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19 Vesálio e Harvey : a conexão moderna "O que os fundadores da ciência moderna, entre os quais Gali leu, t inham que fazer , não era cr i t icar e combater cer tas teor ias erradas, para corr igi- las ou subst i tuí-las por outras melhores. T inham de fazer algo inteiramente diverso. T inham de destruir um mundo e subst i tuí-lo por outro . T inham de reformar a estrutura de nossa própria intel igência , reformular e rever seus conceitos, encarar o Ser de uma nova maneira , e laborar um novo conceito de conhecimento, um novo conceito da ciência" . "Gali leu e Platão" - Alexandre Koyré O “nascimento” da clínica que hoje em dia praticamos deu-se no início do século XIX. Há muito pouco tempo, portanto. Como caracterizar este momento? Como distinguir esta medicina da que a antecedeu? Basicamente, a medicina moderna inaugurou um novo objeto e uma nova maneira de estudá-lo e conhecê-lo. A medicina passa a ver um outro mundo e o descreve de outra forma. Até então, a doença não coincidia com o corpo do doente; a clínica, portanto, se fazia através de um olhar “superficial” e seu conhecimento partia da enumeração dos sintomas e não de qualquer exame do corpo humano. A seguir, a anátomo-clínica levou a doença para dentro do corpo. Assim, o olhar médico se tornou “vertical e profundo”, sempre a procurar uma correlação entre os sintomas e as lesões dos órgãos, que explicavam os sintomas. Além disso, esta busca passou a seguir um certo rigor objetivo e quantitativo, quer dizer, científico. Como foram possíveis estas mudanças? De onde surgiram este novo objeto e esta nova linguagem? Para que estas transformações se dessem foi preciso emergirem, com antecedência bastante, novos conhecimentos sobre o corpo humano e novos métodos de trabalho. É desta conexão - fundadora da medicina moderna - que trata este capítulo. I - Claudio Galeno A principal autoridade em ciência médica e na prática efetiva da Medicina até o século XVII ir bem adiantado foi Claudio Galeno (130-201). A deficiência técnica, o fato de Galeno nunca ter dissecado um corpo humano completo, não era objeto de crítica ou motivo para rejeição de suas teorias. Não é fácil, hoje em dia, avaliar plenamente a força e a longevidade da tradição galênica. Esta admiração (ou temor) era tão pródiga, que os primeiros anatomistas, quando não confirmavam as descrições galênicas, 20 atribuíam o fato à sua própria falta de habilidade, e não à de Galeno. Só muito gradualmente puderam aprender a ver, até mesmo as estruturas mais grosseiras do corpo, com outros olhos que não os de Galeno. A fisiologia foi uma constante sedução na obra de Claudio Galeno, que concebeu uma pormenorizada teoria circulatória. Ele considerava o fígado o principal órgão funcional, pois era o local de transformação da comida ingerida em sangue, que se movia para o exterior, e formava toda a estrutura corporal - ossos, carne, nervos, etc. Entretanto, ele não concebia esse "movimento" do sangue como fluindo unidirecional, centrífugo, mas como um misterioso fluxo e refluxo. Essa era uma teoria de circulação qualitativa, não-matemática, preocupada com a classificação e o deslocamento de espíritos pelo corpo humano. O sangue fluía como a água que, se canalizada, "irrigava" o solo. Os conceitos de tempo e número lhe eram absolutamente estranhos. Galeno estava longe de ser um empirista. Para interpretar o que via, introduziu certos “princípios” não-empíricos, tais como a associação entre forma e função (o fígado seria o órgão de origem do sangue porque se parece com o sangue coagulado) e, em especial, o princípio de que a natureza nada faz em vão. Assim, cada traço do corpo tem uma finalidade que pode ser apreendida e que é perfeita para a vida dos homens. II - Idade Média Na Idade Média, a natureza estava como que "encantada". Não cabia aos homens, portanto, interferir em suas harmonias. A uma época que produziu as grandes catedrais góticas, que inseriu em nossa civilização a bússola, a pólvora, a balança, o relógio mecânico e as lentes, não se pode negar o mérito da criatividade. Ocorre, no entanto, que a maior