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Livro Didático/Livro - Políticas Publicas e Legislacao Educacional.pdf CERTIFICADO POLÍTICAS PÚBLICAS E LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL Marcio Bernardes de Carvalho E d u ca çã o P O L ÍT IC A S P Ú B L IC A S E L E G IS L A Ç Ã O E D U C A C IO N A L M ar ci o B er na rd es d e C ar va lh o Curitiba 2021 Políticas Públicas e Legislação Educacional Marcio Bernardes de Carvalho Ficha Catalográfica elaborada pela Editora Fael. C311p Carvalho, Marcio Bernardes de Políticas públicas e legislação educacional / Marcio Bernardes de Carvalho. – Curitiba: Fael, 2021. 302 p. il. ISBN 978-65-86557-43-5 1. Política educacional – Brasil 2. Legislação educacional – BrasiI I. Título CDD 370.2681 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Angela Krainski Dallabona Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Imagem da Capa Shutterstock.com/robuart Arte-Final Evelyn Caroline Betim Araujo Sumário Carta ao Aluno | 5 1. Políticas educacionais: conceitos e fundamentos | 7 2. Avaliação da educação no Brasil | 35 3. Estrutura e organização educacional no Brasil | 61 4. Legislação nacional contemporânea: teoria e análise | 87 5. Estrutura e funcionamento da Educação Básica no Brasil | 119 6. Estrutura e funcionamento da Educação Superior no Brasil | 145 7. Relações internacionais determinantes na educação | 171 8. Avaliação da/na educação brasileira | 195 9. Educação a Distância – EaD: conceitos e legislação | 221 10. Direitos humanos, meio ambiente e inclusão na legislação e na educação brasileira | 251 Gabarito | 273 Referências | 287 Prezado(a) aluno(a), Estudamos ontem, estudaremos hoje, amanhã e sempre. Esta obra é produto de um esforço para apoiar os estudos de nossas(os) futuras(os) pedagogas(os), estudantes de outras áreas e todos aqueles que se encorajam em acumular um pouco mais de conhecimento. Houve um tempo em que havia uma compreensão equi- vocada de que um curso poderia fornecer todo o conhecimento necessário para a atuação profissional. Ao longo dos anos, temos presenciado que os cursos devem fornecer os elementos estrutu- rantes, os conceitos clássicos, a formação científica e os cami- nhos a serem percorridos, pois estudar é uma tarefa permanente para aqueles que atuam na área da educação. Carta ao Aluno – 6 – Políticas Públicas e Legislação Educacional Por este motivo, reunimos nesta obra uma série de obras clássicas e pesquisadores qualificados para usar como referência para análise dos conceitos e da própria legislação. Clássico é aquilo que é fundamental, não importando o tempo histórico em que é estudado. Assim, reúne-se nesta obra, de forma sintética e crítica, um conjunto de temas educacionais que visa contribuir para o debate educacional e para a formação dos trabalhadores da educação. Entendo, pois, que o processo educativo é a passagem da desigual- dade à igualdade. Portanto, só é possível considerar o processo educativo em seu conjunto como democrático sob a condição de se distinguir a democracia como possibilidade do ponto de partida e a democracia como realidade no ponto de chegada (SAVIANI, 2009, p. 70). Bons estudos! 1 Políticas educacionais: conceitos e fundamentos O início de uma jornada de estudos sobre políticas educa- cionais requer, inicialmente, a apresentação de conceitos basila- res, estes que darão o suporte necessário para o aprofundamento dos estudos pedagógicos e legais necessários à compreensão das funções sociais da política e da educação. O estudo de políticas educacionais não pode ser conside- rado como a simples compreensão do descrito na lei, quais são seus números ou datas de sua aprovação, pois estas são caracte- rísticas formais e não refletem, em nenhuma hipótese, a essência destas políticas. A relação entre o consensuado socialmente e transformado em lei, seu processo histórico e a realidade con- creta são os elementos estruturais para a compreensão de uma política educacional. Este capítulo tem o objetivo de apresentar, sinteticamente, os principais conceitos e bases para a compreensão do conceito de políticas educacionais e suas características. Políticas Públicas e Legislação Educacional – 8 – 1.1 O conceito de política educacional Vamos, neste primeiro momento, apresentar as bases conceituais para a compreensão de políticas educacionais analisando criticamente seu desen- volvimento histórico e como estas bases impactam na realidade concreta. Contudo, antes é preciso fazer duas observações para deixar claro ao leitor as funções de expressões como crítica e realidade concreta. A crítica será utilizada em toda a análise para validar e verificar suas bases conceituais ou mesmo sua prática, a depender do objeto. No trabalho cien- tífico a crítica está mais próxima da dúvida, do questionamento, da verifi- cação, e possui, em termos acadêmicos, um conjunto de valores que nor- teiam a conduta dos pesquisadores, os quais, em muitos trabalhos, podem ser sinteticamente encontrados como ética na pesquisa. Já a realidade concreta deve ser a bússola que norteia a análise sobre qualquer tipo de documentação na pesquisa histórica e educacional, neste caso em especial. Quando citamos a realidade concreta, o leitor deve pensar no contraste entre o descrito na legislação e a realidade como se apresenta, não de forma sensitiva, mas por meio dos índices, indicadores educacionais e pesquisas da área. É importante afirmar que, para os traba- lhadores da educação, em especial as(os) pedagogas(os), o fundamental é a transformação da realidade, seja ela social ou educacional, do todo ou do indivíduo, não o mero registro formal. Não estamos desconsiderando o registro formal, mas a transformação da realidade sempre será a priori- dade, ou seja, a primazia pela essência e não a forma1. Do ponto de vista histórico, o conceito de política foi exposto, ini- cialmente, com maior reconhecimento, por Aristóteles em Ética, que obje- tivava investigar “o bem” e o “bem supremo”. Porém, o que é ampla- mente divulgado e incorporado no conjunto das pesquisas é o significado 1 Os conceitos de essência e forma poderão ser estudados com maior profundidade na obra de Karel Kosik intitulada A dialética do concreto (1976), na qual o autor afirma que, para compreender a essência de algo, é necessário ir além da sua aparência. A es- sência é a substância principal, ao passo que a aparência é mera forma. É possível que em certos casos a forma e a essência expressem a mesma substância, porém é necessá- rio ir além da forma (aparência) para compreender a essência (substância principal) e verificar se estas se correspondem. – 9 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos exposto pelo pensador em Política, que, segundo Abbagnamo (2007), tem duas funções: l) descrever a forma de Estado ideal e 2) determinar a forma do melhor Estado possível em relação a determinadas circunstâncias. Assim, temos uma ligação entre o termo e a função da pólis, mas é importante verificar que o autor e sua obra refletem dado contexto e tempo, então vamos aproximar esse significado utilizando as palavras de Bobbio (1993, p. 954): Na época moderna, o termo perdeu seu significado original, subs- tituído pouco a pouco por outras expressões como “ciência polí- tica”, “filosofia política”, etc., passando a ser comumente usado para indicar a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma maneira, tem como termo referência a pólis, ou seja, o Estado. Dessa atividade a pólis, por vezes o sujeito, quando referidos à esfera da Política atos como ordenar ou proibir alguma coisa com efeitos vinculadores para todos os membros de um determinado grupo social, o exercício de um domínio exclusivo sobre um determinado território, o legislar através de normas válidas erga omnes2, o tirar e transferir recursos de um setor da sociedade para outros, etc., outras vezes ela é objeto, quando são referidas à esfera da Política ações como a conquista, a manutenção, a defesa, a ampliação, o robustamento, a derrubada, a destruição do poder estatal, etc. Passamos de um momento histórico onde a referência de organização da sociedade era cidade que, dentro dos seus limites, possuía uma dada estrutura e as relações entre os indivíduos se constituía dentro das relações de dominação da época, para um momento onde a consolidação do Estado nacional somado ao aumento populacional e avanço tecnológico atrai o termo política para o âmbito das questões de Estado. Se reduzirmos ou diminuirmos o conceito de política a questões elei- torais ou partidárias não vamos conseguir alcançar todos os seus bene- fícios quando a política é pensada e praticada para toda a sociedade, da mesma forma é equivocado transformar o conceito de Estado algo imu- tável ou tendo vida própria como se fosse um ser humano. Precisamos que os conceitos sejam compreendidos em sua plenitude para captar sua essência visando atuação social ou mesmo para fins educativos. 