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z INTRODUÇÃO O conteúdo teórico que preparamos foi desenvolvido a partir de sólidas bases teóricas, porém com o objetivo claro de preparar o estudante para os enfrentamentos práticos e rotineiros que gravitam em torno dos processos de falência e de recuperação de empresas. A opção pragmática do texto, desenvolvido a partir da base empírica construída ao longo da experiência acumulada na nossa atuação diária, como Promotor de Justiça Titular perante as Varas Empresariais da Capital do Estado do Rio de Janeiro, fica à evidência a partir da frequente citação de casos concretos. Os anos de magistério também foram fundamentais na estruturação da obra, que muito se assemelha a um manual de atuação, na medida em que os principais pontos de dúvidas dos estudantes e operadores do Direito das Empresas em Dificuldades, seja pela percepção dos credores, seja pela ótica do devedor, receberam especial atenção. Estudaremos falência e recuperação de empresas em detalhes, incluindo a 1ª grande reforma promovida pela Lei 14.112, de 24/12/2020, com especial atenção para: os pressupostos para a decretação da falência; os efeitos da quebra sobre a pessoa do falido, seus contratos e seus bens; as formas de alienação do ativo; as causas de extinção das obrigações do falido e o novíssimo “fresh start”; a legitimação e postulação da recuperação judicial; os créditos sujeitos à recuperação judicial; os efeitos da decisão de deferimento do processamento; as regras de suspensão das execuções; o procedimento de verificação de créditos; o rito processual; o plano de recuperação judicial; o funcionamento da assembleia-geral de credores; a concessão e cumprimento da recuperação judicial; o plano especial de recuperação para os pequenos empresários; e as duas espécies de recuperação extrajudicial. A carga horária total é de 24 horas-aula, e o nosso objetivo é oferecer uma visão crítica, atual, prática e multidisciplinar voltada à atualização ou preparação do aluno para o mercado de trabalho, por meio do enfrentamento das questões cruciais para o aprofundamento dos conhecimentos sobre a nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. Destacamos a intensa relação dos institutos da falência e da recuperação de empresas com outros ramos do Direito, como Direito Civil e Processual Civil, Direito Tributário, Direito Administrativo e Direito Trabalhista, na medida em que a recuperação ou a falência de uma sociedade empresária afeta e exige o sacrifício de credores de toda ordem. Assim, mesmo aqueles profissionais que não atuam diretamente com o Direito das Empresas em Dificuldades não podem prescindir de um acurado estudo sobre os novos contornos do Sistema Jurídico da Insolvência Empresarial. E na esteira de nossa atuação profissional, os temas serão abordados sempre a partir de um enfoque voltado para a prática, mas sem descuido da parte teórica. Dividimos este material em cinco módulos e em todos procuramos citar os precedentes jurisprudenciais mais atuais dos nossos Tribunais, estejam eles alinhados ou não com o nosso posicionamento. Temos a certeza de que o atento estudo deste material, em paralelo com a dinâmica empreendida pela integração e interação com o que lhes reservamos na aula on-line, permitirá uma completa compreensão do mundo das falências e das recuperações de empresas. Bom estudo!!! SUMÁRIO MÓDULO I – INTRODUÇÃO À LEI Nº 11.101, DE 9 DE FEVEREIRO DE 2005 .................................... 11 PRINCÍPIOS INFORMATIVOS DO SISTEMA .................................................................................... 12 Preservação da empresa viável ............................................................................................. 12 Separação dos conceitos de empresa e de empresário .................................................... 14 Proteção aos trabalhadores ................................................................................................... 14 Redução do custo do crédito no Brasil ................................................................................. 15 Celeridade e eficiência dos processos judiciais ................................................................... 15 Segurança jurídica ................................................................................................................... 16 Participação ativa dos credores ............................................................................................. 16 Maximização do valor dos ativos do devedor ..................................................................... 17 Fresh Start .................................................................................................................................. 17 Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte .................................................................................................................................................... 18 Rigor na punição dos crimes relacionados à insolvência empresarial ............................. 18 MÓDULO II – FALÊNCIA ....................................................................................................................... 21 LEGITIMIDADE ATIVA PARA O REQUERIMENTO DE FALÊNCIA ................................................... 21 Confissão da insolvência: autofalência ................................................................................. 21 A pedido dos credores ............................................................................................................ 23 Credor com garantia real .................................................................................................. 24 Credor tributário ................................................................................................................. 25 JUÍZO COMPETENTE ......................................................................................................................... 28 PRESSUPOSTOS FALIMENTARES .................................................................................................... 31 Legitimidade passiva ............................................................................................................... 31 Teoria dos agentes econômicos ....................................................................................... 33 Sociedades empresárias dissolvidas irregularmente .................................................... 34 Sociedades empresárias não sujeitas à LFRE ................................................................. 35 Insolvência ................................................................................................................................ 37 Impontualidade .................................................................................................................. 38 Execução frustrada ............................................................................................................. 40 Atos de falência ................................................................................................................... 42 RITO PROCESSUAL DA FASE PRÉ-FALIMENTAR ............................................................................ 43 Depósito elisivo ........................................................................................................................ 45 SENTENÇA DE FALÊNCIA: CONTEÚDO E RECURSOS ................................................................... 48 ADMINISTRAÇÃO NA FALÊNCIA ..................................................................................................... 49 Juiz .............................................................................................................................................. 50 MinistérioPúblico .................................................................................................................... 50 Administrador judicial ............................................................................................................. 52 Gestor judicial ........................................................................................................................... 56 Credores na administração do processo.............................................................................. 57 Intervenção individual do credor ..................................................................................... 57 Comitê de credores ............................................................................................................ 58 Assembleia de credores .................................................................................................... 60 Falido ......................................................................................................................................... 62 Proibição do exercício da empresa .................................................................................. 63 Restrição ao direito de locomoção .................................................................................. 64 Arrecadação das correspondências ................................................................................. 64 EFEITOS DA FALÊNCIA EM RELAÇÃO AOS BENS DO FALIDO ...................................................... 65 Administração e indisponibilidade dos bens ....................................................................... 65 Bens não sujeitos à arrecadação ........................................................................................... 67 Negociação com os bens da massa falida ............................................................................ 68 Pedidos de restituição ............................................................................................................. 69 Restituição ordinária – in natura ....................................................................................... 69 Bens alienados fiduciariamente, arrendados ou decorrentes de compra e venda com reserva de domínio .............................................................................................. 71 Restituição excepcional ................................................................................................ 72 Restituição em dinheiro ..................................................................................................... 72 Rito da restituição ............................................................................................................... 74 Desconsideração da personalidade jurídica e outros casos de responsabilização ....... 75 EFEITOS DA FALÊNCIA EM RELAÇÃO AOS CONTRATOS DO FALIDO ......................................... 77 Contratos bilaterais ................................................................................................................. 78 Contratos unilaterais ............................................................................................................... 79 Situações especiais .................................................................................................................. 79 Compra e venda a prazo: mercadorias em trânsito ...................................................... 79 Compra e venda de coisas compostas ............................................................................ 80 Compra e venda com reserva de domínio ...................................................................... 80 Patrimônio de afetação ..................................................................................................... 80 Locação ................................................................................................................................ 81 Mandato ............................................................................................................................... 82 Conta-corrente .................................................................................................................... 82 INDIVISIBILIDADE DO JUÍZO FALIMENTAR .................................................................................... 82 Reclamações trabalhistas ....................................................................................................... 83 Causas fazendárias .................................................................................................................. 84 Execuções fiscais ...................................................................................................................... 85 Ações propostas pela massa falida ....................................................................................... 86 Universalidade da falência e ações em curso ...................................................................... 86 INVESTIGAÇÃO DOS NEGÓCIOS CELEBRADOS PELO FALIDO ANTES DA FALÊNCIA .............. 87 Ineficácia objetiva .................................................................................................................... 88 Ineficácia subjetiva .................................................................................................................. 90 VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS ......................................................................................................... 91 Fase administrativa .................................................................................................................. 92 Fase judicial .............................................................................................................................. 93 Habilitações e impugnações retardatárias ........................................................................... 95 Suspensão dos juros e dos prazos prescricionais ............................................................... 98 Compensação de créditos ...................................................................................................... 99 Quadro geral de credores: concursais e não concursais ................................................ 100 Credores extraconcursais .............................................................................................. 101 Credores concursais ........................................................................................................ 102 Créditos por acidente do trabalho e trabalhistas, estes limitados a 150 salários- mínimos ....................................................................................................................... 103 Créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado ...................... 104 Créditos tributários, excetuadas as multas ............................................................ 104 Créditos quirografários ............................................................................................. 105 Multas contratuais e penas pecuniárias por infrações das leis penais e administrativas ........................................................................................................... 105 Créditos subordinados .............................................................................................. 105 Credor alimentar ............................................................................................................. 106 REALIZAÇÃO DO ATIVO ................................................................................................................ 107 Proteção ao arrematante..................................................................................................... 107 Modalidades de hasta pública ............................................................................................ 109 Disposições comuns .............................................................................................................111 PRESTAÇÃO DE CONTAS .............................................................................................................. 112 ENCERRAMENTO DA FALÊNCIA ................................................................................................... 112 INCIDENTE DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES: A REABILITAÇÃO DO FALIDO ........................ 113 Demonstração de regularidade fiscal ................................................................................ 115 MÓDULO III – RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS .................................................................................. 117 ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS ......................................................................................................... 118 ESPÉCIES DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS .............................................................................. 118 LEGITIMIDADE ATIVA .................................................................................................................... 119 Recuperação judicial do produtor rural............................................................................. 120 Litisconsórcio ativo ............................................................................................................... 121 Consolidação processual ................................................................................................ 121 Consolidação substancial ............................................................................................... 122 Recuperação judicial transnacional .................................................................................... 123 REQUISITOS DA PETIÇÃO INICIAL DO REQUERIMENTO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL ......... 124 Requisitos subjetivos ............................................................................................................ 125 Atividade empresarial há mais de dois anos (caput) .................................................. 125 Não ser falido e não ter obtido recuperação judicial há menos de cinco anos (incisos I, II e III) ................................................................................................................ 126 Sócios controladores e administradores não condenados por crimes da LFRE (inciso IV) ....................................................................................................................................... 126 Requisitos objetivos .............................................................................................................. 126 Situação patrimonial e razões da crise (inciso I) ......................................................... 126 Demonstrações contábeis (inciso II) ............................................................................. 127 Relação de credores (inciso III) ...................................................................................... 127 Relação de empregados (inciso IV) ............................................................................... 127 Certidão de regularidade do Registro Público de Empresas Mercantis (inciso V) ........ 128 Relação de bens dos sócios controladores e dos administradores (inciso VI) ....... 128 Extratos bancários (inciso VII) ........................................................................................ 128 Certidões de protestos (inciso VIII) ................................................................................ 128 Relação dos processos judiciais e disputas arbitrais, com estimativa de valores (inciso IX) ........................................................................................................................... 129 Relatório detalhado do passivo fiscal (inciso X) .......................................................... 129 Relação de bens e direitos do ativo não circulante (inciso XI)................................... 129 CRÉDITOS SUJEITOS AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO ............................................................. 130 CRÉDITOS NÃO SUJEITOS AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL ................................... 132 Créditos de empréstimo DIP ............................................................................................... 132 Crédito tributário .................................................................................................................. 133 Créditos com direito real de propriedade e assemelhados ........................................... 135 Depositante de coisas fungíveis ......................................................................................... 137 Dívida propter rem – despesas condominiais .................................................................... 137 Singularidade dos créditos sujeitos à recuperação judicial do produtor rural ............ 139 Problemática da trava bancária .......................................................................................... 140 DEFERIMENTO DO PROCESSAMENTO DO PEDIDO .................................................................. 144 Dispensa das certidões negativas ...................................................................................... 145 Stay period e suspensão da prescrição .............................................................................. 145 Prestação mensal de contas................................................................................................ 147 Intimação do Ministério Público e das Fazendas ............................................................. 148 Restrição de venda ou oneração dos bens do imobilizado ............................................ 149 Prazo para habilitação e divergência de créditos ............................................................. 151 Compensação de créditos na recuperação judicial ......................................................... 152 APRESENTAÇÃO DO PLANO ........................................................................................................ 154 MÉTODOS DE RECUPERAÇÃO ..................................................................................................... 154 Restrições ao plano de reestruturação .............................................................................. 156 Passivo trabalhista .......................................................................................................... 157 Vinculação cambial dos créditos ................................................................................... 158 Intangibilidade das garantias reais e fidejussórias ..................................................... 158 OBJEÇÃO DOS CREDORES AO PLANO DE RECUPERAÇÃO ....................................................... 161 APROVAÇÃO OU REJEIÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO DO DEVEDOR ............................ 162 Deliberação dos credores em assembleia ........................................................................ 163 Sistema do cram down ......................................................................................................... 163 Apresentação de PRJ alternativo pelos credores ............................................................. 164 Aplicação da teoria do abuso de direito no exame dos votos dos credores ................ 164 Suspensão da assembleia de deliberação sobre o plano de recuperação................... 166 REGULARIDADE TRIBUTÁRIA PARA A CONCESSÃO DA RECUPERAÇÃO ................................. 167 Controle de legalidade do plano aprovado pelos credores ............................................ 167 SENTENÇA CONCESSIVA DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL E NOVAÇÃO ...................................... 168 RECURSOS ...................................................................................................................................... 169 SUPERVISÃO JUDICIAL DA EXECUÇÃO DO PLANO .................................................................... 169 ALTERAÇÕES DO PLANO HOMOLOGADO................................................................................. 170 AFASTAMENTO JUDICIAL DOS ADMINISTRADORES E DO CONTROLADOR DO DEVEDOR .. 171 CONVOLAÇÃO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL EM FALÊNCIA ..................................................... 172 MÓDULO IV – OUTRAS ESPÉCIES DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS ............................................ 173 PLANO ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL PARA AS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS . 173 RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL ................................................................................................... 175 Requisitos ............................................................................................................................... 176 Créditos sujeitos e stay period ............................................................................................. 177 Credores não sujeitos .......................................................................................................... 177 Procedimento para homologação ...................................................................................... 178 Oposição ao pedido .............................................................................................................. 179 Decisão homologatória: limitação aos poderes do juiz e recursos ............................... 179 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 181 PROFESSOR-AUTOR ........................................................................................................................... 182 Passados pouco mais de 15 anos desde o advento da Lei nº 11.101/05, percebe-se um grande avanço no aperfeiçoamento do sistema jurídico da insolvência no Brasil. Porém, se muitos dos problemas decorrentes do revogado Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, foram resolvidos, outros mais surgiram, revelando-se premente uma primeira grande reforma que já se avizinha, provavelmente por meio do Projeto de Lei em tramitação no Senado nº 4.458/2020, antigo P.L. 6.229/2005 da Câmara dos Deputados, que aglutinou várias outras proposições que tramitavam pela Câmara dos Deputados. Sabia-se que a viabilidade de um moderno sistema de insolvência empresarial também reclamava uma profunda alteração no Direito Tributário, ao menos no que concerne ao tratamento do passivo tributário dos empresários em crise, sendo forçoso gizar que grande parte das alcunhadas reengenharias tributárias depende de uma astuta perspectiva empresarial, sobretudo societária, enquanto, de igual sorte, é elemento lógico da rotina empresarial que reestruturações societárias não possam prescindir de um sólido planejamento tributário. O fato inconteste é que, infelizmente, a LFRE não se revelou plenamente capaz de auxiliar a empresa em crise a superar as suas dificuldades, uma vez que grande parte dessas dificuldades está ligada ao seu passivo fiscal ou atrelada a garantias que excluem o crédito do concurso e, ipso facto, do alcance do plano de recuperação. A posição até então inflexível das Fazendas Públicas e o tratamento privilegiado conferido aos credores detentores de direito de propriedade colidem com a necessidade concreta de se procurarem alternativas para a proteção dos ativos das empresas em crise, causando insegurança no mercado e perplexidade dos operadores do Direito diante da imensa variedade de interpretações das atuais normas. MÓDULO I – INTRODUÇÃO À LEI Nº 11.101, DE 9 DE FEVEREIRO DE 2005 12 O primeiro método de pesquisa utilizado para a elaboração da presente obra foi o dogmático-histórico-descritivo, o que viabilizou a análise do desenvolvimento da legislação falimentar no Direito pátrio ao longo do tempo, sem olvidar a interferência das construções doutrinárias no seu processo evolucionário. Nessa toada, buscou-se uma aproximação entre o sistema normativo atual e a realidade experimentada nesses primeiros 15 anos de vigência da LFRE, o que se fez possível pela utilização de uma metodologia de pesquisa empírica por meio da jurisprudência, na medida em que o Direito, sendo uma realidade histórico-cultural, não admite o estudo de qualquer dos seus ramos sem a noção antecipada da sua evolução dinâmica. Não se pode negar que “todo direito tem seguido a um direito anterior, em desenvolvimento contínuo, de modo que o direito de hoje se apresenta como resultado de um passado e como início de uma evolução futura”. A nossa meta é levar ao aluno uma visão mais pragmática possível dos institutos da falência e da recuperação de empresas, a partir da experiência acumulada à frente da 1ª Promotoria de Justiça de Massas Falidas da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, com atribuição para atuar perante a 1ª, 4ª e 7ª Varas Empresariais da Capital do Rio de Janeiro, foro pelo qual tramitaram e ainda tramitam alguns dos maiores processos de insolvência empresarial do País. Princípios informativos do sistema Em 13 de abril de 2004, o senador da República Ramez Tebet apresentou, perante a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, o seu parecer, junto com um substitutivo, ao Projeto de Lei da Câmara nº 71/2003, que se converteu na Lei nº 11.101/05, destacando na exposição de motivos os princípios que o inspiraram na construção do texto. A doutrina, por seu turno, por indução lógica do Direito Positivado, extraiu outros tantos princípios que alicerçam o Direito das Empresas em Dificuldades. Finalmente, as mais recentes alterações legislativas trouxeram à tona novos pilares principiológicos, que se somam aos anteriores com o fim de corrigir alguns defeitos que se tornaram evidentes ao longo dos primeiros anos de aplicação da LFRE. Para dar os primeiros passos rumo ao conhecimento, analisaremos essa base principiológica sobre a qual se edifica a LFRE. Preservação da empresa viável Não por coincidência, o princípio da preservação da empresa foi o primeiro a ser destacado como um dos pilares do novo sistema recuperacional, sendo um dos poucos a ser expressamente positivado na Lei nº 11.101/05, consoante se vê do seu art. 47. Descendente direta do princípio da função social, a teoria da preservação da empresa é o norte da lei, tornando a falência uma exceção a ser evitada o tanto quanto possível, pois a empresa, quando cumpridora da sua função social, deve ser preservada sempre que possível, pois gustavosp Realce 13 gera riqueza econômica, cria emprego e renda, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento social do País, e é fonte de arrecadação de tributos. Especialmente nesses primeiros anos de vigência, o princípio da preservação da empresa tem sido largamente empregado, não só para suprir as inúmeras lacunas existentes – por exemplo, alteração do plano de recuperação judicial após a homologação – e para ajustar interpretações sobre pontos mais nebulosos, como restringir o poder do juiz ao exame de legalidade do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores, mas também – e aqui reside a nossa maior preocupação – para afastar a aplicação literal de dispositivos da própria Lei nº 11.101/05 e da legislação em geral. É grande o desafio de equilibrar a balança quando de um lado está a necessidade de preservação da empresa e, de outro, a letra clara da lei apontando em direção oposta. Até que ponto devemos afastar-nos da norma expressa e dos demais princípios informadores do sistema para buscar a preservação da empresa, mesmo sendo ela viável do ponto de vista econômico e financeiro? Aliás, também difícil é a tarefa de definir o papel do Poder Judiciário na distinção entre empresas viáveis e inviáveis e o que se revela lícito fazer para protegê-las, afinal, tão profícuo para o interesse público como manter no mercado uma empresa viável, preservando a sua atividade, os seus postosde trabalho e a sua relação com clientes e fornecedores, é retirar dele a empresa que não tem como cumprir o seu papel social, dada a sua inviabilidade econômica, a necessidade de respeito aos contratos e o princípio da intervenção mínima do Estado nas relações privadas, sobretudo com o advento da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019). A LFRE, no nosso sentir, reservou o protagonismo do processo aos credores, uma vez que é vedado ao juízo, ao administrador judicial e ao Ministério Público promover a análise da viabilidade econômica e financeira da sociedade empresária em dificuldade e do plano de recuperação judicial proposto. Em síntese, constatados problemas crônicos na atividade ou na administração da empresa, de modo a inviabilizar a sua recuperação, o Estado deve promover de forma rápida e eficiente a sua retirada do mercado, a fim de evitar a potencialização dos problemas e o agravamento da situação dos que negociam com pessoas ou sociedades com dificuldades insanáveis na condução do negócio. A falência pode ser, sim, o melhor caminho no caso concreto! Ainda que de forma bastante superficial, convém destacar algumas das polêmicas mais sensíveis do sistema que têm sido solucionadas a partir da aplicação, correta ou não, do princípio da preservação da empresa: � quebra da denominada “trava bancária”, afastando os direitos dos credores fiduciários; � proibição de retomada dos bens de terceiros que estão na posse do devedor, essenciais ao seu negócio, mesmo após o decurso do stay period e até da aprovação do plano de recuperação; � ampliação da competência do juízo recuperacional para anular ou suspender atos e processos administrativos contrários ao devedor em recuperação judicial; gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 14 � ampliação da competência do juízo recuperacional para decidir sobre diferentes demandas de interesse das devedoras em recuperação judicial1, inclusive a cobrança de créditos, e � alteração do resultado da deliberação dos credores em assembleia pela anulação de voto “abusivo”. Esses são apenas alguns dos muitos exemplos da aplicação do princípio da preservação da empresa para a solução de controvérsias nos processos de insolvência. Advirta-se, entretanto, que decisões extremas podem prolongar a permanência artificial no mercado de uma empresa manifestamente inviável, maximizar as perdas dos credores, causar concorrência desleal e apenas retardar uma inevitável decretação de falência. Separação dos conceitos de empresa e de empresário Empresa é o conjunto organizado de capital e trabalho para a produção ou circulação de bens ou serviços. Não se deve confundi-la com a pessoa natural ou jurídica que a explora. Assim, por vezes, mesmo em um processo de recuperação judicial, é preciso separá-la da sociedade empresária, alienando a unidade produtiva no mercado, a fim de que outra sociedade empresária dê continuidade ao negócio de forma eficiente, com esteio no parágrafo único do art. 60 da Lei nº 11.101/05. Exemplos vivos dessa separação, entre sociedade empresária e empresa, são os casos Varig, Casa&Video, Delta, Constellation, Abengoa, OAS e OI, pois em todos eles houve a alienação de unidades produtivas isoladas (UPIs), a fim de que outros empresários do setor dessem prosseguimento aos negócios. Proteção aos trabalhadores Os créditos trabalhistas conservaram certos privilégios. Na falência, entre os credores concursais, terão preferência até o montante equivalente a 150 salários-mínimos, mas é bom lembrar que antes do pagamento dos credores concursais, inclusive trabalhadores, hão de ser adimplidas outras obrigações, como as despesas extraconcursais e as restituições. Já na recuperação judicial pouco se vê de vantagem aos trabalhadores, uma vez que a lei, por um lado, proíbe o pagamento dos credores trabalhistas em prazo superior a dois anos, mas de outro, autoriza expressamente o deságio quando o pagamento é feito em até um ano. Logo, é perfeitamente possível, segundo o entendimento dominante, que o PRJ estabeleça que outros 1 Ver TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0024976-71.2020.8.19.0000. 