visto como um 
grande engenho, cujas peças encaixam-se, 
ordenadamente, para fazer funcionar o mais 
elevado dos “autômatos”: o homem. A 
“Fábrica” é, na sua maior parte, significativo 
como obra de informação descritiva, pois as 
belas dissertações de um grande anatomista 
são imortalizadas pelas novas capacidades de 
desenhadores e gravadores. As ilustrações não 
são “puramente” naturalistas, mas 
interpretações de estruturas e de suas 
disposições no espaço. Na verdade, 
representam o primeiro grande passo em 
direção ao “realismo fotográfico” na ciência. 
Vesálio fora um profundo estudante e 
editor de obras de Galeno e continuava a 
respeitá-lo como a maior das primeiras 
autoridades sobre anatomia humana, embora 
soubesse que ele dissecara apenas macacos e 
 24
outros animais. Quando se entrega à 
realização do seu grandioso tratado 
anatômico, Vesálio rodeia-se dos melhores 
artistas da época, entre eles, possivelmente, 
Ticiano. Pela primeira vez, na história da 
medicina, surge uma obra amplamente 
documentada, a equilibrar o prazer artístico 
com o produto da observação. O livro tem 690 
páginas e 323 ilustrações e é lançada em 
1543, quando Vesálio tinha 29 anos. A lógica 
do naturalismo da escola médica e a máquina 
impressora combinaram-se para fazer surgir 
um novo tipo de ciência observacional, 
registrada. Assim procedendo, o anatomista 
descobriu que o corpo humano nem sempre 
correspondia às descrições de Galeno e 
aprendeu a confiar na observação como a 
única fonte de autoridade. Desta forma, no 
novo ideal de ensino, as estruturas deveriam 
ser reveladas aos alunos pelo próprio 
professor, no corpo dissecado. 
Na verdade, tanto no caso de Leonardo 
como no de Vesálio, as ilustrações são, por 
vezes, mais fiéis à realidade e menos 
tradicionais do que as palavras. Para Vesálio, 
estudar a anatomia humana, preparar 
ilustrações anatômicas elaboradas não 
constituía, em si, uma crítica a Galeno. A 
crítica veio como fruto da experiência. Deste 
modo, a investigação contrária a Galeno foi 
um produto da tentativa de compreender as 
descrições e de ilustrar as teorias do grande 
médico de Roma. 
 
V - Galileu, Descartes e o método científico 
 
 
No século XVII, o centro de gravidade 
do universo oscilou. O universo passou a ser 
um lugar em que astros e pedras obedecem às 
leis mecânicas expressas pelo cálculo. A partir 
de então, para determinar um lugar para os 
seres vivos e para explicar seu funcionamento, 
só há uma alternativa. Ou os seres são 
máquinas de que só devemos considerar as 
formas, as dimensões e os movimentos, ou 
escapam às leis da mecânica, e devemos então 
renunciar a encontrar unidade e coerências no 
mundo. 
Quando Galileu (1564-1642) passou a 
difundir uma nova visão de Universo - em que 
a Terra, como dizia Copérnico, se movia - a 
inovação assumiu um caráter organizado e 
revolucionário. Galileu e Descartes (1596-
1650)representam, exemplarmente, a 
mentalidade desta nova era, são os grandes 
intérpretes de um imaginário. Pela primeira 
vez encontramos, harmoniosamente realizada, 
uma convivência sinérgica entre a prática dos 
artesãos e a especulação teórica. Com Galileu, 
as descobertas técnicas serão utilizadas 
sistematicamente, como parte de um processo 
científico. 
A metodologia empregada por Galileu 
distingue três momentos principais: a 
observação, a hipótese e a experimentação (a 
verificação da hipótese). A substituição das 
argumentações lógicas da dialética formal 
pela observação dos fatos, em si mesmos, 
 25
significou o principal marco desta nova 
mentalidade, cuja originalidade estava na 
garantia de as potencialidades do raciocínio 
matemático irem muito além dos limites 
admitidos até então. Assim, não havia 
proposição referente ao conhecimento natural 
que não devesse ser demonstrada 
matematicamente. As propriedades dos corpos 
naturais são determinadas, demonstráveis e 
explicáveis, especialmente na procura de uma 
filosofia única e consistente da natureza. 
Galileu segue, pois, ao encontro de 
Descartes, e fornece a teoria matemática que 
dá vida à filosofia mecanicista. De fato, 
Descartes concebeu uma estrutura geral do 
pensamento científico - uma idéia da natureza 
como máquina perfeita, governada por leis 
matemáticas exatas - que logrou transformar 
em sólidos conceitos os traços mecanicista, 
dualista e quantitativista da racionalidade 
moderna. Descartes baseou toda a sua 
concepção de natureza na divisão entre dois 
domínios separados e excludentes: a “res 
cogitans” (a "coisa pensante") e a “res 
extensa”, o domínio da matéria (a "coisa 
extensa"). Assim, a matéria, de qualquer 
natureza, funcionava segundo leis mecânicas, 
e tudo no mundo material poderia ser 
explicado em função da organização e do 
movimento das partes. 
A crença na precisão do conhecimento 
científico está na base do pensamento e da 
visão de mundo cartesianos. Seu método 
analítico - que consiste em decompor o 
problema em suas partes componentes e em 
dispô-las em ordem lógica - é uma das 
maiores contribuições à racionalidade 
científica. Sem dúvida, a este método se deve 
creditar a fragmentação característica do 
nosso pensamento em geral e das nossas 
disciplinas acadêmicas. Fragmentação que 
levou ao reducionismo na ciência e à crença 
em que todos os aspectos dos fenômenos 
complexos podem ser compreendidos se 
reduzidos às suas partes constituintes.
 