2 Refere-se a ato jurídico que vale para todos. Políticas Públicas e Legislação Educacional – 10 – O Estado e suas instituições estão em permanente disputa e altera- ção, seja pelos múltiplos interesses sociais e econômicos envolvidos, seja pela constante alteração das formas de organização social e as demandas desta sociedade. Ou, sinteticamente, como Shiroma, Moraes e Evangelista definem: As políticas públicas emanadas do Estado anunciam-se nessa correlação de forças, e nesse confronto abrem-se as possibilida- des para implementar sua face social, em um equilíbrio instável de compromissos, empenhos e responsabilidades. É estratégica a importância das políticas públicas de caráter social – saúde, educação cultura, previdência, seguridade, informação, habita- ção, defesa do consumidor – para o Estado capitalista. Por um lado, revelam características próprias da intervenção de um Estado submetido aos interesses gerais do capital na organização e na administração da res publica3 e contribuem para assegurar e ampliar os mecanismos de cooptação e controle social. Por outro, como o Estado não se define por estar à disposição de uma ou outra classe para seu uso alternativo, não pode se desobrigar dos comprometimentos com as distintas forças sociais em confronto (2000, p. 8-9). Como as sociedades, com o passar dos séculos, alteram-se ou mesmo se reorganizam por diversas razões, é fundamental que possamos com- preender que toda política pública também está imersa nas disputas, deba- tes e questionamentos da sua realidade e pode ser alterada de acordo com o movimentos das forças sociais que a disputam. As políticas públicas são mediadas por atores sociais, sejam aqueles que estão na administração do Estado, na fiscalização deste ou mesmo na necessidade políticas destes. Essa não é uma situação inerte, ou seja, as disputas e debates são permanentes e, por esse motivo, este processo está sempre em pleno movimento. Dessa afirmação, derivamos três atributos vinculados às políticas públicas. O primeiro é a intencionalidade. Toda política pública deve ser formulada e justificada de acordo com as necessidades humanas daquela realidade, ou seja, elas têm uma intenção e um fundamento na realidade concreta. 3 Expressão latina que significa “coisa do povo” ou “coisa pública”. – 11 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos A política pública possui intencionalidade, bem como a educação, desta forma ambas não são neutras e não há possibilidade de neutralidade em nenhuma delas. Ao pensarmos sobre a intencionalidade da educação é importante relembrar Saviani (1995, p. 13) quando afirma que: A neutralidade é impossível porque não existe conhecimento desinteressado. Não obstante todo conhecimento ser interessado, a objetividade é possível porque não é todo interesse que impede o conhecimento objetivo. Há interesses que não só não impedem como exigem objetividade. Quando uma política pública precisa ser executada é necessário que, em algum lugar, executivo, legislativo ou sociedade civil proponham para depois virar um projeto ou similar, verificar se existem recursos huma- nos e financeiros para tal empreitada e ao final, verificadas todas estas questões, uma ou várias pessoas deliberarem. A tomada de decisão é um segundo atributo associado às políticas públicas. Esse atributo ajuda aque- les que necessitam de políticas públicas a identificar os atores envolvidos na política e qual deles possui a responsabilidade da tomada de decisão. Todas as demandas de Estado estão vinculadas a necessidades huma- nas, por consequência, sociais. Assim, toda política pública objetiva tra- balhar com uma questão social, uma demanda da realidade concreta dos indivíduos em sociedade e esse é o seu terceiro atributo, sua vinculação com o social. Em síntese, as necessidades humanas quando transformadas em ação de Estado (órgão decisório e executivo) tendem a se transformar em políticas públicas tomando como base a análise da realidade, que vai dar justificativa e objetivo (intencionalidade) para resolver ou amenizar um problema (questão social) do ponto de vista da análise macro das políticas públicas. O uso do termo “problema” pode causar certo desconforto se não for refletido no plano macro, ou seja, em uma perspectiva ampla do contexto social e político. Não estamos aqui tratando das pessoas indi- vidualmente, mas, sim, das grandes questões societárias. Até mesmo a garantia de direitos está vinculada a isso, pois quanto mais os direitos sociais forem acessados por quem mais necessita, menos desigual será a sociedade; em caso contrário, mais desigual será a sociedade e esta gera Políticas Públicas e Legislação Educacional – 12 – fome, violência, entre outras questões que, no plano macro das políticas públicas, são problemas sociais. Então, retomando o título do capítulo, o conceito de política educa- cional está vinculado ao grupo de políticas sociais no Brasil. Vamos então conceituar o que são políticas sociais. Para Behring e Boschetti (2006), as políticas sociais são processos resultantes das relações complexas e contraditórias que se estabelecem, no momento atual, entre Estado e sociedade civil, e, quando instituciona- lizada na forma pública, se transforma em legislação, documento ou ação oficial (programa, projeto ou similares), podendo assim ser denominada de política pública social. Porém, nem toda política pública é administrada ou tem sua ges- tão direta vinculada ao poder público, isso podemos verificar nas ações de caráter público, mas de gestão social ou privada das organizações da sociedade civil ou instituições particulares. Por óbvio, como questões de interesse social, todas devem ter diretrizes públicas e seguir o descrito na Constituição Federal e nas leis subsequentes. No capítulo 2 trataremos do conceito de direitos sociais vinculados à legislação brasileira e internacional. Assim, mesmo não aprofundando esse tema, é necessário verificar que, ainda que a sociedade – organizada ou não – tenha uma série de “bandeiras”, propostas ou pautas, nem todas se expressam ou se transformam em legislação, pois são processos diferentes. Na sociedade atual, após diversas mudanças históricas – como a ascensão dos conceitos de direitos humanos e da democracia, da partici- pação popular, do voto, do direito à organização sindical e de tantas outras políticas – tornou-se indispensável a todos os indivíduos, para conviver em igualdade de condições com seus pares, a garantia do direito à edu- cação pública, gratuita e de qualidade. A ausência desse direito na atual sociedade determina que o indivíduo terá menos condições de garantir sua inclusão autônoma nessa sociedade, desde a geração de renda e empregabilidade, pois a linguagem simbólica está presente na absoluta maioria da produção humana atualmente, até o direito de ir e vir, pois parte dessa tarefa exige o domínio mínimo da lin- – 13 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos guagem, seja ao pegar um ônibus para um deslocamento menor, seja para a leitura de placas rodoviárias, mapas ou mesmo para programar aplicati- vos de mapas digitais. As políticas educacionais – públicas ou privadas – são um elo entre a existência do direito (ou de uma necessidade) e o indivíduo que precisa ser alcançado. Como a educação é um direito social, as políticas educacio- nais no plano macro são as formas de organizar ou materializar o direito em diretrizes, programas, projetos e ações com vistas a alcançar o con- junto da sociedade ou, se for o caso, o público a que se destina. Podemos ler e escrever mais sobre as políticas públicas educacionais ou sobre educação entendendo que a Constituição Federal de 1988, em especial seu Artigo 205, prevê que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Brasil, 1988), mas não podemos limitar exclusivamente toda política educacional à esfera pública, pois o movimento pela alfabetização e educação, por exemplo, antecede as ações governamentais no Brasil, sendo identificado registros anteriores à Proclamação da República (1889). Esta previsão legal determina o dever do Estado e da família e assim a legislação posterior, em especial da Lei de Diretrizes e Bases da Edu- cação – LDB (Lei n. 9.394/1996) – que versa sobre o funcionamento da estrutura educacional no âmbito público e privado. Assim torna-se fundamental compreender os tipos e as características das políticas públicas, o que faremos com maior profundidade adiante. 1.2 Tipos e características das políticas públicas Já trabalhamos o conceito de política educacional fazendo uma pri- meira análise da origem etimológica da palavra política, seu atual signifi- cado e sua vinculação com as questões de Estado. Foram pontuadas obser- vações para que sejam consideradas as diferenças entre conceitos e seus desdobramentos, sendo fundamental perceber que o Estado é o resultado das relações sociais e seus embates, portanto torna-se importante também Políticas Públicas e Legislação Educacional – 14 – considerar que, mesmo compreendendo o descrito formal (leis, regula- mentos ou similares), nos importa a realidade concreta dos indivíduos, sendo esta nosso principal item de análise na pesquisa científica. Agora, é necessário apresentar os tipos ou modalidades de políticas públicas. Teixeira (2002) fez uma bela síntese sobre o tema, definindo critérios que podem ser utilizados para a verificação dessas políticas. Pre- cisamos verificar nestas a sua natureza ou grau de intervenção. A natureza ou grau de intervenção é a dimensão da política pública, podendo ser estrutural ou conjuntural/emergencial. Devem ser con- sideradas políticas estruturais todas aquelas que atuam no que é consi- derado central para a organização de uma sociedade, por este motivo a utilização do termo estrutural, pois são aquelas que servem de base para as relações sociais. Em um país como o Brasil, de economia capi- talista, temas como geração de renda, emprego, indústria, propriedade, agricultura e pecuária são centrais para a formação do Produto Interno Bruto – PIB. As políticas conjunturais/emergenciais tratam de todas as ques- tões que, no momento atual, não estruturam o todo, sendo estas pon- tuais ou mesmo circunscritas a um tempo ou local. A palavra conjuntura, segundo o Dicionário Online Michaelis, significa “concorrência ou coin- cidência de fatos ou circunstâncias em determinada situação ou ocasião; acontecimentos, circunstâncias ou situação característica de um dado momento”4, e quando estamos tratando de emergência, tratamos de uma situação pontual especial em que algo não planejado, ou que não está sob o controle ou percepção da sociedade, ocorre e acaba se tornando uma prioridade. Podemos citar como exemplos os desastres ambientais, as pandemias ou qualquer outro evento com características relevantes para a sociedade. Uma observação importante antes de prosseguir. Ao referenciarmos as políticas estruturantes, o leitor pode se questionar sobre as razões que nos levam a não ter citado a 4 Fonte: Dicionário Online Michaelis. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/ moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/conjuntura/>. Acesso em: 2 jul. 2020. – 15 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos educação como uma delas. Neste momento cabe falar sobre aquilo que é estruturante para o sistema econômico, uma vez que, no contexto brasileiro, é este que dita as regras gerais nas relações de produção e, por consequência, nas sociais. Porém, é importante que os movimentos sindicais e sociais, em espe- cial os trabalhadores em educação, de modo organizado e unido, defendam a centralidade do trabalho e da educação no desenvolvimento do país. Assim, o que é estruturante para as políticas públicas também está em disputa no Brasil. Um segundo tipo ou modalidade reflete a abrangência das políticas públicas. Quando tratamos de abrangência, é necessário analisar o público que será atendido por esta política. Assim, teremos políticas universais, segmentadas ou fragmentadas. As políticas universais são aquelas que pretendem o atendimento a todos na sociedade. A educação e a saúde são consideradas, no Brasil, políticas universais. Quando tratamos de políticas segmentadas, estamos versando sobre o atendimento a parte da sociedade, que pode ser dividida por idade, gênero, condição financeira. As políticas para crianças e adolescentes, de igual- dade racial ou de gênero são exemplos de políticas segmentadas. A pala- vra segmento deve ser considerada porção ou parte do todo. Por último, trataremos das políticas consideradas fragmentadas, que são uma divisão ainda maior das políticas segmentadas, as quais podem ser assim consideradas quando fazem um recorte dentro do segmento. Para finalizar os tipos ou modalidades de políticas, necessitamos citar os impactos das políticas públicas em seus beneficiários. Este tipo ou modalidade visa distinguir as diferenças ou intensidade do benefício para o indivíduo. Podem ser considerados distributivos, redistributivos e regulatórios. As políticas que denominamos distributivas são aquelas que visam distribuir benefícios individuais, especialmente em emergências ou em contextos de necessidade extrema. Fora deste âmbito, estas políticas ten- Políticas Públicas e Legislação Educacional – 16 – dem a ser consideradas como políticas clientelistas, por sua possibilidade de interferir diretamente nos interesses dos beneficiários. Quando tratamos de políticas públicas que beneficiam grupos sociais com recortes específicos como idade, gênero, condição social e similares, estamos falando de ações que procuram dar equilíbrio a dada sociedade, em especial quando o estudo da história de tal sociedade registra desi- gualdades ou mesmo privilégios que diferenciam indivíduos ou grupos. O conceito norteador das políticas redistributivas é a equidade. Como estas políticas tendem a retirar de certos grupos para repassar a outros, há uma tendência de se criar conflitos, no âmbito do senso comum, quando não se compreende a ideia de “todo” da sociedade. Assim, de modo sintético, verificamos que as políticas públicas podem ser analisadas ou identificadas por seu tipo ou modalidade. Vimos que a natureza ou grau de intervenção divide as políticas públicas entre estruturais ou conjunturais/emergenciais, uma vez que a abrangên- cia as reconhece por serem universais, segmentadas ou fragmentadas, e, quando verificamos seus impactos, podemos dividi-las em distributivas, redistributivas e regulatórias. Agora, passemos ao estudo de algumas características gerais vinculadas diretamente à execução e ao estudo das políticas públicas. A primeira característica central para o conjunto das políticas públicas no Brasil é ser uma expressão da realidade, uma necessidade humana, social, que deve ser justificada, avaliada e monitorada pelos gestores e pela população para verificar se seus objetivos estão sendo alcançados ou se esta necessita de algum tipo de alteração ou correção de rumos. Mesmo que muitos autores defendam que é no plano das ideias que as políticas são defendidas ou acordadas, não se pode negar seu caráter concreto, vinculado à realidade e às necessidades sociais. Uma política pública que não está expressa em uma necessidade da realidade tende a perder o seu caráter público e servir somente a agrupamentos ou indivíduos. A temporalidade é uma segunda característica central para a orga- nização e execução das políticas públicas. Mesmo as políticas sociais consideradas permanentes – como as de educação e saúde – necessitam – 17 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos anualmente realizar “entregas” de metas, produtos ou mesmo de avaliação destas políticas. O desdobramento organizacional de uma política pública exige que prazos e metas estejam alinhados para que, em convergência organizacional, auxiliem no cumprimento de seu objeto. E se é necessário um tempo para que se organizem, as políticas públicas precisam, da mesma forma, ser executadas em dado espaço, região, muni- cípio ou localidade, portanto elas se caracterizam por sua espacialidade. Finalizando as características, é necessário que toda pública tenha explícito o seu objetivo geral e seus objetivos específicos, de modo que seja possível identificar seu ponto de partida e qual será o ponto de chegada. Considerando a análise dos tipos, modalidades e características das políticas públicas, é possível avançar em outros tópicos importantes, no atual momento, para que estas sejam executadas: o planejamento, o monitoramento e a avaliação – em especial das políticas educacionais. Neste capítulo, vamos tratar somente da perspectiva nacional, pois nos próximos serão trabalhados, com maiores detalhes, os âmbitos regional, municipal e local do planejamento, monitoramento e avaliação destas políticas. Todo processo de planejamento exige: 1. análise do contexto; 2. formulação; 3. tomada de decisão; 4. implementação/execução; e 5. acompanhamento. As exigências acima citadas não podem ser resumidas a um pro- cesso estático, pois, no caso das políticas educacionais, a alteração de contexto (item 1) exige uma reformulação (item 2), e assim por diante. Dessa forma, é preciso compreender que ao chegarmos na etapa de acom- panhamento é necessário monitorar a alteração da realidade para reiniciar o processo. Políticas Públicas e Legislação Educacional – 18 – Saiba mais Um exemplo poderá nos ajudar a refletir sobre este processo. Hipoteticamente, vamos pensar que o Brasil, em 2017, possuía 6,5% de analfabetos na população geral, sendo 8,5% o índice entre pessoas de 25 anos ou mais. Existem analfabetos em todos os estados e no Distrito Federal, porém a concentração se dá em três grandes regiões. A análise deste contexto nos fará elaborar uma política que atenda à demanda necessária, sabendo que nem todas as regi- ões precisarão do mesmo tipo de atendimento. O detalhamento será transcrito para uma legislação, programa, ou projeto e entregue ao tomador de decisão para que seja veri- ficada a possibilidade de recursos (humanos e financeiros) para a execução. Após a tomada de decisão (que pode aumentar ou diminuir a materialização da política), passamos à implementação ou exe- cução, a depender da política. Como estamos tratando de uma política educacional de âmbito nacional, é provável que estejamos tratando de um programa nacional de alfabetização que necessitará do envolvimento de gestores estaduais, municipais e da sociedade civil. Dessa forma, a implementação se transforma em um planeja- mento de atividades preparatórias para a execução. Passado o momento de preparação, quando o programa já está em atividade, é necessário acompanhar, monitorar, avaliar e, se necessário, corrigir rumos. O momento de formulação tratou de criar mecanismos de acompanhamentos e monitoramento do programa; estes meca- nismos nos darão o instrumental necessário para que possamos avaliar o andamento desse programa e verificar, ao longo das – 19 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos atividades do ano (se assim estiver organizado), se será neces- sário corrigir rumos ou mesmo tomar alguma decisão, fruto de fatos da realidade que não estavam planejados. Ao final do ano, faremos a avaliação do programa para reava- liar as metas futuras e reorganizar o programa de acordo com a nova realidade, se for o caso. Retomamos, aqui, o início das atividades, analisando nova- mente o contexto. Estas questões não expressam todo o conjunto burocrático que envolve a definição de uma política pública para a educação, porém são essenciais para caracterizar e demonstrar um pouco das necessidades e exigências da lógica brasileira, em especial pelo tamanho continental do país e suas diferenças regionais econômicas e sociais. Agora, precisamos entender como as teorias de Estado e de sociedade influenciam diretamente nas políticas educacionais. 