2ª Câmara Cível. Rel. Des. Maria Isabel Paes Gonçalves. Julgado em 21/09/2020. gustavosp Realce gustavosp Realce 15 credores recebam antes dos trabalhadores, assim como a própria remissão parcial dos créditos trabalhistas, o denominado deságio ou haircut 2. Aliás, apenas para fins de registro, recentemente nos deparamos com um plano de recuperação judicial que propunha pagamento dos credores trabalhistas em um ano, mas com um “desconto” de 90%.3 Nessa toada, a proposta de deságio para o pagamento dos créditos trabalhistas torna, ao nosso sentir, inócua a proteção temporal conferida pela legislação. Aliás, em tantos outros casos, preocupado com a repercussão negativa de uma proposta de deságio em relação aos trabalhadores, o devedor deixa “de fora” do processo de recuperação judicial o passivo trabalhista, pois, a exemplo do que existe no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT-1), no Rio de Janeiro, há a possibilidade de parcelamento do passivo trabalhista em prazo superior ao limite previsto no art. 54 da LFRE, pelo denominado plano especial de pagamentos trabalhista (Pept)4, na própria justiça especializada. Redução do custo do crédito no Brasil Diante da criação de um sistema falimentar mais eficaz e célere e da inversão de prioridades na ordem de pagamento, com prevalência do crédito com garantia real sobre o tributário, esperava-se um incremento nos índices de recuperação de crédito, atenuando-se os riscos da inadimplência, com reflexos indiretos no spread bancário. Essa era, contudo, apenas uma aspiração legislativa. Em razão dos incontáveis fatores que influenciam os números da inadimplência no Brasil, dificilmente teremos como estabelecer em um curto prazo uma relação entre a eficácia da LFRE e a redução do spread bancário, especialmente diante das polêmicas envolvendo os limites e as proteções conferidas às garantias fiduciárias e às fidejussórias. Celeridade e eficiência dos processos judiciais É preciso que as normas procedimentais na falência e na recuperação de empresas sejam, na medida do possível, simples, conferindo-se celeridade e eficiência ao processo e reduzindo-se a burocracia que atravanca o seu curso. Nesse sentido, “desjudicializou-se” o procedimento de habilitações e divergências de créditos, autorizou-se a venda imediata dos bens arrecadados na falência logo após o decreto de quebra, 2 Ver Decisão Liminar do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, no Pedido de Tutela Provisória nº 2.778/RJ, publicada no dia 24/06/2020. 3 Recuperação Judicial de Real Auto Ônibus Ltda. e outras, em trâmite perante a 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro sob o nº 0087802-67.2019.8.19.0001. 4 Ato Conjunto nº 11/2019 e Provimento nº 1/2018 da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho; Provimento Conjunto nº 02/2019 do TRT-1; Resolução Administrativa nº 79/2019, do TRT-2; dentre outros. 16 fixou-se um prazo para o encerramento das recuperações judiciais, além de muitas outras regras para assegurar uma tramitação menos demorada desses processos. Nada obstante a nobre intenção do legislador, os processos de falência e de recuperação judicial continuaram lentos e sem a desejada eficiência. Diante desse cenário, a reforma promovida Lei nº 1.4112/2020 trouxe novas importantes regras para imprimir maior celeridade e eficiência. Nas falências, o administrador judicial agora deverá apresentar em 60 dias da sua nomeação um plano de liquidação dos ativos, sempre com um prazo máximo de 180 dias a contar da respectiva arrecadação do bem. Os credores terão o prazo máximo de três anos para apresentaremas suas habilitações ou pedidos de reserva de crédito, sob pena de decadência, e, talvez a regra mais polêmica, foi instituído o denominado fresh start, que permite o pedido de extinção das obrigações do falido ainda durante a tramitação do processo e desde que ultrapassado três anos da sentença de falência. Nos processos de recuperação judicial, proibiu-se mais de uma prorrogação do stay period, concedeu-se aos credores o direito de apresentar um plano de recuperação alternativo e autorizou-se ao juiz a fixação de um prazo menor que dois anos para o encerramento da recuperação judicial5. Segurança jurídica Os dispositivos legais que integram a nova legislação, dentro do possível, foram redigidos com a intenção de evitar múltiplas interpretações e de conferir às partes maior domínio sobre o mérito do processo, reduzindo o poder conferido ao juiz. É evidente que esse esforço é bem- vindo, porém, não foi capaz de evitar o surgimento de inúmeras e gigantescas controvérsias, em especial pela própria complexidade dos temas tratados e das não raras omissões do texto legal, sobretudo em relação ao novel instituto da recuperação de empresas. Nessa linha, a reforma de 2020 procurou dar soluções expressas para alguns pontos do sistema que despertavam acaloradas divergências doutrinárias e jurisprudenciais. A título de exemplo, todos os prazos da LFRE passam a ser contados em dias corridos; só se admitirá uma única prorrogação do prazo de suspensão das execuções contra o devedor; e o produtor rural inscrito no registro público de empresas tem legitimidade para o pedido de recuperação judicial. Participação ativa dos credores A lei buscou dar protagonismo aos credores na solução da insolvência do devedor. É nítido o esforço do legislador de conceder aos credores instrumentos capazes de definir os rumos de um processo de recuperação de empresas ou dos ativos arrecadados em um processo de falência. 5 TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0033080-52.2020.8.19.0000. 14ª Câmara Cível. Des. Rel. José Carlos Paes. Julgado em 29/07/2020. gustavosp Realce 17 Na prática, porém, essa participação tem sido menosprezada por parcela da jurisprudência, de certa forma provocada por algum desinteresse ou desconhecimento por parte dos advogados dos credores. São raros os casos de instalação do comitê de credores, e poucos são os credores que acompanham com efetividade o desenrolar do processo, com exceção dos credores financeiros. Contudo, a reforma de 2020 trouxe novos motivadores para uma participação mais ativa dos credores nos processos de falência e de recuperação judicial, tais como a possibilidade de apresentação de um plano de recuperação alternativo àquele apresentado pelo devedor; e uma ampliação dos poderes dos credores nas hipóteses de alienação de bens do devedor, quer na falência, quer na recuperação judicial. Maximização do valor dos ativos do devedor As regras da LFRE efetivamente buscam maximizar os ativos do devedor em dificuldades. Os bens do devedor falido devem ser alienados em um curto espaço de tempo e sem quaisquer ônus para o adquirente, permitindo-se aos credores e ao juiz decidirem sobre o melhor caminho para a realização desse ativo, sempre contando com a orientação técnica do administrador judicial. Pontue-se que, desde a reforma de 2020, tornou-se possível a alienação integral dos ativos do devedor nos processos de recuperação judicial, por meio da criação de uma UPI única, o que preserva o valor dos intangíveis e favorece o pagamento dos credores. Fresh Start O rápido retorno do empresário falido ao mercado se tornou uma das marcas de reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020. Para tanto, um conjunto de novas regras foi introduzido no sistema, fazendo com que o processo de falência tenha como um dos seus objetivos possibilitar um rápido recomeço ao empresário falido. Entre esses novos dispositivos se destacam o art. 10, § 10, e o art. 158, inciso V, que permitem a declaração de extinção das obrigações do falido após três anos da decretação da falência. Acreditamos, contudo, que esse novo instituto não foi adequadamente positivado, uma vez que ele confunde os conceitos de sócio e de sociedade, afastando-se dos anseios do próprio legislador. Como se sabe, a falência de uma sociedade empresária não impede, ao menos juridicamente, que os seus sócios, diretamente ou por meio de outra pessoa jurídica, explorem atividades empresariais, inclusive aquela que era exercida pela sociedade falida. As dificuldades daqueles sócios de “retornarem” à atividade empresarial sempre foram de cunho econômico, uma vez que, sendo pública a informação de que eles estavam ligados a uma sociedade em processo de falência, raramente conseguiam crédito para si ou para as outras pessoas jurídicas das quais participassem. gustavosp Realce gustavosp Realce 18 Portanto o objetivo nunca foi reabilitar a sociedade falida, mesmo porque, com o encerramento da falência, o próprio juiz, de ofício, determinará o cancelamento do seu CNPJ, com a consequente extinção da sua personalidade jurídica (art. 156). Estabelecidas essas premissas e sem perder de vista que o verdadeiro objetivo sempre foi criar um sistema que possibilitasse aos sócios da sociedade falida rapidamente retornarem ao mercado de crédito, por meio de novas pessoas jurídicas, devemos ter um redobrado cuidado na interpretação das regras que tratam da extinção das obrigações do falido. Como se verá mais adiante, inspirados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, defenderemos o entendimento de que o instituto do fresh start só deve ser aplicado às pessoas naturais atingidas pela falência, e não às sociedades falidas, cujas obrigações só podem ser declaradas extintas com o efetivo encerramento do processo de falência, e não pelo transcurso de três anos da sentença que decretou a quebra. Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte Há, sim, dispositivos na LFRE que desburocratizaram a recuperação judicial das micro e pequenas empresas. Entretanto, mesmo após o advento de algumas modificações, as regras previstas para o chamado plano especial de recuperação judicial colocado à disposição dos pequenos empresários são – perdoem o trocadilho – “especialmente ruins”, o que se revela no baixo número de planos especiais aprovados. A limitação do parcelamento em 36 meses, a reduzida carência de seis meses e a imposição de atualização do passivo pela Selic tornam o plano especial pouquíssimo atraente aos devedores, que podem obter condições muito mais favoráveis em negociação extrajudicial ou no bojo do processo de recuperação judicial comum ou ordinário. Rigor na punição dos crimes relacionados à insolvência empresarial É preciso punir com severidade os crimes falimentares, com o objetivo de coibir as falências e recuperações fraudulentas, em função do prejuízo social e econômico que causam. As penas para os delitos dessa natureza foram aumentadas, a persecução penal e o tempo de prescrição agora se submetem às regras do direito comum, penal e processual penal, porém, na quase totalidade dos estados, a competência para o julgamento das ações penais por crimes falimentares e recuperacionais é reservada às varas criminais comuns, cujos juízes não estão habituados à matéria, possibilitando o retardamento da marcha processual e absolvições divorciadas da prova técnica carreada aos autos. Ademais, Podemos enumerar outros problemas crônicos que impedem a efetividade no combate à prática de crimes relacionados aos processos de insolvência. São eles: 1) a falta de regra clara sobre o conflito aparente de normas penais, sobretudo em relação aos fatos anteriores aos 19 processos de falência e de recuperação judicial e em razão do tipo penal aberto do art. 168, daLFRE; 2) a ausência de delegacias especializadas na apuração desses delitos; 3) a ausência de previsão de um relatório do administrador judicial, no processo de recuperação judicial, para apontamento de responsabilidades criminais; 4) a ausência de previsão de intimação do Ministério Público para acompanhar todos os atos processuais da falência e da recuperação judicial. 20 Falência continua sendo uma espécie de execução coletiva dos bens do devedor empresário insolvente, por meio da qual todos os seus bens são arrecadados e liquidados, para que o produto apurado seja utilizado no pagamento dos credores, obedecendo à ordem legal de preferência. O objetivo primário da falência, portanto, é a satisfação dos credores, o máximo possível, e secundários, a rápida realocação útil dos ativos liquidados na economia e o célere retorno do devedor ao mercado produtivo. Legitimidade ativa para o requerimento de falência O art. 97, da LFRE prevê que o requerimento de falência pode ser iniciado: � a pedido do próprio devedor, empresário individual; � pelo cônjuge do empresário individual falecido, pelo herdeiro ou pelo inventariante; � a requerimento da própria sociedade empresária, por iniciativa dos seus quotistas ou acionistas, na forma da lei e do ato constitutivo ou � por qualquer credor. No entanto, algumas peculiaridades devem ser destacadas para a sua perfeita compreensão. Confissão da insolvência: autofalência Devemos dedicar algumas linhas da nossa atenção para a falência requerida pelo próprio devedor, chamada por muitos de “autofalência”, prevista no art. 97, I e III, c/c art. 105 e seguintes, da LFRE. MÓDULO II – FALÊNCIA gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 22 De pronto, consignamos ser de interesse exclusivamente acadêmico o estudo do requerimento de autofalência formulado por empresário individual, firma individual ou microempreendedor individual. No plano ainda mais abstrato, afigura-se possível a falência do espólio do empresário individual, por iniciativa do cônjuge sobrevivente, de qualquer herdeiro ou do inventariante, desde que formulado em até um ano do óbito, consoante § 1º do art. 96, da LFRE. No sistema anterior, havia um estímulo, quiçá uma obrigação ou um ônus, para o devedor que confessasse a sua insolvência: a possibilidade de concordata suspensiva, que hoje já não mais existe. Contudo, ao optar pelo pedido de autofalência da sociedade empresária (Ltda.) ou da empresa individual de responsabilidade limitada, evita-se a denominada dissolução irregular da sociedade empresária e a incidência dos efeitos da Súmula 435 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que permite o redirecionamento das execuções fiscais propostas em face da pessoa jurídica para os sócios/titulares com poderes de administração. Ocorre que a reforma promovida pela Lei 14.112/2020 instituiu o “fresh start” do falido como um dos objetivos do processo falimentar e, assim, a autofalência pode se tornar uma das soluções para o devedor em dificuldades, sobretudo para o pequeno e para o microempresário com poucos ativos. Em síntese, três anos após decretada a falência o falido pode pedir a declaração de extinção de suas obrigações, o que lhe permitirá um rápido retorno ao mercado, livre das obrigações relativas ao negócio anterior. Há certa polêmica sobre a possibilidade de o sócio minoritário apresentar o pedido de autofalência. Fábio Ulhoa Coelho6 admite esse pedido, justificando que ele estaria pautado exclusivamente no art. 97, III, e não no art. 105, ambos da LFRE. Discordamos desse entendimento, seja porque não há sequer previsão do procedimento a ser adotado nesses casos – há citação? Qual a causa de pedir, insolvência real ou presumida? É possível depósito elisivo? – seja também porque o art. 97, III, da LFRE, é expresso no sentido de que os sócios só poderão fazer o pedido de falência da sociedade “na forma da lei”, que na nossa opinião é a legislação societária, em especial, atendidos os quóruns previstos nos arts. 1.071, VIII, do CC e 122, IX, da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, sem olvidar a incidência do princípio da preservação da empresa. A saída para o sócio minoritário insatisfeito com a posição dos demais de tentar prosseguir com a empresa é a ação de dissolução parcial. De toda forma, há precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), da relatoria do eminente desembargador Pereira Calças, admitindo o prosseguimento de um pedido de autofalência formulado por um sócio com 50% do capital social: 6 Além de Fábio Ulhoa Coelho, outros autores defendem a legitimidade ativa dos sócios minoritários – cotistas e acionistas – para requerer a falência da sociedade empresária que integram, como Luiz Guerra, Amador Paes de Almeida e Sérgio Campinho. Adotamos o caminho apontador por vários outros, entre os quais Ricardo Tepedino, In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coords.). Lei de Recuperação de Empresas e Falências. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 286, 287. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 23 Ementa: Falência. Indeferimento da inicial com extinção do processo, sem resolução de mérito. Ação proposta por sócia cotista, titular de 50% das quotas, contra sociedade limitada, em face do abandono do outro sócio. Anterior indeferimento de autofalência. Apelo provido para, com fundamento no art. 97, III, da Lei n° 11.101/05, determinar-se o regular processamento da falência. Necessidade de citação do outro sócio para, querendo, contestar o pedido.7 A autofalência também é o caminho utilizado pelos liquidantes extrajudiciais de certas sociedades empresárias submetidas a um maior controle pelo Poder Executivo Federal, tais como instituições financeiras, seguradoras e operadoras de plano de saúde. Elas podem ser alvos de intervenção e até de liquidação extraordinária que, em alguns casos, pode converter-se em pedido de autofalência, obedecendo aos requisitos da legislação especial, mormente aqueles previstos no art. 21, “b”, da Lei nº 6.024, de 13 de março de 1974. A pedido dos credores Por razões óbvias, os requerimentos de falência são formulados na sua maioria pelos credores. O credor, quando empresário, na forma do art. 97, § 1º, da LFRE, deverá comprovar que está regularmente inscrito no registro público de empresas mercantis. Para tanto, basta apresentar junto com a petição inicial cópia do seu ato constitutivo devidamente registrado na Junta Comercial. Ocorre que, não raro, o requerente, apesar de ostentar a qualidade de empresário, tem o seu ato constitutivo arquivado no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, seja por erro no ato da criação da sua pessoa jurídica, seja pela falta de migração de registro, em relação às antigas sociedades civis de prestação de serviços constituídas antes do advento da teoria da empresa, positivada no CC de 2002. No primeiro caso, não há como negar a aplicação da vedação prevista no § 1º do art. 97 da LFRE. Entretanto, no segundo, não parece razoável considerar como sociedades irregulares, especialmente equiparando-as às sociedades em comum, aquelas que no ato da sua constituição se registraram perante o órgão competente, mas não promoveram a migração para a Junta Comercial após a entrada em vigor do atual CC. O credor domiciliado no exterior deverá prestar caução arbitrada pelo juiz, na forma do art. 83 do Código de Processo Civil (CPC) e do art. 97, § 2º, da LFRE, a fim de assegurar o pagamento das custas, dos honorários sucumbenciais e de eventual indenização ao requerido, se constatado que houve dolo no requerimento de falência julgado improcedente, consoante art. 101 daLei de Falências. 7 TJSP, Apelação 0004092-38.2010.8.26.0000. Rel. Pereira Calças. Julgamento: 14/12/2010. Câmara Reservada à Falência e à Recuperação de Empresa. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 24 De fato, são raros os requerimentos de falência formulados por credores estrangeiros, uma vez que normalmente eles se valem de sólidas garantias reais ou bancárias, com pouca vantagem no requerimento de falência do devedor em terras estanhas. De toda maneira, qual deve ser o valor da caução? Defendemos, na prática, 40% do valor do crédito, tendo por referência, embora sem embasamento legal expresso, os percentuais máximos para a fixação do ônus de sucumbência e da pena por litigância de má-fé. Credor com garantia real O art. 9º, III, “b”, do Decreto-Lei nº 7.661/45 proibia expressamente o requerimento de falência por credor com garantia real, salvo se ele renunciasse a garantia ou se provasse, antecipadamente, que ela era insuficiente para cobrir o crédito. Tal proibição sempre foi seguida à risca pela jurisprudência dos tribunais e pela doutrina, que destacam, ainda, a falta de interesse de agir. Ocorre que essa proibição não foi renovada e, ao revés, foi substituída pela eloquente afirmativa de que “qualquer credor” poderá requerer a falência do seu devedor, atendidas as demais exigências legais. Não há nenhuma ressalva em relação aos credores com garantia real. Parcela considerável da doutrina, a exemplo do eminente professor Carlos Henrique Abrão,8 ainda considera a falta de interesse como principal obstáculo para o conhecimento do requerimento de falência formulado pelo credor com garantia real, salvo, como antes, se ele renunciar a garantia ou provar que ela é insuficiente. Em sentido contrário, amparados na interpretação literal da expressão “qualquer credor”, muitos doutrinadores, a exemplo de Salomão e Penalva Santos,9 admitem o requerimento de falência por todos os credores que se sujeitam ao concurso (art. 83 da LFRE), inclusive com garantia real. Sobre o tema, trazemos à colação como importante precedente o caso da Churrascaria Porcão, cuja falência foi decretada pelo MM. Juízo da 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro a partir do requerimento de um credor hipotecário.10 Adotamos a tese favorável à legitimidade do credor com garantia real, hipotecária ou pignoratícia, para o requerimento de falência, aduzindo que o seu interesse de agir é incontestável, uma vez que, decretada a falência, ele terá prioridade de pagamento sobre o crédito fiscal, seja ele municipal, estadual ou federal, haverá limitação do privilégio do crédito trabalhista em 150 salários-mínimos, ocorrerá a cessação do aumento do endividamento trabalhista do devedor, bem 8 ABRÃO, Carlos Henrique. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Coordenadores: Carlos Henrique Abrão e Paulo Fernando Campos Salles de Toledo. São Paulo: Saraiva, 2005. 254 p. 9 SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 84. 10 Processo nº 0411258-46.2014.8.19.0001. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 25 como se preservará o patrimônio restante do devedor contra eventuais desvios, comuns no período de insolvência. Recentemente, porém, tivemos de nos manifestar em um requerimento de falência formulado por um credor fiduciário contra a renomada rede de lojas de móveis e de artigos de decoração conhecida como Toque a Campainha.11 A princípio, por possuir direito de propriedade, esse credor não estaria sujeito ao concurso da falência, em razão do art. 85 da LFRE, nem mesmo precisaria “habilitar” o seu crédito. Na oportunidade, citamos um único precedente do TJSP que, anulando a sentença de extinção do processo sem o julgamento do mérito, reconheceu a legitimidade e o interesse do credor fiduciário no pedido de falência, forte no argumento de que, em tese, decretada a falência, ele poderia renunciar a garantia e assim habilitar o seu crédito.12 Ainda não estamos totalmente convencidos. Credor tributário Há intensa discussão acadêmica sobre a legitimidade da Fazenda Pública para formular requerimento de falência do seu devedor empresário. Não há mais como negar que o crédito fiscal está sujeito ao concurso de credores estabelecido pela falência, tanto que o crédito fiscal está estrategicamente posicionado nos incisos III e VII do art. 83, assim como no inciso V do art. 84 da LFRE. As mudanças promovidas pela Lei nº 14.112/2020 foram extremamente profícuas, pois instituíram o incidente de classificação de crédito fiscal e previram expressamente a suspensão das execuções fiscais contra as massas falidas, como também dos respectivos prazos prescricionais. Feitas tais considerações, o fato é que o STJ, desde antes do advento da Lei nº 11.101/05, havia sedimentado o entendimento de que a Fazenda Pública não tem legitimidade para requerer a falência do contribuinte devedor, por ausência de previsão legal específica, característica marcante da atividade administrativa vinculada do agente público. Vejamos: PROCESSO CIVIL. PEDIDO DE FALÊNCIA FORMULADO PELA FAZENDA PÚBLICA COM BASE EM CRÉDITO FISCAL. ILEGITIMIDADE. FALTA DE INTERESSE. DOUTRINA. RECURSO DESACOLHIDO. I – Sem embargo dos respeitáveis fundamentos em sentido contrário, a Segunda Seção decidiu adotar o entendimento de que a Fazenda Pública não tem legitimidade, e nem 11 Processo nº 0079439-91.2019.8.19.0001, em trâmite perante a 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro. 12 TJSP, Apelação Cível nº 1067465-10.2017.8.26.0100. Relator: Araldo Telles; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Julgamento: 24/06/2019; Registro em 25/06/2019. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 26 interesse de agir, para requerer a falência do devedor fiscal. II – Na linha da legislação tributária e da doutrina especializada, a cobrança do tributo é atividade vinculada, devendo o Fisco utilizar-se do instrumento afetado pela lei à satisfação do crédito tributário, a execução fiscal, que goza de especificidades e privilégios, não lhe sendo facultado pleitear a falência do devedor com base em tais créditos (STJ, REsp 164.389/MG, Rel. ministro Castro Filho, Rel. p/ acórdão ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, 2ª Seção, Julgamento: 13/08/2003, DJ 16/08/2004, p. 130). Essa orientação continua firme na jurisprudência, mesmo após a entrada em vigor da Lei nº 11.101/05, conforme se constata pelo precedente abaixo: TRIBUTÁRIO E COMERCIAL – CRÉDITO TRIBUTÁRIO – FAZENDA PÚBLICA – AUSÊNCIA DE LEGITIMIDADE PARA REQUERER A FALÊNCIA DE EMPRESA. 1. A controvérsia versa sobre a legitimidade de a Fazenda Pública requerer falência de empresa. 2. O art. 187 do CTN dispõe que os créditos fiscais não estão sujeitos a concurso de credores. Já os arts. 5º, 29 e 31 da LEF, a fortiori, determinam que o crédito tributário não está abrangido no processo falimentar, razão pela qual carece interesse por parte da Fazenda em pleitear a falência de empresa. 3. Tanto o Decreto-lei n. 7.661/45 quanto a Lei n. 11.101/05 foram inspirados no princípio da conservação da empresa, pois preveem respectivamente, dentro da perspectiva de sua função social, a chamada concordata e o instituto da recuperação judicial, cujo objetivo maior é conceder benefícios às empresas que, embora não estejam formalmente falidas, atravessam graves dificuldades econômico-financeiras, colocando em risco o empreendimentoempresarial. 4. O princípio da conservação da empresa pressupõe que a quebra não é um fenômeno econômico que interessa apenas aos credores, mas sim, uma manifestação jurídico-econômica na qual o Estado tem interesse preponderante. 5. Nesse caso, o interesse público não se confunde com o interesse da Fazenda, pois o Estado passa a valorizar a importância da iniciativa empresarial para a saúde econômica de um país. Nada mais certo, na medida em que quanto maior a iniciativa privada em determinada localidade, maior o progresso econômico, diante do aquecimento da economia causado a partir da geração de empregos. 6. Raciocínio diverso, isto é, legitimar a Fazenda Pública a requerer falência das empresas inviabilizaria a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, não permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 27 trabalhadores, tampouco dos interesses dos credores, desestimulando a atividade econômico-capitalista. Dessarte, a Fazenda poder requerer a quebra da empresa implica incompatibilidade com a ratio essendi da Lei de Falências, mormente o princípio da conservação da empresa, embasador da norma falimentar. Recurso especial improvido (REsp 363.206/MG, Rel. ministro Humberto Martins, 2ª Turma, Julgamento: 04/05/2010, DJe, 21/05/2010). Esse entendimento foi prestigiado no Enunciado nº 56 da Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal (CJF). No entanto, além da expressa legitimidade conferida às Fazendas Públicas para requererem a convolação do processo de recuperação em falência pela Lei 14.112/2020, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em precedente julgado no ano de 2020, deu provimento ao recurso da União Federal para reconhecer a legitimidade ativa da Fazenda Pública quando o pedido de falência do contribuinte estiver fundamentado na denominada execução frustrada, prevista no inciso II do caput do art. 94, da LFRE. Confira-se: FALÊNCIA. PEDIDO FORMULADO PELA UNIÃO FEDERAL. SENTENÇA QUE INDEFERIU A PETIÇÃO INICIAL E JULGOU EXTINTO O FEITO, SEM JULGAMENTO DO MÉRITO, POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR DA FAZENDA PÚBLICA. HIPÓTESE DE ANULAÇÃO. PEDIDO DE FALÊNCIA COM BASE NO ART. 94, II, DA LEI Nº 11.101/05. CASO CONCRETO EM QUE RESTOU FRUSTRADA A EXECUÇÃO FISCAL. ESGOTAMENTO DOS MEIOS DISPONÍVEIS À UNIÃO PARA SATISFAÇÃO DO CRÉDITO. INTERESSE DE AGIR. HIPÓTESE QUE NÃO CONFIGURA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA IMPESSOALIDADE E DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. EFEITOS DE EVENTUAL DECRETAÇÃO DE FALÊNCIA RELEVANTES PARA A PRESERVAÇÃO DA LIVRE CONCORRÊNCIA, EM COMBATE AOS AGENTES ECONÔMICOS NOCIVOS AO MERCADO. FAZENDA PÚBLICA QUE SE SUBMETE AO CONCURSO MATERIAL DE CREDORES, E, PORTANTO, TAMBÉM TEM INTERESSE NO PEDIDO DE QUEBRA. APELAÇÃO PROVIDA PARA ANULAR A SENTENÇA. (TJSP; Apelação Cível 1001975-61.2019.8.26.0491; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Rancharia - 1ª Vara; Data do Julgamento: 30/07/2020; Data de Registro: 31/07/2020) gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 28 Juízo competente Definido quem pode dar o pontapé inicial do processo falimentar, passemos ao estudo do juízo competente para conhecer tanto o requerimento de falência como o pedido de recuperação judicial ou extrajudicial do devedor empresário. Do ponto de vista legal, não há novidade sobre a questão, estando ela disciplinada no art. 3º da LFRE, que considera competente “o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil”. O problema está em definir o que é “principal estabelecimento”. Seria a sede designada no ato constitutivo, o local onde está a maior parte do ativo, o lugar onde funciona a diretoria ou a administração da empresa ou onde o devedor empresário explora a maior parte ou a parte mais relevante dos seus negócios? Evidentemente, a questão só ganha contornos de complexidade quando a devedora possui vários estabelecimentos, tal como uma rede de lojas de departamento ou uma grande construtora e incorporadora, com empreendimentos em diversas cidades. Advirta-se, desde o pórtico, que a competência ora analisada é definida por critérios funcionais, portanto, absoluta, não se prorrogando, nem mesmo pela teoria do fato consumado, conforme sedimentada jurisprudência do STJ: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL CIVIL. PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL AJUIZADO NA COMARCA DE CATALÃO/GO POR GRUPO DE DIFERENTES EMPRESAS. ALEGAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE GRUPO ECONÔMICO. DECLINAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA A COMARCA DE MONTE CARMELO/MG. FORO DO LOCAL DO PRINCIPAL ESTABELECIMENTO DO DEVEDOR. ART. 3º DA LEI 11.101/05. PRECEDENTES. 1. Trata-se de conflito de competência suscitado pelo JUÍZO DE DIREITO DA 2ª VARA DE MONTE CARMELO/MG em face do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS, nos autos de pedido de recuperação judicial formulado por quatro empresas, em litisconsórcio ativo, com a particularidade de que cada uma delas explora atividade empresária diversa e de forma autônoma, inclusive com estabelecimentos próprios. 2. [...] a norma constante do artigo 3º da Lei 11.101/05 encerra regra de competência absoluta, afastando eventual alegação da existência de preclusão quanto à suscitação do conflito. [...] (CC 146.579/MG, Rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 2ª Seção, Julgamento: 09/11/2016, DJe 11/11/2016). gustavosp Realce gustavosp Realce 29 Embora, na prática, alguns juízos sustentem as suas competências a partir de diferentes critérios, defendidos muitas vezes por vertentes doutrinárias dissonantes e minoritárias, quando a discussão chega ao STJ é firme a orientação de que principal estabelecimento é aquele onde ocorre o maior volume de negócios, independentemente do local da sede prevista no ato constitutivo, do local onde está a maior parte do ativo imobilizado ou do local onde se situam a diretoria e os sócios controladores. Vejamos: AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PRINCIPAL ESTABELECIMENTO DO DEVEDOR. 1. Esta Corte, interpretando o conceito de "principal estabelecimento do devedor" referido no artigo 3º da Lei nº 11.101/2005, firmou o entendimento de que o Juízo competente para processamento de pedido de recuperação judicial deve ser o do local em que se centralizam as atividades mais importantes da empresa. [...] (AgInt no CC 157.969/RS, Rel. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 2ª Seção, Julgamento: 26/09/2018, DJe 04/10/2018). Contudo, como já alinhavado, há na doutrina entendimento diverso, e pelo menos um deles está calcado na respeitada posição de Trajano de Miranda Valverde, para o qual o principal estabelecimento é aquele em que se encontra a sede administrativa do devedor. Assim entendia porque a sede administrativa seria o “ponto central dos negócios, de onde partem todas as ordens, que imprimem e regularizam o movimento econômico dos estabelecimentos produtores”.13 Nada obstante, maior dificuldade se apresenta quando a atividade empresarial é pulverizada, em vários locais, por vezes em quase todo o território nacional, sem clara predominância por alguma cidade, como no caso de uma grande construtora e incorporadora de imóveis ou de uma companhia aérea, ou mesmo quando não há um local fixo para a exploração da atividade, como na hipótese de uma sociedade exploradora de derivados de petróleo, com concessões para vários campos de extração, ou de uma sociedade organizadora de grandes shows pelo País. Em hipóteses como tais, a jurisprudência tem oscilado entre o local designado como sede nos atos constitutivos ou o local onde funciona o centro de comando administrativo, ou seja, onde funciona a direção. Confira-se: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL CIVIL. PEDIDO DERECUPERAÇÃO JUDICIAL AJUIZADO NA COMARCA DE CATALÃO/GO POR GRUPO DE DIFERENTES EMPRESAS. ALEGAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE GRUPO ECONÔMICO. 13 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. 84 p. v. 3. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 30 DECLINAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA A COMARCA DE MONTE CARMELO/MG. FORO DO LOCAL DO PRINCIPAL ESTABELECIMENTO DO DEVEDOR. ARTIGO 3º DA LEI 11.101/05. PRECEDENTES. 1. Trata-se de conflito de competência suscitado pelo JUÍZO DE DIREITO DA 2ª VARA DE MONTE CARMELO/MG em face do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS, nos autos de pedido de recuperação judicial formulado por quatro empresas, em litisconsórcio ativo, com a particularidade de que cada uma delas explora atividade empresária diversa e de forma autônoma, inclusive com estabelecimentos próprios. [...]. 