parte destes progressos foi obra de artesãos, desenvolveu- se ao nível do "senso comum", sem qualquer apoio em "teorias". Os métodos, então utilizados, tinham caráter eminentemente prático, não pressupunham uma formulação teórica que lhes desse sustentação. Por outro lado, os homens de cultura, encerrados em seus gabinetes, negavam qualquer validade às observações de técnicos iletrados. Por isso, embora os artesãos tenham tido intuições notáveis, a utilização mais generalizada das mesmas esbarrou na grande limitação da ciência medieval: a ausência de um simbolismo científico capaz de traduzir, em fórmulas claras e aplicáveis, os princípios de “sua” ciência. A ciência medieval não tinha um alcance mundial, nem era precisa na exposição e exatidão dos fatos. As teorias, contudo, eram muito firmemente articuladas e enredadas. A articulação entre a idéia dos elementos (terra. água …) às qualidades (quente, úmido …) - na física - aos humores 21 (sangue, fleugma) e, depois, na medicina, aos temperamentos (sangüíneo, fleumático …), é um exemplo óbvio dessas teorias, ainda que elementar. Assim, a visão do mundo medieval, por absurda que nos pareça, possuía uma espécie de solidariedade monolítica, o que impedia mudanças graduais: qualquer transformação precisaria ser verossímil no seu todo. Por outro lado, progressos técnicos de natureza aparentemente não-filosófica podiam ser aceitos muito mais prontamente, já que não constituíam ameaça à ordem científica. Durante a Idade Média, o médico profissional recebia ensino em certas universidades. O ofício de cirurgião, muito mais humilde, se adquiria como qualquer outro, por aprendizado. A medicina, como todas as matérias universitárias aprendia-se, exclusivamente, nos livros. Nesta fase, por exemplo, o ensino da anatomia a estudantes de medicina teria sido uma perda de tempo, já que a disfunção orgânica não era apresentada como causa de falta de saúde e o médico não agia diretamente sobre o corpo. O “fígado” (na qualidade de fabricante de um humor, o sangue) era muito importante para o médico como conceito, mas não como órgão. O principal esforço intelectual era dominar as “antigas” teorias da saúde e da doença e aplicá-las ao alívio do paciente. Procurar novos esclarecimentos, investigar a realidade fora destes sistemas, teria parecido presunçoso, irrelevante e inútil. Além disso, a Igreja opunha-se vigorosamente aos estudos anatômicos. No século XIV, ameaçou de excomunhão todo aquele que tentasse desvendar o corpo humano por meio de cutelos. Também desencorajou a cirurgia, atividade degradante, confiada a gente de baixo quilate. Entretanto, além da Igreja, também o povo se opunha a que se violassem um cadáver humano, pois, acreditava na ressurreição dos corpos e, assim, a ninguém deveria ser permitido mutilá-los, para que os corpospudessem apresentar-se íntegros e imaculados perante a misericórdia divina. Nos longos períodos de guerras, nas inúmeras execuções, nunca houvera tal respeito pelo corpo humano. Na segunda metade da Idade Média, a Igreja passou a autorizar a dissecção dos corpos dos condenados. O estudo anatômico medieval atingiu o seu ápice com Mondino dei Luizzi (1275-1326), o primeiro anatomista na Europa Ocidental, professor da Universidade de Bolonha e autor de um manual que esteve em uso por quase duzentos anos (tendo sido publicado em latim, italiano e francês). Mondino consolidou o método da “cerimônia anatômica”: após a execução, entregava-se o cadáver aos mestres missionários, que deveriam convidar as autoridades para assistir à dissecção. Antes da primeira incisão, lia-se a bula papal aos presentes e se apunhao selo da universidade no cadáver. Obedecendo-se ao preceito de ser o cérebro a sede da alma, erguia-se a cabeça do cadáver. Após essa formalidade, rezava-se uma oração e os médicos cantavam em resposta. Dava-se, então, início a uma dissecção muito sumária. Os médicos não tocavam no corpo. Um servente (o “ostensor”) o abria e apontava para a estrutura que estava sendo descrita pelo 22 médico. Um segundo auxiliar (o “demonstrator”, um cirurgião), procedia à dissecção propriamente dita, para mostrar