1.3 As teorias sociais e as políticas educacionais São consideradas teorias sociais o conjunto de conhecimentos teó- ricos organizados e intencionais, cujos objetivos são a compreensão da realidade e a intervenção na sociedade5. No mundo existe uma diversidade de políticas educacionais e muitas delas estão vinculadas ou à visão liberal, de Estado mínimo; neoliberal, de preferências dos interesses privados com a mediação do Estado; ou mesmo a visões voltadas à compreensão de Estado fortalecido, como os socialistas. Todos aqueles que se relacionam socialmente possuem uma opinião sobre como deveria ser o Estado e as políticas públicas. Essas formas de 5 Para saber mais sobre teorias sociais, indicamos a leitura de Jean-Jacques Rousseau, Karl Marx, Max Weber e Georg Simmel, pois cada um destes autores concebe o con- ceito de teoria social à sua maneira. Políticas Públicas e Legislação Educacional – 20 – pensar podem ou não se aproximar de algumas destas grandes corren- tes teóricas que continuam a influenciar os debates e as disputas. Mesmo aqueles que insistem em se isentar do debate corroboram para a manuten- ção do atual sistema, seja ele qual for. A visão liberal está sustentada pela tese do liberalismo econômico teorizado primeiramente por Adam Smith (1723-1790), Thomas Malthus (1776-1834) e David Ricardo (1772-1823). Para Comte-Sponville (2003, p. 344), o liberalismo é: A doutrina dos liberais, quando têm uma. Em francês, diz-se sobre- tudo da doutrina econômica: a que pretende que o Estado deve intervir o menos possível na produção e nas trocas, a não ser para garantir, quando necessário, o livre funcionamento do mercado. A tendência das políticas educacionais, centro das nossas reflexões neste livro, com características liberais é a de privilegiar a ascensão da educação como produto de mercado, uma vez que sua estrutura teórica credita o desenvolvimento à ação privada. Uma advertência importante nos estudos educacionais é que a con- cepção filosófica do liberalismo tem de ser analisada no seio das práticas sociais para que a ideia proclamada não acabe por esconder o praticado. A visão liberal considera que os direitos individuais estão acima dos direitos coletivos, e, por consequência, entendem que a defesa da lógica do mérito individual supera as contradições expostas pela desi- gualdade social. O neoliberalismo como visão econômica foi desenvolvido primei- ramente por Ludwig Heinrich Edler von Mises (1881-1973) e Friedrich von Hayek (1899-1992), porém, segundo o historiador Perry Anderson, é a publicação da obra O caminho da servidão, em 1946, escrito por Hayek, que marca a consolidação do pensamento neoliberal na Europa e na Amé- rica do Norte. Uma reunião de simpatizantes da teoria neoliberal na estação de esqui de Mont Pèlerin, na Suíça, funda a Mont Pèlerin Society, instituição de aprofundamento e difusão das ideias neoliberais. Ao trabalhar os conceitos de neoliberalismo, Matos (2008, p. 193) define: – 21 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos Baseada na revalorização do liberalismo econômico dos séculos XVIII e XIX, esta ideologia tentaria recuperar o “sentido original do liberalismo”, apontando para uma descaracterização do termo “liberal” em relação ao liberalismo clássico. Esta descaracteriza- ção seria sintoma do progressivo afastamento das sociedades oci- dentais dos princípios que supostamente levaram estas sociedades a um período de melhoria sem precedentes do padrão de vida de sua população – período localizado, segundo Von Mises (1987) entre as Guerras Napoleônicas e a I Guerra Mundial, quando teria havido um “mundo pacífico de nações livres”, caracterizado pela “democracia de mercado”. Mesmo que a obra de Hayek marque em 1946 a consolidação do pen- samento, é somente após as crises do capitalismo da década de 1970 que esta teoria começa a ganhar força e passa a ser incorporada pelas grandes instituições internacionais, em especial o Banco Mundial. É importante citar a obra de Milton Friedman intitulada Capitalismo e Liberdade, publicada em 1962 como também uma das referências quando tratamos da visão neoliberal da economia e seus efeitos dentro do Estado. Diversos autores da história da educação e também da economia estudam os efeitos da política neoliberal na educação. No Brasil, é impor- tante relatar que uma série de políticas educacionais foram aprovadas sob a lógica de que o Estado tem alguma presença na mediação com as rela- ções sociais e, em outra perspectiva, a iniciativa privada possui toda a liberdade e incentivo para organizar suas iniciativas educacionais. Os neoliberais compreendem que a propriedade privada é o cen- tro estruturante das liberdades individuais, entendendo que o Estado possui um papel, mesmo que mínimo, nas mediações entre interesses sociais diversos. Como última teoria social, temos todas as correntes teóricas que con- vergem para a compreensão da ação efetiva ou hegemônica do Estado como mediador das relações econômicas e sociais que se associam ao pensamento socialista. Os principais autores da economia política ligada a esse pensamento são Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820- 1895), cuja teoria versa centralmente pela atenção direta aos interesses da classe trabalhadora despossuída dos meios de produção. Políticas Públicas e Legislação Educacional – 22 – Como temos muitas correntes teóricas no mundo que se alinham a esta vertente de pensamento econômico e social, é preciso apresentar algumas características principais que a diferenciam das demais teorias e que são estruturantes deste pensamento. Historicamente, é importante ressalvar a defesa pela alfabetização de todos os trabalhadores como início da emancipação destes. Como forma de disputa no campo das políticas educacionais, é expressiva a defesa da escola pública gratuita e de qualidade para todos destas correntes, pois estas se caracterizam pela compreensão da educação como questão central no desenvolvimento humano dos indivíduos e, portanto, do coletivo. Os socialistas acreditam que o trabalho é o conceito central para o entendimento do desenvolvimento humano e defendem que as regras sociais precisam compreender e garantir as necessidades humanas básicas, entendendo todas as relações dos seres humanos entre si e com a natureza. Após essas análises, é preciso reafirmar que as políticas públicas e a educação são, ambas, ações humanas intencionais que possuem objetivo, portanto, não devem ser consideradas neutras ou mesmo imparciais, uma vez que considerar a possibilidade de ações intencionais serem neutras ou imparciais demonstra uma idealização que não nos auxilia a compreendê- -las, monitorá-las ou mesmo superar as suas discussões. Outro elemento central que historicamente surge em alguns deba- tes e, por vezes, torna-se pensamento hegemônico no período pós-ilumi- nismo é o negacionismo. O leitor pode se questionar: “Qual é a negação que esta forma de pensamento defende ou a qual negação ela induz?”. A resposta a esse questionamento é que esta forma de pensar ataca direta- mente o saber científico. Para Álvaro Vieira Pinto (1979, p. 83), A ciência, sendo a forma mais elevada do conhecimento, participa das mesmas condições gerais que caracterizam a este, isto é, per- tencente ao complexo de relações que se estabelecem entre o ser vivo, no caso o homem, e a realidade circunstante. Não é produto arbitrário do pensamento, não é especulativa por natureza, mas representa a forma mais completa em que se realiza a integração, a adaptação do homem na realidade. – 23 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos Sendo também indispensável citar ainda esta afirmação do autor: A ciência tem hoje a obrigação de se fazer entendida e conhecida por um número cada vez maior de indivíduos (em princípios, a humanidade inteira), daí a necessidade da máxima unidade de sen- tido em seus enunciados, o que postula a rigor dos valores mensu- ráveis e do conteúdo semântico das proposições, escritas ou fala- das (id. Ibid., p. 82). No estudo dos processos educacionais, é de vital importância a incor- poração da ciência como base metodológica para a produção do saber. A responsabilidade dos trabalhadores da educação aumenta diariamente, pois o conjunto do saber humano sistematizado precisa ser incorporado aos processos pedagógicos visando à formação de indivíduos que conhe- çam o passado, entendam o presente e superem as dificuldades do futuro produzindo conhecimento. A defesa do saber historicamente produzido, sistematizado e orga- nizado é uma tarefa permanente dos trabalhadores da educação, pois, conforme afirmam Saviani e Duarte (2012, p. 14), “a educação, enquanto comunicação entre pessoas livres em graus diferentes de maturação humana, é promoção do homem, de parte a parte – isto é, tanto do edu- cando como do educador”. Finalizando este subitem, é importante relembrar um destaque feito por Queiroz (2012) quando apresenta duas abordagens sobre as políticas públicas e a participação da sociedade na sua reflexão, desenvolvimento, implementação/execução, monitoramento e avaliação. A primeira abordagem sugere uma noção de política pública como “o Estado fazendo” sendo o “fazer” o centro das avaliações e estudos sobre as relações Estado-sociedade. Por meio da atividade concreta desta insti- tuição e das relações sociais dentro dela, poderemos refletir sobre as cau- sas e consequências de determinada ação ou política pública (QUEIROZ, 2012, p. 106). Uma segunda abordagem entende a política pública como “constru- ção coletiva”, em que o conceito de cidadania possui maior importância quando as relações entre Estado-sociedade estão mergulhadas no conjunto de contradições entre os diversos interesses sociais que disputam as polí- Políticas Públicas e Legislação Educacional – 24 – ticas públicas. Atualmente, no Brasil, essa abordagem possui maior capi- laridade e é utilizada como justificativa vinculada à noção de garantia de direitos contidos na Constituição Federal de 1988. Mas é importante frisar que, por mais elementos e características que possamos apresentar neste momento sobre as políticas educacionais ou sobre o desenvolvimento do saber científico, o leitor que quiser se apro- fundar no conjunto das obras que fundamentam as teorias ou abordagens apresentadas, necessita mergulhar com profundidade nas obras clássicas que baseiam estas ideias, bem como fazer um amplo estudo de como estas ideias influenciaram as políticas educacionais em diversos momentos da história e em diferentes contextos. Este estudo é necessário como um exercício acadêmico de aprofun- damento, mas também como uma produção científica que poderá agregar novos elementos que foram produzidos ao longo de séculos e necessitam banhar as novas produções e a formação de novos trabalhadores e intelec- tuais da educação brasileira. 