7. Considerando o variado cenário de informações que constam dos autos, notadamente a de que a ELETROSOM S/A é a maior sociedade do grupo, e que sua atividade é pulverizada pelo país, deve ser definido como competente o juízo onde está localizada a sede da empresa, ou seja, o juízo da Comarca de Monte Carmelo/MG. [...] (CC 146.579/MG, Rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 2ª Seção, Julgamento: 09/11/2016, DJe 11/11/2016). Não se pode deixar de mencionar um case de grande repercussão e que de certa forma serviu de orientação para os demais. Trata-se do Caso Sharp. Como cediço, a Sharp comercializava os seus produtos em todo o País, mas a sua diretoria ficava em São Paulo, assim como o seu maior volume de vendas, enquanto a única fábrica estava situada na Zona Franca de Manaus. Inicialmente, a concordata foi processada em São Paulo, a pedido da devedora, mas em razão de um pedido de falência distribuído em Manaus, o STJ, no julgamento do Conflito de Competência nº 37.736/SP, decidiu que a competência seria do local onde funcionava a fábrica, ou seja, Manaus. Há de se consignar que a alteração fraudulenta do estabelecimento empresarial, isto é, quando a mudança tiver por finalidade dificultar a ação dos credores, passou a ser considerada como um ato de falência, o que por si só já autoriza o requerimento da sua quebra, no juízo do local do antigo estabelecimento, conforme art. 94, III, “d”, da LFRE. Nos processos de recuperação judicial de grupo econômico, há de se perquirir qual o principal estabelecimento do grupo com um todo, na linha prevista no § 2º do art. 69-G da LFRE. Por derradeiro, com base no art. 6o, § 8º, da LFRE, a distribuição do pedido de falência ou de recuperação judicial ou extrajudicial previne a competência. gustavosp Realce 31 Pressupostos falimentares Como já adiantamos, para que seja decretada a falência, deve ficar comprovada nessa fase cognitiva a presença dos chamados pressupostos falimentares, assim entendidos: a) materiais: � legitimidade passiva e � insolvência. Obs.: impossibilidade de recuperação (nosso posicionamento). formal: � sentença de falência. Durante a tramitação do pedido de falência, o juiz deverá perquirir se todos os pressupostos acima destacados estão presentes. A ausência de qualquer um deles impede a sentença de quebra. Analisemos, pois, cada um desses pressupostos. Legitimidade passiva O art. 1º da LFRE foi muito preciso ao restringir a aplicação do novo regime jurídico da insolvência empresarial, ao dispor que: “Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor”. Diante da literalidade do texto legal, somente o empresário individual (art. 966 do CC), a sociedade empresária (art. 982 c/c art. 966 do CC) e a empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli) estão sujeitos à falência, pois o instituto é essencialmente empresarial.14 Estão excluídas desse regime, de pronto e por indução lógica, as sociedades simples, os empreendedores rurais que não possuírem registro na Junta Comercial, as pessoas jurídicas sem fins lucrativos, como associações e fundações, e as pessoas naturais que não exercerem, de fato e em nome próprio, atividade própria de empresário. Todos esses estão sujeitos ao procedimento de insolvência civil, disciplinado no CPC de 1973, no capítulo referente à execução por quantia certa contra os bens do devedor insolvente. Em relação ao empresário individual, três pontos devem ser abordados. O primeiro é que o empresário individual, no Brasil, é o titular da firma individual e com ela se confunde, ou seja, não 14 Há projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional pretendendo submeter as sociedades simples ao regime jurídico da insolvência empresarial. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 32 podem ser consideradas duas personalidades distintas. A falência, portanto, é do empresário individual (pessoa natural), titular da firma individual (pessoa jurídica). Essa é a posição da jurisprudência: Na verdade, o que se tem é o redirecionamento da execução fiscal para a pessoa física responsável legal pela empresa à época do fato gerador e, agora, discute-se a possibilidade de utilizar como critério para a pesquisa de bens o CNPJ da firma individual do executado. Ou seja, não se pretende analisar fatos e provas, mas o reconhecimento de que no caso de firma individual não existe distinção entre a personalidade jurídica da pessoa jurídica e a da pessoa natural de seu titular, havendo, portanto, confusão entre o patrimônio de um e de outro, o que permitiria a pesquisa dos bens considerando-se o CNPJ da firma individual. Aliás, o próprio STJ já se posicionou no sentido de que a empresa individual é mera ficção jurídica, criada para habilitar a pessoa natural a praticar atos de comércio, com vantagens do ponto de vista fiscal, sendo que o patrimônio da empresa individual se confunde com o de seu sócio, conforme julgado a seguir: (fls. 233/236e) (STJ, ministra Relatora Assusete Magalhães. Decisão Monocrática no AgInt no Recurso Especial nº 1.397.766 – RS. 01/08/2017). Nesse sentido: TJ/MT, Ap. Cív. 92908/68, Quinta Câmara Cível, Des. Rel. Carlos Alberto Alves da Costa. Julgamento: 07/02/2007. O segundo ponto é o fato de ser possível a decretação da falência do espólio deixado pelo empresário individual, desde que o pedido seja feito em até um ano da data do óbito do empresário (art. 96, § 1º, in fine, da LFRE), fato raríssimo e que jamais presenciamos, mesmo após vários anos de atuação na seara falimentar. O último registro é sobre a possibilidade de decretação da falência do empresário individual menor de 18 anos, algo proibido no sistema anterior. Tanto o absolutamente incapaz, autorizado pelo art. 974 do CC, como o maior de 16 anos, emancipado por força do art. 5º, V, do CC, estão sujeitos à decretação da falência. Em relação à Eireli, sem adentrar com desnecessária profundidade nas questões atreladas ao Direito de Empresa, o fato é que ela pode ser constituída para explorar atividade empresarial ou não empresarial, o que implica a necessidade do exame concreto da sua natureza. O registro na Junta Comercial só terá natureza constitutiva da qualidade de empresário para aqueles que exploram atividade rural e, em outra linha, só terão mercantilidade forçada as pessoas jurídicas que se revestirem da forma de sociedade por ações. Assim, constatado que a atividade explorada por uma Eireli não é própria do empresário, por exemplo, funcionando gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 33 como um pequenoescritório de arquitetura, mesmo registrada na Junta Comercial, ela não estará sujeita à falência. Sem nos aprofundarmos no seu conceito, devemos considerar empresárias e, com isso, sujeitas à falência, todas as sociedades que explorem atividades de produção de bens, como as indústrias; de circulação de bens, como as concessionárias de veículos e as lojas de roupas; e de prestação de serviços, como as imobiliárias, os hotéis e as construtoras. Também serão consideradas empresárias as sociedades que explorem atividade intelectual, artística, literária ou científica quando a estrutura empresarial se sobrepuser à atividade, o que normalmente fica claro quando a atividade-fim não é exercida significativamente pelos sócios, mas, sim, por profissionais contratados.15 É o caso de escolas, laboratórios e hospitais. Ressalvados os casos de confusão patrimonial, defendemos a impossibilidade de litisconsórcio passivo nos requerimentos de falência, ainda que sejam devedores solidários. Entre outras razões de ordem processual, destacamos que a lei se refere ao devedor sempre no singular e que, quando quis admitir o litisconsórcio, foi expressa, ex vi do art. 94, § 1º da LFRE. Teoria dos agentes econômicos É cediço que a LFRE disciplina a insolvência empresarial, tendo por alicerce a denominada teoria da empresa, encampada no Brasil pelo Código Civil de 2002. Ocorre que recentes e polêmicas decisões têm autorizado o processamento de pedidos de recuperação judicial de não empresários, sob o argumento de que a teoria da empresa já estaria divorciada da nossa realidade e de que a LFRE deveria ser aplicada aos denominados “Agentes Econômicos”, conceito esse que englobaria as sociedades simples, as associações e as fundações, os últimos reconhecidamente sem finalidade lucrativa. O principal objetivo dessa linha de pensamento é permitir que alguns clubes de futebol, hospitais e entidades de ensino, criados como associações sem fins lucrativos, possam pedir recuperação judicial, tal como permitido aos empresários. A decisão mais emblemática favoreceu a Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, uma associação civil sem fins lucrativos e com o título de entidade filantrópica, inclusive para obtenção de certas imunidades tributárias16. Não se pode olvidar que essa é uma via de mão dupla, ou seja, adotada a denominada teoria dos agentes econômicos, estes agentes econômicos poderão até ter acesso ao instituto da recuperação de empresas, mas também estarão ao alcance da falência. A adoção dessa teoria foi profundamente discutida e, o mais importante, rejeitada pelos legisladores, durante a tramitação dos projetos de lei que, aglutinados, resultaram na aprovação da Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020. 15 Nesse sentido, ver os Enunciados nº 193, nº 194 e nº 195 do CJF. 16 TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0031515-53.2020.8.19.0000. 6ª Câmara Cível. Des. Rel. Nagib Slaibi Filho. Julgado em 02/09/2020. Maioria de Votos. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 34 Sociedades empresárias dissolvidas irregularmente É muito comum, infelizmente, nos depararmos com um requerimento de falência direcionado contra uma sociedade empresária que só existe no papel, ou seja, que já foi dissolvida de forma irregular, com o total desaparecimento do ativo, circulante e imobilizado, e da escrituração, sem baixa na Junta Comercial, para desespero dos credores, que sequer têm meios de descobrir o paradeiro de bens eventualmente desviados. Decretada a falência, defendemos a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e o oferecimento de denúncia criminal contra os administradores pela prática do crime previsto no art. 168, § 1º, da LFRE. Nesse sentido: O inconformismo não prospera. 1. O Tribunal local reconheceu, com base na análise dos elementos de convicção acostados aos autos, a responsabilidade pessoal da insurgente (sócia da empresa falida) em razão da falida ter encerrado suas atividades sem a prévia observância dos procedimentos legais, motivo pelo qual adequada o reconhecimento da responsabilidade da sócia administradora pelos danos causados decorrentes da má administração e encerramento irregular da falida. Confira-se os seguintes trechos do acórdão (fl. 133/139, e-STJ): No apelo, a parte apelante reitera que cumpriu suas obrigações decorrentes da lei falimentar; pela inexistência de habilitações não há obrigações a serem assumidas pelos sócios; a responsabilidade da administração seria do outro sócio e não há prova de sua responsabilidade. Adianto que a sentença deve ser mantida com o desprovimento do apelo. Diz a sentença recorrida e cujas razões as adoto: Trata-se de ação de responsabilidade ajuizada pelo Síndico contra os sócios da falida, objetivando a responsabilização e ressarcimento dos danos causados contra a massa, com fundamento na dissolução irregular, falta de documentação contábil e não cumprimento do art. 104 da Lei n.° 11.101/05. [...] Quanto ao não cumprimento do dever imposto aos sócios no art. 102 da lei nº 11.101/05, em que pese Neusa tenha prestado tais declarações e inclusive declarado que a sociedade era administrada por Angelo (fl. 37), este sócio as omitiu. No que tange à falta de apresentação dos livros contábeis, em que pese a sócia Neusa tenha afirmado que a documentação estava com o outro sócio (fl. 32), tal alegação vai de encontro à contestação apresentada por ocasião do pedido falimentar, quando afirmou que ele não mantinha contato com a empresa há aproximadamente dois anos (fl. 137). Tais contradições evidenciam que a sócia Neusa apresenta seus fundamentos conforme sua conveniência processual, pois se Ângelo estava afastado da empresa, não é crível a alegação de que ele administrava a empresa de fato e que os livros estariam sob a posse gustavosp Realce gustavosp Realce 35 dele. Tal justificativa é frágil para afastar a responsabilidade da sócia Neusa de entregar os livros, especialmente porque a sede da empresa confundia-se com sua residência, conforme apurou o oficial de justiça. Ademais, se Ângelo realmente estivesse afastado da administração, pouco crivei que não tivesse arguido tal fato em seu favor em vez de simplesmente optar pela revelia. Tais elementos evidenciam que ambos os sócios agiram de forma ruinosa na condução do objetivo social da empresa falida, frustrando a arrecadação dos bens e consequentemente o pagamento dos credores, ficando prejudicada a localização de outros bens diante da inexistência de escrituração contábil regular por parte daquela. [...] Então, havendo prova da dissolução irregular e o devido processo judicial, com a possibilidade da realização das provas a ele inerentes e restando determinados os atos ilícitos realizados frente à administração da empresa, como dito na sentença, resta apenas de manter a responsabilidade pelos danos causados e na forma apontado na sentença a sua reparação. Assim, é mantida na integralidade da sentença recorrida. Sendo assim, para acolhimento do apelo extremo, no sentido de que a insurgente teria cumprido com todas as obrigações constantes na lei falimentar, seria imprescindível derruir a afirmação contida no decisum atacado, o que, forçosamente, ensejaria em rediscussão de matéria fática, incidindo, na espécie, o óbice da Súmula 7 deste Superior Tribunal de Justiça, sendo manifesto o descabimento do recurso especial (STJ, AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 351.956-RS. Relator: ministro Marco Buzzi. Julgamento: 18/03/2015).17 Sociedades empresárias não sujeitas à LFRE Não são todas as sociedades empresárias que estão sujeitas à LFRE. Pelo menos essa é a primeira impressão que se extrai da redação do seu art. 2º: Art. 2º Esta Lei não se aplica a: I – empresa pública e sociedade de economia mista;II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores. 17 TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0024899-72.2014.8.19.0000. Des. Gabriel de Oliveira Zefiro. Julgamento: 03/11/2014. 13ª Câmara Cível. gustavosp Realce gustavosp Realce 36 Apesar da barulhenta divergência doutrinária, no âmbito jurisprudencial a interpretação desse dispositivo legal não parece tão tormentosa. As empresas públicas e as sociedades de economia mista são empresárias, mas sempre estiveram fora do regime falimentar. De início, a proibição advinha do art. 242 da Lei nº 6.404/76, revogado pela Lei nº 10.303, de 31 de outubro de 2001. Até a edição da nova LFRE, não tínhamos nenhum dispositivo legal tratando do tema de forma clara. Contudo, o inciso I do art. 2º, da Lei nº 11.101/05 voltou a trazer paz ao tema, salvo para aqueles que sustentam a sua inconstitucionalidade, por aparente violação do art. 173, § 1º, II, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), c/c o art. 195, da própria Lei nº 11.101/05, que autoriza a falência das concessionárias de serviços públicos. Não enxergamos nenhuma inconstitucionalidade, na medida em que as empresas públicas e as sociedades de economia mista só atuam no campo empresarial quando houver relevante interesse público ou assunto inerente à segurança nacional. Não há nada de inconstitucional em excluí-las do regime jurídico da insolvência empresarial, sob o fundamento da prevalência do interesse público sobre o privado, estando a opção do legislador infraconstitucional em perfeita harmonia com a nossa Carta Magna.18 De toda maneira, o Supremo Tribunal Federal afetou ao Plenário o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.249.945/MG, que teve repercussão geral reconhecida por unanimidade pelo Plenário Virtual da Corte (tema 1101), contra acórdão do TJGM que negou o pedido de recuperação judicial da Empresa de Serviços, Obras e Urbanização do Município de Montes Claros. Mais uma vez lembramos que, se a Empresa Pública e a Sociedade de Economia Mista tiverem direito ao instituto da recuperação judicial, também estarão sujeitas à falência. A interpretação do inciso II do art. 2º da LFRE já inspira mais cuidados, sendo oportuna a sua análise por etapas, dada a multiplicidade de entidades por ele abrangida. As instituições financeiras, as cooperativas de crédito e os consórcios estão sujeitos às regras de intervenção e liquidação extrajudiciais previstas na Lei nº 6.024/74. Conjugando as duas leis, chegamos à conclusão de que tais sociedades estão sujeitas indiretamente à falência, na medida em que o único caminho para elas chegarem à falência é por meio do pedido de “autofalência” formulado pelo liquidante extrajudicial, devidamente autorizado pelo presidente do Banco Central do Brasil, o que se dá nas hipóteses previstas no art. 12, “d”, e no art. 21, “b”, da Lei nº 6.024/74. Vejamos: Art. 12. À vista do relatório ou da proposta do interventor, o Banco Central do Brasil poderá: [...] d) autorizar o interventor a requerer a falência da entidade, quando o seu ativo não for suficiente para cobrir sequer metade do valor dos créditos quirografários, ou quando julgada inconveniente a liquidação 18 Nesse sentido: COELHO, Fábio. Curso de direito comercial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 248. v. 5. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 37 extrajudicial, ou quando a complexidade dos negócios da instituição ou, a gravidade dos fatos apurados aconselharem a medida. As sociedades de previdência complementar abertas, por força do art. 73 da Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001, e as sociedades de capitalização, em razão do art. 4º do Decreto-Lei nº 261, de 28 de fevereiro de 1967, estão sujeitas ao mesmo regime imposto às seguradoras, as quais, por sua vez, a partir da Lei nº 10.190, de 14 de fevereiro de 2001, a qual alterou o Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, passaram a se sujeitar à falência nos mesmos termos das instituições financeiras. A única diferença é que a intervenção e a liquidação extrajudicial são promovidas pela Superintendência de Seguros Privados (Susep). As sociedades operadoras de plano de saúde estão reguladas pela Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que, no seu art. 23, também autoriza a falência nas mesmas hipóteses previstas para as instituições financeiras, sendo que desta feita todo o procedimento é supervisionado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Por fim, as entidades fechadas de previdência complementar, por força do art. 47 da Lei Complementar nº 109/01, não estão sujeitas à falência. Insolvência A LFRE pouco alterou os critérios caracterizadores da insolvência. Continuou prestigiada a insolvência ficta ou presumida, isto é, para a decretação da falência, é irrelevante a discussão se o ativo do devedor é inferior ao seu passivo. Além da própria confissão de insolvência, denominada de autofalência, a lei definiu, no seu art. 94, três critérios distintos para presumir que o devedor está insolvente. São eles: a impontualidade, a execução frustrada e os atos de falência. De início é importante destacar que o requerente deve informar claramente na sua petição inicial qual o fundamento do seu requerimento, ou seja, impontualidade, execução frustrada ou atos de falência. Outrossim, questão interessante e por vezes ignorada pela doutrina, mas merecedora de toda a nossa atenção, é saber se o requerimento de falência pode basear-se em mais de um fundamento, ou seja, em mais de um inciso do art. 94 da LFRE. Não há uma resposta segura para essa indagação, mas, em tese, não enxergamos qualquer empecilho legal, em face da unicidade procedimental. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 38 Impontualidade Seguindo uma tradição do direito pátrio, a nova lei reproduziu como principal elemento caracterizador da insolvência a impontualidade, traçando, contudo, novos contornos. Dispõe o art. 94, I, da LFRE, que: Art. 94. Será decretada a falência do devedor que: I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência; Como se pode notar, quase nada muda em relação ao sistema anterior, salvo no que concerne ao valor do título ou títulos que municiam o requerimento. Antes, o pedido de falência pela impontualidade poderia ter como alicerce um título executivo qualquer que fosse o seu valor, dando azo a requerimentos de falência de grandes sociedades empresárias a partir de dívidas de baixíssimos valores, em uma clara demonstração de que a ameaça de falência estava sendo usada como mero instrumento de coação para cobrança de dívidas contra devedores solventes. Pelas novas regras, porém, a dívida deve superar a marca dos 40 salários-mínimos na data do requerimento de falência. Nessa linha, não tem mais acolhida na jurisprudência, sobretudo do STJ, a tese de abuso de direito, escorada no fato do credor requerer a falência do devedor com grande patrimônio, a partir de um crédito inadimplido de baixo valor. Ultrapassada a marca dos 40 salários-mínimos é legítima a opção do credor em requerer a falência pela impontualidade, mesmo de devedores de grande envergadura econômica, como na hipótese abaixo, em queo credor de duplicatas no valor de R$ 160.000,00 requereu a falência das Lojas Americanas: DIREITO EMPRESARIAL. FALÊNCIA. IMPONTUALIDADE INJUSTIFICADA. ART. 94, INCISO I, DA LEI N. 11.101/2005. INSOLVÊNCIA ECONÔMICA. DEMONSTRAÇÃO. DESNECESSIDADE. PARÂMETRO: INSOLVÊNCIA JURÍDICA. DEPÓSITO ELISIVO. EXTINÇÃO DO FEITO. DESCABIMENTO. ATALHAMENTO DAS VIAS ORDINÁRIAS PELO PROCESSO DE FALÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Os dois sistemas de execução por concurso universal existentes no direito pátrio – insolvência civil e falência –, entre outras diferenças, distanciam-se um do outro no tocante à concepção do que seja estado de insolvência, necessário em ambos. O sistema falimentar, ao contrário da insolvência civil (art. 748 do CPC), não gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 39 tem alicerce na insolvência econômica. 2. O pressuposto para a instauração de processo de falência é a insolvência jurídica, que é caracterizada a partir de situações objetivamente apontadas pelo ordenamento jurídico. No caso do direito brasileiro, caracteriza a insolvência jurídica, nos termos do art. 94 da Lei n. 11.101/2005, a impontualidade injustificada (inciso I), execução frustrada (inciso II) e a prática de atos de falência (inciso III). 3. Com efeito, para o propósito buscado no presente recurso – que é a extinção do feito sem resolução de mérito –, é de todo irrelevante a argumentação da recorrente, no sentido de ser uma das maiores empresas do ramo e de ter notória solidez financeira. Há uma presunção legal de insolvência que beneficia o credor, cabendo ao devedor elidir tal presunção no curso da ação, e não ao devedor fazer prova do estado de insolvência, que é caracterizado ex lege. 4. O depósito elisivo da falência (art. 98, parágrafo único, da Lei n. 11.101/2005), por óbvio, não é fato que autoriza o fim do processo. Elide-se o estado de insolvência presumida, de modo que a decretação da falência fica afastada, mas o processo converte-se em verdadeiro rito de cobrança, pois remanescem as questões alusivas à existência e exigibilidade da dívida cobrada. 5. No sistema inaugurado pela Lei n. 11.101/2005, os pedidos de falência por impontualidade de dívidas aquém do piso de 40 (quarenta) salários-mínimos são legalmente considerados abusivos, e a própria lei encarrega-se de embaraçar o atalhamento processual, pois elevou tal requisito à condição de procedibilidade da falência (art. 94, inciso I). Porém, superando-se esse valor, a ponderação legal já foi realizada segundo a ótica e prudência do legislador. 6. Assim, tendo o pedido de falência sido aparelhado em impontualidade injustificada de títulos que superam o piso previsto na lei (art. 94, I, Lei n. 11.101/2005), por absoluta presunção legal, fica afastada a alegação de atalhamento do processo de execução/cobrança pela via falimentar. Não cabe ao Judiciário, nesses casos, obstar pedidos de falência que observaram os critérios estabelecidos pela lei, a partir dos quais o legislador separou as situações já de longa data conhecidas, de uso controlado e abusivo da via falimentar. 7. Recurso especial não provido (STJ, REsp. 1433652/RJ, Rel. ministro Luiz Felipe Salomão. 4ª Turma. Julgamento: 18/09/2014. DJe. 29/10/2014).19 19 REsp 1532154/SC. Rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, Julgamento: 18/10/2016, DJe 03/02/2017. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 40 A lei admite expressamente a possibilidade de litisconsórcio ativo entre diversos credores do mesmo devedor empresário, a fim de se alcançar o mínimo legal, consoante o § 1º do art. 94 da LFRE. Entretanto, não temos notícia da sua ocorrência. Como antes, todos os títulos que instruem o pedido de falência por impontualidade devem estar regularmente protestados. Saliente-se, nesse contexto, que a jurisprudência edificada sob a influência da legislação revogada (art. 10 do Decreto-Lei nº 7.661/45) admitia o protesto cambiário no lugar do falimentar.20 Ocorre que o atual § 3º do art. 94 da LFRE, diversamente do sistema anterior, assevera que os títulos, “em qualquer caso, devem estar acompanhados dos respectivos instrumentos de protesto para fim falimentar, nos termos da legislação específica”. Inicialmente, parte da jurisprudência, sobretudo em precedentes do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), passou a exigir o protesto especial falimentar, não permitindo que o protesto cambiário o substituísse. Esse, no entanto, não é o entendimento da jurisprudência já pacificada. Para amparar o pedido de falência por impontualidade, basta que no instrumento de protesto, especial ou cambiário, esteja identificada a pessoa que recebeu a notificação em nome do devedor, no seu endereço, mesmo sem poderes especiais para tanto, na forma da Súmula 361 do STJ, que possui a seguinte redação: “A notificação do protesto, para requerimento de falência da empresa devedora, exige a identificação da pessoa que a recebeu”. A intimação ficta, por edital, somente nas hipóteses em que o devedor estiver em local incerto e não sabido. É importante lembrar que até mesmo os títulos executivos judiciais, quando utilizados para o requerimento de falência pela impontualidade, podem e devem ser protestados para fim falimentar. Saliente-se, ainda, que não é mais possível o requerimento de falência com base em “protesto por empréstimo”, isto é, quando um credor se aproveita do protesto tirado por outro credor contra o mesmo devedor (art. 4º do Decreto-Lei nº 7.661/45). O § 3º do art. 94 da LFRE é claro ao dispor que, em qualquer caso, os títulos devem estar acompanhados dos “respectivos” instrumentos de protesto. Execução frustrada A execução frustrada sempre foi um dos caminhos para provar a insolvência do devedor. No sistema anterior, ela estava inserida, incorretamente, no rol de atos de falência. Contudo, ganhou prestígio na nova legislação, estando hoje disciplinada como uma forma autônoma de caracterização da insolvência. Assim dispõe o art. 94, II, da LFRE: “Art. 94. Será decretada a falência do devedor que: [...] II – executado por qualquer quantia líquida, não paga, não deposita e não nomeia à penhora bens suficientes dentro do prazo legal”. 20 RT 543/115. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 41 Note-se que não há exigência de valor mínimo para o título ou títulos que escoram o pedido de falência. Basta instruir a exordial com a certidão de execução frustrada, isto é, com a declaração do cartório do juízo onde se processou a execução, de que o executado, embora citado, não pagou, não depositou nem ofereceu bens à penhora no prazo legal, a chamada “tríplice omissão”. A fim de harmonizar a legislação falimentar com as inúmeras modificações do nosso sistema processual, defendemos que para o requerimento de falência com esse fundamento deve-se exigir algo mais, além daquela tríplice omissão. Como pelo atual sistema processual o executado pode, mesmo sem garantir o juízo, apresentar embargos à execução, conforme art. 914 do CPC, não há como se admitir o pedido de falência enquanto eles não forem julgados, dado o risco de decisões conflitantes. Assim, a certidão de execução frustrada prevista no § 4º do art. 94 da LFRE deverá informar, além daquelas três omissões tradicionais, uma quarta: a inexistência de embargos à execução pendentes de julgamento. É importante que a certidão também mencione o estado do processo de execução, ou seja, se ele está suspenso ou extinto. A prova disso, porém, pode ser feita por qualquer outro meio. Relembre-se, a rigor, que não há necessidade de se extinguirdefinitivamente a execução singular para proceder ao requerimento de falência, bastando a sua suspensão.21 Também não se admite o requerimento de falência com base em uma execução provisória frustrada ou a utilização de certidão de execução frustrada de terceiro, pelos mesmos fundamentos invocados para não se admitir o protesto “por empréstimo”. Por fim, não se exige que o credor, outrora exequente, demonstre que esgotou todas as possibilidades de encontrar bens do devedor no processo de execução. Este é o entendimento do TJSP: Pedido de falência. Execução frustrada. Art. 94, II, da Lei nº 11.101/2005. Insolvência econômica da empresa devedora que não constitui pressuposto à decretação de quebra sob tal fundamento, sendo suficiente a tanto a simples configuração de situação legal objetivamente autorizadora desse efeito. Falência que requer nesse caso tão somente a presença concomitante de três requisitos no âmbito da execução singular promovida contra a devedora: falta de pagamento e a par disso a ausência de depósito do valor cobrado, bem como de nomeação de bens suficientes à penhora, sempre dentro do prazo legal. Desnecessidade de esgotamento das tentativas de localização de bens, nos autos da execução singular. Suspensão desse processo devidamente demonstrada, conforme enunciado da Súmula nº 48 deste E. Tribunal de Justiça. Pedido falimentar regularmente instruído com certidão indicativa dessa circunstância. Decisão de Primeiro Grau, que decretou a quebra, 21 STJ, REsp. 125.399/RS. 3ª Turma. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 42 mantida. Agravo de instrumento da ré não provido (TJSP; Agravo de Instrumento 2050638-47.2016.8.26.0000; Relator: Fabio Tabosa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Santos – 2ª Vara Cível; Julgamento: 24/08/2016; Registro: 27/08/2016). Atos de falência Seguindo a tradição, a LFRE conserva a possibilidade de o requerimento de falência ocorrer com base na prática de certos atos pelo devedor, condutas essas que receberam o nome de atos de falência. O art. 94, III, da LFRE traz um rol taxativo de condutas que, se adotadas pelo devedor empresário, fazem presumir a sua insolvência. O credor não precisa estar com o seu título vencido, muito menos protestado, para requerer a falência com base nesse fundamento. Nas próximas linhas, resumiremos o conteúdo de cada conduta, na ordem constante da lei: a) Liquidação precipitada – no fundo, a lei vê a malícia do empresário que pretende apurar o ativo sem pagar o passivo. Devemos ressaltar que as chamadas “queimas de estoque” não constituem maliciosa liquidação de que trata este inciso. O que a caracteriza é a venda de bens indispensáveis à continuação da empresa (ativo não circulante), especialmente por valores muito abaixo dos praticados no mercado; b) Negócio simulado – com o negócio simulado o devedor tenta furtar a garantia comum dos credores. Comprovada a transferência simulada de bens e decretada a falência, os credores, o Ministério Público e, sobretudo, o administrador judicial poderão buscar a ineficácia desses negócios; c) Trespasse irregular – a lei pretende coibir que o devedor transfira para terceiro o seu estabelecimento empresarial e, com isso, fique sem bens suficientes para pagar o passivo. O trespasse deve seguir rigorosamente as regras previstas nos arts. 1.144 a 1.145 do CC, também sob pena de ineficácia; d) Transferência irregular do principal estabelecimento – trata-se de uma inovação. Só se caracteriza quando comprovado que esse comportamento tem como objetivo a fuga do devedor, isto é, quando buscar dificultar o acesso dos credores; e) Falsa garantia – a falência com base nesse inciso só pode ser decretada quando o devedor procurar favorecer um credor em detrimento dos outros, e não quando se trate de operação nova, tendente a desafogar uma situação passageira de falta de capital de giro, especialmente mediante a entrada de “dinheiro novo”; f) Abandono do estabelecimento – tem por finalidade afastar a ação dos credores e só se caracteriza quando o titular não deixar procuradores para representá-lo; g) Descumprimento da recuperação judicial – também é uma novidade. Caso o devedor em recuperação judicial cumpra as obrigações acordadas para os dois primeiros anos, o gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 43 processo será encerrado, e a fiscalização passará a ser feita exclusivamente pelos seus credores. Assim, se o devedor descumprir qualquer obrigação assumida no plano de recuperação judicial, depois de encerrado o processo, seja de dar, fazer ou não fazer, além da opção de buscar a tutela específica em um processo de execução, o credor poderá requerer a falência do devedor. Há de se ressaltar que, em verdade, não se tem notícia de requerimentos de falência baseados exclusivamente na prática de atos de falência. Isso decorre não só da dificuldade probatória, como também pela existência de fundamentos mais cômodos, seguros e objetivos para se requerer a falência do devedor: a impontualidade e a execução frustrada. Rito processual da fase pré-falimentar O rito processual está disciplinado nos arts. 94 a 98, da LFRE, aplicando-se supletivamente as normas do Código de Processo Civil. Não há mais espaço para discussões sobre a forma de contagem dos prazos a partir da entrada em vigor da Lei nº 14.112/20. A contagem é sempre em dias corridos. Distribuído em bons termos o pedido de falência, o juiz fixará os honorários de sucumbência para a hipótese de depósito elisivo, normalmente em 10%, e determinará a citação do devedor para se defender em 10 dias corridos, na forma do art. 98 da LFRE. Caso a contestação não seja apresentada no prazo legal, aplicam-se todos os efeitos da revelia, inclusive presumindo-se verdadeiros os fatos narrados pelo requerente, com base no art. 344 do CPC. Caso em contestação o réu apresente uma defesa preliminar, prejudicial ao exame do mérito, o autor será intimado para réplica, também no prazo de 10 dias, em razão do princípio de paridade de armas. A defesa pode escorar-se em qualquer fundamento, até em respeito ao princípio da preservação da empresa, porém a mais vista é a alegação de “exceção de contrato não cumprido”. Aliás, o art. 96 traz um rol meramente exemplificativo das matérias que podem ser alegadas em defesa quando o pedido é fundado na impontualidade. A rigor, à exceção da matéria articulada no inciso VI, vício no protesto, todas as demais, se comprovadas, também impedem a decretação da falência quando o fundamento do requerimento de falência for execução frustrada ou ato de falência. Uma das matérias de defesa que despertam grande controvérsia é a prevista no inciso VIII do art. 96 da LFRE, a “cessação das atividades empresariais mais de dois anos”. Defendemos que essa tese só pode ser acolhida nos exatos termos da lei, ou seja, se a cessação das atividades estiver devidamente arquivada na Junta Comercial. Nesse sentido: gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 44 No caso concreto, o pedido de falência está baseado na hipótese de execução frustrada,nos termos do artigo 94, inciso II, da Lei nº 11.101/2005. Além disso, a mera interrupção informal das atividades não configura a cessação de atividades empresariais prevista nos artigo 96, inciso VIII, da Lei nº 11.101/2005. Necessidade de comprovação da cessação das atividades empresariais por meio de documento emitido pelo órgão de registro competente, o que não ocorreu no caso concreto. Não se deve julgar improcedente o pedido de falência com fulcro no artigo 96, inciso VIII, da Lei nº 11.101/2005. [...] (TJSP; Apelação 1129923- 68.2014.8.26.0100; Relator: Carlos Dias Motta; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Julgamento: 29/03/2017; Registro: 31/03/2017). No prazo para defesa o devedor poderá formular pedido de recuperação judicial, com fulcro no art. 95 da LFRE, devendo atentar para os rigores dos arts. 48 e 51 da própria LFRE. Uma vez preenchidos os requisitos legais, o juiz deferirá o processamento da recuperação e suspenderá o pedido de falência, com fulcro no art. 6º, da LFRE, mesmo que tenha sido apresentada, concomitantemente, uma defesa direta contra o pedido de quebra. Em razão da complexidade de um pedido de recuperação judicial, sobretudo em função dos inúmeros documentos que devem instruí-lo, a sua utilização como defesa de um requerimento de falência só ocorre por mera coincidência. Já nos deparamos, contudo, com um pedido de recuperação judicial mal instruído no prazo da contestação, com solicitação de mais prazo para apresentação dos documentos faltantes, com o que não nos opomos em razão do princípio da preservação da empresa. Em muitas ocasiões, o requerimento de falência está calcado em título executivo cuja causa debendi está sendo discutida em processo em trâmite perante outro juízo, iniciado antes do requerimento de quebra. Nessa hipótese, é prudente a suspensão do requerimento de falência, a fim de evitar a possibilidade de decisões judiciais conflitantes. Nesse sentido: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUSPENSÃO DE PROCESSO FALIMENTAR EM VIRTUDE DE AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO BANCÁRIO. POSSIBILIDADE. PREJUDICIALIDADE RECONHECIDA. PODER GERAL DE CAUTELA DO JUIZ. (…). AGRAVO IMPROVIDO. 