as estruturas. Durante este tempo, o mestre lia em voz alta uma passagem de Galeno, assinalando com um ponteiro as diferentes estruturas enumeradas no texto. Essa metódica exposição durava seis dias, iniciando-se com generalidades e uma discussão das autoridades, seguida pela dissecção das partes moles do abdome. A seguir, passava-se aos órgãos da reprodução, ao tórax, à cabeça, ao esqueleto e às partes periféricas. Tendo em vista a carência de meios para defender os corpos da decomposição, queimavam-se plantas odoríferas, cuja espessa fumaça, além de corrigir insuficientemente o fedor cadavérico, acabava por ser insuportável. O ato terminava com uma reunião solene, que incluía um concerto, um banquete e uma representação teatral. Tudo isso se prolongava por dois dias e culminava na cerimônia do enterro do cadáver, ligeiramente mutilado. O livro era muito mais importante do que o corpo e, o estudante, um mero espectador, que se dava por extremamente feliz se conseguisse ver alguma coisa das estruturas mais delicadas. Na verdade, a demonstração não tinha o propósito de demonstrar as virtudes da prática como método. III – Renascimento O Renascimento surgiu como um movimento cultural das cidades italianas em que a burguesia tinha vencido a aristocracia feudal. Só no século XVI o Renascimento se tornou aristocrático, não mais a serviço do feudalismo e, sim, das novas monarquias, como na França. Ele não deve ser confundido com o Humanismo que, certamente, tem raízes mais antigas, medievais. A arte renascentista conseguiu encontrar o meio termo entre o primitivismo ingênuo da Idade Média e a exaltação artificial do Barroco. Pelo estudo do sereno equilíbrio dos gregos, os artistas da Renascença conseguiram o equilíbrio entre idealismo e realismo e fundaram uma nova arte clássica. Esta conquista não se limitou à arquitetura, à escultura e à pintura. O Renascimento recuperou o mundo exterior, que a Idade Média cristã havia renegado, descobriu a beleza física do homem e da mulher e, no centro deste novo mundo, o indivíduo. No Renascimento, no final do século XV, a anatomia estava associada ao texto impresso e às vantagens da ilustração em xilogravura, e ao vigor renovado da medicina. A primeira metade do século XVI revelou uma grupo considerável de anatomistas práticos e competentes, na sua maior parte italianos. Uma importante fonte de inspiração e, igualmente, um poderoso meio de comunicação, veio do movimento naturalista na arte. Os pintores e escultores italianos 23 tinham estudado o corpo humano em busca de realismo gráfico, já antes do final do século XV. Leonardo da Vinci (1452-1519) avançou muito neste caminho e deixou grande quantidade de desenhos anatômicos, desde esboços grosseiros, aparentemente obtidos a partir de membros dissecados, até desenhos elaborados que, em geral incorporavam crenças tradicionais, ainda que errôneas. Uma avaliação justa destas obras requer um olho conhecedor pois, ao contrário do que se possa pensar, artistas como da Vinci não representavam apenas o que viam, pois revelam um ar “naturalista”, mesmo quando mostram formas impossíveis. Fiéis ou não, estas figuras constituem o primeiro esforço cuidadoso, em toda a história, de “fotografar” estruturas dissecadas, bem como de estudar comparativamente as formas - em especial o esqueleto - de diversas espécies. Estes estudos tiveram início nos primórdios da década de 1490 e precedem de meio século as figuras impressas de Vesálio. O sigilo que rodeava as folhas de trabalho de da Vinci impediu que tivessem qualquer efeito significativo nos seus sucessores imediatos. O que Leonardo prova, de fato, é a fertilidade e a necessidade de estudar o livro e o corpo ao mesmo tempo. IV - André Vesálio e a nova Anatomia A imprensa moderna nasceu de uma invenção de Johannes Guttenberg, em Mogúncia, Alemanha, no século XV: a composição de palavras em caracteres móveis, ou seja, a tipografia. No ano de 1543, foram publicados dois livros que se tornaram clássicos da história da ciência, o “De Humanis Corporis Fabrica”, de Andreas Vesalius (1514-1564), e o “De Revolutionibus Orbium Coelestium”, de Nicolau Copérnico (1473-1543). Nenhum dos dois livros era moderno no conteúdo, mas ambos inspiraram ramos de atividade que haveriam de levar à criação de concepções completamente diferentes, em poucas gerações. O título da obra de Vesálio é sugestivo da chegada do imaginário mecânico à medicina: o corpo humano é visto como um grande engenho, cujas peças encaixam-se, ordenadamente, para fazer funcionar o mais elevado dos “autômatos”: o homem. A “Fábrica” é, na sua maior parte, significativo como obra de informação descritiva, pois as belas dissertações de um grande anatomista são imortalizadas pelas novas capacidades de desenhadores e gravadores. As ilustrações não são “puramente” naturalistas, mas interpretações de estruturas e de suas disposições no espaço. Na verdade, representam o primeiro grande passo em direção ao “realismo fotográfico” na ciência. Vesálio fora um profundo estudante e editor de obras de Galeno e continuava a respeitá-lo como a maior das primeiras autoridades sobre anatomia humana, embora soubesse que ele dissecara apenas macacos e 24 outros animais. Quando se entrega à realização do seu grandioso tratado anatômico, Vesálio rodeia-se dos melhores artistas da época, entre eles, possivelmente, Ticiano. Pela primeira vez, na história da medicina, surge uma obra amplamente documentada, a equilibrar o prazer artístico com o produto da observação. O livro tem 690 páginas e 323 ilustrações e é lançada em 1543, quando Vesálio tinha 29 anos. A lógica do naturalismo da escola médica e a máquina impressora combinaram-se para fazer surgir um novo tipo de ciência observacional, registrada. Assim procedendo, o anatomista descobriu que o corpo humano nem sempre correspondia às descrições de Galeno e aprendeu a confiar na observação como a única fonte de autoridade. Desta forma, no novo ideal de ensino, as estruturas deveriam ser reveladas aos alunos pelo próprio professor, no corpo dissecado. Na verdade, tanto no caso de Leonardo como no de Vesálio, as ilustrações são, por vezes, mais fiéis à realidade e menos tradicionais do que as palavras. Para Vesálio, estudar a anatomia humana, preparar ilustrações anatômicas elaboradas não constituía, em si, uma crítica a Galeno. A crítica veio como fruto da experiência. Deste modo, a investigação contrária a Galeno foi um produto da tentativa de compreender as descrições e de ilustrar as teorias do grande médico de Roma. V - Galileu, Descartes e o método científico No século XVII, o centro de gravidade do universo oscilou. O universo passou a ser um lugar em que astros e pedras obedecem às leis mecânicas expressas pelo cálculo. A partir de então, para determinar um lugar para os seres vivos e para explicar seu funcionamento, só há uma alternativa. Ou os seres são máquinas de que só devemos considerar as formas, as dimensões e os movimentos, ou escapam às leis da mecânica, e devemos então renunciar a encontrar unidade e coerências no mundo. Quando Galileu (1564-1642) passou a difundir uma nova visão de Universo - em que a Terra, como dizia Copérnico, se movia - a inovação assumiu um caráter organizado e revolucionário. Galileu e Descartes (1596- 1650)representam, exemplarmente, a mentalidade desta nova era, são os grandes intérpretes de um imaginário. Pela primeira vez encontramos, harmoniosamente realizada, uma convivência sinérgica entre a prática dos artesãos e a especulação teórica. Com Galileu, as descobertas técnicas serão utilizadas sistematicamente, como parte de um processo científico. A metodologia empregada por Galileu distingue três momentos principais: a observação, a hipótese e a experimentação (a verificação da hipótese). A substituição das argumentações lógicas da dialética formal pela observação dos fatos, em si mesmos, 25 significou o principal marco desta nova mentalidade, cuja originalidade estava na garantia de as potencialidades do raciocínio matemático irem muito além dos limites admitidos até então. Assim, não havia proposição referente ao conhecimento natural que não devesse ser demonstrada matematicamente. As propriedades dos corpos naturais são determinadas, demonstráveis e explicáveis, especialmente na