1.4 A necessidade da crítica às políticas educacionais no Brasil A palavra crítica tem sido utilizada equivocadamente nos debates de senso comum como uma forma negativa que desqualifica algo ou alguém. É preciso aplicar o sentido científico e acadêmico da expressão para que ela possa cumprir sua real função. O questionamento é fase estruturante do conhecimento científico, bem como o exercício do questionamento sobre teses, pesquisas ou até mesmo consensos científicos é uma atitude contínua daqueles que estão produzindo conhecimento. Existem diversas escolas de pensamento que defendem diferentes formas de explicar, estudar e produzir conhecimento sobre a realidade. O empirismo é definido por Comte-Sponville (2003, p. 191) como “toda teoria do conhecimento que atribui o primeiro lugar à experiência” dando relevância às questões sensoriais humanas centralmente. – 25 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos O mesmo autor usa em seu Dicionário Filosófico uma citação de Hegel para definir o racionalismo como “o que é racional é real; o que é real é racional” (2003, p. 499), ou seja, a frase em síntese é uma defesa do uso do pensamento lógico, da racionalidade para a produção de conheci- mento e análise da realidade. A crítica é uma das formas mais usuais de validação de uma tese ou ideia. A diferença entre o modo de utilização da crítica dentro da ciência possui uma variação somente quando o eixo da produção científica está deslocado da sua função social. A ciência é um produto humano e deve servir à coletividade para melhorar a condição de vida dos indivíduos em sociedade e sua relação com a natureza. Quando a crítica está servindo somente aos interesses pessoais ou para questões egoísticas, se esvai da sua função científica. Mesmo acreditando de forma idealizada que todo o conhecimento científico produzido é imediatamente incorporado à gestão pública, os estudos históricos nos mostram que, por mais avançadas que algumas áreas sejam, como a exploração de petróleo em águas profundas, a grande maio- ria das instituições públicas e privadas brasileiras carecem de aprimora- mento para ampliar sua forma de compreensão da realidade e suas práticas. Já identificamos que as políticas educacionais são constituídas com base numa forma de pensar a sociedade e a educação, que denominamos teoria social, não sendo possível considerá-las neutras. Então, devemos verificar e identificar as políticas educacionais, seus objetivos e metas, investigando qual é a teoria que a baseia. Silva Jr. (2007) afirma na obra por ele organizada, intitulada O Prag- matismo como fundamento das reformas educacionais no Brasil, que a atitude que privilegia a ação concreta, a qual denominamos pragma- tismo, é uma das bases conceituais das nossas políticas para educação, ou seja, o válido é aquilo que resiste à prova experimental, característica ligada à cultura da superprodução e aceleração do tempo para assimilação de maiores lucros. Outra característica das políticas públicas brasileiras, da qual a área da educação não é imune, é a fragmentação, ou seja, a supremacia da Políticas Públicas e Legislação Educacional – 26 – parte sobre o todo, de modo que, na maioria das vezes, as partes de uma mesma política não dialogam ou não convergem seus esforços. Se somarmos estas duas características a um ambiente em que coe- xistem diversas formas de pensar a sociedade e a educação, notaremos que há certa tendência a processos acelerados e rasos, nos quais não se encon- tra coerência teórica nas formulações e nos encaminhamentos. Certa tendência contemporânea à conciliação entre diferentes interes- ses que têm virtude no diálogo, mas é incoerente dentro da metodologia científica, também acaba por desqualificar uma proposta construída com centro teórico coerente, que será fatiada para acomodar diversas propostas que possuem outra base conceitual. Ao refletir sobre a educação brasileira e o problema da marginaliza- ção da maioria da população trabalhadora, Saviani (2009) teorizou, em Escola e Democracia, que existiam dois grupos de teorias educacionais com visões antagônicas sobre o mesmo processo. As teorias não críticas alicerçam sua formulação na crença de que a educação é uma forma de equalização social, e entendem a marginali- zação como um desvio, uma incorreção que será corrigida pela força da educação. Essa perspectiva é uma forma de compreender as relações entre os indivíduos em sociedade, suas contradições, e, como isso, se expressa no campo educacional. Ao denominar como teoria não crítica, Saviani (2009) destaca a opção dessas teorias e de suas correntes em desconsiderar as contradições no seio da sociedade, em especial a disputa entre exploradores e explorados, que divide a sociedade entre aqueles que são donos ou controladores dos meios de pro- dução e aqueles que possuem somente a sua força de trabalho para vender. O segundo grupo, denominado por Saviani como teorias crítico-re- produtivistas, baseia suas formulações na compreensão de que as insti- tuições reproduzem a marginalização da sociedade e, por consequência, tendem a ser reprodutoras destas. Neste grupo, a ideia principal é ade que as determinações centrais da sociedade são reproduzidas pelo conjunto das instituições, estas que se tornam fios condutores de tais determinações ou marginalizações, a depender do caso. – 27 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos Saviani, oito anos após a primeira publicação de Escola e Democra- cia, que data de 1983, lança a obra intitulada Pedagogia Histórico-crítica: primeiras aproximações (1991), na qual sistematiza o trabalho já iniciado de superar tanto as teorias não críticas quanto as crítico-reprodutivistas e, segundo ele, sua posição teórica situou-se “explicitamente no terreno do materialismo histórico, afirmando-o como base teórica de minha concep- ção educacional contra as interpretações reducionistas e dogmáticas que a moda estimulava” (1995, p. 1). Terminamos, assim, com três grandes grupos de teorias educacionais que influenciam diretamente a educação brasileira: as teorias não críticas, as teorias crítico-reprodutivistas e, por fim, a pedagogia histórico-crítica. Após estas contextualizações, é necessário retomar a ideia da crítica às políticas educacionais. Para nós, trabalhadores da educação, o centro da nossa análise se dá na sua materialização. Sendo assim, mais do que julgamentos prévios ou preconceitos, é necessário que nos apropriemos dos conceitos que norteiam as políticas públicas e como elas impactam, ou não, a estrutura educacional que tem como centro a socialização do saber humano sistematizado. Em tese, as políticas educacionais deveriam ser discutidas no con- texto do Executivo (Governo Federal, Governos Estaduais ou Munici- pais), dos Legislativos (Senado, Câmara Federal, Assembleias Legisla- tivas ou Câmara de Vereadores), dos Conselhos de Educação (Nacional, Estadual ou Municipal), bem como dialogar com a rede de universidades que diariamente pesquisam e produzem conhecimento nesta área. O diálogo e a construção coletiva das políticas educacionais deve- riam ser práticas consolidadas e asseguradas em um país tão grande, de modo que as diferenças regionais e particularidades locais fossem levadas em consideração quando se trata de uma política nacional. Mas, infeliz- mente, isso ainda não é uma realidade no Brasil. Se ainda não temos no país uma cultura de diálogo e debate científico de formação educacional no conjunto das instituições, é necessário que os trabalhadores da educação tenham isso como um princípio de traba- lho individual para ajudar o coletivo a compreender a importância destes momentos políticos, que são também pedagógicos. Políticas Públicas e Legislação Educacional – 28 – Um dos problemas das políticas educacionais no Brasil não é sua adaptação às questões regionais ou mesmo locais, pois o tempo e a inte- ligência fez com que nos adaptássemos a essas realidades, mas reside, na maioria das vezes, na concepção real de uma política que não envolve a todos, mas somente uma parte, como se estivéssemos gerindo uma polí- tica de aumento lento e gradual da democratização do acesso à educação básica e permanência nesta. Essa política está fantasiada de democrática, porém a narrativa não suporta cinco minutos de análise quando coloca- mos, por exemplo, que o Brasil está muito longe da universalização do acesso ao Ensino Médio e que estamos há muitas décadas deixando a maioria da população sem acesso a essa etapa da educação básica e, por consequência, excluída do gozo deste direito. Quando tratamos de políticas nacionais, é necessário verificar como elas chegam da origem e como são executadas na ponta. Se entendemos que haverá uma disputa e uma conciliação de interesses na formulação, é impor- tante que se identifique quais as suas bases conceituais, visando garantir minimamente uma coerência na política, pois, como dita a frase conhecida popularmente, “todo mundo é um gênio, mas se você julgar um peixe por sua capacidade de subir em uma árvore, ele vai viver toda a sua vida acredi- tando que é estúpido”. A pior das situações possíveis é querer, por exemplo, que uma política neoliberal cumpra uma função socialista, ou o contrário. A escola não está isolada da sociedade, bem como a sociedade não pode ser considerada isolada da escola. A relação sociedade-educação deve ser considerada de mútua cooperação, em que a qualidade do direito com a proteção social dos trabalhadores da área é de mútuo benefício em um movimento dialógico e cíclico. Da mesma forma, quando a educação é sabotada e a ação dos trabalhadores é precarizada, o vínculo continua o mesmo, somente se alterando o produto da cooperação e do benefício. 