1. Ao permitir que a ação falimentar fosse suspensa, o Magistrado agiu de acordo com seu poder geral de cautela, reconhecendo a prejudicialidade no gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 45 caso concreto, motivo pelo qual não se vislumbra ofensa à legislação federal. [...] (AgRg no AREsp 695.930/PR, Rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, Julgamento: 04/08/2016, DJe 12/08/2016). É óbvio que, na hipótese de o título estar com a exigibilidade suspensa por decisão de outro juízo, proferida antes do requerimento, não deve haver a mera suspensão da ação de falência, mas, sim, o acolhimento da defesa prevista no art. 96, V, da LFRE, com a improcedência do pedido. Enfrentamos essa questão envolvendo uma cláusula arbitral. Depois de formulado um pedido de falência baseado em diversas duplicatas sem aceite, mas acompanhadas dos comprovantes da prestação de serviços, instaurou-se um procedimento arbitral, a pedido do devedor, para discussão do contrato que serviu de causa debendi daquelas duplicatas. Não fosse a cláusula arbitral, caberia ao juízo onde tramitava o requerimento de falência analisar as defesas do devedor. Contudo, em razão da força cogente do pacto, somente o tribunal arbitral teria competência para dirimir as questões levantadas pelo devedor e, se acolhidas as suas pretensões, afetariam a exigibilidade das duplicatas que davam suporte ao pedido de falência. A solução, também aqui, foi opinar pela suspensão do pedido de falência até o fim da arbitragem, o que foi acolhido pelo juízo e depois mantido pelo TJRJ. Há de se ressaltar que a LFRE não prevê dilação probatória, salvo quando o requerimento é formulado a partir da imputação da prática de atos de falência, conforme o § 5º do art. 94 da LFRE. Entretanto, em muitos casos o juiz não tem como prolatar sentença apenas com a prova documental, apresentando-se imprescindível a produção de uma prova pericial ou testemunhal. Aplicam-se, nesses casos, supletivamente, as normas gerais do CPC. Não há previsão legal expressa de intervenção do Ministério Público nessa fase processual, mas, na prática, a sua atuação tem-se revelado de extrema importância, com fulcro nos arts. 176 e 178, I, do CPC. Depósito elisivo O parágrafo único do art. 98 da LFRE prevê que o devedor, nas hipóteses de impontualidade ou execução frustrada, pode afastar a possibilidade de falência depositando o valor total da dívida reclamada em juízo, com os acréscimos legais, no prazo da contestação. Para tanto, no despacho em que determina a expedição do mandado de citação, o juiz fixará os honorários advocatícios para fins de depósito elisivo, no patamar mínimo de 10%, por se tratar da fase inicial do processo. Pela redação do texto legal pode parecer que o prazo de 10 dias é peremptório. Contudo, não é esse o entendimento dos tribunais, que admitem o depósito a qualquer momento, com base no princípio da preservação da empresa: gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 46 Agravo de instrumento – Falência – Decisão que decretou a falência da agravante – Agravante que, após a interposição do presente recurso, realizou o depósito do débito discutido, com a concordância da agravada – D. Juízo de origem que, ante a quitação do débito, declarou elidido o pedido de falência – Fato superveniente que exigiu, de fato, novo pronunciamento judicial na origem – Quitação do débito que descaracteriza o estado de insolvência da devedora – Pagamento tardio que não justifica a manutenção do decreto falimentar originário – Precedentes – Superveniência do pagamento, acertadamente reconhecido e admitido pelo D. Juízo de origem como causa extintiva do pedido falimentar, a qual deve ser observada neste recurso como fato superveniente (CPC, art. 493) e constitutivo de perda do objeto recursal no âmbito, ademais, do juízo de retratação – Recurso prejudicado (TJSP; Agravo de Instrumento 2103885- 35.2019.8.26.0000; Relator: Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Julgamento: 19/11/2019; Registro: 21/11/2019).22 Como se pode perceber, é possível o depósito elisivo a qualquer momento, desde que antes da sentença de falência, com fundamento na teoria da preservação da empresa. Aliás, abeberando- se dessa fonte, alguns autores defendem a possibilidade do depósito mesmo quando o requerimento tem como base a prática de atos de falência.23 Os tribunais geralmente não admitem o depósito elisivo parcial, conforme precedente do TJRJ: AGRAVO DE INSTRUMENTO. Direito Empresarial. Pedido de falência formulado com base na impontualidade injustificada do devedor (LF, art. 94, I). Depósito Elisivo. Fracionamento. Inadmissibilidade. A elisão da falência é realizada mediante depósito em juízo do valor da dívida reclamada no pedido falimentar, devidamente corrigido e acrescido de juros e honorários advocatícios. Recurso a que se nega provimento (TJRJ, 0056844-09.2016.8.19.0000 – Agravo de Instrumento. Des. Cláudio Luiz Braga Dell'orto. Julgamento: 25/01/2017. 18ª Câmara Cível). 22 Nesse sentido: TJRJ, 0062644-18.2016.8.19.0000 – Agravo de Instrumento. Des. Custódio de Barros Tostes. Julgamento: 01/08/2017. 1ª Câmara Cível. 23 COELHO, Fábio. Curso de direito comercial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 265. v. 3. gustavosp Realce gustavosp Realce 47 Com a devida vênia, discordamos desse posicionamento. Já oficiamos em processos cujovalor indicado pelo devedor como realmente devido é muito abaixo do valor de face do título apresentado pelo credor, ou seja, com a diferença superando, em muito, os 40 salários-mínimos. Nessa toada, caso o devedor não tenha recursos para efetuar o depósito integral, permitir o depósito elisivo parcial, por sua conta e risco, é medida salutar e harmônica com o princípio da preservação da empresa, pois, do contrário, ainda que acolhidos os argumentos da sua contestação e reduzido o valor da dívida ao montante por ele apontado como devido na contestação, seria decretada a sua falência. Nesse sentido, importante precedente trazido à baila na obra de Penalva Santos e Salomão:24 4. Como o pedido de falência, sobretudo, deve demonstrar que o devedor ostenta algum dos sinais indicativos de insolvência previstos na legislação falimentar, é viável que o julgador investigue a configuração de algum desses indícios após o decote do valor excessivo, de sorte que não há falar em iliquidez da dívida nessa hipótese. 5. Caso o devedor opte por afastar o pleito falimentar mediante o instrumento do depósito elisivo (sediado no art. 98, parágrafo único, da Lei n. 11.101/05), assiste-lhe a oportunidade de promover esse depósito levando em conta o valor que entende efetivamente devido e de manifestar o seu inconformismo acerca da quantia excedente na sua contestação. [...] (REsp 1052495/RS, Rel. ministro Massami Uyeda, 3ª Turma, Julgamento: 08/09/2009, DJe 18/11/2009). É importante salientar que o depósito não importa em reconhecimento da dívida, pois o devedor pode contestar o pedido de falência. Nesse caso, o autor do requerimento de falência só poderá levantar o valor depositado se a contestação não for acolhida, hipótese em que a falência não será decretada. Essa é a melhor exegese da péssima redação do parágrafo único do art. 98 da LFRE. Por fim, não se admite a ação de consignação em pagamento depois de distribuído o pedido de falência. Caso ocorra, os processos devem ser reunidos por força da conexão, e o valor consignado deve ser tratado como depósito elisivo, ainda que parcial. 24 SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 78. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 48 Sentença de falência: conteúdo e recursos Renomados processualistas, como o renomado professor Alexandre Freitas Câmara, sempre criticaram a opção do legislador de classificar a decisão que decreta a falência como sentença, pois ela não termina o processo em primeira instância, muito menos esgota a jurisdição do seu prolator, revelando-se como verdadeira decisão interlocutória, mista e não terminativa. Prevista no art. 99 da LFRE, a sentença de falência é o ponto de partida do processo de execução concursal do devedor empresário, sendo certo que a LFRE não mais se refere a ela como declaratória, abrindo ainda mais espaço para a eterna discussão sobre a sua natureza jurídica. Pelo menos do ponto de vista processual penal, o art. 180 da LFRE é claro em considerar tal decisão como condição objetiva de punibilidade. Devido à sua importância analisaremos, ainda que perfunctoriamente, o seu conteúdo: a) A exigência desse inciso evita transtornos sobre a identificação da sociedade falida e dos seus administradores, facilitando, inclusive, a apuração de responsabilidades. b) O termo legal da falência é de suma importância para o ajuizamento da ação revocatória e para todo o sistema de ineficácia de negócios jurídicos celebrados pelo devedor antes da falência, podendo ser fixado em até 90 dias antes do protesto mais antigo – em vigor – por falta de pagamento. O texto encerra qualquer discussão sobre o que se deve entender por protesto mais antigo, na medida em que devem ser desconsiderados todos aqueles já cancelados. c) O objetivo é facilitar a identificação dos credores – massa falida objetiva –, abreviando o trabalho do administrador judicial. Na prática, nenhum devedor cumpre essa determinação, obrigando todos os credores a promoverem a habilitação dos seus créditos; d) O prazo para habilitação é de 15 dias, e o seu procedimento inicial é extrajudicial. e) Está relacionado com a universalidade do juízo falimentar, que adiante será analisada. f) Trata da indisponibilidade dos bens do falido, não se aplicando aos sócios de responsabilidade limitada. g) A decretação da prisão preventiva não pode ser de ofício e só será possível se preenchidos os pressupostos exigidos no art. 312 do Código de Processo Penal (CPP). h) Relaciona-se à publicidade da decisão e à perda da capacidade profissional do devedor, ou seja, a impossibilidade do exercício da empresa. i) A nomeação do administrador judicial deve ser feita o quanto antes, haja vista a importância e urgência das suas atribuições. Esta figura será minuciosamente tratada mais adiante. j) Tal providência auxilia sobremaneira a arrecadação de bens imóveis do falido. k) A continuação da empresa – atividade – durante o processo falimentar é medida excepcional e tem por objetivo a maximização do ativo falimentar, viabilizando a gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce ação revocatória trata-se de uma medida judicial utilizada para declarar ineficazes determinadas negociações jurídicas que eventualmente tenham sido realizadas pela empresa falida antes da decretação da falência, em prejuízo da coletividade de credore gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 49 preservação, para futura alienação, dos bens intangíveis do devedor, como a clientela, a freguesia e a força da marca e do nome empresarial. l) A conveniência ou não da constituição do comitê de credores também será objeto de estudo em capítulo próprio. m) Como já mencionado, a participação do Ministério Público no processo falimentar passa a ser expressamente prevista a partir da decretação da falência. No que toca às Fazendas Públicas, a intimação faz com que estas apresentem, por ofício, eventuais créditos que tenham contra o falido. O sistema recursal previsto na nova legislação é muito mais simples. Segundo o art. 100 da LFRE: a) da sentença de improcedência é cabível o recurso de apelação e b) da sentença de procedência é cabível o agravo de instrumento. Tais recursos, por força do art. 189 da LFRE, seguem os procedimentos previstos no CPC, inclusive no tocante aos prazos e efeitos da interposição. Como regra, a sentença que julga improcedente o pedido de falência tem o mesmo tratamento de qualquer outra, isto é, o autor é condenado ao pagamento do ônus da sucumbência, na forma prevista no art. 85 do CPC. Entretanto, em caso de comprovado dolo, ou seja, quando o requerimento de falência tiver como principal objetivo macular a imagem do requerido, na própria sentença de improcedência o juiz deve condenar o autor a pagar uma indenizar ao réu, cujo valor liquidar-se-á em processo próprio, com fulcro no art. 101 da LFRE. Caso o prejuízo desse temerário requerimento atinja terceiros, como os sócios da sociedade requerida, estes poderão acionar o autor em ação própria. Administração na falência Antes de iniciarmos o estudo da segunda fase do processo falimentar, é conveniente traçarmos um perfil de cada figura que tomará assento na administração da falência, ou seja, funcionará no processo. Além do falido, do juiz e do Ministério Público, a lei prevê as figuras do administrador judicial, do gestor judicial e dos credores, seja reunidos em assembleia geral, seja representados por meio do comitê de credores. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realcegustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 50 Juiz O juiz é a autoridade suprema do processo falimentar e exerce funções de dupla natureza: no primeiro grupo, estão as chamadas funções jurisdicionais típicas; e, no segundo grupo, estão as funções administrativas, isto é, questões materiais do próprio dia a dia da falência, superintendendo a atuação do administrador judicial, mesmo quando inexiste lide a ser resolvida, como na autorização para a venda antecipada de bem ou para a contratação de um avaliador ou de um escritório de advocacia para defender os interesses da massa falida nas reclamações trabalhistas. Não há dúvida de que, a exemplo das capitais do Rio de Janeiro e de São Paulo, é importante que o Poder Judiciário reserve às varas especializadas, mesmo regionais, o exame da matéria falimentar e recuperacional, eis que a complexidade do tema, a peculiaridade da função “administrativa” do magistrado e a importância da rápida e eficaz tramitação desse tipo de processo acabam por gerar reflexos em toda a economia. Essa, aliás, é a recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os advogados, sobretudo de grandes escritórios, estão empenhados em se aprofundar nos novos contornos do regime jurídico da insolvência empresarial, razão pela qual os poderes constituídos, magistratura e Ministério Público, não podem esquivar-se dessa especialização. Nesse compasso, a necessidade de especialização deve atingir também a segunda instância, como já ocorre em São Paulo e Santa Catarina, cujos tribunais criaram câmaras reservadas para o Direito Empresarial, oportunizando aos desembargadores a especialização que vem ocorrendo em primeira instância. Também é de suma importância a valorização das serventias e dos serventuários da Justiça responsáveis por esses processos, na medida em que cabe ao Poder Judiciário não só prepará-los com cursos de especialização para o processamento adequado desses feitos, como também criar um mínimo de estrutura física compatível com a envergadura e o dinamismo necessários para a boa condução dos processos. Ministério Público Enormes avanços ocorreram no que concerne às atribuições do promotor de justiça nos processos regulados pela nova lei. Fundamentalmente o promotor de justiça atuará como custos legis, embora o legislador lhe tenha conferido legitimidade ativa em diversas ocasiões, sobretudo para o ajuizamento da ação revocatória, algo reclamado pela instituição há tempos. Entretanto, em razão do veto ao art. 4º da LFRE, muitas dúvidas surgiram sobre os limites dessa intervenção, apesar da LFRE se referir ao “Ministério Público” em 25 (vinte e cinco) oportunidades. Fábio Ulhoa Coelho defende que o Ministério Público não deveria atuar na primeira fase do processo falimentar, pois não existiria, ainda, interesse público na demanda, assim como nos processos envolvendo pequenas sociedades empresárias. No que tange às pequenas falências, a gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 51 reforma promovida em 2020 recriou o procedimento de falência sumária, com expressa intervenção do Parquet, conforme art. 114-A, da LFRE. Em magnífica explanação sobre o tema, Alberto Camiña Moreira, depois de citar um extenso rol de países que consideram existir evidente interesse público nos processos de falência e de recuperação empresarial, defende que é obrigatória a intimação do Ministério Público, oportunidade em que o representante da instituição poderá requerer a sua intimação para os demais atos do processo quando vislumbrar interesse público. Entre vários argumentos, o citado autor invoca as próprias razões do veto ao art. 4º da LFRE: A intimação do Ministério Público é sempre obrigatória; mas a intervenção deve ficar a critério da Instituição, conforme o caso. Como explicitaram as razões do veto do Presidente da República: “O Ministério Público é, portanto, comunicado a respeito dos principais atos processuais e nestes terá a oportunidade de intervir. Por isso, é estreme de dúvidas que o representante da Instituição poderá requerer, quando de sua intimação inicial, a intimação dos demais atos do processo, de modo a intervir sempre que entender necessário e cabível”. [...] Essa atividade do Ministério Público, ora bosquejada, está em rigorosa consonância com a dicção constitucional. Com efeito, a sede constitucional do Ministério Público é o art. 127, “caput”, da Carta Magna: [...]. A Atuação do no processo de recuperação de empresas passa pela defesa de interesses sociais, no estrito cumprimento, pois, de sua missão constitucional.25 A intervenção do Ministério Público tem dupla finalidade: assegurar a repressão aos crimes falimentares e recuperacionais e defender, pela sua ação disciplinar e fiscalizatória, o interesse público, refletido na tutela do crédito, na preservação da empresa e no resguardo à segurança do mercado, sem olvidar a presença quase constante de grupos de hipossuficientes lesados, como consumidores e trabalhadores. Nesse sentido, em um caso em que o juízo decidiu que a intimação do Ministério Público para os atos processuais de uma recuperação judicial, fora das hipóteses expressas em lei, não era obrigatória, apesar de assim requerido pelo representante da instituição, decidiu o TJRJ: Empresa em recuperação judicial – A intervenção do Ministério Público, em processo de recuperação judicial, é obrigatória, na forma do artigo 52, 25 MOREIRA, Alberto Camiña. Direito falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. Coordenação: Luiz Fernando Valente de Paiva. São Paulo: Quartier, 2005. p. 266-273. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 52 inciso V da Lei nº 11.101/2005, sendo-lhe conferida a prerrogativa de intimação pessoal dos atos do processo, nos termos do artigo 84, combinado com o parágrafo 2º do artigo 236, pena de nulidade absoluta, conforme artigo 246 do Código de Processo Civil (TJRJ, 0015971- 98.2015.8.19.0000 – Agravo de Instrumento, desembargador Camilo Ribeiro Ruliere – Julgamento: 07/07/2015 – 1ª Câmara Cível). Atento a toda essa celeuma doutrinária e jurisprudencial, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidiu que caberá aos próprios Ministérios Públicos Estaduais definir em quais hipóteses haverá relevância social a justificar a intervenção do Parquet.26 O Órgão Especial do Colégio de Procuradores do Estado do Rio de Janeiro, por meio da Deliberação nº 30, de 30 de agosto de 2011, reconheceu de interesse público e social em todas as fases dos processos de falência, de recuperação judicial e de recuperação extrajudicial. Administrador judicial Uma das figuras mais importantes do atual processo falimentar e recuperacional é, indubitavelmente, o administrador judicial, cuja disciplina está prevista nos arts. 21-25 e 30- 34 da LFRE. Ele é, no mais das vezes, o principal responsável pelo sucesso ou insucesso do processo falimentar, na medida em que é a pessoa que impulsiona a marcha processual e, nas falências, administra toda a massa falida, inclusive representando-a judicialmente, o que lhe exige grande esforço pessoal e preparação técnica. O administrador judicial pode ser uma pessoa natural ou jurídica, hipótese em que indicará uma pessoa natural para representá-la, sendo certo que a nomeação deve recair preferencialmente sobre um economista, advogado, contador, administrador de empresas ou sociedade com atuação nesses ramos. No TJRJ, há o Ato Executivo Conjunto nº 53/2013, com recomendação para que os juízes só nomeiem profissionais que tenham sido aprovados em cursos de especialização na função de administração judicial, tal qual oorganizado pela própria Escola de Administração Judiciária (ESAJ). Registre-se que o administrador é ontologicamente um auxiliar do juízo falimentar ou recuperacional (órgão do Poder Judiciário), e não mais pode ser visto como um representante dos credores, cujos interesses devem ser defendidos por eles próprios, individualmente, ou pelo comitê constituído. Convém destacar que o atual sistema conferiu ainda mais poderes ao administrador judicial. 26 Recomendação nº 34, de 5 de abril de 2016 do CNMP. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 53 A remuneração do administrador judicial deve ser fixada pelo juiz, que levará em conta a complexidade do caso e a capacidade de pagamento. Infelizmente, não raro, as remunerações são fixadas levando-se em conta apenas o percentual máximo previsto na LFRE. Nas falências, o máximo é de 5% do apurado com a realização do ativo, enquanto nas recuperações judiciais o limite é de 5% do passivo, salvo nas recuperações especiais dos pequenos empresários, cujo limite é de apenas 2%. Nas falências, as atribuições do administrador judicial são extremamente mais trabalhosas, haja vista que cabe a ele a efetiva administração da massa falida, inclusive em relação à contratação dos auxiliares. A maior operosidade das atribuições do administrador judicial nos processos de falência, quando comparadas às atribuições no processo de recuperação de empresas, está no dever de arrecadação, administração e liquidação de todo o ativo do devedor, bem assim na definição dos rumos dos contratos do falido existentes ao tempo da sentença de quebra, fazendo jus ao seu nomen iuris de “administrador” judicial. Por outro lado, nos processos de recuperação judicial, o melhor seria preservar a nomenclatura usada nas concordatas, “comissário”, ou encontrar outra expressão mais condizente com a sua função substancialmente fiscalizatória, haja vista que as suas principais atribuições são: a organização da relação de credores; a tomada de contas mensal das atividades do devedor; e a presidência da assembleia de credores. Já participamos de muitos embates em relação à fixação das remunerações dos administradores judiciais. A matéria é polêmica, mas o certo é que não se pode admitir que essa remuneração seja incompatível com os encargos da função, menosprezando o encargo ou sendo fonte de enriquecimento ilícito. O principal parâmetro, com a devida vênia, não devem ser os valores envolvidos no processo, seja de falência, seja de recuperação judicial. De uma forma geral, no nosso sentir, os aspectos mais relevantes para serem sopesados na fixação da remuneração do administrador judicial, em ordem de importância, são: a) número de credores; b) número de devedores; c) número de locais onde o devedor tem ou teve estabelecimentos e as suas distâncias; d) complexidade da atividade operacional do devedor; e) número de incidentes processuais e ações autônomas que exijam a intervenção do administrador judicial, inclusive fora da competência do juízo empresarial; f) número de profissionais necessários para desempenho da função; g) porte e estrutura oferecida pelo administrador judicial; h) na falência, número de bens a serem liquidados e os seus valores e i) na recuperação judicial, valor total do passivo. É pouco provável que já na sentença que decreta a falência ou no despacho que defere o processamento do pedido de recuperação judicial o juízo tenha os elementos capazes de justificar, em definitivo, a fixação da remuneração. Assim, recomendamos a fixação de uma remuneração gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 54 apenas provisória e, para que se evitem incertezas, já se aponte de forma precisa o momento para a sua fixação definitiva, que no caso da recuperação judicial pode ser após a realização da assembleia de credores convocada para deliberar sobre o plano, enquanto na falência seria após a homologação do quadro geral de credores (QGC). Nesse sentido: RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ADMINISTRADOR JUDICIAL. REMUNERAÇÃO. PROFISSIONAL AUXILIAR DO JUÍZO. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. GRAU DE COMPLEXIDADE DA CAUSA. TRABALHO DO PROFISSIONAL. TETO PREVISTO NA LEI. ARBITRAMENTO AFASTADO. Administrador Judicial. Função de extrema importância para o desenvolvimento e para o bom andamento do processo. Auxiliar do Juiz. Remuneração que deve ser fixada conforme o trabalho que o profissional realiza. Art. 24, da Lei nº 11.101/2005. Estipulação de limite à referida remuneração, não dispondo da aplicação de percentual com base no passivo ou no ativo da empresa recuperanda. Remuneração do Administrador Judicial. Devem ser considerados diversos fatores, e não apenas os valores envolvidos na causa. Complexidade do processo, existência de pluralidade ativa no pedido, a massa de credores e as diversas atividades que serão desenvolvidas pelo profissional no curso da demanda, como relatórios, petições, acompanhamentos e manifestações. Complexidade da empresa em crise econômico-financeira e a conduta processual e extraprocessual dos sócios ou acionistas, situação que pode facilitar o dificultar o trabalho do profissional. Complexidade da causa e em todo o trabalho que o profissional terá que desenvolver, dentro ou fora do processo, durante todo o período em que a recuperação judicial estiver em tramitação. Também deve ser considerada a pessoa nomeada para assumir o encargo e sua natureza – pessoa física ou empresarial –, a estrutura que deverá observar para desenvolver suas atividades, o tempo por ela despendido para o trabalho no processo e a necessidade de auxílio de terceiros para o desenvolvimento de seu mister. Remuneração do Administrador Judicial. O valor deve ser arbitrado conforme cada caso específico, observando-se apenas o teto estabelecido no § 1º, do mencionado art. 24, da Lei de Falências e de Recuperação de Empresa. Diante da dificuldade de estimar o trabalho a ser desenvolvido no início do processo de recuperação, muitos juízes têm preferido fixar um valor mensal de remuneração, deixando para fixar depois, quando melhores elementos se tiver, os honorários definitivos. É uma solução que não ofende a Lei e se mostra adequada em muitos casos. Têm razão as agravantes em suas irresignações, de modo que a decisão recorrida gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 55 deve ser reformada para que conste que a remuneração devida ao Administrador Judicial é, por ora, apenas aquela mensal determinada, que ora é reduzida, devendo ser oportuna e posteriormente estabelecidas as remunerações provisória e a definitiva. Recurso provido para reduzir o valor da prestação mensal, bem como para afastar, por ora, a fixação de honorários definitivos à Administradora Judicial (TJSP; Agravo de Instrumento 2057282-69.2017.8.26.0000; Relator: Carlos Alberto Garbi; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Julgamento: 14/08/2017; Registro: 16/08/2017). O administrador normalmente precisa contratar outros profissionais para auxiliá-lo durante o processo, como contadores, avaliadores e advogados, valendo observar que a remuneração desses profissionais também deve ser aprovada pelo juízo, por representar despesas extraconcursais, previstas no art. 84 da LFRE. Por fim, o administrador judicial que pedir para ser substituído sem relevante razão ou que for destituído, em caso de culpa ou dolo, perde o direito à remuneração, assim como na hipótese de rejeição das suas contas. Destacamos quatro polêmicas muito comuns em relação à figura do administradorjudicial, assim enumeradas: I. É possível a nomeação de mais de um administrador judicial para atuar no mesmo processo de falência ou de recuperação judicial? II. Como deve ser tratada a remuneração do administrador judicial em um processo de falência convertido a partir de uma recuperação judicial rescindida? III. Devem integrar a base de cálculo da remuneração do administrador judicial as receitas decorrentes de aluguel dos bens da massa falida ou de ações judiciais propostas antes da quebra? IV. Pode o administrador judicial ser contratado como advogado da massa falida e receber, separadamente, como tal? Os limites desse trabalho nos conduzem a respostas concisas. Respondemos negativamente à primeira indagação, haja vista a ausência de previsão legal, a inexistência de solução jurídica para a hipótese de divergência entre os nomeados e, finalmente, em razão da possibilidade de nomeação de uma pessoa jurídica. No tocante à segunda polêmica, defendemos que, rescindida a recuperação judicial, rescindida também estará a remuneração do administrador judicial, que deverá ser fixada dentro do limite de 5% do ativo a ser arrecadado para a massa falida e de acordo com os novos encargos assumidos, abatendo-se o que já foi pago durante a recuperação judicial. Nesse sentido: gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 56 Agravo de instrumento. Recuperação judicial convolada em falência. Remuneração da administradora judicial que deve ser arbitrada de acordo com o princípio da proporcionalidade. Art. 24 da Lei n. 11.101/05. Impossibilidade de se prever, por ora, o reflexo da decisão que convolou a recuperação judicial em falência ao trabalho realizado pela administradora judicial. Circunstâncias que justificam a fixação da remuneração em patamar inferior ao máximo previsto no art. 24, § 1º, da Lei n. 11.101/05. Valor reduzido para 3% sobre o ativo realizado da falida. Reembolso imediato das despesas incorridas no curso da administração. Possibilidade. Art. 150 da Lei n. 11.101/05. Recurso parcialmente provido (TJSP; Agravo de Instrumento 2099796-71.2016.8.26.0000; Relator: Hamid Bdine; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Suzano – 4ª Vara Cível; Julgamento: 21/09/2016; Registro: 23/09/2016). Já em relação ao terceiro problema, a sua solução dependerá da análise do caso concreto, ou seja, da comprovação de que o administrador judicial contribuiu efetivamente para a geração e arrecadação daqueles recursos. Atuamos em alguns casos que, apesar da passividade do administrador judicial, a massa falida vem a receber substanciais quantias, muitas vezes decorrentes do pagamento de precatórios judiciais decorrentes de processos ajuizados que não tiveram nenhuma participação do administrador judicial. Nessas hipóteses, defendemos a exclusão desses valores da base geral de cálculo e a fixação de um percentual menor sobre essa quantia específica, a fim de não se permitir o enriquecimento sem causa. Por fim, não enxergamos qualquer inconveniente ou proibição legal de o administrador judicial também atuar como advogado de massa falida e ser remunerado, separadamente, pela prestação desse serviço, desde que o contrato seja homologado pelo juízo com a máxima transparência. Gestor judicial Como cediço, a sociedade empresária em regime de recuperação judicial não perde o direito de administrar a sua empresa, isto é, diretores e administradores continuam exercendo as suas respectivas funções. Essa é a regra prevista na primeira parte do art. 64 da LFRE. Contudo, a segunda parte desse dispositivo permite que o juiz afaste o devedor da administração dos negócios em determinadas situações, hipótese em que convocará assembleia geral para deliberar sobre a pessoa que vai substituí-lo. Enquanto não se realizar a assembleia geral de credores, o administrador judicial ficará à frente dos negócios da empresa, conforme regra prevista no art. 65, § 1º, da LFRE. A assembleia de credores deverá atentar para o fato de que ao gestor judicial se aplicam todas as restrições gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 57 impostas ao administrador judicial, inclusive sobre impedimento e remuneração. Atendidas as formalidades legais, entendemos que o juiz não pode recusar a indicação dos credores. Nos processos de falência, nas hipóteses excepcionais em que o juiz determina a continuação das atividades do falido, a LFRE prevê que a função de gerir o negócio caberá ao próprio administrador judicial, consoante art. 99, XI, da LFRE. No entanto, é perfeitamente possível, e até recomendável, a nomeação de um gestor judicial com know-how adequado para aquele segmento empresarial. Assim ocorreu na falência da Natan Joias, no Rio de Janeiro,27 e na falência do Grupo João Lyra, em Alagoas.28 Credores na administração do processo A participação ativa dos credores nos processos de falência e recuperação de empresas, elevada a princípio informador do sistema, deve ser analisada em três etapas. A primeira delas deve ter como foco o credor individualmente, isto é, se ele pode ou não atuar isoladamente em um processo de falência ou de recuperação judicial. A segunda forma de participação dos credores é por meio de um órgão colegiado composto de apenas alguns representantes, denominado de comitê de credores. Por fim, devemos abordar a atuação dos credores por meio do seu órgão máximo: a assembleia geral de credores. Intervenção individual do credor Não temos dúvida alguma ao afirmar que qualquer credor tem o direito de peticionar nos autos principais de um processo de falência ou de recuperação judicial para requerer o que entender de direito. Independentemente do número de credores e do valor do crédito em relação ao total do passivo, há de se reconhecer a legitimidade individual de qualquer credor para atuar com plenitude nos processos de falência e de recuperação de empresas. Nada impede, porém, que o juízo determine, para evitar tumulto processual, que sejam formados “apensos” para tratar de questões específicas, evitando o acúmulo de petições diversas nos autos principais. O mérito da questão, embora levado ao STJ, não chegou a ser objeto de apreciação em razão de questões prejudiciais ao conhecimento do recurso.29 No entanto, trazemos importante precedente do TJRJ: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL DE EMPRESAS. INTERLOCUTÓRIA QUE NOMEOU ADMINISTRADOR JUDICIAL E FIXOU SEUS HONORÁRIOS 27 TJRJ, processo nº 0209874-03.2012.8.19.0001. 