procura de uma filosofia única e consistente da natureza. Galileu segue, pois, ao encontro de Descartes, e fornece a teoria matemática que dá vida à filosofia mecanicista. De fato, Descartes concebeu uma estrutura geral do pensamento científico - uma idéia da natureza como máquina perfeita, governada por leis matemáticas exatas - que logrou transformar em sólidos conceitos os traços mecanicista, dualista e quantitativista da racionalidade moderna. Descartes baseou toda a sua concepção de natureza na divisão entre dois domínios separados e excludentes: a “res cogitans” (a "coisa pensante") e a “res extensa”, o domínio da matéria (a "coisa extensa"). Assim, a matéria, de qualquer natureza, funcionava segundo leis mecânicas, e tudo no mundo material poderia ser explicado em função da organização e do movimento das partes. A crença na precisão do conhecimento científico está na base do pensamento e da visão de mundo cartesianos. Seu método analítico - que consiste em decompor o problema em suas partes componentes e em dispô-las em ordem lógica - é uma das maiores contribuições à racionalidade científica. Sem dúvida, a este método se deve creditar a fragmentação característica do nosso pensamento em geral e das nossas disciplinas acadêmicas. Fragmentação que levou ao reducionismo na ciência e à crença em que todos os aspectos dos fenômenos complexos podem ser compreendidos se reduzidos às suas partes constituintes. VI - William Harvey e a circulação do sangue Miguel Servet (1511-1553), médico e teólogo espanhol, foi condenado à fogueira por Calvino, em Genebra. Ele publicou um livro, de conteúdo religioso (“Christianismi Restitutio”), em que afirmava que o sangue, partia do ventrículo direito, se dirigia aos pulmões, através da veia arteriosa, eliminava impurezas e se vivificava graças à mistura com o “pneuma” (ar exterior). A seguir, o sangue era aspirado pela diástole do ventrículo esquerdo e regressava ao coração, através da artéria venosa, a fim de constituir o "espírito vital". Servet imaginava que o sangue continha o espírito vital, a presença de Deus no corpo humano, enquanto o espírito natural residia no fígado e no sangue escuro das veias. As concepções fisiológicas de Servet não são muito diferentes das de Galeno. O ponto mais notável de sua resumida descrição 26 é a convicção da mudança qualitativa no sangue, efetuada pela sua passagem pelos pulmões. Durante muitos anos esta representou a primeira menção do que conhecemos como circulação pulmonar, ou pequena circulação. Seis anos antes do martírio de Servet, Realdo Colombo (1516-1559), discípulo de Vesálio, negara a pretensa comunicação entre os ventrículos e intuíra a passagem do sangue pelos pulmões. Em sua obra “De Re Anatomica”, descreveu também as sístoles e diástoles e o funcionamento das válvulas cardíacas. Insistia, contudo, em conferir ao fígado a mesma função atribuída por Galeno. Hieronymus Fabricius de Acquapendente (1533-1619) publicou os melhores estudos renascentistas sobre embriologia. Entretanto, seu trabalho mais notável foi uma complexa e minuciosa descrição das válvulas das veias, que registrou no livro “De venarum ostiolis”. Provavelmente por influência da doutrina de Galeno, Acquapendente interpretou mal a verdadeira função das válvulas venosas, acreditando que elas impediam a saída de sangue do coração, e não o seu fluxo em direção a ele. William Harvey (1578-1657), médico inglês, seguindo as lições de Acquapendente, dedicou-se ao tema da circulação sangüínea. Para estudar a circulação nos organismos, Harvey pôs a descoberto a artéria de um animal e apertou-a com um fio, cortando-a acima do aperto: a cada pulsação cardíaca, o sangue golfava do vaso amputado, até a hemorragia diminuir e o coração reduzir seus batimentos. Se Galeno estivesse correto, o fígado - sede da produção do sangue - deveria ter suprido o que se perdera na hemorragia. Harvey completou a experiência com a laqueadura do vaso sangüíneo que partia do coração de uma cobra e, a seguir, com uma incisão do mesmo. Dessa vez, nenhum sangue jorrou e, ao fim de alguns segundos, o coração começou a inchar, em virtude da acumulação