1.4.1 Fortalecimento dos espaços de diálogo, debate e construção de políticas educacionais Os espaços de diálogo, debate e construção de políticas educacionais precisam ser fortalecidos e consolidados para representarem, de fato e de direito, locais de construção coletiva e de diálogo qualificado. – 29 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos Em primeiro lugar, é importante avaliar constantemente o funcio- namento dos conselhos de educação em todas as esferas e verificar se a totalidade das representações estão participando (gestores, mães e pais, alunos, professores e trabalhadores, entre outros). Os conselhos de direitos das crianças e adolescentes também são importantes, pois, como veremos nos próximos capítulos, a legislação específica de direitos é convergente entre estes dois conselhos, especial- mente quando pensamos em Educação Infantil e Educação Básica. Na esfera federal, a Lei n. 9.131/1995 define que é o Ministério da Educação o formulador a avaliar a política nacional de educação, cabendo ao Conselho Nacional de Educação colaborar e assessorar o Ministro da Educação, conforme dispõe a lei. Já no âmbito estadual temos diversos Conselhos que são delibera- tivos da política de educação, desta forma suas deliberações, no âmbito exclusivo da política, estão acima dos Secretários Estaduais de Educa- ção. Temos também uma série de Conselhos Estaduais Consultivos que cumprem, por vezes, as funções de avaliar ou opinar sobre as políticas formuladas pelo governo. Como o Brasil possui mais de cinco mil municípios, estes exemplos se multiplicam, bem como as variações de funções desses conselhos, com- posições entre outras questões. É importante salientar que estes espaços institucionalizados como conselhos exigem a participação da sociedade civil organizada, desta forma teremos outra prioridade para fortalecimento destes espaços, a qual se dá pela compreensão da importância da sociedade civil repre- sentada por meio dos sindicatos de trabalhadores, associações de pais, entre outros que, como representantes de parte da comunidade educa- cional, também devem promover amplamente o debate sobre as políti- cas educacionais e suas consequências na realidade concreta da comu- nidade escolar. Mas a responsabilidade de representação da sociedade civil organizada não está restrita à participação qualificada nos conselhos. Quando tratamos do Poder Legislativo, em qualquer esfera (federal, Políticas Públicas e Legislação Educacional – 30 – estadual ou municipal), todas estas instituições constituem comissões de educação, pois são as responsáveis por avaliar os projetos de lei e orçamento dos executivos. Outra instituição que possui uma área específica de educação é o Ministério Público, uma das instituições responsáveis pela defesa da ordem jurídica e do regime democrático no país. Além disso, é importante que possamos fazer um diálogo internacional, nacional e regional (além do local) para termos uma noção de totalidade6 e das relações e práticas entre diferentes esferas ou localidades. Como quase a totalidade das políticas públicas no Brasil, a educação também possui um momento de reunião entre a comunidade escolar, que está formalizado como conferência. Contudo, a Conferência Nacional de Educação – Conae, fruto de uma diversidade de fatores históricos e polí- ticos, não se consolidou até o momento como algo permanente ou, no mínimo, estável. As conferências, dentro da lógica das políticas públicas, têm a responsabilidade de verificar, no caso específico da educação, os pla- nos educacionais nas mais diversas esferas, avaliando e deliberando sobre as políticas e metas da educação dentro do município, estado e no plano federal. Os fóruns das mais diversas áreas são também importantes espaços de diálogo, debate e construção das políticas, pois seu caráter permanente ajuda a qualificar e colocar as políticas educacionais numa esteira de ava- liação diagnóstica para além do momento, retomando seu caráter histórico ou mesmo outras roupagens institucionais que a política ganhou ao longo da história. 6 Para Cury (grifo do autor, 1995, p. 34) totalidade é “o fenômeno, por sua natureza, ao mesmo tempo revela e oculta a essência. A análise que permanece na exterioridade recíproca das coisas capta apenas o momento de manifestação do fenômeno e, ao não o referir à essência, isto é, ao processo de sua produção, oculta o global. Assim, essa análise, apoiada na exterioridade, vê as partes como universos separados uns dos ou- tros. Estes todos, tomados como instâncias internas em uma totalidade contraditória, acabam sendo, na análise, privilegiados arbitrariamente, isto é, o todo julgado mais importante torna-se o determinante. – 31 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos Estes espaços democráticos de diálogo e deliberação devem tam- bém ser fortalecidos para que as políticas públicas tenham mais caráter de “Estado” do que de “governo”. “Caráter de Estado” pode ser enten- dido aqui como política pública que segue todos os preceitos legais e que possui uma estabilidade capaz de enfrentar até mesmo as mudanças de governo. As políticas meramente caracterizadas como de “governo” são aquelas que duram apenas o tempo de mandato do mandatário do execu- tivo, ou poderíamos chamá-las de inconsistentes. A crítica não está vinculada a questões eleitorais, mas sim sua consis- tência teórica e técnica da política, bem como sua estabilidade. Iniciamos o item 1.4. analisando os conceitos de empirismo e racio- nalismo para entender as escolas de pensamento e valorizar a ciência como maior produtora do conhecimento sistematizado humano. Ao afir- marmos a crítica como forma de validação de tese ou ideia, a vinculamos a uma série de protocolos éticos que potencializam o seu caráter científico e vão anular sua característica negativa relacionada ao individualismo e ao egocentrismo. Avançando na análise, apresentamos as ideias de Saviani sobre as teorias pedagógicas, entendendo que temos hoje no Brasil três grandes grupos: as teorias não críticas, as teorias crítico-reprodutivistas e a peda- gogia histórico-crítica; esta última se propõe a superar os problemas con- ceituais e teóricos das anteriores. Este movimento de análise foi deliberado para refletir sobre os aspec- tos concretos das políticas educacionais, entendendo que o plano teórico é muito importante, mas é necessário verificar na realidade concreta os desdobramentos das políticas. Finalizamos este subitem analisando a necessidade de fortalecimento dos espaços de diálogo, debate e construção das políticas educacionais, ampliando o conceito para além do somente formal e burocrático que habita nosso imaginário, estendendo-se a todas as frentes em que esta pos- sibilidade é real e concreta. No próximo capítulo, avançaremos na análise da legislação da edu- cação nacional. Políticas Públicas e Legislação Educacional – 32 – Saiba mais Livros Pedagogia do oprimido – Paulo Freire. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987. História da educação – Mario Alighero Manacorda. São Paulo: Cortez, 1997. História da pedagogia – Franco Cambi. São Paulo: Editora Unesp, 1999. História das ideias pedagógicas no Brasil – Dermeval Saviani. Cam- pinas, SP: Autores Associados, 2013. A pedagogia no Brasil – Dermeval Saviani. Campinas, SP: Autores Associados, 2012. Escola, Estado e sociedade – Bárbara Freitag. São Paulo: Editora Moraes, 1980. Sites Sítio eletrônico do Ministério da Educação – MEC. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/>. Acesso em: 1 jul. 2020. Sítio eletrônico do Conselho Nacional de Educação – CNE. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/conselho-nacional-de- -educacao/apresentacao>. Acesso em: 1 jul. 2020. Atividades 1. Apresentamos neste capítulo, especificamente no subcapítulo 1.1 três atributos vinculados às políticas públicas. Cite ao menos um e justifique-o. 2. Quando tratamos de abrangência das políticas públicas, quais são as três possibilidades apresentadas no texto? – 33 – Políticas educacionais: conceitos e fundamentos 3. Considerando o que foi apresentado neste capítulo, qual é a característica central das políticas públicas? 4. Afirmamos, neste capítulo, especificamente no item 1.4, que o conceito de crítica está sendo utilizado de forma equivocada. Como se apresenta o conceito de crítica dentro do campo cien- tífico? Justifique. O objetivo deste capítulo é apresentar as principais leis que normatizaram ou normatizam a educação até a atualidade. Com uma síntese da legislação brasileira sobre a educação e suas características, priorizaremos ao menos os textos integrais rela- cionados à educação dentro de cada legislação. A primeira advertência ao leitor é de que a legislação deverá ser observada como um acordo político-jurídico em dado momento de uma sociedade, e que não deve ser considerada como algo absoluto e inquestionável. Em outras palavras, a abor- dagem deste capítulo é caracterizada por não considerar a legis- lação como algo pleno ou acabado, ou que não deve ser alterado ou modificado. As sociedades humanas, ao longo dos séculos, materializa- ram seus acordos sociais mediante tratados jurídicos por vezes impostos pelos dominantes; ou em consenso, por representantes; ou, ainda, por meio de diálogos com parte expressiva da sociedade. Avaliação da educação no Brasil 2 Políticas Públicas e Legislação Educacional – 36 – O convívio societário, a produção e a socialização do conhecimento alteram a percepção da sociedade sobre o que é humano, e isto é natural, bem como a relação entre a natureza e os indivíduos entre si. Por esse motivo, não podemos considerar a legislação inquestionável, uma vez que o movimento da realidade está constantemente alterando nossa percepção sobre o humano, a sociedade e a realidade. Além disso, a produção de conhecimento e as novas técnicas e tecno- logias auxiliam na renovação e aprofundamento das teses sobre o humano e a natureza. Uma segunda observação ao leitor é quanto a identificar o período de apresentação da legislação e analisar quais são as principais mudanças por ela propostas para aquela realidade. 