28 TJAL, processo nº 0000707-30.2008.8.02.0042. 29 STJ, Agravo em Recurso Especial nº 789.439-RJ. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 58 EM 0,25% DA SOMA DOS CRÉDITOS SUJEITOS AO PROCEDIMENTO RECUPERATÓRIO DO GRUPO OSX. IRRESIGNAÇÃO. PRELIMINAR DE FALTA DE LEGITIMIDADE RECURSAL DA CREDORA ISOLADO, ORA AGRAVANTE. REJEIÇÃO. MATÉRIA DE AÇÃO. LEGITIMAÇÃO ORDINÁRIA. FACULTATIVIDADE DA CONSTITUIÇÃO DO COMITÊ DE CREDORES (ART. 28 DA LEI N.º 11.101/2005). Possibilidades de abuso e de tumulto processual, para as quais há previsão legal de aplicação de multa cominatória (art. 18, vi e vii, do Código de Processo Civil). [...]. Procedimento recuperatório que é de iniciativa do devedor, ostenta natureza concursal e é fundado na ética da solidariedade. Vontades do devedor e de seus credores que marcham harmoniosamente completam-se e fundem-se numa só e única. Colaboração de todos os interessados para o fim específico ditado pelo art. 47 da lei nº 11.105/2005 (TJRJ, 0016629-59.2014.8.19.0000 – Agravo de Instrumento.Des. Gilberto Campista Guarino. Julgamento: 06/08/2014. 14ª Câmara Cível). Comitê de credores Nada obstante a possibilidade de atuação individual dos credores, tem maior peso a atuação dos credores quando ela se dá por meio do comitê. Regulado basicamente nos arts. 26 a 34 da LFRE, o comitê é um órgão representativo dos credores composto de membros eleitos em assembleia geral por sistema especial, no qual os credores são divididos em até quatro grupos, e cada um deles indica um membro e dois suplentes. Os grupos são organizados da seguinte forma: a) um representante indicado pela classe dos credores trabalhistas e por acidente de trabalho, com dois suplentes; b) um representante indicado pela classe dos credores com direitos reais de garantia e com privilégios especiais, com dois suplentes; c) um representante indicado pela classe dos credores quirografários e com privilégios gerais, com dois suplentes. d) um representante dos credores micro e pequenos empresários, com dois suplentes. A constituição do comitê pode ser requerida por qualquer dos grupos acima, valendo registrar que a inércia de um grupo para indicar o seu representante não impede a criação e o funcionamento do órgão. Aliás, como o comitê é um órgão de existência facultativa, na sua falta, gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Nota Créditos quirografários são aqueles que decorrem somente do simples encontro de vontade entre as partes, tendo como garantia a simples promessa do devedor de que, no vencimento, vai adimplir a obrigação. E se diferencia basicamente do crédito real, que tem um bem em garantia para o caso de inadimplência 59 as suas atribuições serão de responsabilidade do administrador judicial, salvo hipótese de incompatibilidade deste, caso em que caberá ao juiz decidir, na forma do art. 28 da LFRE. As decisões serão tomadas por maioria e registradas em livro próprio. No caso de impasse sobre algum tema, a decisão caberá ao administrador judicial, salvo hipótese de incompatibilidade, quando a decisão também caberá ao juiz. Primordialmente, a função do comitê é fiscalizar o processo falimentar ou de recuperação judicial, conforme se depreende do art. 27 da LFRE, e os seus membros não recebem qualquer remuneração, mas podem reembolsados das despesas que façam em favor da massa. Na prática, diante da frustrante realidade de inexistência de comitê de credores em todos os processos que atuamos, quando nos deparamos com alguma questão de alta relevância jurídica ou econômica, surgida no decorrer de um processo de falência ou de recuperação de empresas, como na hipótese de locação do bem imóvel mais valioso da massa falida por um tempo considerável, ou do pedido de autorização de alienação de bens valiosos do ativo imobilizado do devedor, após a homologação do plano de recuperação judicial, temos solicitado a intimação de todos os credores para, em um prazo comum, se assim desejarem, se manifestarem sobre a relevante questão a ser decidida. A jurisprudência, até o momento, nos tem sido favorável: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO AUTORIZANDO A PRÁTICA DE ATOS DE ALIENAÇÃO E DE ONERAÇÃO DE BENS IMÓVEIS. REFORMA DO DECISUM. AS EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO NÃO DEMONSTRARAM A IMPRESCINDIBILIDADE DOS ATOS DE ALIENAÇÃO E ONERAÇÃO PARA O PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL (ART. 66 DA LEI 11.101/05). OBJEÇÕES AO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. NECESSIDADE DE DELIBERAÇÃO EM ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES, QUE AINDA NÃO OCORREU. JUÍZO DE PRUDÊNCIA QUE RECOMENDA AGUARDAR-SE O RESULTADO DAS OBJEÇÕES AO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROVIMENTO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO (TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0006141-40.2017.8.19.0000. 1ª Câmara Cível. Rel. desembargador Sérgio Ricardo de Arruda Fernandes. Julgamento: 11/07/2017). gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 60 Assembleia de credores A assembleia de credores está disciplinada nos arts. 35 a 46 da LFRE, podendo ser convocada pelo juiz, de ofício ou por provocação de algum interessado, ou por credores que representem pelo menos 25% de uma classe, caso em que o juiz não poderá recusar o pedido, mas as despesas correrão por conta dos requerentes, e não do devedor ou da massa falida. Nas assembleias, em regra, os credores exercerão o seu direito de voto proporcionalmente ao valor do seu crédito (art. 38) e, apesar da divisão dos credores em quatro categorias distintas, por força do art. 42 da LFRE, considera-se aprovada a proposta que tiver o apoio de mais da metade dos créditos presentes, independentemente da divisão em classes, salvo em situações especiais. Nem todos os credores admitidos na falência ou na recuperação possuem direito de voto, conforme arts. 43 e 45, § 3º, da LFRE. Em primeira convocação, a assembleia só pode ser instalada se estiverem presentes credores que representem mais da metade dos créditos de cada classe e, em segunda convocação, com qualquer número, mas neste caso não poderá ser realizada em menos de cinco dias da primeira. As assembleias devem ser presididas pelo administrador judicial ou, quando houver incompatibilidade, pelo maior credor presente à assembleia, o que na prática raramente ocorre. É conveniente colocar em destaque que a deliberação tomada em assembleia geral não pode ser desconstituída judicialmente com fundamento em futura exclusão, inclusão ou retificação de crédito, bem assim não se admite provimento judicial para suspender ou adiar assembleia por pendência sobre análise de crédito. Poderão participar das deliberações e votar todos os credores reconhecidos até a data da assembleia, bem assim aqueles que tenham obtido reservas de valores, na forma do art. 6º, § 3º, c/c art. 39 da LFRE. Há uma relevante polêmica sobre a vedação ao exercício do direito de voto do credor por habilitação retardatária. Essa vedação é permanente, ou seja, até o fim do processo, ou ele passa a ter o direito de voto assegurado a partir do momento em que sua habilitação for julgada?30 Representando a controvérsia, trazemos à colação dois julgados: VOTA SE JÁ JULGADA - Resta saber, por fim, se, na letra da Lei 11.101, há de se deferir o voto à Massa, considerando-se sua condição – alegada – de credor retardatário. Segundo o artigo 10, § 1º, da Lei 11.101, os credores habilitados após o prazo do artigo 7º, § 1º, não terão direito a voto nas deliberações da assembleia geral. Fato, porém, é que o rigor do artigo 10 foi temperado pelo artigo 39, caput, pelo qual se assegura direito de voto aos titulares de créditos admitidos por decisão judicial, desde que, por óbvio, esta admissão ocorra antes da data da AGC. 30 Como representantes do Ministério Público na Recuperação Judicial do Grupo OI, interpomos o recurso de Agravo de Instrumento nº 0057939-35.2020.8.19.0000, ainda não julgado pela 8ª Câmara Cível do TJRJ. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 61 (TJRJ, 0078513-16.2019.8.19.0000 - Agravo de Instrumento. Des(a). Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto - Julgamento: 09/07/2020 - Décima Sexta Câmara Cível). NÃO VOTA NUNCA - Impugnação de crédito. Requerimento apresentado após o prazo do § 1º do art. 7º da Lei nº 11.101/2005 que deve ser tido como retardatário, nos termos do caput do art. 10. Ausência de notícia de que a impugnação fora deduzida perante o administrador judicial. Demora na regularização do incidente perante o Juízo,todavia, que não importa, tecnicamente, na declaração de intempestividade da impugnação, mas no reforço da conclusão de que é retardatária e, portanto, deve sofrer os efeitos dessa condição. Direito de voto cassado e determinado o recolhimento das custas da impugnação. Recurso desprovido, com determinação. (TJSP; Agravo de Instrumento 2213187-33.2018.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Santa Cruz das Palmeiras - Vara Única; Data do Julgamento: 13/07/2020; Data de Registro: 14/07/2020). Existem regras claras sobre representação dos credores em assembleia, em especial prazos de antecedência para a entrega das procurações e para a comprovação de representação sindical, consoante art. 37 da LFRE. A jurisprudência já reconheceu que os credores debenturistas que comparecerem à assembleia têm o direito votar separadamente, ainda que presente o agente fiduciário, o qual só representa os demais debenturistas ausentes.31 A fim de conferir maior celeridade aos processos de falência e de recuperação judicial, a Lei nº 14.112/20 introduziu importantes modificações, permitindo que o ato convocatório seja publicado apenas no Diário Oficial e no site do administrador judicial, com antecedência mínima de 15 dias, conforme art. 36 da LFRE, e que as deliberações em AGC sejam substituídas por termos de adesão que comprovem o atingimento do quórum necessário à aprovação, consoante art. 45-A da LFRE. Nessas hipóteses, a oitiva do Ministério Público deve ser anterior à homologação do resultado. A reforma da LFRE também mirou no denominado “voto abusivo”, disciplinando-o no art. 39, § 6º. Na literalidade da lei, o voto somente poderá ser considerado abusivo quando o credor o exercer com o fim de obter vantagem ilícita para si ou para outrem. Por fim, no que concerne à abstenção, o melhor entendimento é no sentido de que o crédito deve ser desconsiderado para se apurar se foi ou não atingido o quórum de aprovação. 31 STJ, REsp 1.670.096-RJ. Rel. ministra Nancy Andrighi, por maioria, Julgamento: 20/06/2017, DJe 27/06/2017. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 62 Falido O afastamento do devedor da sua empresa e da administração dos seus bens não significa que ele será defenestrado do processo. Pelo contrário, a lei lhe impõe uma série de obrigações, e a sua presença e atuação são vitais para o “sucesso” do processo falimentar. Diversos dispositivos da LFRE, sobretudo o art. 104, impõem ao falido o direito e o dever de auxiliar e fiscalizar os demais órgãos da falência durante a sua tramitação, seja apresentando diferentes documentos, seja fornecendo informações acerca dos bens e dos débitos da massa. Para tanto, tem o direito, e em algumas vezes o dever, de se manifestar nos autos principais e em todos os incidentes da falência. A violação desse dever não acarreta mais a prisão civil, banida pelo novo sistema, mas sujeita o falido às penas do crime de desobediência. É importante alertar para a necessidade de se evitar uma corriqueira confusão que se faz entre as figuras do falido e da massa falida. O falido nada mais é do que o empresário individual, a Eireli ou a sociedade empresária cuja falência foi decretada, que nesse caso será representada nos autos pelo administrador nomeado em seu ato constitutivo, enquanto a massa falida é um ente sem personalidade jurídica, formado, de um lado, pelos credores do falido – aspecto subjetivo – e, de outro, pelos bens arrecadados – aspecto objetivo, e será sempre representada pelo administrador judicial nomeado pelo juízo da falência. A sociedade empresária falida, nessa toada, continua a existir e a ser representada na forma dos seus atos constitutivos. Porém, os seus bens, direitos e obrigações formarão a denominada massa falida, que estará sob a responsabilidade do administrador judicial. Vejamos recente decisão do STJ: CIVIL, PROCESSUAL CIVIL E FALIMENTAR. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FALÊNCIA. DECRETAÇÃO. FALIDA. PERSONALIDADE JURÍDICA. EXTINÇÃO IMEDIATA. NÃO OCORRÊNCIA. CAPACIDADE PROCESSUAL. MANUTENÇÃO. RECURSO PROVIDO. 1. Segundo o procedimento regrado pelo Decreto-Lei n. 7.661/1945, a decretação da falência não implica a imediata e incondicional extinção da pessoa jurídica, mas tão só impõe ao falido a perda do direito de administrar seus bens e deles dispor (LF, art. 40), conferindo ao síndico a representação judicial da massa (CPC/1973, art. 12, III). 2. A mera existência da massa falida não é motivo para concluir pela automática, muito menos necessária, extinção da pessoa jurídica. De fato, a sociedade falida não se extingue ou perde a capacidade processual (CPC/1973, art. 7º; CPC/2015, art. 70), tanto que autorizada a figurar como assistente nas ações em que a massa seja parte ou interessada, inclusive interpondo recursos e, durante o trâmite do processo de falência, pode até mesmo requerer providências conservatórias gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 63 dos bens arrecadados. 3. Ao término do processo falimentar, concluídas as fases de arrecadação, verificação e classificação dos créditos, realização do ativo e pagamento do passivo, se eventualmente sobejar patrimônio da massa – ou até mesmo antes desse momento, se porventura ocorrer quaisquer das hipóteses previstas no art. 135 da LF –, a lei faculta ao falido requerer a declaração de extinção de todas as suas obrigações (art. 136), pedido cujo acolhimento autoriza-o voltar ao exercício do comércio, "salvo se tiver sido condenado ou estiver respondendo a processo por crime falimentar" (art. 138). 4. Portanto, a decretação da falência, que enseja a dissolução, é o primeiro ato do procedimento e não importa, por si, na extinção da personalidade jurídica da sociedade. A extinção, precedida das fases de liquidação do patrimônio social e da partilha do saldo, dá-se somente ao fim do processo de liquidação, que todavia pode ser antes interrompido, se acaso revertidas as razões que ensejaram a dissolução, como na hipótese em que requerida e declarada a extinção das obrigações na forma do art. 136 da lei de regência. 5. Agravo interno provido para dar provimento ao recurso especial (AgRg no REsp 1265548/SC, Rel. ministra Maria Isabel Gallotti, Rel. p/ acórdão ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, Julgamento: 25/06/2019, DJe 05/08/2019). Os sócios da sociedade falida de responsabilidade limitada não são atingidos pela falência,32 salvo prova de fraude ou de comprovada falta de integralização do capital social. Entretanto, algumas das obrigações impostas à sociedade falida devem ser cumpridas por aqueles que exerciam a sua administração. Proibição do exercício da empresa Por força do art. 102 da LFRE, o falido não poderá mais exercer atividade empresarial, impedimento esse identificado como incapacidade profissional. Ressalvados os casos de fraude, a restrição aqui estudada não se estende aos sócios da sociedade falida ou mesmo ao titular da Eireli, os quais, ao menos do ponto de vista jurídico, não estão impedidos de constituir outra pessoa jurídica, inclusive para explorar o mesmo ramo de atividade da falida. As dificuldades existirão, como já alertamos, no campo econômico, em face da dificuldade de obtenção de crédito. Ocorre que, diante das novas regras que compõem o fresh start, esse impedimento terá limitada duração, uma vez que, três anos após a decretação da falência, o devedor poderá pedir ao 32 Enunciado nº 49 do CJF: “Os deveres impostos pela Lei n. 11.101/2005ao falido, sociedade limitada, recaem apenas sobre os administradores, não sendo cabível nenhuma restrição à pessoa dos sócios não administradores”. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 64 juízo que declare, por sentença, extintas as suas obrigações, reabilitando-o para a atividade empresarial, conforme art. 158, inciso V, da LFRE. Há de se pontuar que os administradores da sociedade falida condenados criminalmente estão impedidos de exercer a administração de outra sociedade empresária, consoante art. 35, II, da Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994. A inabilitação se encerra com a declaração de extinção das obrigações do falido. Restrição ao direito de locomoção Segundo o art. 104, III e IV, da LFRE, o falido individual e os administradores da sociedade falida ficam proibidos de se ausentar do “lugar da falência”, salvo mediante prévia “comunicação” ao juízo, deixando procurador para representá-lo no processo. Frise-se que na vigência do Decreto-Lei nº 7.661/45, por força do seu art. 34, III, o falido só poderia se ausentar com “autorização judicial”. A nova lei, como se pode perceber, substituiu o verbo autorizar por comunicar, despertando dúvidas sobre como interpretá-la. Duas linhas de interpretação surgiram. A primeira, defendendo que não houve qualquer mudança substancial, isto é, para se ausentar, o falido ou os administradores da sociedade falida precisam de autorização judicial, na medida em que, apesar da nova lei, ainda precisam justificar a necessidade da viagem. A segunda, diametralmente oposta, sustenta que o falido e os administradores da sociedade falida não precisam mais pedir autorização, mas apenas comunicar a intenção de se ausentar, justificando-a e deixando procurador. Em caso de abuso ou de efetivo prejuízo ao bom andamento do processo, o juiz, dentro do seu poder geral de cautela, com fulcro no art. 99, VII, da LFRE, pode até proibir a saída deles do local da falência, desde que, é claro, estejam presentes os requisitos próprios: fummus boni iures e o periculum in mora. Nesse sentido estão as últimas decisões do STJ.33 Arrecadação das correspondências Uma das atribuições do administrador judicial, na forma do art. 22, III, “d”, da LFRE, é receber todas as correspondências dirigidas ao falido, devolvendo-lhe as que não despertarem interesse para a massa falida. Aliás, o falido deverá entregar ao administrador judicial todas as senhas de acesso aos sistemas contábeis, financeiros e bancários, permitindo-lhe amplo acesso a todas as informações que possam ser úteis na condução e administração da massa falida. 33 STJ, HC 279.036/SP. Rel. ministro Raul Araújo, 4ª Turma, Julgamento: 24/09/2013, DJe 18/10/2013 e HC 92.327/RJ. Rel. ministro Massami Uyeda. Rel. p/ acórdão ministro João Otávio de Noronha, 4ª Turma, Julgamento: 25/03/2008, DJe 04/08/2008. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 65 Efeitos da falência em relação aos bens do falido Sem dúvidas, o foco das atenções após a decretação da falência são os bens do falido, que devem ser arrecadados e vendidos o mais rápido possível, a fim de evitar os efeitos deletérios da depreciação pelo decurso do tempo e pelo desuso, assim como para otimizar os recursos financeiros das massas falidas, livrando-a dos custos de guarda e dos riscos de perda. Pontue-se que os efeitos não devem recair, em regra, sobre os bens dos sócios de responsabilidade limitada, salvo na hipótese de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou de outro instituto que permita esse alcance. Nessa linha, 60 dias após a sua investidura, deve o administrador judicial apresentar um plano de liquidação dos ativos, que não pode prever prazo superior a 180 dias para a alienação dos ativos, a contar da sua respectiva arrecadação, consoante art. 22, II, letra “J”, da LFRE. Todos os bens e direitos que estiverem na posse do falido devem ser arrecadados, ou seja, inventariados e avaliados. Até mesmo os bens de terceiros que estiverem na posse do devedor devem ser arrecadados pelo administrador judicial, que deverá apontar essa circunstância no auto de arrecadação. Como a avaliação dos bens arrecadados também é de atribuição do administrador judicial, em casos de maior complexidade, um profissional deve ser escolhido em, no máximo, 30 dias, e pago como despesa extraconcursal, na forma do art. 84 da LFRE. Registre-se que muitas vezes a avaliação dos bens se dá em bloco, mas, caso algum dos bens seja objeto de garantia real, ele também deve ser avaliado isoladamente, por força da regra trazida pelo § 5º do art. 108 c/c o art. 83, II, da LFRE. Também deverão ser arrecadados os bens do falido que estiverem na posse de terceiros, devendo o administrador judicial requerer as medidas necessárias para esse fim. Aliás, por força do § 3º do art. 108 da LFRE, até mesmo os bens penhorados ou o produto da sua alienação – após a falência – devem ser arrecadados, cabendo ao juízo de falência comunicar os demais da necessidade de transferência desses recursos para a conta da massa falida. Administração e indisponibilidade dos bens Consoante determina o art. 99, VI, c/c o art. 103, ambos da LFRE, o falido perde imediatamente a administração e disponibilidade sobre os seus bens, como consequência natural da decretação da falência. Entretanto, eles terão legitimidade para fiscalizar a administração desses bens, que ficará a cargo do administrador judicial, assim como poderá requerer qualquer medida necessária para a defesa desses bens. Constatada a prática de algum ato de alienação de bens após a sentença de falência o juiz, de ofício ou por provocação, declarará a nulidade do ato, com fulcro no art. 166, VII, do CC, sem prejuízo de outras sanções que podem ser aplicadas ao falido. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 66 Em relação ao Direito de Família, o falido, se empresário individual, não perde o direito de administrar os bens dos seus filhos menores e continua com usufruto legal dos bens deles. No que toca aos curatelados, o falido não poderá mais administrar os seus bens, na medida em que a lei que disciplina o instituto da curatela exige idoneidade financeira para exercer o cargo. É atribuição do administrador judicial arrecadar e avaliar todos os bens e apreender os livros contábeis que estiverem na posse do falido, conforme regra prevista no art. 22, III, “f”, c/c os arts. 108-110 da LFRE. Em geral, esses bens devem ficar sob a guarda do administrador judicial, mas é possível a nomeação de terceiros como depositários, inclusive o próprio falido ou os sócios da sociedade falida. É nula a hasta pública para a alienação de bens de devedor falido realizada por juízo diverso do falimentar após a decretação da falência, mesmo que a penhora seja anterior à sentença de falência.34 Todos os bens arrecadados constarão do auto de arrecadação, que é composto do inventário e do laudo de avaliação, devendo ser assinado pelo administrador judicial e por quem mais presenciou o ato, como o promotor de justiça ou o falido. Nesse documento também deverá constar a arrecadação dos livros e todas as observações que o administrador judicial entender convenientes, como a informação de que determinado bem arrecadado na posse do falido pode pertencer a terceiro. Por fim, a arrecadação de alguns bens necessita de providências complementares, como no caso dos imóveis, mediante averbação no Registro Geral de Imóveis, ou das marcas,que se efetiva com a averbação perante o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). O conjunto de bens arrecadado forma a chamada “massa falida objetiva” ou “ativa”, tratada pelos italianos como “patrimônio falimentar”, e por estar sob a tutela estatal não pode ser objeto de usucapião. Nesse sentido: FALIMENTAR E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. DESCABIMENTO. EFEITOS DA DECRETAÇÃO DA FALÊNCIA. PATRIMÔNIO AFETADO COMO UM TODO. USUCAPIÃO. INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. MASSA FALIDA OBJETIVA. ART. 47 DO DL 7661/45. OBRIGAÇÕES DE RESPONSABILIDADE DO FALIDO. (...). 5. O bem imóvel, ocupado por quem tem expectativa de adquiri-lo por meio da usucapião, passa a compor um só patrimônio afetado na decretação da falência, correspondente à massa falida objetiva. Assim, o curso da prescrição aquisitiva da propriedade de bem que compõe a 34 STJ, CC 158.274/SP. Rel. ministro Luis Felipe Salomão. Julgamento: 18/06/2019. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 67 massa falida é interrompido com a decretação da falência, pois o possuidor (seja ele o falido ou terceiros) perde a posse pela incursão do Estado na sua esfera jurídica. 6. A suspensão do curso da prescrição a que alude o art. 47, do DL 7.661/45 cinge-se às obrigações de responsabilidade do falido para com seus credores, e não interfere na prescrição aquisitiva da propriedade por usucapião, a qual é interrompida na hora em que decretada a falência devido à formação da massa falida objetiva. (...). (REsp 1680357/RJ, Rel. ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 10/10/2017, DJe 16/10/2017) Bens não sujeitos à arrecadação Todos os bens da sociedade empresária falida estão sujeitos à arrecadação. Contudo, duas situações merecem atenção especial. A primeira diz respeito à falência do empresário individual, algo raríssimo de ocorrer. Já a outra se refere aos bens dos sócios atingidos por desconsideração da personalidade jurídica. Nessas duas hipóteses, não são passíveis de arrecadação: � bens absolutamente impenhoráveis (art. 108, § 4º, da LFRE c/c art. 833, do CPC); � bens legalmente impenhoráveis (Ex.: bem de família – Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990); Outro tema corriqueiro se refere ao tratamento a ser conferido à meação do cônjuge do empresário falido ou do sócio atingido pela desconsideração. Após muito refletir sobre o tema, passamos a defender o entendimento de que caberá ao conjugue meeiro o ônus de provar, por meio de embargos de terceiro, que não se beneficiou daquela atividade empresarial e, sobretudo, daqueles atos de confusão patrimonial ou de desvio de finalidade. Nesse sentido caminha a jurisprudência do egrégio Superior Tribunal de Justiça que, no julgamento dos EDcl no AREsp 1282697, manteve acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo consagrando o seguinte entendimento: Examinando os autos, vislumbra-se que houve a desconsideração da personalidade jurídica nos autos da falência para alcançar os bens do sócio da falida e esposo da agravante, Senhor Antônio Gomes de Oliveira Júnior. É dos autos também que o juízo falimentar autorizou a alienação em outro processo judicial de um imóvel que teve a sua cota-parte pertencente ao sócio da falida arrecadado nos autos da falência, determinando-se que o respectivo produto da arrematação/adjudicação cabente ao esposo da agravante fosse depositado nos autos falimentar. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 68 Assim, a integralidade do valor cabente ao sócio da falida e à sua esposa, ora agravante, foi depositada nos autos da falência. Com efeito, extrai-se da interpretação conjunta dos artigos 592, IV do CPC e 1643 e 1644 do C.C. que a meação somente responderá pelas dívidas do cônjuge se demonstrado que foram contraídas em benefício do núcleo familiar. Assim e respeitado o entendimento defendido nas razões recursais, tem-se que eventual direito de meação do cônjuge do falido não pode ser tutelada nos autos da falência. Cabe a ela, ciente da arrecadação, manifestar seu inconformismo em sede de embargos de terceiro, no qual se oportunizará a comprovação de que o patrimônio arrecadado, incluída a meação, foi ou não adquirido com recursos da empresa falida, a justificar a arrecadação ou a preservação da meação. Não basta a mera alegação, nos autos da falência, de que agravante não se aproveitou economicamente das dívidas contraídas pela falida, para autorizar a liberação e sua meação. (STJ, EDcl no AREsp 1282697. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE. Decisão Monocrática Publicada em 01/04/2019). Nesse mesmo sentido, trazemos à colação recente acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o tema: Embargos de terceiros – Arrecadação de imóveis – Desconsideração da personalidade jurídica de sociedade empresarial nos autos de falência – Cabível e adequada a constrição da integralidade do bem – Presunção de reversão dos atos de comércio em benefício da entidade familiar – Inexistência de prova em sentido contrário – Precedentes do Superior Tribunal de Justiça - Sentença mantida – Recurso não provido. (TJSP; Apelação Cível 0225556-02.2009.8.26.0100; Relator (a): César Peixoto; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 37ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/01/2020; Data de Registro: 30/01/2020) Negociação com os bens da massa falida Como já destacado, caberá ao administrador judicial administrar os bens da massa falida, e o ato negocial mais comum é a locação, com observância da regra ínsita no art. 114 da LFRE. Diante da obrigação de liquidação dos bens em 180 dias após a respectiva arrecadação, somente naqueles casos em que houver justa causa que impeça essa alienação é que se pode pensar na gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 69 locação desses bens. Seria o caso, por exemplo, de um imóvel arrecadado pela massa falida que é objeto de pedido de restituição. O mérito da conveniência ou não da locação de bens da massa falida é dos credores, por meio do comitê. Porém, não havendo comitê, a locação dependerá apenas da autorização do juiz, precedida da oitiva do Ministério Público. Em tese, com lastro no art. 111 da LFRE, o juiz pode autorizar a venda de alguns bens diretamente para os credores, em uma espécie de adjudicação, observada a ordem de classificação – pois haveria compensação –, se for de interesse da massa, observado o preço de avaliação. Trata- se de medida de difícil concretização exatamente em razão da grande probabilidade de subversão da ordem de preferência dos credores. O juiz também poderá autorizar a venda antecipada dos bens perecíveis ou sujeitos a uma condição especial, como de difícil guarda ou de fácil desvalorização, conforme art. 113 da LFRE. Em todos esses casos, o comitê de credores e o Ministério Público devem ser ouvidos. Pedidos de restituição O terceiro que teve algum bem arrecadado pelo administrador judicial poderá reavê-lo por meio de um procedimento denominado “pedido de restituição”. A regulamentação do pedido de restituição, estruturada nos arts. 85-93 da LFRE, segundo a nossa ótica, foi bastante simplificada, embora nem todos os pontos divergentes tenham sido equacionados. A ação de restituição tem natureza incidental e pode ser de jurisdição voluntária ou contenciosa, quando resistida, consubstanciando o meio pelo qual se pede ao juízo a devolução do bem arrecadado, normalmente porque estava na posse do falido quando da sua quebra. Em razão da sua natureza, só pode ser formulado por meio de advogado regularmente constituído,e o seu processamento será em autos apartados. O pedido de restituição in natura está disciplinado no art. 85 da LFRE e é dividido pela doutrina em restituição ordinária (caput) e restituição excepcional (parágrafo único), tendo absoluta prioridade na ordem de atendimento, antes mesmo das despesas extraconcursais, consoante art. 149 da LFRE. Por sua vez, os pedidos de restituição em dinheiro estão disciplinados nos incisos do art. 86 da LFRE, e passaram a ocupar, após a reforma de 2020, o terceiro lugar na ordem de prioridades das despesas extraconcursais, consoante art. 84, I-C, da LFRE. Restituição ordinária – in natura Prevista no caput do art. 85 da LFRE, é a mais comum. Ocorre quando um bem de terceiro é arrecadado por força da falência do devedor, seja porque estava na posse deste ou por equívoco do administrador. A regra é que o bem seja devolvido o quanto antes ao proprietário in natura. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 70 Relembremos que o administrador judicial consignará no auto de arrecadação todas as observações a respeito dos bens, em especial a alegação de que eles não pertencem ao falido. Em situações peculiares, o objeto do pedido de restituição é dinheiro, consoante reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Súmula 417, quando, por força de lei ou de contrato, o falido estiver na posse de quantia de terceiros, como na hipótese da falência de uma sociedade de transporte de valores ou, em um exemplo cada vez mais corriqueiro, de uma sociedade que tenha alienado os seus recebíveis para terceiros muito antes da falência e, por qualquer razão, tenha recebido diretamente do devedor e ainda não tenha repassado a quantia ao seu titular. Embora controvertida no campo doutrinário, a jurisprudência predominante confere ao consorciado não sorteado a prerrogativa de pedir a restituição dos valores entregues ao consórcio – pagos –, conforme se constata pelo precedente abaixo: RECURSO ESPECIAL. FALÊNCIA. PEDIDO DE HABILITAÇÃO DE CRÉDITO ANTERIOR AO PEDIDO DE RESTITUIÇÃO. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. INEXISTÊNCIA. – O pedido de habilitação de crédito não impede que seu autor – renunciando a tal pedido – requeira a restituição do bem ou do valor a ser habilitado. ADMINISTRADORA DE CONSÓRCIO. FALÊNCIA. RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS AOS CONSORCIADOS. POSSIBILIDADE. – Podem ser objeto de pedido de restituição os valores pagos pelos consorciados à administradora de consórcio que teve sua falência decretada (REsp 410.363/SP, Rel. ministro Humberto Gomes de Barros, 3ª Turma, Julgamento: 18/04/2006, DJ 22/05/2006, p. 190). Nesse sentido: STJ, Recurso Especial nº 1.031.330-RS (2008/0031771-3). Relator: Min. Raul Araújo. Decisão Monocrática publicada em 28/06/2011. Escorado no entendimento preconizado pela súmula mencionada, o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e a Fazenda Nacional, com relativa frequência, reivindicavam a restituição dos valores descontados dos salários dos empregados, a título de contribuição previdenciária ou de imposto de renda retido na fonte, e não repassadas ao Fisco. Havia grande divergência sobre a legitimidade desses pedidos, mas a jurisprudência caminhava firme ao lado Fisco, salvo em relação aos acréscimos decorrentes da mora, que eram classificados como créditos concursais.35 De toda maneira, essas verbas passaram a ser tratadas não mais como restituições in natura, do art. 85, mas como restituições em dinheiro, previstas no art. 86, inciso IV, da LFRE. 35 STJ, REsp. 780.971/RS, 1ª Turma. Rel. ministro Teori Albino Zavascki. Julgamento: 05/06/2007. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 71 Bens alienados fiduciariamente, arrendados ou decorrentes de compra e venda com reserva de domínio Em relação aos contratos de alienação fiduciária, arrendamento mercantil, compra e venda com reserva de domínio e promessa de compra e venda com cláusula de irrevogabilidade e irretratabilidade, os bens estão apenas na posse direta do devedor, mas o direito de propriedade – ou equivalente – pertence ao credor. Assim, em caso de falência do devedor e diante da arrecadação do bem, em princípio, o credor poderá pedir a sua restituição. No que toca à competência, de rigor, se o credor já havia ajuizado algum procedimento no foro comum para reaver o bem, como ação de busca e apreensão ou reintegração de posse, antes da decretação da falência, o processo deveria seguir o seu trâmite normal, com a intimação do administrador judicial e do Ministério Público, retificando-se o polo passivo.36 Esse, no entanto, não tem sido o caminho trilhado pelas decisões mais recentes: APELAÇÃO – AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO – Ação extinta sem resolução do mérito – Recurso do vencido buscando a reforma julgado, aduzindo que o crédito advindo de contrato com garantia real está excluído dos efeitos da recuperação judicial e falência, por expressa disposição contida no artigo 49, § 3º da Lei nº 11.101/05 – Requerida que teve convolada a recuperação judicial em falência – INVIABILIDADE DE SE PROSSEGUIR COM A AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO – JUÍZO UNIVERSAL DA FALÊNCIA – Proprietário do bem que deve pleitear as medidas cabíveis perante o juízo falimentar, para viabilizar a retomada do veículo – Inteligência do artigo 85, caput da Lei nº 11.101/05 e do artigo 7º do Decreto-Lei nº 911/69 – Sentença mantida – Recurso desprovido (TJSP; Apelação Cível 1001931-70.2016.8.26.0451; Relator: José Augusto Genofre Martins; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Piracicaba – 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/07/2019). Independentemente da espécie de procedimento, como assinalamos, o administrador deverá ser intimado, ocasião em que poderá concordar com o pedido de restituição do bem, resolvendo-se a demanda na forma contratualmente prevista. Contudo, caso o administrador entenda que é melhor para a massa falida continuar na posse do bem, desde que autorizado pelo juízo, o contrato poderá ser cumprido na forma pactuada, pagando-se as prestações em dia com os recursos disponíveis em caixa, ou seja, como despesa extraconcursal, com fulcro nos arts. 84, 117 e 118 da LFRE. 36 STJ, REsp 243.385/SP. Rel. ministro Aldir Passarinho Junior, 4ª Turma, Julgamento: 04/06/2002, DJ 26/08/2002, p. 225. e STJ, REsp 847.759/MG. Rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, Julgamento: 01/12/2009, DJe 14/12/2009. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 72 Restituição excepcional O parágrafo único do art. 85, da LFRE, a exemplo do § 2º, do art. 76 do Decreto-Lei nº 7.661/45, permite que os bens vendidos ao falido a crédito e entregues nos 15 dias anteriores ao requerimento de falência, se ainda não alienados, sejam restituídos ao vendedor. Prima facie, parece tranquila a aplicação da restituição excepcional, mas vários problemas surgem a partir de um exame mais aprofundado. Inicialmente, é preciso consignar que sobre o tema existem duas súmulas do STF. A primeira a ser analisada é a Súmula 495. Pacificou-se o entendimento de que a restituição só é cabível se o bem objeto da reivindicação realmente tiver sido arrecadado, pois não há que se falar em restituição de algo que não foi arrecadado. Assim, a expressão “se ainda não alienados” deve ser compreendida no sentido de que, se o bem já tiver sido revendido pelo falido antes da falência, não há que se falar em restituição. O ônus da prova é da massa falida segundo jurisprudência do STJ. A segunda súmula a ser analisada é a 193. O termo “entrega”utilizado no parágrafo único do art. 85 compreende só a entrega efetiva ou também inclui a entrega simbólica? Para o STF, somente é cabível o pedido de restituição excepcional quando a entrega for efetiva e ocorrer nesses 15 dias anteriores ao requerimento de falência. Primeiro, porque toda exceção deve ser interpretada restritivamente. Segundo, porque, em relação à entrega simbólica, existia o art. 44, I, do Decreto-Lei nº 7.661/45, agora art. 119, I, da LFRE, pelo qual o vendedor poderia impedir a entrega da coisa ao comprador falido, desde que este não prove que revendeu as mercadorias em trânsito a terceiro de boa-fé antes do requerimento de quebra. Não podemos olvidar que o saudoso professor Rubens Requião repudiava tal entendimento, seja porque a lei não estabelecia diferença entre a entrega efetiva e a simbólica, seja porque o Right of Stoppage in Transitu tratava de hipótese completamente diversa, o que dificultaria a defesa do direito do vendedor, ludibriado pelo comprador em estado de insolvência. Outra questão interessante, cuja solução não está claramente prevista na legislação, é quando a compra for pactuada nos 15 dias anteriores ao pedido de falência, mas a coisa só for entregue após esse pedido. Em nossa opinião, provado que o vendedor não tomou conhecimento do pedido de falência ou não teve como obstar a entrega da coisa, dever-se-ia permitir a restituição do bem. Restituição em dinheiro As restituições em dinheiro, que não se confundem com as hipóteses albergadas pela Súmula 417 do STF, estão previstas em quatro incisos do art. 86 da LFRE: I. Na hipótese ventilada no inciso I do art. 86, da LFRE, o bem do terceiro arrecadado pelo administrador judicial não mais existe ao tempo do pedido de restituição. Em casos de desaparecimento do bem por furto ou extravio, a restituição se dará em dinheiro, no valor da avaliação. Na hipótese de já ter sido alienado na falência, a gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 73 restituição se dará em dinheiro, no valor equivalente ao obtido pela massa falida. Assim, o único requisito para a devolução do bem de terceiro é que este tenha sido arrecadado. II. Por questões de política de incentivo às exportações, com o objetivo de redução dos spreads bancários nos contratos de empréstimos dentro desse segmento, os valores adiantados – emprestados – pelas instituições financeiras para os exportadores, nas modalidades de adiantamento de contrato de câmbio e adiantamento sobre cambiais entregues (ACC e ACE), em caso de falência do mutuário, poderão ser restituídos com base no art. 86, II, da LFRE e no art. 75, §§ 3º e 4º, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965.37 Sobre o tema, além da Súmula 307, edificada sob a égide do Decreto-Lei nº 7.661/45, a jurisprudência é firme: constitui entendimento pacificado na 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que o adiantamento de contrato de câmbio, por representar patrimônio do credor em poder da falida e não bem da Massa, não pode ser preterido em favor de créditos trabalhistas, cabendo ser restituído ao banco titular, antes do pagamento daqueles [...] (STJ, REsp 1440783/SP, Rel. ministro Moura Ribeiro, 3ª Turma, Julgamento: 14/06/2016, DJe 21/06/2016). III. Por fim, é cabível a restituição em dinheiro quando o juízo falimentar, ao declarar a ineficácia de algum ato praticado pelo falido, na forma do art. 129 c/c o art. 136, ambos da LFRE, entende que o terceiro com quem o falido negociou estava de boa-fé. Nesse caso, mesmo com a declaração de ineficácia do negócio, todo valor eventualmente entregue pelo terceiro ao falido deverá ser restituído, com fulcro no art. 86, III, da LFRE. Um bom exemplo seria a hipótese do credor que adquiriu do devedor, dentro do termo legal, um bem imóvel, pagando parte do preço em dinheiro e a outra com um crédito que tinha contra o aquele – dação em pagamento (art. 129, III, da LFRE). IV. Finalmente, valores recebidos pelos agentes arrecadadores e não recolhidos aos cofres públicos, tais como o INSS e o IR retido dos empregados, passam a ser tratados, como já advertimos, como restituições em dinheiro. 37 Importante acórdão do STJ resume todas as variáveis desses contratos e merece ser lembrado: REsp. 365.778/RS. 1ª Turma. Rel. ministro Luiz Fux. Julgamento: 20/09/2005. DJU. 10/10/2005. p. 221. RDDT, 124-225. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 74 Repise-se que o grande diferencial das restituições in natura em relação às restituições em dinheiro é a prioridade no seu atendimento. As restituições amparadas pelo art. 85 têm absoluta prioridade sobre todas as despesas extraconcursais, enquanto as restituições em dinheiro do art. 86 estão posicionadas em terceiro lugar na ordem de privilégio das despesas extraconcursais, na forma do art. 84, inciso I-C38. Rito da restituição O procedimento do pedido de restituição está previsto no art. 87 da LFRE. Formulado o requerimento e devidamente autuado em apartado, serão intimados, sucessivamente, o falido, o comitê de credores, os credores e, finalmente, o administrador judicial, para se manifestarem em cinco dias. Apesar da omissão legal, por óbvio o Ministério Público deve ser intimado para se manifestar. A lei permite que, “antes do trânsito em julgado da sentença”, o bem seja entregue ao reivindicante, se prestada caução, consoante art. 90, parágrafo único, da LFRE, que deve ser combinado com o art. 273 do CPC. Caso qualquer das partes se manifeste contra o pedido, funcionará como contestação. Contudo, o juiz julgará o pedido independentemente de resistência, podendo determinar a produção de provas de ofício. Não havendo necessidade de provas, os autos serão conclusos para sentença. Se procedente, será expedido alvará de liberação, consoante art. 88 da LFRE. Não pode haver nenhum tipo de acordo extrajudicial, eis que não cabe devolução amigável pelo administrador judicial. A decisão é exclusiva do juiz da falência. Interessante é a questão do ônus de sucumbência. A infeliz redação do parágrafo único do art. 88 da LFRE pode dar a impressão de que, em qualquer caso de resistência ao pedido, haverá condenação da massa falida nos honorários advocatícios. No entanto, a condenação da massa falida só pode acontecer quando a resistência vier do administrador judicial, e não de um credor, do falido ou do Ministério Público. Uma vez negado o pedido de restituição, se o juiz reconhecer que o requerente é credor de qualquer quantia, mandará de ofício incluí-lo no quadro geral, com base no art. 89 da LFRE. A decisão que aprecia o pedido de restituição continua desafiando o recurso de apelação, sem efeito suspensivo, conforme art. 90, caput, da LFRE. No entanto, enquanto não transitar em julgado, fica suspensa a disponibilidade da coisa, ou seja, não poderá ser alienada pela massa, consoante art. 91, da LFRE. Nas hipóteses de restituição em dinheiro, quando não houver saldo suficiente para o atendimento de todos, será feito um rateio entre eles, conforme parágrafo único do art. 91 da LFRE. 38 LIMA, Sérgio Mourão Corrêa. Comentários à nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. Coordenadores: Osmar Brina Corrêa-Lima e Sérgio Mourão Corrêa Lima. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 621. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 75 O reivindicante terá de reembolsar à massa falida as despesas com a conservação da coisa, na forma do art.92 da LFRE, e esse valor pode ser fixado na própria decisão que autoriza a entrega do bem. Em redação muito mais apropriada, a nova lei, no seu art. 93, não afasta a possibilidade do manejo dos embargos de terceiros, quando não for cabível o pedido de restituição, ou seja, em caso de mera turbação. As hipóteses mais comuns são os embargos de terceiro para defesa de meação ou quando há mera turbação. O procedimento está previsto no CPC. Desconsideração da personalidade jurídica e outros casos de responsabilização O atual CPC, nos arts. 133-137, disciplina o incidente de desconsideração de personalidade jurídica, valendo registrar que ele é aplicável ao processo falimentar, salvo em relação ao comando que determina a suspensão do processo principal enquanto não resolvido o incidente, conforme art. 82-A, da LFRE. A desconsideração da personalidade jurídica tem como principais causas o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, na linha positivada no art. 50 do CC, permitindo-se, quando da sua comprovação, o avanço sobre o patrimônio de terceiros, de grupo econômico, dos sócios ou dos administradores. No âmbito falimentar, esse abuso é normalmente verificado quando comprovada a dissolução irregular da sociedade empresária, agravada pela absoluta ausência de bens e de escrituração contábil.39 Há de se observar, na esteira do que foi reconhecido por unanimidade pela 4ª Turma do STJ,40 em processo de falência que atuamos, que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica não está sujeito a qualquer prazo prescricional ou decadencial, podendo alcançar ex-sócios que se retiraram da sociedade muito tempo antes da decretação da falência, desde que fique provado que eles foram os responsáveis pelos atos de dilapidação patrimonial, decorrentes de abuso da personalidade jurídica ou confusão patrimonial, consoante art. 50 do CC. Os tribunais muitas vezes não percebem a sutil, mas importante, diferença entre a desconsideração da personalidade jurídica e a “extensão dos efeitos da falência”. A primeira tem efeitos exclusivamente patrimoniais, pois os bens da pessoa atingida serão arrecadados para o pagamento dos credores, enquanto a segunda, mais grave, também gera efeitos pessoais, mormente aqueles previstos no art. 104 da LFRE. Muito embora sem previsão legal expressa no nosso ordenamento, o instituto da “extensão da falência” vinha sendo bastante utilizado, muitas vezes sob a denominação de “desconsideração expansiva” da personalidade jurídica. De toda forma, com a reforma, o incidente de 39 TJMG, AI 1.0527.09.006590-7/001, Julgamento: 02/08/2011. 40 STJ, RESP. 1.180.191/RJ. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 76 desconsideração passa a ser a única opção, a teor do que agora prevê o art. 82-A, da LFRE. Também nessa linha de ideias, o TJSP formou sólida jurisprudência: FALÊNCIA – INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E EXTENSÃO DOS EFEITOS DA FALÊNCIA – Tutela de urgência deferida para determinar o arresto cautelar de todos os bens e bloqueio dos ativos financeiros – Fortes elementos indiciários que conduzem à verossimilhança necessária ao deferimento da tutela de urgência recorrida a fim de assegurar a salvaguarda patrimonial em caso de eventual responsabilização pessoal e/ou a desconsideração da personalidade jurídica dos entes naturais ou jurídicos, especialmente diante do trâmite paralelo da recuperação judicial dos recorrentes – Decisão mantida – Recurso não provido. Dispositivo: negam provimento ao recurso (TJSP; Agravo de Instrumento 2254941-52.2018.8.26.0000; Relator: Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de São Carlos – 5ª Vara Cível; Julgamento: 10/09/2019; Registro: 17/09/2019). O magistério de Noronha e Lima, com expressa referência à jurisprudência do STJ, é preciso ao defender a extensão da falência: Portanto, quando as provas dos autos indicarem “a existência de notório desvio de finalidades sociais para fins ilícitos e unidade de interesses, direção e confusão patrimonial, tudo voltado para a prática de atos reputados irregulares pelo direito” (REsp. 228.357/SP), duas ou mais sociedades devem sujeitar-se a processo falimentar único.41 A desconsideração da personalidade jurídica e a extensão da falência não se confundem com a ação de responsabilidade, prevista no art. 82 da LFRE, e também em leis especiais, como no caso dos arts. 39 e 40, da Lei nº 6.024/74 e do art. 159 da Lei nº 6.404/76. A desconsideração maior exige a demonstração de benefício de quem se quer atingir, enquanto a ação de responsabilidade se baseia ordinariamente no conceito de culpa por eventual prejuízo causado à sociedade em uma operação específica, sem a necessidade de prova de que houve benefício econômico. Nesse sentido: 41 NORONHA, João Otávio; LIMA, Sérgio Mourão Corrêa. Comentários à nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. Coordenação: Osmar Brina Corrêa-Lima e Sérgio Mourão Corrêa Lima. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 117. gustavosp Realce 77 DIREITO PROCESSUAL CIVIL E COMERCIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA SUJEITA À LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL NOS AUTOS DE SUA FALÊNCIA. POSSIBILIDADE. A CONSTRIÇÃO DOS BENS DO ADMINISTRADOR É POSSÍVEL QUANDO ESTE SE BENEFICIA DO ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. – A desconsideração não é regra de responsabilidade civil, não depende de prova da culpa, deve ser reconhecida nos autos da execução, individual ou coletiva, e, por fim, atinge aqueles indivíduos que foram efetivamente beneficiados com o abuso da personalidade jurídica, sejam eles sócios ou meramente administradores. – O administrador, mesmo não sendo sócio da instituição financeira liquidada e falida, responde pelos eventos que tiver praticado ou omissões em que houver incorrido, nos termos do art. 39, Lei 6.024/74, e, solidariamente, pelas obrigações assumidas pela instituição financeira durante sua gestão até que estas se cumpram, conforme o art. 40, Lei 6.024/74. A responsabilidade dos administradores, nestas hipóteses, é subjetiva, com base em culpa ou culpa presumida, conforme os precedentes desta Corte, dependendo de ação própria para ser apurada. – A responsabilidade do administrador sob a Lei 6.024/74 não se confunde a desconsideração da personalidade jurídica. A desconsideração exige benefício daquele que será chamado a responder. A responsabilidade, ao contrário, não exige este benefício, mas culpa. Desta forma, o administrador que tenha contribuído culposamente, de forma ilícita, para lesar a coletividade de credores de uma instituição financeira, sem auferir benefício pessoal, se sujeita à ação do art. 46, Lei 6.024/74, mas não pode ser atingido propriamente pela desconsideração da personalidade jurídica. Recurso Especial provido (Resp 1036398/RS, Rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, Julgamento: 16/12/2008, DJe 03/02/2009). Efeitos da falência em relação aos contratos do falido Certamente, muitas dúvidas surgem sobre o que fazer em relação aos contratos, sobrevindo a falência de uma das partes. Os efeitos variam de acordo com a espécie do contrato, mas duas regras básicas foram criadas: uma dedicada aos contratos unilaterais e outra para aos bilaterais. 78 Contratos bilaterais Os contratos bilaterais não se resolvem pela falência, a exemplo do sistema anterior, consoante determina o art. 117 da LFRE, cabendo ao administrador judicial decidir pelo seu prosseguimento ou não, conforme interesse da massa falida. Contudo, se optar pelo prosseguimento do contrato, tal decisão deve ser endossadapelo comitê de credores, se existir, ou autorizada pelo juízo falimentar. Trata-se, segundo o nosso sentir, de um ato jurídico complexo. Para rescisão, no entanto, basta a vontade do administrador, uma vez que não gera despesas extraconcursais. Caso o administrador judicial não se manifeste sobre o prosseguimento ou não do contrato bilateral, o terceiro poderá interpelá-lo, judicial ou extrajudicialmente, desde que o faça no prazo máximo de 90 dias a contar da investidura do administrador judicial, para que este diga em 10 dias se cumprirá ou não o contrato. Registre-se que, em caso de resposta negativa ou silêncio do administrador judicial, nasce para o terceiro contraente o direito de habilitar o valor de eventual multa rescisória na classe própria ou de propor contra a massa, no juízo falimentar, ação de cunho indenizatório, que, em caso de procedência, constituirá saldo quirografário. Ricardo Tepedino sugere a seguinte interpretação:42 Só se encontra um meio de aproveitar utilmente os dois dispositivos: a multa contratual a que se refere o inciso VII do art. 83 é aquela estabelecida para o caso de mora ou para inexecução de uma cláusula especial. Para a resolução do contrato, pode o outro contratante habilitar na falência, como crédito quirografário, o montante previamente fixado na cláusula penal, sem prejuízo de sua redução, nos termos do aludido art. 413 do CC. Ousamos discordar. As multas dos contratos bilaterais, tenham ou não se resolvido pela falência, devem ser incluídas na classe prevista no art. 83, VII, da LFRE. Já a indenização de que trata o art. 117, § 2º, deve ser tratada como crédito quirografário. A diferença se justifica, na medida em que a multa é fruto da mera vontade das partes, enquanto a indenização é decorrente de uma profunda análise pelo juiz dos prejuízos suportados pelo terceiro com o rompimento do contrato. 42 TEPEDINO, Ricardo. Comentário ao artigo 117 da Lei 11.101/05. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coords.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresa e de Falência. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 313. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 79 Contratos unilaterais Os contratos unilaterais em que o falido é o credor não se resolvem pela falência, já que inexiste ônus para a massa falida. No tocante aos contratos unilaterais em que o falido é o devedor, a regra é o seu vencimento antecipado, sem incidência de multa rescisória, na forma do art. 77, c/c o art. 83, § 3º, ambos da LFRE, salvo se o administrador judicial, endossado pelo comitê ou pelo juízo, conclua ser de interesse da massa falida realizar o pagamento da obrigação como crédito extraconcursal, consoante art. 118, c/c o art. 84, da LFRE. O sistema anterior disciplinava expressamente as obrigações sujeitas à condição suspensiva, o que não se verifica na lei nova. No entanto, mesmo diante da lacuna atual, sustentamos que não há vencimento antecipado dessas obrigações, pelo menos enquanto não se verificar a condição, ressalvado o direito de o credor se habilitar na massa, mas o efetivo pagamento só se dará com a implementação da respectiva condição. Situações especiais Conquanto existam essas duas regras gerais, outras de cunho especial devem ser observadas. Vejamos as mais importantes. Compra e venda a prazo: mercadorias em trânsito Segundo o art. 119, I, da LFRE, celebrado um contrato de compra e venda a prazo e ocorrendo a quebra do comprador antes da entrega das mercadorias, o que pode ser feito pelo vendedor? 1ª situação: se a mercadoria já tiver sido entregue ao comprador, o vendedor deve verificar se é ou não o caso do pedido de restituição. Caso não exista essa possibilidade, deverá habilitar-se na falência como qualquer credor. 2ª situação: se a mercadoria ainda estiver em trânsito, nasce para o vendedor o chamado right of stoppage in transitu, ou direito de “estopagem”, isto é, o vendedor poderá sustar a entrega da mercadoria, impedindo-a de chegar às mãos do comprador falido, desde que este não faça a prova de já ter revendido a mercadoria, por conta das faturas e do conhecimento de transporte, sem fraude. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 80 Em resumo, o transportador recebe uma ordem do vendedor para não efetivar a entrega, que pode ser judicial ou extrajudicial – contraordem. Esse direito de “estopagem” não é absoluto, pois só pode ser exercido: a) quando o comprador não tiver revendido a mercadoria ou b) quando o comprador tiver revendido essa mercadoria com fraude. Compra e venda de coisas compostas Na linha do art. 119, II, da LFRE, se o devedor vendeu coisas compostas e não as entregou totalmente antes da falência, resolvendo o administrador judicial não cumprir o contrato, o comprador poderá, em tese, colocar as coisas já recebidas à disposição da massa falida e pleitear perdas e danos, na forma do art. 117, § 2º, da LFRE. Compra e venda com reserva de domínio Na forma do art. 119, IV, da LFRE, caso o devedor tenha adquirido algum bem antes da falência em um contrato com cláusula de reserva de domínio, não pretendendo o administrador judicial cumprir com os pagamentos, deverá devolver a coisa após uma vistoria e o arbitramento do seu valor para que, descontado o valor pago e com o acréscimo das despesas judiciais e extrajudiciais, o vendedor possa restituir à massa o saldo verificado, salvo se existir outra forma de liquidação prevista no contrato. Abaixo, segue exemplo: valor do negócio : 100 mil valor pago : 40 mil valor da vistoria : 80 mil saldo a restituir : 20 mil Patrimônio de afetação Embora referenciado no art. 119, IX, da LFRE, a disciplina jurídica do patrimônio de afetação está na Lei nº 10.934/01. Em suma, por decisão dos promitentes compradores em assembleia especial, é possível que o patrimônio de afetação não se confunda com os demais bens do falido até o seu termo ou cumprimento do seu objetivo, sendo certo que eventual saldo credor será revertido em favor da massa falida, enquanto eventual saldo devedor do empreendimento deverá ser habilitado na classe quirografária. Na hipótese de promitentes compradores desistirem do empreendimento, os seus ativos se reverterão totalmente para a massa falida, e os créditos dos promitentes compradores serão listados na classe dos credores quirografários. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 81 Locação Disciplinado no art. 119, VII, da LFRE, o tratamento do contrato de locação dependerá da posição no falido no contrato. A falência do locador não importa em alteração do contrato, devendo o administrador judicial respeitar o pacto vigente, notando-se que a intenção do legislador é proteger a empresa do locatário. Se a falência for do locatário, aplica-se a regra dos contratos bilaterais, isto é, nasce para o administrador judicial o poder de, a qualquer tempo, denunciar o contrato, resolvendo-se em perdas e danos, na forma do art. 117, § 2º, c/c o art. 83, VII, ambos da LFRE. Algumas observações são importantes. A primeira delas é uma advertência contra eventuais fraudes, pois já nos deparamos com casos em que a devedora, na véspera da falência, celebrou contrato de locação dos seus principais ativos, sobretudo bens imóveis, por um prazo extremamente longo e com um aluguel bem abaixo do valor de mercado, com uma sociedade cujos sócios eram “testas de ferro”dos próprios devedores, algumas vezes até parentes próximos. Também merece destaque a discussão sobre a possibilidade de ação renovatória do contrato de locação contra a massa falida, ou do direito de preferência em caso de alienação do bem imóvel, com fundamento no preenchimento dos requisitos exigidos pela Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991. Massa falida e sociedade falida não se confundem, sendo certo que o objetivo do processo de falência é a liquidação de todos os bens do devedor, sem ônus para o arrematante e pelo maior lance, razão pela qual não há nem o direito à renovação compulsória, muito menos o de preferência, quando da alienação em hasta pública. Nesse sentido: FALÊNCIA – HABILITAÇÃO DE CRÉDITO – Competência desta Turma Julgadora, oriunda da prevenção pelo julgamento de recursos anteriores, envolvendo a mesma Massa Falida agravada – Decisão que afastou o alegado direito de preferência pleiteado pela agravante, sublocatária do imóvel pertencente à massa falida, decorrente de arrematação em leilão judicial – Insurgência que não comporta acolhida – Em se tratando de alienação judicial em leilão de bem arrecadado na falência da locadora, a sublocatária não tem o direito de preferência previsto no art. 30 da Lei 8.245/91, por expressa exclusão legal (art. 32), tendo ela apenas o direito de comparecer e participar da venda judicial, dando os lanços que entender convenientes – Direito reclamado, aliás, já afastado por esta Turma Julgadora em anterior agravo de instrumento, interposto pela mesma agravante – Edital que, no entanto, deve fazer constar a existência da sublocação, a fim de resguardar a ciência aos eventuais interessados na aquisição, evitando-se futuras nulidades – Inteligência do art. 886, VI, do Novo CPC – Recurso improvido, com observação (TJSP; Agravo de Instrumento 2258511-17.2016.8.26.0000; Relator: Salles Rossi; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 82 Central Cível – 24ª Vara Cível; Julgamento: 07/06/2017; Registro: 27/06/2017). Mandato Segundo o art. 120 da LFRE, cessa, pela falência, o mandato conferido pelo devedor quando ligado aos negócios da empresa, salvo se o mandato for para representação judicial, que só cessará mediante notificação do administrador judicial. Se o falido for o mandatário, só cessará o contrato quando ligado à atividade empresarial. Conta-corrente Pela dicção literal do art. 121 da LFRE, encerram-se as contas-correntes por ocasião da falência. Mesmo as ordens de pagamento emitidas antes da falência não podem ser aceitas se apresentadas após a quebra. Eventual saldo credor será arrecadado pelo administrador judicial e direcionado para uma conta judicial da massa falida. Eventual saldo devedor deve ser habilitado pela instituição financeira. Indivisibilidade do juízo falimentar A indivisibilidade do juízo falimentar43 persiste no novo diploma legal e impõe que todas as ações que venham a ser propostas em face da massa falida sejam da competência do juízo da falência. Dessa forma, ressalvadas as exceções que analisaremos adiante, qualquer ação que venha a ser intentada contra a massa falida há de ser proposta perante o juízo falimentar. Trata-se de uma regra de competência absoluta, eis que funcional. Portanto, caso a sociedade falida tenha, mesmo antes da falência, praticado algum ato ilícito que resultou em prejuízo para terceiros, se a ação for proposta depois da sentença de quebra, o juízo competente é o da falência, com base no art. 76 da LFRE. Questão de grande importância é estabelecer os limites das exceções dessa indivisibilidade. A seguir, analisaremos cada uma delas. 43 Art. 76. O juízo da falência é indivisível e competente para conhecer todas as ações sobre bens, interesses e negócios do falido, ressalvadas as causas trabalhistas, fiscais e aquelas não reguladas nesta Lei em que o falido figurar como autor ou litisconsorte ativo. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 83 Reclamações trabalhistas A competência da Justiça Trabalhista está prevista na própria Constituição da República,44 portanto, uma lei ordinária não poderia sobrepor-se ao comando constitucional. Então, mesmo após a decretação da falência, eventual dissídio trabalhista deve ser apreciado pela Justiça do Trabalho e, constituído o título executivo judicial, o crédito deve ser habilitado no processo falimentar, para que se respeite o princípio pars conditio creditorum. Note-se que, no polo passivo, estará a massa falida, devidamente representada pelo administrador judicial. O STF já teve oportunidade de reafirmar a sua jurisprudência após o advento da LFRE: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO DE CRÉDITOS TRABALHISTAS EM PROCESSOS DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL COMUM, COM EXCLUSÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO. INTERPRETAÇÃO DO DISPOSTO NA LEI 11.101/05, EM FACE DO ART. 114 DA CF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E IMPROVIDO. I – A questão central debatida no presente recurso consiste em saber qual o juízo competente para processar e julgar a execução dos créditos trabalhistas no caso de empresa em fase de recuperação judicial. II – Na vigência do Decreto-lei 7.661/1945 consolidou-se o entendimento de que a competência para executar os créditos ora discutidos é da Justiça Estadual Comum, sendo essa também a regra adotada pela Lei 11.101/05. III – O inc. IX do art. 114 da Constituição Federal apenas outorgou ao legislador ordinário a faculdade de submeter à competência da Justiça Laboral outras controvérsias, além daquelas taxativamente estabelecidas nos incisos anteriores, desde que decorrentes da relação de trabalho. IV – O texto constitucional não o obrigou a fazê-lo, deixando ao seu alvedrio a avaliação das hipóteses em que se afigure conveniente o julgamento pela Justiça do Trabalho, à luz das peculiaridades das situações que pretende regrar. V – A opção do legislador infraconstitucional foi manter o regime anterior de execução dos créditos trabalhistas pelo juízo universal da falência, sem prejuízo da competência da Justiça Laboral quanto ao 44 Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 84 julgamento do processo de conhecimento. VI – Recurso extraordinário conhecido e improvido (RE 583955, Relator: ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, Julgamento: 28/05/2009, Repercussão Geral – Mérito DJe-162 Divulg 27-08-2009 Public 28-08-2009 Ement Vol-02371-09 PP-01716 RTJ Vol-00212-01 pp-00570). Causas fazendárias Adotamos o mesmo fundamento para afirmar que qualquer ação que envolva a União, os estados, os municípios e as suas respectivas autarquias e fundações, mesmo que presente interesse da massa falida, deve ser apreciada pelo juízo fazendário, consoante ressalva do art. 76 da LFRE e da própria Constituição da República.45 Entretanto, a mera intervenção como amicus curiae não desloca a competência. O STJ vem reafirmando essa orientação: PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA. JUÍZO UNIVERSAL DA FALÊNCIA. AÇÃO ORDINÁRIA. PARTICIPAÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA NA RELAÇÃO PROCESSUAL.AJUIZAMENTO APÓS A QUEBRA. OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA. TEMA 976/STJ. 1. O juízo da 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São José dos Campos/SP, em Ação Ordinária em que se pleiteava a indenização por danos materiais e morais, proposta pela parte recorrente contra o Estado de São Paulo, o Município de São José dos Campos e a Massa Falida de Selecta Comércio e Indústria S/A, declarou-se absolutamente incompetente para processar e julgar a demanda ordinária e determinou a remessa dos autos à 18ª Vara Cível da Comarca de São Paulo/SP, que decretou a quebra da empresa Selecta Comércio e Indústria S/A, o que foi mantido pelo Tribunal a quo no julgamento do Agravo de Instrumento. 2. A Ação de Indenização ajuizada na origem possui relação com Ação de Reintegração de Posse proposta pela massa falida em razão de atos praticados pelo Poder Público na desocupação da área de 57 alqueires (137,94 hectares), localizada na divisa dos municípios de São José dos Campos e Jacareí, região do Vale do Paraíba, na margem direita da antiga Rodovia São Paulo – Rio de Janeiro, Km 103, matrícula imobiliária 44.955 no Cartório do Registro de Imóveis da Comarca de São José dos Campos, denominada Fazenda Parreiras de São José. 3. A Primeira Seção do STJ, no julgamento dos REsps Repetitivos 45 Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho. gustavosp Realce 85 1.643.856/SP e 1.643.873/SP, Rel. ministro Og Fernandes (DJe de 19/12/2017), em caso idêntico ao ora apreciado, fixou o Tema 976 de sua jurisprudência com a seguinte tese jurídica: "A competência para processar e julgar demandas cíveis com pedidos ilíquidos contra massa falida, quando em litisconsórcio passivo com pessoa jurídica de direito público, é do juízo cível no qual for proposta a ação de conhecimento, competente para julgar ações contra a Fazenda Pública, de acordo as respectivas normas de organização judiciária". 4. Recurso Especial provido para reconhecer a competência do juízo da Fazenda Pública da Comarca de São José dos Campos/SP (REsp 1799455/SP, Rel. ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, Julgamento: 13/08/2019, DJe 11/10/2019 – EDcl nos EDcl no CC 136.241/SP, Rel. ministro Moura Ribeiro, 2ª Seção, Julgamento: 27/05/2015, DJe 02/06/2015).46 Execuções fiscais Houve profunda modificação sobre o tema, no caso, benéfica para o sistema. As execuções fiscais contra as massas falidas seguem a regra geral de suspensão, prevista no art. 6º, inciso I, da LFRE. Por outro lado, o juízo falimentar, de ofício, mandará instaurar um incidente de classificação de crédito público para cada Fazenda Pública credora, com base no art. 7º-A. É importante destacar que o § 4º desse artigo reserva ao juízo falimentar a competência, apenas, para decidir sobre os cálculos e a classificação do crédito fiscal, enquanto as discussões sobre a existência, exigibilidade e o valor do crédito fiscal permanecem dentro da esfera de competência do juízo fazendário. Confira-se: Art. 7-A. (...) § 4º Com relação à aplicação do disposto neste artigo, serão observadas as seguintes disposições: I - a decisão sobre os cálculos e a classificação dos créditos para os fins do disposto nesta Lei, bem como sobre a arrecadação dos bens, a realização do ativo e o pagamento aos credores, competirá ao juízo falimentar; II - a decisão sobre a existência, a exigibilidade e o valor do crédito, observado o disposto no inciso II do caput do art. 9º desta Lei e as demais regras do processo de falência, bem como sobre o eventual prosseguimento da cobrança contra os corresponsáveis, competirá ao juízo da execução fiscal; 46 Nesse sentido: STJ, CC 57.640/SP. Rel. ministro Fernando Gonçalves, 2ª Seção, Julgamento: 26/09/2007, DJ 11/10/2007, p. 283. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 86 III - a ressalva prevista no art. 76 desta Lei, ainda que o crédito reconhecido não esteja em cobrança judicial mediante execução fiscal, aplicar-se-á, no que couber, ao disposto no inciso II deste parágrafo; IV - o administrador judicial e o juízo falimentar deverão respeitar a presunção de certeza e liquidez de que trata o art. 3º da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, sem prejuízo do disposto nos incisos II e III deste parágrafo; V - as execuções fiscais permanecerão suspensas até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis; VI - a restituição em dinheiro e a compensação serão preservadas, nos termos dos arts. 86 e 122 desta Lei; e VII - o disposto no art. 10 desta Lei será aplicado, no que couber, aos créditos retardatários. Os créditos fiscais deverão ser atualizados até a data da quebra pela taxa Selic, observando-se que as multas tributárias devem ser informadas separadamente, uma vez que não ostentam qualquer privilégio, muito ao contrário, conforme se verifica do disposto no art. 83, inciso VII, da LFRE. Também é importante esclarecer que os créditos tributários por fatos geradores posteriores à data da falência são considerados créditos extraconcursais, consoante art. 84, inciso V, da LFRE. Ações propostas pela massa falida Essa exceção não é nova, e quando a massa falida é autora de uma ação comum, como a despejo ou a de cobrança, a competência é determinada pelas regras gerais. No entanto, a competência será do juízo da falência para todas as ações previstas na própria LFRE, como a revocatória e a revisional do QGC. Universalidade da falência e ações em curso Como regra47, todas as execuções contra o devedor devem ser suspensas por força da sentença de falência, assim como ficam proibidos quaisquer atos de constrição de bens ou direitos do devedor falido, obrigando todos os credores a se habilitarem no concurso. 47 Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: I - suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor sujeitas ao regime desta Lei; II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência; III - proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 87 Note-se que a regra de suspensão não se aplica às demandas ilíquidas e às reclamações trabalhistas. Nesses casos, os processos prosseguem nos respectivos juízos de origem, substituindo- se o polo passivo para que passe a constar a massa falida, representada pelo administrador judicial. As ações monitórias embargadas transformam-se em demandas ilíquidas para todos os fins. Durante a tramitação das ações ilíquidas, caberá ao autor pedir ao juízo de origem a reserva de valores estimados, no prazo decadencial máximo de três anos da falência. Acolhido o pedido de reservas, o juízo de origem oficiará ao juízo da falência com a determinação da reserva de crédito estimada e, uma vez transitada em julgado aquela ação e tornado líquido e certo o crédito, este deve ser incluído no QGC na classe própria, o que entendemos deva ser feito por meio de um novo e simples ofício do juízo deorigem ao juízo da falência, e não por habilitação de crédito retardatária. Pelo sistema anterior, o Ministério Público, obrigatoriamente, tinha de intervir em todas essas ações, sob pena de anulação do processo. Hoje, em razão do veto ao art. 4º da LFRE, caberá ao membro do Ministério Público com atribuição dizer se deseja intervir ou não, conforme vislumbre interesse público na demanda envolvendo a massa falida. A sua não intimação não é causa de nulidade do processo, salvo se ficar evidenciado prejuízo à massa falida. Investigação dos negócios celebrados pelo falido antes da falência Os negócios realizados pelo devedor antes da sua quebra devem sofrer profunda investigação, e é possível que alguns deles venham a ser declarados ineficazes em relação à massa falida, de forma incidente nos autos principais da falência ou por força da ação revocatória, expressão que vem do latim revocare, que significa “trazer de volta”. Na esteira das lições do professor Caio Mário,48 ineficácia “é a ausência de efeitos quando, embora observados os requisitos legais, intercorre obstáculo extrínseco, que impede se complete o ciclo de perfeição do ato”. A ineficácia pode ser “originária ou superveniente, conforme o fato impeditivo de produção de efeitos seja simultâneo à constituição do ato ou ocorra posteriormente, operando, contudo, retroativamente”. Assim ocorre no processo falimentar, ou seja, a quebra se traduz nesse obstáculo extrínseco superveniente à perfeição do ato, fazendo com que ele não tenha – ou perca – efeitos contra a massa falida, retroativamente. Seguindo a sistemática tradicional do Direito Falimentar pátrio, a atual Lei de Falências prevê duas regras para se chegar à ineficácia dos atos praticados pelo falido. Vamos a elas. 48 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 632. v. 1. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 88 Ineficácia objetiva Afirma-se, nas restritas hipóteses do art. 129 da LFRE, que a ineficácia é de natureza objetiva, na medida em que não é preciso fazer prova da má-fé do falido ou do terceiro que com quem ele contratou, nem mesmo do prejuízo daquele negócio para a massa falida, bastando o simples enquadramento no rol taxativo previsto nos incisos do citado dispositivo legal. A decisão judicial que reconhece a ineficácia objetiva tem natureza meramente declaratória e força retroativa. Atualmente, a ineficácia objetiva pode ser reconhecida pelo juiz, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes durante o curso do processo, e não apenas nos autos de uma ação revocatória. Essa possibilidade está prevista no parágrafo único do art. 129 da LFRE,49 e está sendo prestigiada pela jurisprudência, sob o argumento de “contraditório diferido”. Vejamos: De início, a preliminar de nulidade da decisão atacada, sob o fundamento de que ela não podia declarar de ofício a ineficácia da venda do bem deve ser rejeitada. Ora, à luz do artigo 129, parágrafo único, da Lei nº 11.101/2005, é possível declarar a ineficácia de ofício e a qualquer tempo. É o que ensina o e. Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças: "Alteração de maior envergadura no que concerne à ineficácia dos atos praticados pelo devedor antes da sentença de falência é a albergada pelo parágrafo único do art. 129 que modificou o regime anterior. Na vigência do Decreto-Lei nº 7.661/45, a ineficácia dos atos do falido, tanto a denominada ineficácia objetiva, como a ineficácia subjetiva, só podiam ser reconhecidas pela via da ação revocatória. A Lei de Recuperação e Falências prevê que a ineficácia poderá ser declarada de ofício pelo juiz, alegada em defesa ou pleiteada mediante ação própria ou incidentalmente no curso do processo" (Revista do Advogado, AASP, vol. 883, ano XXV, setembro de 2005, pág. 94). Portanto, é certo que o douto magistrado poderia ter declarado de ofício a ineficácia do negócio jurídico que acarretou a venda do bem, a qualquer tempo. Não fixou a lei prazo para esta medida, razão pela qual não há que se questionar se deveria ou poderia ter o juízo a quo a declarado. O contraditório foi amplamente exercido no presente recurso, ainda que após a decisão surpresa. Vale dizer: se antes a decisão foi proferida sem prévia manifestação, neste recurso os argumentos dos agravantes poderão ser postulados, de modo a não se justificar anulação por ausência de prejuízo 49 Em alguns casos, quiçá na grande maioria, será muitíssimo difícil compatibilizar o reconhecimento da ineficácia de um negócio realizado pelo falido antes da falência, de ofício, pelo juiz durante o curso do processo, com os ditames do art. 5º, LIV, da CRFB/88 – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal –, pois ao terceiro que realizou o negócio com o falido deve ser reconhecido o direito ao contraditório e à ampla defesa. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 89 (TJSP, Agravo de Instrumento nº 2100196-85.2016.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Relator desembargador Hamid Bdine, Julgamento: 09/11/2016). Embora aparentemente desnecessária em face da novidade supra, ainda hoje é possível a utilização da ação revocatória para se reconhecer a ineficácia objetiva, especialmente quando pelos elementos contidos nos autos não for possível reconhecer de plano a prática do ato previsto no rol mencionado. Tal ação era chamada por Pontes de Miranda como “ação declaratória de ineficácia relativa”. A ineficácia objetiva está intimamente ligada ao requisito temporal, embora não esteja sujeita a prazo prescricional ou decadencial. Os três primeiros incisos do art. 129 têm como parâmetro o chamado termo legal, que pode retrotrair em até 90 dias antes do primeiro protesto por falta de pagamento contra o falido. Já as hipóteses previstas nos incisos IV e V utilizam como parâmetro temporal o denominado período suspeito, que nada mais é do que o prazo fixo de dois anos antes da decretação da falência. Por seu turno, a conduta tipificada no inciso VI tem a sua regulamentação prevista nos arts. 1.144 e 1.145 do CC, enquanto a hipótese do inciso VII tem como referência a própria sentença de falência. Analisemos, perfunctoriamente, as hipóteses de ineficácia objetiva: a) O objetivo da Lei é evitar uma preferência indevida daquele que possui um crédito ainda inexigível, em detrimento dos demais credores portadores de títulos vencidos que não foram pagos. b) Esse pagamento frustra o tratamento igualitário que deve ser dispensado aos credores. O caso mais comum é a dação em pagamento dentro do termo legal.50 c) Trata-se de uma tentativa fraudulenta de elevar um credor comum a privilegiado, muitas vezes por meio da alienação fiduciária. Há de se ter a prudência de se verificar se a garantia foi para justificar a entrada de “dinheiro novo” ou se o caso é realmente de fraude. d) Revela-se inadmissível aceitar tal conduta diante de um quadro de insolvência. Ressalvam-se, outrossim, as doações de ínfimos valores a determinadas entidades culturais e assistenciais, bem assim as gratificações dadas aos funcionários, desde que não caracterizada a fraude. Tal previsão ganha muita importância quando na falência é desconsiderada a personalidade jurídica, pois é comum sócios de sociedades insolventes doarem os seus bens aos filhos e a outros familiares. e) Só tem relevância na falência do empresário individual ou quando há sócios com responsabilidade ilimitada, inclusive por desconsideração da personalidade jurídica. 50 STJ, REsp 604.315/SP.Rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, Julgamento: 25/05/2010, DJe 08/06/2010. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 90 f) As regras sobre a alienação do estabelecimento empresarial estão nos arts. 1.142-1.148 do CC. Na aplicação desse inciso, devemos observar que a venda “desmantelada” do estabelecimento também pode ser declarada ineficaz. g) Somente as transcrições de direitos reais realizadas após a decretação da falência é que serão declaradas ineficazes em relação à massa falida, independentemente de prova de prejuízo ou má-fé. A simples venda de bem imóvel pelo devedor, mesmo realizada dentro do termo legal, não se encontra inserida em qualquer dos incisos do art. 129, da LFRE, razão pela qual a sua ineficácia depende da prova de má-fé das partes e de prejuízo para os credores, consoante art. 130 da LFRE.51 Ineficácia subjetiva Embora o art. 130 utilize a expressão “são revogáveis”, a análise do negócio também se situa no plano da eficácia, ou seja, mesmo quando procedente o pedido o ato permanece íntegro e válido, mas os seus efeitos é que são atingidos, ou seja, o negócio não terá nenhuma eficácia contra a massa falida. A ineficácia relativa só pode ser reconhecida por meio da ação revocatória, na qual deve ficar comprovada a má-fé do falido e do terceiro contratante, além do prejuízo aos credores. Essa ação não está adstrita a nenhum rol, pois qualquer negócio realizado pelo devedor poderá ser atacado, desde que, é claro, sejam provados o conluio e o prejuízo da massa falida. Apesar de uma pequena resistência doutrinária, a ineficácia subjetiva não se prende a qualquer parâmetro temporal prescricional, embora ela tenha que ser proposta em no máximo três anos a partir da decretação da falência, sob pena de decadência. Assim, independentemente da data do ato, ele pode ser alcançado pela ação revocatória, embora seja intuitivo que, quanto mais antigo o ato, mais difícil será a prova da fraude e do prejuízo para os credores. A ação revocatória é de competência do juízo indivisível da falência e processada pelo rito ordinário. Tem legitimidade ativa para propô-la o administrador judicial, o Ministério Público e qualquer credor, consoante art. 132 da LFRE. O art. 133 da LFRE indica de forma clara quais são as pessoas que podem figurar no polo passivo dessa ação, sendo certo que o falido não precisa ser chamado à lide, embora possa intervir na condição de assistente.52 51 REsp 1197723/SP. Rel. ministro João Otávio de Noronha, 4ª Turma, Julgamento: 19/10/2010, DJe 27/10/2010. 52 STJ, REsp. 1.127.334/RS. Rel. ministro Raul Araújo, Decisão Monocrática em 31/05/2017. DJe, 08/06/2017. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 91 A sentença que julga a ação revocatória desafia recurso de apelação, recebido no duplo efeito. Alguns pontos merecem especial atenção: a) Reconhecida a ineficácia do negócio, as partes devem retornar ao estado anterior. Assim, o contratante de boa-fé terá direito de restituição dos bens ou dinheiro entregue ao falido por ocasião do negócio, na forma dos art. 86, III, da LFRE. b) Ao contratante é ressalvado o direito de propor ação de perdas e danos contra o falido ou contra os seus garantidores. c) O juiz poderá, durante o curso da ação revocatória, a requerimento do autor, ordenar o sequestro do bem retirado do patrimônio do devedor e entregue ao terceiro, preenchidos os requisitos previstos nos arts. 300 e seguintes do CPC. É evidente que, na hipótese de ineficácia objetiva, o juiz poderá, de ofício, decretar essa medida. d) O art. 138 da LFRE prevê que até mesmo o ato praticado em cumprimento de decisão judicial pode ser declarado ineficaz, o que pode causar uma perplexidade inicial em face da força da coisa julgada. No entanto, tal previsão em nenhum momento fere a coisa julgada, uma vez que tanto a causa de pedir próxima como remota serão completamente distintas da ação cuja decisão judicial se baseou o ato, sem olvidar os próprios limites subjetivos da coisa julgada. e) Na ação revocatória não tem cabimento a compensação nem a reconvenção. A ineficácia pode ser oposta em defesa, perdendo a massa falida, entretanto, o direito de promover a ação revocatória, pois se esgotaria a prestação da tutela jurisdicional na defesa. Verificação dos créditos Como decorrência do princípio pars conditio creditorum, os processos de falência e de recuperação judicial têm em comum a necessidade de se conhecerem os credores do devedor, a fim de classificá-los de acordo com as determinações legais. Portanto, possuindo um crédito líquido e certo, ainda que não materializado em título com força executiva, deve habilitá-lo no concurso de credores, a fim de não comprometer a universalidade de credores e a ordem de preferência prevista em lei, no caso da falência, ou no plano de recuperação judicial. Repise-se que o reconhecimento do crédito independe da existência de título executivo, consoante art. 9º, parágrafo único, da LFRE. O procedimento de conhecimento e classificação dos credores foi profundamente alterado pela atual LFRE. Para melhor estudo, vamos dividi-lo em três fases, sempre tendo por bases as publicações dos editais previstos em lei. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 92 Advirta-se que, em relação aos contratos com cláusula de arbitragem, há de se respeitar a convenção das partes, portanto, o credor pode optar pelo procedimento arbitral para a solução de eventual litígio sobre o valor que lhe é devido.53 Fase administrativa Decretada a falência, oportunidade em que é nomeado o administrador judicial, o devedor será intimado para que, em cinco dias (art. 99, III, da LFRE), apresente a relação completa de credores, em arquivo eletrônico, se esta já não estiver nos autos (art. 105, II, da LFRE), indicando valor, classe, referência contábil, origem da dívida e endereços de todos os credores. Caberá ao administrador judicial imediatamente publicar essa relação de credores elaborada pelo devedor no sítio eletrônico destinado aos processos de falência e de recuperação de empresas54, a fim de que os credores apresentem em 15 dias eventuais habilitações de créditos, que não constarem do rol apresentado pelo devedor, assim como qualquer divergência acerca do valor ou da natureza dos créditos relacionados. Nada impede que o administrador judicial receba uma habilitação ou divergência após esses 15 dias, mas antes de entregar nos autos a relação de que trata o § 2º do art. 7º da LFRE. Há de se destacar que, nos processos de falência iniciados a requerimento de credores, raramente o devedor apresenta nos autos a relação de credores, razão pela qual o primeiro edital é publicado apenas para convocar os credores para apresentarem as habilitações dos seus créditos, e não para divergências. Frise-se ainda que, na raríssima hipótese de o devedor apresentar a lista de credores, o administrador judicial tem a obrigação de notificá-los por carta registrada para possibilitar eventual divergência, observando-se que o início do prazo quinzenal é sempre da publicação do edital eletrônico. Destaque-se que tais habilitações e divergências devem ser apresentadas diretamente ao administrador judicial, pois esse procedimento inicial possui nítido caráter administrativo, não fica mais sob a responsabilidade do juiz, portanto os credores não precisam de advogados nesse momento, como também não há qualquer custo. Buscou-se a desburocratização e a desoneração do processo de habilitação de créditos.Saliente-se que esta opção não é inédita no nosso ordenamento, pois nos processos de liquidação extrajudicial o liquidante nomeado exerce igual função à que agora é atribuída ao administrador da falência (arts. 22-24 da Lei nº 6.024/76). O administrador terá o prazo total de 60 dias contados da publicação desse primeiro edital para concluir a tarefa de verificação dos créditos, tendo como fonte de informações toda a contabilidade e os livros fiscais e empresariais do devedor. Para hercúleo trabalho, o administrador 53 SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 273. 54 Recomenda-se a publicação, também, no próprio sítio eletrônico do administrador e do devedor. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 93 poderá contar com o auxílio de profissionais ou empresas especializadas, mormente da área contábil, e manterá estreito contato com o devedor. Ao final desse prazo, será publicado um segundo edital, contendo o rol de credores segundo as conclusões do administrador judicial, que substituirá aquele inicialmente apresentado pelo devedor (art. 7º, §§ 1º e 2º, da LFRE). Há de se consignar que a cognição administrativa exercida pelo administrador judicial será restrita aos requisitos formais de certeza e liquidez, não podendo avançar sobre eventuais vícios intrínsecos dos documentos que lhe forem apresentados. A cognição administrativa, assim, não tem a mesma profundidade da cognição judicial. Sem medo de errar, nos processos de falência dificilmente o administrador judicial conclui esse trabalho em 60 dias, uma vez que nesse período inicial, que é logo após a decretação da falência, a sua atenção, como também a de todos os demais agentes do processo, está voltada primordialmente para a arrecadação de ativos. Como praticamente não há prejuízo para o andamento processual, visto que a relação definitiva de credores só será realmente necessária no fim da falência, quando do início dos rateios, não se assustem, o atraso pode chegar a um ano ou mais. Fase judicial Chega-se, então, ao segundo edital, a partir do qual o procedimento começa a sua fase judicial. No prazo de 10 dias contados da sua publicação, os credores, o Ministério Público, o comitê, o falido e os seus sócios podem impugnar, judicialmente, a relação elaborada pelo administrador, seja por desconformidade, seja por omissão da lista (art. 7º da LFRE). Note-se que tal edital deve indicar o local em que se encontram os documentos que fundamentaram as conclusões do administrador. Em relação ao Ministério Público, Paulo Toledo entende que “a postura deverá mudar, ganhando um dinamismo muito próprio de outras funções da instituição”,55 ou seja, conclui que o prazo é comum até para o Ministério Público, que estará em igualdade de condições com os demais legitimados para fins de impugnação da relação elaborada pelo administrador judicial. Embora na prática o Ministério Público não apresente impugnação de crédito, defendemos que o seu prazo só começa a contar a partir da vista dos autos. Desde logo, convém ressaltar que a ausência de apresentação de divergência na fase administrativa não impede que o crédito seja objeto de impugnação na fase judicial.56 Também 55 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles. Comentário ao artigo 8º da Lei 11.101/05. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coords.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresa e de Falência. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 25. 56 Nesse sentido: CAVALLI, Cássio; AYOUB, Luiz Roberto. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 177. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 94 merece destaque o fato de que o impugnante pode levantar qualquer questão de fato ou de direito na sua impugnação, inclusive exceptio non adimpleti contractus.57 Cada impugnação será autuada em apartado, e os titulares dos créditos impugnados serão intimados para contestarem no prazo de cinco dias (art. 11 da LFRE). Após, também serão intimados para se manifestarem, no mesmo prazo, sucessivamente, o devedor, o comitê de credores e o administrador judicial, que deverá juntar, se for o caso, laudo pericial e todos os documentos que entender pertinentes (art. 12 da LFRE). Note-se que a lei não prevê a oitiva do Ministério Público, embora ela seja intuitiva e de toda conveniente em razão da sua função de custos legis. Outra questão relevante se traduz na aparente violação do princípio do contraditório, pois a lei prevê que o administrador poderá juntar documentos e, até mesmo, um laudo pericial sobre o objeto da impugnação, mas não exige que nesses casos as partes tomem sequer ciência do que foi juntado a posteriori pelo administrador. Destarte, toda vez que alguma das partes juntar aos autos qualquer documento, as demais devem ser intimadas para tomarem conhecimento e, se assim entenderem, fazerem alguma ponderação ou contraprova. Finalmente, os autos serão conclusos ao juiz. Nesse momento, segundo a lei (art. 15 da LFRE), o juiz deverá adotar as seguintes providências: a) Determinar a inclusão no quadro geral dos créditos não impugnados – Ora, a tarefa não é assim tão fácil. O juiz poderá retificar ou até mesmo excluir um crédito não impugnado, de ofício, em razão da natureza mista das funções que exerce no processo falimentar. b) Julgar as impugnações de plano, quando não necessitar de dilação probatória – Entendendo que as informações nos autos são suficientes, em outras palavras, que a causa está “madura”, o juiz poderá julgar antecipadamente o mérito. c) Resolver as questões processuais pendentes, fixar os pontos controvertidos e determinar as provas a serem produzidas, inclusive designando audiência de instrução e julgamento, se necessária – Enquanto não decidida definitivamente a impugnação, o juiz determinará a reserva do valor necessário ao pagamento do crédito e não impedirá o pagamento da parte incontroversa (art. 16, § 1º, da LFRE). A decisão judicial sobre a impugnação desafia o recurso de agravo de instrumento (art. 17 da LFRE). O mesmo se diga em relação à decisão do juiz que determinar, de ofício, a exclusão ou retificação de créditos. Pode-se até questionar a solução dada pelo legislador, na medida em que a impugnação tem natureza de ação autônoma, portanto, sendo decidida por sentença, desafiaria o recurso de apelação. No entanto, parece-nos válida a opção pelo agravo de instrumento, já que a sua tramitação célere é mais adequada ao rito falimentar. 57 COLOMBO, Giuliano; COSTA, Patrícia Barbi. Direito falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. Coordenação: Luiz Fernando Valente de Paiva. São Paulo: Quartier, 2005. p. 150. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 95 Habilitações e impugnações retardatárias Como já aludido, os créditos não constantes da relação elaborada pelo devedor devem ser habilitados no prazo de 15 dias a contar da publicação do primeiro edital, direta e extrajudicialmente, perante o administrador judicial. Ultrapassado esse prazo, a habilitação deverá ser tratada como retardatária (art. 10 da LFRE) e tramitará pelo rito das impugnações de crédito, caso apresentadas até a homologação do QGC. Após a homologação do QGC, as habilitações retardatárias serão processadas pelo rito ordinário. A habilitação retardatária de um créditotem consequências: os seus titulares arcarão com as custas judiciais e não terão direito de voto nas assembleias enquanto não homologado o QGC contendo o referido crédito, salvo os trabalhistas, ou se já julgada a habilitação retardatária até a véspera da realização da assembleia (art. 39 da LFRE). Os credores retardatários também não terão direito aos rateios já distribuídos, nem aos acessórios compreendidos entre o término do prazo e a data do pedido de habilitação, embora possam requerer a reserva correspondente ao valor dos seus créditos. O grande destaque da reforma de 2020 em relação às habilitações de crédito nas falências é a criação do prazo decadencial no § 10 do art. 10, da LFRE. Segundo essa nova regra, os credores devem apresentar o pedido de habilitação ou o pedido de reserva de crédito em no máximo três anos, sob pena de decadência. Hão de ser feitas pequenas considerações sobre essa nova regra. Devemos lembrar que o pedido de reserva de crédito não é direcionado ao juízo falimentar, mas, sim, ao juízo onde se processa a ação ilíquida, que pode ser um juízo trabalhista, de juizado cível ou de vara cível comum, consoante art. 6º, § 3º, da LFRE. Ocorre que, segundo a jurisprudência amplamente dominante, esse juízo de origem pode deferir ou não o pedido de reserva de crédito, com base na cognição sumária que exerce na análise das provas dos autos no momento desse pedido. Confira-se: RECURSO ESPECIAL. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COBRANÇA DE CRÉDITO. RESERVA DE IMPORTÂNCIA. FACULDADE DO JUIZ DA CAUSA. INEXISTÊNCIA DO DIREITO. ILIQUIDEZ DO TÍTULO. PRETENSÃO DENEGADA. POSSIBILIDADE. ART. 6º, § 3º, DA LEI N. 11.101/2005. 1. A lei faculta ao titular de crédito existente contra empresa em recuperação judicial postular ao juiz da causa que requeira ao juízo da recuperação a reserva da importância a que tenha direito. 2. O pedido de reserva de importância ao juízo da recuperação judicial é faculdade conferida ao livre convencimento do julgador, que, após gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 96 aferição do título reivindicado, pode constatar sua certeza e liquidez e estimar seu valor. 3. Recurso especial desprovido. (REsp 1518597/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/11/2015, DJe 09/11/2015).58 Dentro dessas circunstâncias, ou a jurisprudência se altera e passa a reconhecer a obrigatoriedade do deferimento do pedido de reserva de crédito em falências, ou devemos entender que, para evitar a decadência, basta que o pedido de reserva de crédito seja feito em até três anos a contar da decretação da falência, ainda que indeferido pelo juízo da causa. Havia grande controvérsia sobre a possibilidade de apresentação de impugnação retardatária, ou seja, após o prazo de 10 dias previsto no art. 8º da LFRE. Os Tribunais de Justiça pelo País se dividiam,59 e essa divergência estava latente na jurisprudência recente do próprio STJ, a conferir: RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO. INTEMPESTIVIDADE. DECURSO DO PRAZO DO ART. 8º, CAPUT, DA LEI 11.101/05. [...]. 2. O propósito recursal é definir se, no curso do processo de recuperação judicial, a impugnação de crédito apresentada fora do prazo de 10 dias previsto no caput do art. 8º da Lei 11.101/05 pode ter seu mérito apreciado pelo juízo. 3. A norma do artigo retro citado contém regra de aplicação cogente, que revela, sem margem para dúvida acerca de seu alcance, a opção legislativa a incidir na hipótese concreta. Trata-se de prazo peremptório específico, estipulado expressamente pela lei de regência. [...]. Recurso especial não provido (REsp. 1.704.201/RS. 3ª Turma. Rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Relator para acórdão, ministra Nancy Andrighi. Maioria. Julgamento: 07/05/2019). Acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, assim ementado: Sustenta, em síntese, a tempestividade da 58 Nesse sentido: AgInt no AREsp 1224002/RS, Rel. ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 29/10/2018, DJe 31/10/2018; e AgInt no AREsp 1224002/RS, Rel. ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 29/10/2018, DJe 31/10/2018. 59 Pela impossibilidade em razão da preclusão – TJRS, AI 70073456436, 5ª Câmara Cível. Rel. desembargador Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgamento: 30/08/2017; pela possibilidade em face da analogia à habilitação retardatária – TJSP, AI 2093743-74.2016.8.26.0000 – Relator: Carlos Alberto Garbi; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Julgamento: 31/10/2016; e TJRJ, AI 0052589-08.2016.8.19.0000. Desembargador Gilberto Campista Guarino – Julgamento: 15/03/2017 – 14ª Câmara Cível. gustavosp Realce 97 impugnação à relação de credores, a qual deve ser recebida e processada como retardatária, nos termos dos arts. 8º e 10º, § 5º, da Lei 11.101/05, pois para ser considerada intempestiva não basta estar fora do prazo de 10 (dez) dias estabelecido no artigo 8º da Lei n. 11.101/2005, deve ser posterior à homologação do quadro geral de credores. É o relatório. Decido. O inconformismo merece prosperar. 1. A discussão, na origem, versa sobre pedido de impugnação aos créditos apresentados pela parte ora recorrida, para fins de correção, porquanto os valores arrolados no Edital não corresponderiam ao efetivamente devido. Na instância ordinária o pleito não restou conhecido, porque interposto fora do prazo previsto no art. 8º, da Lei 11.101/05. [...]. Todavia, segundo entendimento jurisprudencial adotado por este Superior Tribunal de Justiça, é possível a retificação dos créditos apresentados, mesmo após a respectiva homologação do plano de recuperação judicial. Neste sentido: (REsp 1371427/RJ, Rel. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, Julgamento: 06/08/2015, DJe 24/08/2015). 2. Ante o exposto, com amparo na Súmula 568 do STJ, dou provimento ao reclamo para, afastando a intempestividade reconhecida pela Corte de origem, determinar a análise da impugnação dos créditos apresentada pela parte ora recorrente (STJ, Agravo em Recurso Especial nº 1.476.354-RS (2019/0071222-1). Relator: ministro Marco Buzzi. 4ª Turma. Julgamento: 21/05/2019). Sempre defendemos a admissibilidade da impugnação retardatária, pois, se é possível a habilitação “integral” de um crédito até então desconhecido, a qualquer tempo, por lógica deve ser possível a sua retificação parcial. Ademais, também por lógica, se a lei expressamente admite a propositura de uma ação revisional do QGC, pelo rito ordinário, a fim de excluir, incluir, majorar ou reduzir o valor de um crédito ou alterar a sua classificação, não há razão para impedir a sua homologação e publicação com possível equívoco. Os princípios da vedação ao enriquecimento ilícito, da celeridade e da eficiência processual impunham o conhecimento das impugnações retardatárias. De toda forma, agora não há mais espaço para divergência, pois na reforma de 2020 o legislador60 expressamente admitiu o processamento das impugnações retardatárias, conforme pode ser verificado nas redações dos §§ 7º, 8º e 9º, do art. 10, da LFRE. 60 Fomos nós que sugerimos à equipe técnica que assessorou o Exmo. deputado Hugo Leal a expressa referência às “impugnações retardatárias”, para pôr fim a essa divergência. gustavosp Realce 98 Entretanto, o não atendimento ao prazo de 10 dias previsto no art. 8º da LFRE tem consequências. A homologação e a publicação do QGC não dependem do julgamento das impugnações e das habilitações apresentadas fora do prazo legal e enquanto não for julgada a impugnação retardatária o credor votará nas AGCs com ovalor e na classe indicados na relação do administrador judicial. Suspensão dos juros e dos prazos prescricionais No que concerne à incidência de juros após a decretação da falência, nada mudou em relação ao sistema anterior, consoante art. 124 da LFRE. Assim, quando das habilitações dos créditos, o valor principal só pode ser acrescido de juros e correção monetária até a data da decretação da falência, pois os juros do período falimentar são os últimos créditos a serem pagos na falência, conforme expressamente indicado no inciso IX do art. 83 da LFRE. Importa destacar que os créditos tributários não podem ser atualizados pela Selic durante a falência quando não há ativo suficiente para o pagamento de todos os credores, uma vez que esse indexador também em finalidade remuneratória e moratória, devendo, portanto, a Selic ser substituída por outro índice meramente inflacionário adotado pelo tribunal local. Nesse sentido: TAXA SELIC E CORREÇÃO MONETÁRIA. EMBARGOS E EXECUÇÃO. VERBAS HONORÁRIAS AUTÔNOMAS. (...). 