VI - William Harvey e a circulação do sangue 
 
Miguel Servet (1511-1553), médico e 
teólogo espanhol, foi condenado à fogueira 
por Calvino, em Genebra. Ele publicou um 
livro, de conteúdo religioso (“Christianismi 
Restitutio”), em que afirmava que o sangue, 
partia do ventrículo direito, se dirigia aos 
pulmões, através da veia arteriosa, eliminava 
impurezas e se vivificava graças à mistura 
com o “pneuma” (ar exterior). A seguir, o 
sangue era aspirado pela diástole do 
ventrículo esquerdo e regressava ao coração, 
através da artéria venosa, a fim de constituir o 
"espírito vital". Servet imaginava que o 
sangue continha o espírito vital, a presença de 
Deus no corpo humano, enquanto o espírito 
natural residia no fígado e no sangue escuro 
das veias. 
As concepções fisiológicas de Servet 
não são muito diferentes das de Galeno. O 
ponto mais notável de sua resumida descrição 
 26
é a convicção da mudança qualitativa no 
sangue, efetuada pela sua passagem pelos 
pulmões. Durante muitos anos esta 
representou a primeira menção do que 
conhecemos como circulação pulmonar, ou 
pequena circulação. 
Seis anos antes do martírio de Servet, 
Realdo Colombo (1516-1559), discípulo de 
Vesálio, negara a pretensa comunicação entre 
os ventrículos e intuíra a passagem do sangue 
pelos pulmões. Em sua obra “De Re 
Anatomica”, descreveu também as sístoles e 
diástoles e o funcionamento das válvulas 
cardíacas. Insistia, contudo, em conferir ao 
fígado a mesma função atribuída por Galeno. 
Hieronymus Fabricius de 
Acquapendente (1533-1619) publicou os 
melhores estudos renascentistas sobre 
embriologia. Entretanto, seu trabalho mais 
notável foi uma complexa e minuciosa 
descrição das válvulas das veias, que registrou 
no livro “De venarum ostiolis”. 
Provavelmente por influência da doutrina de 
Galeno, Acquapendente interpretou mal a 
verdadeira função das válvulas venosas, 
acreditando que elas impediam a saída de 
sangue do coração, e não o seu fluxo em 
direção a ele. 
William Harvey (1578-1657), médico 
inglês, seguindo as lições de Acquapendente, 
dedicou-se ao tema da circulação sangüínea. 
Para estudar a circulação nos organismos, 
Harvey pôs a descoberto a artéria de um 
animal e apertou-a com um fio, cortando-a 
acima do aperto: a cada pulsação cardíaca, o 
sangue golfava do vaso amputado, até a 
hemorragia diminuir e o coração reduzir seus 
batimentos. Se Galeno estivesse correto, o 
fígado - sede da produção do sangue - deveria 
ter suprido o que se perdera na hemorragia. 
Harvey completou a experiência com a 
laqueadura do vaso sangüíneo que partia do 
coração de uma cobra e, a seguir, com uma 
incisão do mesmo. Dessa vez, nenhum sangue 
jorrou e, ao fim de alguns segundos, o coração 
começou a inchar, em virtude da acumulação 
do sangue proveniente dos pulmões e das 
outras partes do organismo. 
Depois, Harvey comprimiu uma veia 
superficial do braço e espremeu o sangue no 
sentido do coração; quando interrompeu a 
segunda manobra, o sangue não refluiu à veia, 
o que evidenciava a existência de válvulas que 
se fechavam e impediam o retrocesso. Porém, 
ao deixar de comprimir a veia, o sangue corria 
de novo, desde da extremidade do membro até 
o coração. Esta experiência confirmava que o 
sangue, contrariamente à opinião de Galeno, 
não nasce no fígado, mas flui do coração para 
as artérias e regressa pelas veias* 1 . 
 