2.1 A educação nas Constituintes de 1946 e 1966/67 Neste subcapítulo, apresentaremos os contextos de aprovação das Constituintes de 1946 e 1966/67, e como essas legislações tratam o tema educação. Essa apresentação dos contextos é necessária para avaliarmos as disputas centrais ocorridas em cada um dos momentos analisados. 2.1.1 Constituinte de 1946 A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1946, foi promul- gada em 18 de setembro do referido ano, em meio a um cenário de Pós- -Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em que as contradições sobre a participação do Brasil no conflito, bem como a ascensão e a presença de organizações fascistas no país eram pauta cotidiana. Sua característica estrutural é a representação dos ideais liberais e democráticos. Os antecedentes políticos da Constituição de 1946 são a destituição da política de trocas de poder entre lideranças representantes dos estados de São Paulo e Minas Gerais, chamada de política do café com leite, e a Revolução de 1930, que teve como personagem exaltado o ex-presidente Getúlio Vargas (1.⁰ mandato 1930-1945, 2.⁰ mandato 1951-1954). – 37 – Avaliação da educação no Brasil De 1930 até 29 de outubro de 1945, data da deposição de Vargas, sucederam-se dezenas de enfrentamentos políticos que podem ser verifi- cados em diversos artigos dessa nova Constituição. Duas das principais reivindicações de então eram a liberdade democrática e a escolha de repre- sentantes por sufrágio eleitoral. O debate interno da Constituinte de 1946 foi banhado pelas pautas internacionais relacionadas aos processos derivados da Segunda Guerra Mundial e pelas necessidades imediatas da classe dominante brasileira de controle do aparato estatal, ao passo que a maioria das necessidades da classe trabalhadora pouco influíam no ambiente legislativo, com grande maioria de representantes advindos da classe dominante. Com relação à educação, no estudo realizado por Romualdo Portela de Oliveira1 no livro A Educação nas Constituintes Brasileiras: 1823- 1988, organizado por Osmar Fávero (1996), fica evidenciada que uma das principais contradições a gerar grandes debates antes da votação final era a presença do ensino religioso na educação pública. A Proclamação da República de 1889 é o marco da separação do Estado e da religião, no Brasil, sendo um dos primeiros atos expedidos pelo então chefe provisório da nação, Marechal Manoel Deodoro da Fonseca. Este, em 7 de janeiro de 1890 publica o Decreto n. 119-A, que “prohibe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa, con- sagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providencias”, assumindo, assim, uma postura política próxima dos ideais da Revolução Francesa de Estado laico, e outros ideais republicanos. O retorno de um tema como a influência da religião sobre o Estado ao debate político traz consigo pautas que se aproximavam mais do sistema de governo imperial do que do republicano. Então, podemos verificar que os vencidos na luta política de Proclamação da República retornam à dis- puta após a deposição de Getúlio Vargas, em 1945. As disputas legislativas em torno do texto constitucional sobre os temas educação e religião cessaram com a publicação do inciso V do artigo 168, o qual define que “o ensino religioso constitui disciplina dos 1 Estudo nove, intitulado A Educação na Assembleia Constituinte de 1946 (p. 153-190) Políticas Públicas e Legislação Educacional – 38 – horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável”. Esse embate simboliza que, mesmo aparentando que a Proclamação da República fosse uma adesão aos ideais de liberdade, igualdade e fra- ternidade, advindos da Revolução Francesa, bem como à visão da ciência como principal produtora do conhecimento humano, que também pode- mos considerar como uma aproximação ao pensamento racional e distan- ciamento dos ideais míticos de realidade e humanidade, existiam forças políticas e econômicas brasileiras insatisfeitas com essa adesão. Tais for- ças intervieram ao longo de anos nas disputas políticas para tentar retomar a hegemonia de suas ideias no cenário nacional. O Título VI, Capítulo II da Constituição de 1946 é reservado ao tema Educação. Acesse o texto original e veja os 10 artigos correspondentes ao assunto. Saiba mais Acesse o texto da Constituição de 1946, e leia os 10 artigos reser- vados ao tema Educação, presentes do Título VI, Capítulo II do documento, artigos 166 a 175: BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 18 set. 1946. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao46.htm. Acesso em: 28 mar. 2021. – 39 – Avaliação da educação no Brasil Mesmo não cabendo, neste momento, aprofundar cada aspecto cons- titutivo dessa legislação, é importante ressaltar que, em comparação à Constituição de 1937, foram poucos os avanços estruturais e organizativos na área educacional, excetuando-se o início dos processos de legislações gerais de educação. A Lei nº. 4.024 de 1961 foi a primeira desse tipo e será apresentada no subcapítulo 2.3. 2.1.2 Constituinte de 1966/67 Entre 1946 e 1964, tivemos um curto espaço de tempo democrá- tico, muito turbulento, quando analisadas as disputas políticas que, em 1954, levaram ao suicídio do Presidente da República, Getúlio Vargas. A partir de então ocorreram diversas crises que levaram o Brasil a ter oito presidentes da república em um período de dez anos2 (1954-1964), desembocando no golpe militar, que se inicia no ano de 1964 e finda somente em 1985. A Constituinte, iniciada em 1966 e promulgada em 24 de janeiro de 1967, é fruto de uma intenção de adaptar a legislação às necessidades do regime militar. Ou seja, era preciso que a lei regulamentasse as práticas do sistema. Mesmo entendendo que o poder legislativo ajudaria a regu- lamentar as práticas do governo militar, isso não foi suficiente, pois esse mesmo governo fechou o Congresso Nacional por três vezes durante o período de ditadura. Quatro são os principais debates que envolveram o capítulo desti- nado ao tema educação na Constituição de 1967. Trataremos, aqui, sobre a vinculação da receita, a gratuidade, a obrigatoriedade, sendo que o quarto – o ensino religioso – já foi tratado no subitem anterior. Diferente da Constituição de 1946, que definia uma vinculação de receitas para a área da educação, em 1966 o debate se inicia com uma primeira manutenção dessa proposta. No entanto, o governo militar decide acabar com todas as vinculações financeiras, acreditando que o Congresso Nacional deveria aprovar tal questão, pois existiria, no argu- 2 Getúlio Vargas, Café Filho, Carlos Luz, Nereu Ramos, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Ranieri Mazzilli e João Goulart. Políticas Públicas e Legislação Educacional – 40 – mento de um dos defensores do governo militar, uma “vinculação de ordem moral e cívica” (FÁVERO, 1996, p. 222), o que concretamente se demonstrou apenas como uma promessa vazia. Posteriormente, no ano de 1983, uma Emenda Constitucional (Emenda Calmon) reintroduziria a vinculação na Carta Magna, emenda esta que só foi de fato regulamen- tada no ano de 1985. O debate sobre a gratuidade da educação é a segunda polêmica que analisaremos, pois a Constituição de 1946 manteve a gratuidade do ensino primário, presente em legislações anteriores. A Constituição de 1967, por sua vez, deixa ambígua a responsabilidade do Estado com a educação ao não ser explícita quanto a esse dever do Estado. Ao mesmo tempo, expli- cita a liberdade da iniciativa privada nessa área, podendo inclusive esta utilizar de amparo técnico e financeiro público (§ 2º do artigo 168). Mesmo entendendo que a gratuidade do ensino primário é simbó- lica, torna-se necessário verificar que a não vinculação de receitas retira a possibilidade de verificação de investimentos e, por consequência, leva à incapacidade de regulação da política pública. A etapa posterior de ensino (chamada hoje de Ensino Médio e à época também) e o Ensino Superior não são tratados, na Constituição de 1967, como direitos que deveriam ser acessados gratuitamente, como começa- mos a compreender a partir da Constituição de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº. 9.394/1996. Para finalizar, observamos o debate sobre obrigatoriedade, que é muito próximo à polêmica da gratuidade, como um dos pontos em que a divergência nos debates demonstra a visão de que a educação, nessa legislação, não é para todos, ou seja, o pensamento de universalização do direito não é parte desse debate. A obrigatoriedade é uma contradição legal, pois, quando inserida na legislação, se transforma em uma obrigação daquilo que, na mesma legislação, não é assumido como algo que necessite de vinculação orça- mentária. Se é obrigatório, torna-se obrigação do Estado ser capaz de disponibilizar vagas. Quando a legislação limita a obrigatoriedade, acaba desobrigando o poder público de solucionar os problemas de ingresso dos indivíduos no processo educacional. – 41 – Avaliação da educação no Brasil Saiba mais Acesse o Título IV da Constituição de 1967, que trata sobre Família, Educação e Cultura, artigos 167 a 175: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 jan 1967. Dis- ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao67.htm. Acesso em: 29 mar. 2021. Esses marcos das Constituições de 1946 e 1967 nos dão uma base para avançar nos estudos das demais legislações. Podemos verificar como, ao longo de décadas, acumulamos conhecimento e consensos (mesmo sendo majoritariamente da classe dominante) para a estrutura educacio- nal, mas ainda temos problemas centrais que não conseguimos superar em décadas de debate. 