do sangue proveniente dos pulmões e das outras partes do organismo. Depois, Harvey comprimiu uma veia superficial do braço e espremeu o sangue no sentido do coração; quando interrompeu a segunda manobra, o sangue não refluiu à veia, o que evidenciava a existência de válvulas que se fechavam e impediam o retrocesso. Porém, ao deixar de comprimir a veia, o sangue corria de novo, desde da extremidade do membro até o coração. Esta experiência confirmava que o sangue, contrariamente à opinião de Galeno, não nasce no fígado, mas flui do coração para as artérias e regressa pelas veias* 1 . * 1 Na verdade, sessenta anos antes de Will iam Harvey, Andrea Cesalpino corr igira um equívoco fundamental das concepções galênicas, t ranspondo do fígado para o coração a sede da a t ividade circulatór ia . Cesalpino foi o pr imeiro a usar o conceito de circulação . O úl t imo elo do ciclo circulatór io (o modo como era possível às veias e ar tér ias se l igarem) foi comprovado em 1691, por Marcelo Malpighi que, ao estudar os pulmões de uma rã ao microscópio, descreveu a existência de vasos capilares. 27 Em 1628, Harvey publicou em Frankfurt (Alemanha) um pequeno volume de setenta e duas páginas, em latim, intitulado “Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus”. No oitavo capítulo, intitulado "A quantidade de sangue que passa através do coração, das veias às artérias; o movimento circular do sangue", Harvey assim se expressou: "Comecei a ponderar sobre a quantidade de sangue que se desloca de um sítio para o outro, e logo compreendi que era impossível que tal abundância de sangue pudesse ser produzida somente pelos produtos da digestão. Pois, nesse caso, depressa as veias ficariam exaustas e as artérias rebentariam por não poderem conter a enorme quantidade de sangue que lhes chegava...". Por meio de cálculos, Harvey demonstrou que o volume total do sangue circula, pelo corpo, pelo menos cinqüenta vezes por dia; que o sangue se afasta do coração através das artérias e se aproxima pelas veias, cujas válvulas impedem a circulação "para fora" do coração; que o sangue era o agente mecânico por meio do qual os venenos, ou os princípios ativos das drogas, são distribuídos rapidamente por todo o corpo. Como se pode notar, William Harvey estudou um problema inteiramente diferente de seus "predecessores". Preocupava-os encontrar o itinerário através do qual o sangue e os espíritos vitais se encontravam nas artérias, em vista da impenetrabilidade do septo ventricular. Isto é, tratava-se de uma questãoanatômica, estrutural, qualitativa. A novidade da abordagem de Harvey foi ignorar, por completo, a assombrada questão dos espíritos e concentrar-se numa dificuldade mecânica, dinâmica e quantitativa. Que volume de sangue expelia o músculo cardíaco em cada contração? Quantas vezes, por minuto, acumulava o ventrículo essa quantidade de sangue? Para enfrentar o problema da circulação, Harvey recorreu, pela primeira vez, a provas matemáticas e a cálculos exatos em ensaios biológicos, abrindo assim uma nova perspectiva para a pesquisa médica. Cada uma de suas concepções fisiológicas é testada pela experimentação e abordada de um ponto de vista inovador, isto é, quantitativo. A circulação do sangue é explicada por uma série de imagens mecânicas, como bombas, válvulas, canais, foles. Imagens extraídas do modelo de engenharia hidráulica da época. O sangue é visto circulando em canais (veias e artérias), num circuito fechado em que o coração funciona como bomba vital. 28 Referências Bibliográficas FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2ª ed,1980. HALL, A.R. A Revolução na Ciência: 1500-1750 . Lisboa: Edições 70, 1983. HARVEY, W. Movement of the Heart and Blood in Animals. Illinois: C. C. Thomas Publisher, 1954. KOIRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense, 1991. NAMORA, F. Deuses e Demônios da Medicina . Lisboa: Publicações Europa-América, 7ª ed, 1989. PORTO, M.A.T. A Circulação do Sangue, ou o movimento no conceito de movimento. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 1(1): 19-34, out/1994.
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