* 1 Na verdade, sessenta anos antes 
de Will iam Harvey, Andrea Cesalpino 
corr igira um equívoco fundamental das 
concepções galênicas, t ranspondo do 
fígado para o coração a sede da 
a t ividade circulatór ia . Cesalpino foi o 
pr imeiro a usar o conceito de circulação . 
O úl t imo elo do ciclo circulatór io (o 
modo como era possível às veias e 
ar tér ias se l igarem) foi comprovado em 
1691, por Marcelo Malpighi que, ao 
estudar os pulmões de uma rã ao 
microscópio, descreveu a existência de 
vasos capilares. 
 27
Em 1628, Harvey publicou em 
Frankfurt (Alemanha) um pequeno volume de 
setenta e duas páginas, em latim, intitulado 
“Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et 
Sanguinis in Animalibus”. No oitavo capítulo, 
intitulado "A quantidade de sangue que passa 
através do coração, das veias às artérias; o 
movimento circular do sangue", Harvey assim 
se expressou: "Comecei a ponderar sobre a 
quantidade de sangue que se desloca de um 
sítio para o outro, e logo compreendi que era 
impossível que tal abundância de sangue 
pudesse ser produzida somente pelos produtos 
da digestão. Pois, nesse caso, depressa as 
veias ficariam exaustas e as artérias 
rebentariam por não poderem conter a 
enorme quantidade de sangue que lhes 
chegava...". 
Por meio de cálculos, Harvey 
demonstrou que o volume total do sangue 
circula, pelo corpo, pelo menos cinqüenta 
vezes por dia; que o sangue se afasta do 
coração através das artérias e se aproxima 
pelas veias, cujas válvulas impedem a 
circulação "para fora" do coração; que o 
sangue era o agente mecânico por meio do 
qual os venenos, ou os princípios ativos das 
drogas, são distribuídos rapidamente por todo 
o corpo. 
Como se pode notar, William Harvey 
estudou um problema inteiramente diferente 
de seus "predecessores". Preocupava-os 
encontrar o itinerário através do qual o sangue 
e os espíritos vitais se encontravam nas 
artérias, em vista da impenetrabilidade do 
septo ventricular. Isto é, tratava-se de uma 
questãoanatômica, estrutural, qualitativa. A 
novidade da abordagem de Harvey foi 
ignorar, por completo, a assombrada questão 
dos espíritos e concentrar-se numa dificuldade 
mecânica, dinâmica e quantitativa. Que 
volume de sangue expelia o músculo cardíaco 
em cada contração? Quantas vezes, por 
minuto, acumulava o ventrículo essa 
quantidade de sangue? 
Para enfrentar o problema da 
circulação, Harvey recorreu, pela primeira 
vez, a provas matemáticas e a cálculos exatos 
em ensaios biológicos, abrindo assim uma 
nova perspectiva para a pesquisa médica. 
Cada uma de suas concepções fisiológicas é 
testada pela experimentação e abordada de um 
ponto de vista inovador, isto é, quantitativo. A 
circulação do sangue é explicada por uma 
série de imagens mecânicas, como bombas, 
válvulas, canais, foles. Imagens extraídas do 
modelo de engenharia hidráulica da época. O 
sangue é visto circulando em canais (veias e 
artérias), num circuito fechado em que o 
coração funciona como bomba vital.
 
 
 
 
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Referências Bibliográficas 
 
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