2.2 A concepção de educação das Leis nº. 4.024/1961, nº. 5.540/1968 e nº. 5.692/1971 Este subcapítulo vai analisar a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação e reformas legais datadas do ano de 1968 e 1971, visando ana- lisar regularidades, tendências e contradições expostas nas leis, de modo a recuperar o contexto político social em que se insere cada processo de aprovação destas leis. Políticas Públicas e Legislação Educacional – 42 – 2.2.1 Lei nº. 4.024/1961 Esta é a primeira lei específica sobre a estrutura educacional brasi- leira. Quando tratamos de lei específica, estamos zelando por uma legis- lação que tenha como objetivo definir os rumos do conjunto da estrutura educacional, e não somente uma parte dela; o pensamento voltado ao todo. A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB ficou 13 anos em debate como anteprojeto de lei até ser aprovada e publicada em 20 de dezembro de 1961. Para diversos autores, o tempo de tramitação do anteprojeto e as disputas entre partidos conservadores e os chamados esta- distas retirou sua capacidade inovadora, pois, quando a lei foi aprovada, chegou “velha” à realidade. A convicção liberal do texto se expressa já no artigo 1.⁰, ao defi- nir uma “educação nacional, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana” (grifo nosso). As disputas de financia- mento da educação privada com recursos públicos foram capitaneadas pelo Deputado Carlos Lacerda (UDN), que defendia a bandeira contra o monopólio da educação pelo Estado. Essa Lei cria o Conselho Federal de Educação (artigo 7.⁰), que delibera sobre as políticas educacionais a serem observadas pelo Ministério da Edu- cação. Os conselheiros nacionais de educação eram escolhidos pelo Presi- dente da República de acordo com critérios mínimos contidos na legislação. Saiba mais Segundo essa legislação, caberia ao Conselho Federal de Educação: a) decidir sobre o funcionamento dos estabelecimentos isola- dos de ensino superior, federais e particulares; b) decidir sobre o reconhecimento das universidades, mediante a aprovação dos seus estatutos e dos estabeleci- mentos isolados de ensino superior, depois de um prazo de funcionamento regular de, no mínimo, dois anos; c) pronunciar-se sobre os relatórios anuais dos institutos refe- ridos nas alíneas anteriores; – 43 – Avaliação da educação no Brasil d) opinar sobre a incorporação de escolas ao sistema federal de ensino, após verificação da existência de recursos orça- mentários; e) indicar disciplinas obrigatórias para os sistemas de ensino médio (artigo 35, parágrafo 1º) e estabelecer a duração e o currículo mínimo dos cursos de ensino superior, conforme o disposto no artigo 70; f) VETADO g) promover sindicâncias, por meio de comissões especiais, em quaisquer estabelecimentos de ensino, sempre que julgar conveniente, tendo em vista o fiel cumprimento desta lei; h) elaborar seu regimento a ser aprovado pelo Presidente da República; i) conhecer dos recursos interpostos pelos candidatos ao magistério federal e decidir sobre eles; j) sugerir medidas para organização e funcionamento do sis- tema federal de ensino; l) promover e divulgar estudos sobre os sistemas estaduais de ensino; m) adotar ou propor modificações e medidas que visem à expansão e ao aperfeiçoamento do ensino; n) estimular a assistência social escolar; o) emitir pareceres sobre assuntos e questões de natureza peda- gógica e educativa que lhe sejam submetidos pelo Presidente da República ou pelo Ministro da Educação e Cultura; p) manter intercâmbio com os conselhos estaduais de educação; q) analisar anualmente as estatísticas do ensino e os dados complementares. § 1º Dependem de homologação do Ministro da Educação e Cul- tura os atos compreendidos nas letras a, b, d, e, f, h e i; Fonte: BRASIL, 1961. Políticas Públicas e Legislação Educacional – 44 – A criação dos Conselhos Estaduais de Educação (artigo 10) também permite que o conjunto das demandas regionais seja redistribuído para esses órgãos, além de cada estado contar com um conselho permanentemente. Nessa Lei ficou prevista a existência de sistemas de ensino na União, Estados e Distrito Federal (artigo 11), considerando que esses “sistemas” teriam o papel de organizar a estrutura educacional dando-lhes lógica, organicidade e eficiência. Essa legislação define como educação pré-primária aquela des- tinada aos “menores até sete anos, e será ministrada em escolas mater- nais ou jardins-de-infância” (artigo 23). Isso evidencia uma leitura ambígua sobre essa etapa da educação, pois o artigo 24 já cria uma vinculação entre a educação pré-primária e o trabalho das mães ao esti- pular que “as emprêsas (sic) que tenham a seu serviço mães de meno- res de sete anos serão estimuladas a organizar e manter, por iniciativa própria ou em cooperação com os poderes públicos, instituições de educação pré-primária”. A obrigatoriedade do ensino primário se dava a partir dos sete anos, com um mínimo de quatro séries anuais, sendo que os sistemas de ensino poderiam, à época, estender a duração para até seis anos. Havia a exigência de o ensino primário ser ministrado em língua nacional, que é explicada pela crescente imigração, bem como pela pre- sença indígena, ambas vistas como ameaça à unidade nacional e à criação de uma identidade brasileira. A preocupação com a alfabetização dos trabalhadores e de seus filhos fica evidenciada na obrigatoriedade de as empresas com mais de 100 tra- balhadores manterem ensino primário gratuito para estes e seus filhos. Há um esforço evidente na legislação em promover a formação pri- mária da maioria da população, pois é necessário lembrar que a década de 1940 é um ponto-chave para a consolidação da industrialização brasileira como grande fonte de produção e geração de lucros. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE demonstram que em 1940 existiam cerca de 9,1 milhões de brasileiros caracterizados como “sabendo ler e escrever” e 11,8 milhões como “não – 45 – Avaliação da educação no Brasil sabendo ler nem escrever” (IBGE, 1946, p. 21), ou seja, 43,6% alfabetiza- dos e 56,4% analfabetos. Podemos notar que havia uma contradição entre o projeto de desen- volvimento industrial e o grau de instrução da população. Além disso, que as prioridades legais também traduziam, naquele momento histórico, as disputas nas quais a educação se inseria no projeto de desenvolvimento econômico e social do país. Essa legislação, por se concentrar no ensino primário, não define a obrigatoriedade do ensino médio, sendo este considerado um prossegui- mento dos estudos da primeira etapa da educação, caracterizado pela for- mação do adolescente (artigo 33). O ensino médio foi organizado em dois ciclos, ginasial (quatro séries) e colegial (três séries, no mínimo), e poderia abranger os cursos secundários, técnicos e de formação de professores para o ensino primário e pré-primário. O ensino superior, na Lei nº. 4.024/1961, é definido pelo artigo 66 como um nível de educação que “tem por objetivo a pesquisa, o desenvol- vimento das ciências, letras e artes, e a formação de profissionais de nível universitário”. Uma observação importante sobre o ensino superior nessa lei é em relação ao fato de diversos artigos seus terem sido parcial ou totalmente vetados, o que descaracterizou a lógica do capítulo voltado ao ensino superior. Isso levou à aprovação, em 1968, da Lei nº. 5.540/1968, cha- mada de Lei da Reforma do Ensino Superior. A Lei nº. 4.024/1961 ainda prevê um título sobre a educação dos “excepcionais” (termo constante na lei, Título X, artigos 88 e 89), tratando de inclusão “no que for possível” e possibilidade de bolsas de estudos, empréstimos e subvenções do Estado para a iniciativa privada que traba- lha com o tema. Para concluir, é importante frisar que a lei determina o mínimo de 12% da receita da União em impostos a serem investidos na educação, ficando estados, Distrito Federal e Municípios com a obrigatoriedade de investimento de, no mínimo, 20%. Políticas Públicas e Legislação Educacional – 46 – 2.2.2 Lei nº. 5.540/1968 Em 1964, o Brasil vivencia um golpe militar e a substituição de um regime democrático por uma ditadura militar. Essa alteração de regime exige também novas regras sociais que expressem o projeto societário que ocupa o poder. Como o governo antidemocrático precisava controlar a contradição entre os seus interesses e as necessidades da maioria da população, neces- sitou realizar alterações legislativas. Segundo Freitag (1980, p. 75), “para solucionar o impasse torna-se necessária ‘uma reorganização administra- tiva, tecnológica e financeira que, por sua vez, implica uma reordenação das formas de controle social e político’”. E a autora continua: A política educacional, ela mesma expressão da “reordenação das formas de controle social e político”, usará o sistema educacional reestruturado para assegurar este controle. A educação estará nova- mente a serviço dos interesses econômicos que fizeram necessária a sua reformulação. Essa afirmação encontra seu fundamento nos pronunciamentos
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