3. Na linha da orientação jurisprudencial desta Corte as empresas cuja falência foi decretada, cumpre a distinção entre as seguintes circunstâncias: (a) antes da decretação da falência, são devidos os juros de mora, independentemente da existência de ativo suficiente para pagamento do principal, desse modo, aplicável a taxa SELIC, que engloba índice de correção monetária e juros e; (b) após a decretação da falência, a incidência da taxa SELIC fica condicionada à suficiência do ativo para pagamento do principal. (...). (AgInt no AREsp 1035832/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/08/2017, DJe 21/08/2017) Após o pagamento de todas as classes de credores, havendo sobra de caixa na falência, a massa falida iniciará o pagamento dos juros falimentares, ou seja, aqueles referentes ao período desde a decretação da falência até a data do pagamento do primeiro rateio, obedecendo, mais uma vez, ao nosso sentir, à ordem de preferência estabelecida em lei. Na hipótese dos créditos fiscais, a parcela dos juros falimentares será a diferença entre a taxa utilizada para a correção monetária e a taxa Selic do período. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 99 Também a partir da decretação da falência são suspensos os prazos prescricionais das ações em face do falido, mas não os decadenciais, conforme art. 6º, I, da LFRE. Compensação de créditos Segundo o art. 122 da LFRE, outrora art. 46 do Decreto-Lei nº 7.661/45, provenha ou não o vencimento de uma dívida do falido da sentença de quebra, opera-se a compensação nos moldes da legislação civil, com preferência sobre quaisquer outros. Em suma, caso um credor do falido também seja o seu devedor, sobrevindo a falência, ocorre o vencimento antecipado do crédito e opera-se a compensação. Um caso envolvendo o instituto da compensação tem-se mostrado recorrente nos processos de falência e até de recuperação judicial. A Justiça do Trabalho tem condenado as sociedades tomadoras de serviço, em caráter subsidiário, ao pagamento de verbas trabalhistas inadimplidas pelas prestadoras de serviço. Em consequência, a sociedade tomadora do serviço, por força contratual, retém valores devidos à sociedade prestadora que, em algum momento, sofre falência ou pede recuperação judicial. Em casos assim, admite-se a compensação ou deve a sociedade tomadora habilitar integralmente o crédito – valor pago aos trabalhadores da prestadora de serviço –, aguardando o seu lugar na fila, e pagar o que deve – valores retidos – a sociedade falida? Filiamo-nos à posição que admite a compensação, prestigiada no seguinte julgado do Tribunal Paulista, que reformou a decisão do MM. Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo: FALÊNCIA. Habilitação de crédito. Dívidas líquidas e vencidas antes da convolação da recuperação judicial em falência. Compensação. Possibilidade. Violação do princípio do par conditio creditorum. Inocorrência. Inteligência do art. 122 da LREF. Previsão legal de compensação nos autos da falência, “com preferência sobre todos os demais credores”. Habilitação de crédito julgada procedente para determinar a inclusão, no quadro geral de credores, do crédito quirografário remanescente em favor da Agravante. Decisão reformada. Recurso provido (TJSP; Agravo de Instrumento 0140527- 51.2013.8.26.0000; Relator: Tasso Duarte de Melo; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Julgamento: 19/05/2014). A reforma promovida em 2020 prestigiou o instituto da compensação de créditos, como podemos verificar no § 2º do art. 84 da LFRE. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 100 Há, no entanto, um obstáculo à compensação. Não poderão ser compensados os créditos transferidos após a decretação da falência ou durante o estado de insolvência, cujo início, por analogia, deve ser considerado o termo legal. Por fim, a despeito das opiniões em contrário, o momento e o local adequados para se requerer a compensação é na verificação de créditos, ou seja, no bojo de uma habitação, divergência ou impugnação de crédito.61 Quadro geral de credores: concursais e não concursais Com base nas decisões judiciais, o administrador judicial promoverá a consolidação do QGC, publicando-o em, no máximo, cinco dias a contar da última decisão judicial acerca das impugnações tempestivas, mesmo que delas ainda caiba recurso. As eventuais modificações desse quadro em decorrência do julgamento dos recursos interpostos ou das impugnações e habilitações retardatárias se darão concomitantemente à ciência das suas respectivas decisões. Há que se consignar, ainda, a possibilidade de retificação ou exclusão de crédito constante da relação do terceiro edital, diante da descoberta de fraude, dolo, simulação, erro essencial ou, o que é mais comum, desconhecimento de documento existente à época da habilitação. Essa providência depende do ajuizamento, quando ainda em curso o processo principal de falência, da chamada ação revisional, também conhecida como ação rescisória falimentar.62 Esta ação será processada e julgada pelo juízo da falência (art. 19 da LFRE) e pode ser apresentada pelo Ministério Público, por qualquer credor, pelo comitê ou pelo administrador judicial, seguindo o rito ordinário. Pendente o julgamento da presente ação, o titular do crédito só será pago se prestar caução (art. 19, § 2°, da LFRE). Inobstante abalizados posicionamentos em sentido contrário,63 defendemos a legitimidade ativa do próprio devedor ou de algum dos seus sócios. O fundamento utilizado para a exclusão da legitimidade ativa do devedor ou dos seus sócios é que a representação judicial da massa falida pertence ao administrador judicial. Entretanto, tal argumento não nos convence, pois na ação revisional o falido ou qualquer dos seus sócios estará em juízo defendendo, em última análise, interesse próprio, e não exclusivamente da massa falida. Não fosse assim, os credores e o próprio comitê também deveriam ser excluídos do polo ativo. Finalmente, os especialistas em Direito Falimentar devem atentar para o fato de que antes do pagamento dos credores concursais, listados no art. 83 da LFRE, ou seja, dos credores do 61 TEPEDINO, Ricardo. Comentário ao artigo 122 da Lei 11.101/05. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coords.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresa e de Falência. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 333. 62 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 321-322. v. 1. 63 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles. op. cit. p. 45. gustavospRealce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 101 falido, várias obrigações devem ser honradas no decorrer do processo falimentar, em obediência ao disposto no art. 149 da LFRE. Por conseguinte, para a correta compreensão das prioridades legais, é imprescindível que o quadro geral de pagamentos seja dividido, ao menos, em dois blocos, a saber: credores extraconcursais e credores concursais. Credores extraconcursais As primeiras obrigações a serem adimplidas no processo de falência, em estrita obediência ao comando previsto no art. 149 da LFRE, são as restituições in natura, amparadas no art. 85 da LFRE. Depois do atendimento dessas restituições, vêm os créditos extraconcursais do art. 84 da LFRE, cuja ordem foi sensivelmente modificada pela reforma promovida pela Lei nº 14.112/20. Vejamos: Art. 84. Serão considerados créditos extraconcursais e serão pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 desta Lei, na ordem a seguir, aqueles relativos: I - (revogado); I-A - às quantias referidas nos arts. 150 e 151 desta Lei; I-B - ao valor efetivamente entregue ao devedor em recuperação judicial pelo financiador, em conformidade com o disposto na Seção IV-A do Capítulo III desta Lei; I-C - aos créditos em dinheiro objeto de restituição, conforme previsto no art. 86 desta Lei; I-D - às remunerações devidas ao administrador judicial e aos seus auxiliares, aos reembolsos devidos a membros do Comitê de Credores, e aos créditos derivados da legislação trabalhista ou decorrentes de acidentes de trabalho relativos a serviços prestados após a decretação da falência; I-E - às obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, nos termos do art. 67 desta Lei, ou após a decretação da falência; II - às quantias fornecidas à massa falida pelos credores; III - às despesas com arrecadação, administração, realização do ativo, distribuição do seu produto e custas do processo de falência; IV - às custas judiciais relativas às ações e às execuções em que a massa falida tenha sido vencida; V - aos tributos relativos a fatos geradores ocorridos após a decretação da falência, respeitada a ordem estabelecida no art. 83 desta Lei. gustavosp Realce 102 § 1º As despesas referidas no inciso I-A do caput deste artigo serão pagas pelo administrador judicial com os recursos disponíveis em caixa. § 2º O disposto neste artigo não afasta a hipótese prevista no art. 122 desta Lei. (NR) Salvo duas exceções, todas as obrigações extraconcursais decorrem de atos jurídicos praticados após a decretação da falência ou durante o processo de recuperação judicial. A primeira exceção é a obrigação mencionada no inciso I-A, relativa ao pagamento da verba prevista no art. 151, da LFRE, enquanto a segunda se encontra no inciso I-C, referente às restituições em dinheiro do art. 86, da LFRE. Credores concursais Sobrando recursos em caixa após o atendimento das restituições do art. 85 e das despesas extraconcursais do art. 84, a massa falida finalmente poderá dar início ao pagamento dos credores concursais, obedecendo à ordem prevista no art. 83 da LFRE, pontualmente alterado pela Lei nº 14.112/20, a conferir: Art. 83. ......................................................................................... I - os créditos derivados da legislação trabalhista, limitados a 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos por credor, e aqueles decorrentes de acidentes de trabalho; II - os créditos gravados com direito real de garantia até o limite do valor do bem gravado; III - os créditos tributários, independentemente da sua natureza e do tempo de constituição, exceto os créditos extraconcursais e as multas tributárias; IV - (revogado); V - (revogado); VI - os créditos quirografários, a saber: a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo; b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento; e c) os saldos dos créditos derivados da legislação trabalhista que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo; VII - as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leis penais ou administrativas, incluídas as multas tributárias; VIII - os créditos subordinados, a saber: a) os previstos em lei ou em contrato; e gustavosp Realce gustavosp Nota Os credores concursais trabalhistas são credores decorrentes da prestação de trabalho antes da decretação da falência ou do pedido de recuperação judicial. ... O trabalho desempenhado após o pedido de recuperação judicial ou após a decretação da falência do empregador, por outro lado, é considerado extraconcursal. 103 b) os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício cuja contratação não tenha observado as condições estritamente comutativas e as práticas de mercado; e IX - os juros vencidos após a decretação da falência, conforme previsto no art. 124 desta Lei. § 1º Para os fins do inciso II do caput deste artigo, será considerado como valor do bem objeto de garantia real a importância efetivamente arrecadada com sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação do bem individualmente considerado. § 2º Não são oponíveis à massa os valores decorrentes de direito de sócio ao recebimento de sua parcela do capital social na liquidação da sociedade. § 3º As cláusulas penais dos contratos unilaterais não serão atendidas se as obrigações neles estipuladas se vencerem em virtude da falência. § 4º (Revogado). § 5º Para os fins do disposto nesta Lei, os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação. § 6º Para os fins do disposto nesta Lei, os créditos que disponham de privilégio especial ou geral em outras normas integrarão a classe dos créditos quirografários. (NR) As principais mudanças foram a aglutinação dos créditos com privilégios geral e especial na classe dos quirografários e a instituição da regra que mantém a classificação do crédito cedido, mesmo os de natureza trabalhista. Créditos por acidente do trabalho e trabalhistas, estes limitados a 150 salários-mínimos Sempre discordamos da inclusão dos créditos “por acidente de trabalho” no topo da pirâmide, na medida em que não se trata propriamente de indenizações com base na legislação acidentária, na medida em que estas são de responsabilidade do INSS. O crédito mencionado no dispositivo em análise tem como fundamento a legislação comum que trata da responsabilidade civil (arts. 186 e 927 do CC) e, assim, teria natureza quirografária. A nossa posição, contudo, é inegavelmente minoritária.64 No que diz respeito aos créditos trabalhistas, tem-se que, se o empregado já recebeu os cinco salários-mínimos mencionados no art. 151 da LFRE, só lhe restarão 145 salários-mínimos como teto do crédito privilegiado, ou seja, havendo diferença, esta será considerada crédito 64 TJSP; Agravo de Instrumento 2027032-53.2017.8.26.0000; Relator: Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jaú – 3ª Vara Cível; Julgamento: 29/08/2017; Registro: 29/08/2017. gustavosp Realce gustavosp Realce 104 quirografário. Para esse “limitador de privilégio”, porém, deve-se levar em conta o valor do salário-mínimo da data do pagamento, e não da habilitação do crédito.65 Discordamos frontalmente da jurisprudência, amplamente majoritária66, que equipara outras verbas de natureza alimentar aos créditos trabalhistas, como os honorários advocatícios, seja por absoluta falta de amparo legal, seja porque, se assim o fizermos, também deveremos equiparar aos créditos trabalhistas os honorários dos contadores, dos economistas, dos médicos e de todas as sociedades profissionais, prejudicando justamente os trabalhadoreshipossuficientes regidos pela CLT. Todo crédito trabalhista tem natureza alimentar, mas nem todo crédito alimentar tem natureza trabalhista. Créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado Aqui serão listados os credores que possuírem direito real de garantia, ou seja, quando ela recai sobre bem ou direito que ainda pertence ao devedor. Dessa forma, nesse momento teremos somente os credores garantidos por hipoteca, penhor e anticrese, cada vez mais raros no mercado. Como já alinhavado, os credores fiduciários serão atendidos como restituições do art. 85 ou como despesas extraconcursais do art. 84, caso o administrador judicial resolva dar cumprimento ao contrato. Caso o valor do crédito exceda o valor obtido com a alienação do bem gravado, o saldo será incluído na classe quirografária. Créditos tributários, excetuadas as multas O tratamento dos créditos tributários sofreu profunda modificação por meio da Lei Complementar nº 118, de 9 de fevereiro de 2005, que alterou vários dispositivos do CTN, a fim de conferir ao credor com garantia real privilégio sobre o credor tributário, na hipótese de falência. Permanece, por outro lado, o critério de preferência previsto no parágrafo único do art. 187 do CTN, ou seja, primeiro são satisfeitos os créditos tributários federais, depois os estaduais e só então os municipais. Não se atende às multas fiscais nesse momento. O valor que deve ser informado na falência só pode incluir juros e correção monetária até a data da decretação da falência, ou seja, considera-se válida a incidência da Selic até esse momento. Contudo, como os juros falimentares só podem ser pagos se o ativo comportar o pagamento do valor principal atualizado de todos os credores, em um primeiro rateio o valor a ser pago ao Fisco 65 TJSP; Agravo de Instrumento 0173728-05.2011.8.26.0000; Relator: Araldo Telles; Órgão Julgador: N/A; Foro de Campo Limpo Paulista – 2ª Vara Judicial; Julgamento: 13/12/2011; Registro: 13/12/2011. 66 STJ, REsp 1152218/RS, Rel. ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 07/05/2014, DJe 09/10/2014 (Repetitivo – Tema 637). gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 105 é aquele apurado até a data da decretação da falência, acrescido de correção monetária pelo índice adotado pelo tribunal local, consoante remansosa jurisprudência do STJ67. Créditos quirografários Ordinariamente, quirografários são os créditos que não possuem qualquer tipo de privilégio ou garantia real. Contudo, após a reforma de 2020, ao menos nos processos falimentares, os créditos com privilégios geral e especial passam a ter o mesmo tratamento dos créditos quirografários. Também recebem o tratamento de quirografário os créditos trabalhistas que excedem o patamar de 150 salários-mínimos e os créditos com garantia real que excedem o valor obtido com a venda do bem gravado. Multas contratuais e penas pecuniárias por infrações das leis penais e administrativas De pronto, temos de ressaltar que não se atenderão às multas estipuladas nos contratos unilaterais se as obrigações vencerem em virtude da falência, conforme expressamente previsto no § 3º do art. 83, da LFRE. As multas aplicadas por agências reguladoras, as decorrentes de violação de termos de ajustamento de conduta e as multas fiscais enquadram-se nessa categoria.68 O STJ assentou a sua jurisprudência no sentido de que o encargo de 20% sobre o valor das execuções fiscais, previsto no art. 1º do Decreto-Lei nº 1.025/69, não tem natureza de multa e integra o valor crédito tributário69. As multas trabalhistas, por incidência da regra prevista no art. 449, § 1º, da CLT, devem ter o mesmo tratamento do crédito trabalhista e, portanto, são inseridas na classe do art. 83, inciso I, da LFRE70. Créditos subordinados A lei e os contratos podem estipular que o crédito tenha natureza subordinada. São subordinados, por exemplo, os créditos de certas debêntures, conforme art. 58, § 4º, da Lei nº 6.404/76. 67 STJ, Recurso Especial nº 1.572.858 – RS (2015/0310174-8). Relatora: ministra Regina Helena Costa. Decisão monocrática em 18/12/2015, publica em 03/02/2016. 68 TJSP; Apelação 9172080-70.2007.8.26.0000; Relator: Claudio Godoy; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos – 9ª Vara Cível; Julgamento: 08/10/2013; Registro: 09/10/2013. 69 STJ, REsp 1327067/DF, Rel. ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 28/08/2012, DJe 03/09/2012. 70 STJ, REsp 1808315, Rel. ministro Luis Felipe Salomão. Decisão monocrática publicada em 02/02/2021. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 106 Também são subordinados os créditos dos sócios e dos gestores da empresa, ou seja, dos seus administradores sem vínculo de emprego. Logo, se os sócios tiverem direito a créditos decorrentes de dividendos retidos, de um contrato de empréstimo ou de locação, estes serão considerados subordinados. A mesma disciplina deve ser aplicada aos pró-labores não pagos aos gestores da empresa, quando a “contratação não tenha observado as condições estritamente comutativas e as práticas de mercado” (art. 83, VIII, letra “b”, da LFRE), em especial quando os valores arbitrados a esse título extrapolarem muito a média praticada naquele segmento e para empresas naquela situação de dificuldade. Credor alimentar Uma questão infelizmente tangenciada pela doutrina tem-se mostrado latente nos processos de falência: como deverão ser classificados os créditos decorrentes do pensionamento determinado em razão de uma ação indenizatória não trabalhista, ou seja, que não possa ser inserida como acidente de trabalho? Pensemos na hipótese de uma empresa de ônibus condenada a pagar uma vultosa indenização por danos morais e materiais a uma vítima de acidente, além de uma pensão equivalente a R$ 2.500,00 por mês até que a vítima, de 25 anos de idade, complete 75 anos. Além de não pagar a indenização por danos morais e materiais, a empresa condenada também não honrou com o pensionamento, muito menos chegou a constituir o capital garantidor. Por fim, o que acontece se essa sociedade vier a falir? Parece-nos que as indenizações pelos danos morais e materiais emergentes deverão ser consideradas como créditos quirografários. Porém, o que dizer em relação às pensões? Não temos a intenção de trazer uma solução definitiva, mas apenas despertar atenção para esse grande dilema que temos enfrentado no dia a dia dos processos de falência. São devidas as prestações vincendas? Deve-se antecipar todo o saldo para valor presente? Qual a classificação, trabalhista ou quirografário? Depois de muita reflexão, defendemos que o valor do pensionamento, vencido e vincendo, deve ser equiparado ao crédito por acidente de trabalho, por analogia, enquanto as demais verbas, como já alinhavado, devem ser classificadas como quirografárias. Nesse sentido: AGRAVO DE INSTRUMENTO. Habilitação de crédito. Empresa agravada em liquidação. Condenação da agravada ao pagamento de pensão mensal em virtude da redução da capacidade laborativa da agravante. Possibilidade de equiparação com crédito de natureza trabalhista. Irrelevância da distinção entre parcelas vencidas e vincendas. Não incidência do limite de 150 salários-mínimos (Lei 11.101/05, art. gustavosp Realce gustavosp Realce 107 83, I). Demais verbas que continuam habilitadas como créditos quirografários. Recurso provido (TJSP; Agravo de Instrumento 2036132-32.2017.8.26.0000; Relator: Hamid Bdine; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Forode Bauru – 6ª Vara Cível; Julgamento: 30/08/2017; Registro: 30/08/2017). Realização do ativo O início da realização do ativo deve ocorrer imediatamente após a sua arrecadação, a fim de não desrespeitar o prazo máximo de liquidação dos ativos de 180 dias, instituído pela reforma de 2020. Os arts. 139 a 148 da LFRE disciplinam a realização dos ativos nos processos falimentares. O art. 140 da LFRE prevê as formas de realização do ativo e estabelece uma ordem de preferência para a adoção do tipo escolhido. Assim, preferencialmente, a realização do ativo deve seguir a seguinte ordem: a) “alienação da empresa”, com a venda dos seus estabelecimentos em um único bloco; b) “alienação da empresa”, com a venda das suas filiais ou unidades produtivas isoladamente; c) alienação em bloco dos bens que integram cada um dos estabelecimentos do devedor, formando o que, na prática, chamamos de lotes, e d) alienação dos bens de forma individual. Precisa a crítica da professora Raquel Sztajn, em relação à expressão “alienação da empresa”, na medida em que o termo técnico-jurídico adequado para o caso seria “estabelecimento empresarial”, tal como conceituado pelo art. 1.142 do CC.71 Proteção ao arrematante O ponto alto desse tema é a significativa mudança de tratamento às alienações judiciais nos processos de falência. Com o inegável objetivo de maximizar o ativo, o legislador buscou tornar os bens que integram o patrimônio falimentar mais atrativos e, com efeito, consignou, no inciso II do art. 141 da LFRE, que os bens serão alienados livres e desembaraçados de quaisquer ônus, e o arrematante não será sucessor do devedor, nem mesmo nas obrigações trabalhistas e tributárias. A regra comporta algumas exceções, a fim de não permitir que essa “blindagem” seja utilizada para fins ilícitos. Dessa forma, haverá sucessão quando ficar provado que o arrematante representa, de alguma forma, os interesses do próprio devedor. 71 SZTAJN, Raquel; TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coords.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresa e de Falência. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 376. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 108 Assim, o inciso I do art. 141, § 1º, da LFRE prevê, na sua primeira parte, que haverá sucessão no passivo quando o adquirente for um dos sócios da sociedade falida. Não importa o tamanho da sua participação no capital social da sociedade falida, qualquer dos seus sócios que vier a adquirir a empresa responderá integralmente pelo passivo comum contabilizado, pelo tributário e pelo trabalhista. Já a segunda parte do inciso I dispõe que, se o arrematante for uma pessoa jurídica controlada pelo falido ou, realisticamente, pela sociedade falida, esta responderá integralmente pelo passivo. Registre-se que o conceito de controlador não se restringe à concepção de sócio com mais de 50% do capital votante.72 Tomando como base o art. 116 da Lei de Sociedades por Ações, acionista controlador é aquele que, direta ou indiretamente, é titular de ações com direito de voto que lhe assegure, de modo permanente,73 preponderância nas deliberações sociais, e o poder de eleger a maioria dos administradores e de dirigir efetivamente os negócios de outra sociedade, denominada sociedade controlada. Desse modo, constatado que a arrematante é uma sociedade controlada pela sociedade falida, aquela responderá por todo o passivo da empresa adquirida. É imperioso registrar que existe ao menos uma hipótese não contemplada expressamente no dispositivo, mas que exige muito cuidado: deve ocorrer sucessão quando a arrematante for sociedade controlada por sócio da sociedade falida? A indagação se mostra pertinente, pois é bastante plausível que uma determinada pessoa seja sócia da sociedade falida e, ao mesmo tempo, de outra sociedade que atue no mesmo ramo. Nesses casos, haveria sucessão por incidência da exceção prevista no § 1º do art. 141 da LFRE? Efetivamente, o quadro apresentado não encontra previsão expressa no dispositivo em comento. Entretanto, defende-se neste trabalho que o simples fato de existir um sócio comum à sociedade falida e à sociedade arrematante não pode ser empecilho à aplicação da regra que veda a sucessão. Ocorre que, se verificado que o sócio em comum é o verdadeiro controlador de ambas as sociedades, atende melhor ao espírito da lei enquadrar essa hipótese dentro das exceções previstas no § 1º do art. 141 da LFRE. No que se refere ao disposto no inciso II do art. 141, § 1º, da LFRE, este reflete a preocupação do legislador de impedir que parentes sejam utilizados como instrumento para ludibriar proibições legais impostas a determinadas pessoas. A hipótese, entretanto, conserva o equívoco já constatado no inciso I. Se a arrematante for uma sociedade cujos sócios sejam parentes até o 4º grau de sócio da sociedade falida, há sucessão? Por fim, o inciso III do art. 141, § 1º, da LFRE, tem por objetivo agasalhar todas as hipóteses não contempladas nos incisos anteriores, mas que revelem, por outro lado, alguma forma de fraude na sucessão. O objetivo do legislador foi alcançar os denominados “laranjas” ou 72 Vide Resolução nº 401, item IV, do Banco Central do Brasil. 73 O mesmo Banco Central entende que a expressão “permanente” deve ser entendida como três assembleias gerais consecutivas. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 109 “testas de ferro” do falido ou dos sócios da sociedade falida. Nesse sentido, os termos usados pelo legislador são absolutamente apropriados, deixando para o juiz, diante do caso concreto, a análise dos fatores que indiquem ou não a presença da fraude. Para a professora Raquel Sztajn: Na verdade, excluir essas pessoas do benefício resultante da ruptura do vínculo jurídico entre ativo e passivo inibe comportamentos dissimulados, oportunistas. Coibir a possibilidade de que alguém, ligado à crise da empresa, venha a gozar de algum privilégio patrimonial leva à internalização de parte dos prejuízos daí decorrentes.74 Os sócios do devedor falido só estarão protegidos e não serão considerados sucessores se a alienação se der pela adjudicação especial de que trata o art. 145 da LFRE, em sua nova redação conferida pela Lei nº 14.112/20, uma vez que contará com o aval dos próprios credores reunidos em AGC, conforme art. 46 da LFRE. Há de se consignar que, segundo a jurisprudência pacífica do STJ, caberá ao juízo indivisível da falência definir os termos, os contornos e as consequências da alienação dos bens do devedor, reconhecendo ou não a sucessão, salvo se já encerrado o processo falimentar.75 Modalidades de hasta pública Esse foi mais um ponto sensivelmente modificado pela reforma promovida pela Lei nº 14.112/20. Pela nova redação do art. 142 e dos seus incisos, a única modalidade típica de hasta pública mantida é o leilão, que agora pode ser presencial, eletrônico ou híbrido. Foram revogadas as modalidades de carta proposta e de pregão. O próprio leilão sofreu algumas modificações. Pelas novas regras previstas no art. 142 da LFRE, deverão ser designadas três datas para a tentativa de alienação, denominadas de “chamadas”, com intervalo máximo de 15 dias entre elas. Na primeira, o bem só poderá ser alienado pelo valor mínimo da avaliação. Na segunda chamada, por, no mínimo, 50% da avaliação. Já na terceira, por qualquer valor. Isso mesmo, qualquer valor, não se aplicando a regra proibitiva da venda por valor vil. Infrutíferas as três chamadas, qualquer credor poderá apresentar proposta nosautos para adquirir tais bens e, se mesmo assim não aparecerem interessados, eles poderão ser doados ou, em último caso, devolvidos ao falido, conforme art. 144, da LFRE. 74 SZTAJN, Raquel; TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coords.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresa e de Falência. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 387. 75 COELHO, Fábio Ulhoa. op. cit. p. 366; STJ, AgRg no CC 61272/RJ. 2ª Seção. Rel. ministro Ary Pargendler. Julgamento: 14/06/2006. DJ, 09/11/2006, p. 249. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 110 Há também a possibilidade de a hasta pública se realizar por meio de “processo competitivo organizado promovido por agente especializado e de reputação ilibada, cujo procedimento deverá ser detalhado em relatório anexo ao plano de realização do ativo ou ao plano de recuperação judicial, conforme o caso” (art. 142, IV, da LFRE). Seria o caso, por exemplo, da utilização de corretores para venda de imóveis ou de corretoras de valores mobiliários para a alienação de ativos financeiros, ações ou debêntures. Como terceira opção, a alienação pode-se dar por “qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta Lei”, consoante art. 142, inciso V, da LFRE, que ao final e ao cabo confirma o comando previsto no art. 144 da LFRE. Normalmente, isso ocorre quando a alienação é de uma Unidade Produtiva Isolada (UPI) ou de um bem imóvel de grande valor, uma vez que as peculiaridades do caso concreto podem exigir uma formatação especial, tal como ocorreu no caso da alienação das UPIs do Grupo OI76. É óbvio que a construção dessa modalidade alternativa não poderá ofender a ordem jurídica e passará pelo controle de legalidade do juízo. Uma das possibilidades mais comuns é a apresentação nos autos de uma proposta concreta de algum interessado, denominado de stalking horse, que deve ser publicada por meio de um edital, a fim de possibilitar a participação de novos interessados, que se devem habilitar previamente para terem o direito de apresentar propostas superiores. Normalmente, são conferidas algumas vantagens ao stalking horse, entre elas: � Right to top – Caso um terceiro apresente uma proposta superior àquela do stalking horse, ele terá o direito de interromper a disputa se cobrir essa proposta, em um percentual previamente definido, usualmente entre 2% e 5%. � Right to match – Caso um terceiro apresente uma proposta superior àquela do stalking horse, ele terá o direito de interromper a disputa se igualar essa proposta. � Taxa break-up – Caso o stalking horse perca a disputa para um terceiro, ele será indenizado em um valor previamente definido, como compensação pelo tempo e pelos valores gastos durante a negociação e avaliação do bem alienado. Finalmente, desde que aprovada em assembleia-geral de credores, a alienação dos ativos da massa falida pode ocorrer por meio de adjudicação aos credores, de forma direta ou indireta, o que se daria por meio de sociedade de propósito específico ou fundo de investimento, podendo contar com a participação dos sócios do devedor ou de terceiros, sem o risco de sucessão nas obrigações do devedor falido, consoante a nova redação do art. 145, e desde que respeitado o quórum previsto no art. 46 da LFRE. A propósito, considerar-se-á como não escrita qualquer cláusula restringindo a venda ou a circulação dessas participações na sociedade ou no fundo de investimento. Mas a quem cabe escolher a melhor modalidade de hasta pública para a alienação dos bens? A resposta se encontra no art. 142, 76 Disponível em: https://recuperacaojudicialoi.com.br/wp-content/uploads/2020/10/edital-de-alienacao-upi-torres-djerj-19-10- 2020.pdf. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 111 § 3º-B, da LFRE e prestigia o princípio da participação ativa dos credores nos processos de falência e de recuperação judicial. Confira-se: Art. 142. (...). § 3º-B. A alienação prevista nos incisos IV e V do caput deste artigo, conforme disposições específicas desta Lei, observará o seguinte: I - será aprovada pela assembleia-geral de credores; II - decorrerá de disposição de plano de recuperação judicial aprovado; ou III - deverá ser aprovada pelo juiz, considerada a manifestação do administrador judicial e do Comitê de Credores, se existente. O quórum de aprovação na assembleia-geral de credores é o previsto no art. 42 da LFRE, ou seja, mais da metade do valor total dos créditos presentes (maioria simples), salvo quando se tratar da adjudicação especial do art. 145, cujo quórum é 2/3, consoante art. 46, da LFRE. Disposições comuns Por derradeiro, temos de atentar para algumas regras comuns, isto é, aplicáveis qualquer que seja a modalidade escolhida: 1ª. O Ministério Público e as Fazendas Públicas deverão ser intimados por meio eletrônico, sob pena de nulidade. 2ª. As publicações devem ocorrer em sites próprios, dedicados aos processos de falência e de recuperação judicial, pelo menos cinco dias antes da data designada para o leilão, conforme art. 887, § 1º, do CPC. 3ª. Os lances e as propostas são irretratáveis, incorrendo os faltosos nas obrigações previstas no edital e no CPC. 4ª. A alienação poderá ser impugnada em 48 horas da arrematação por qualquer credor, pelo devedor ou pelo Ministério Público. 5ª. A impugnação com base no preço da alienação só será recebida se acompanhada de uma proposta firme e superior à considerada vencedora, com depósito de 10% a título de caução.77 6ª. O produto da alienação deve ser depositado em nome da massa falida em uma conta remunerada. 7ª. É possível estabelecer regras excepcionais para qualquer hasta pública, desde a assunção pelo arrematante de determinadas obrigações, até a necessidade de apresentação de documentos 77 Entendemos que não basta a apresentação de uma proposta superior à vencedora para impugnar a arrematação, sendo imprescindível que ele comprove a razão da sua ausência na hasta pública. Admitida a impugnação, defendemos que o juiz deve dar ao arrematante a oportunidade de cobrir a proposta do impugnante, encerrando a questão. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 112 ou de uma caução para que ele possa participar do certame, desde que essas exceções estejam claramente definidas nos termos do edital. 8ª. Os princípios que se destacam nessa fase do processo são o da maximização do ativo e da participação ativa dos credores. 9ª. Duas ou mais massas falidas podem promover a alienação conjunta de bens, desde que essa estratégia seja benéfica para ambas, otimizando custos e maximizado os frutos. Prestação de contas Depois de realizado todo o ativo e rateado o seu produto entre os credores, o administrador prestará as suas contas em 30 dias. Logo em seguida, qualquer interessado poderá apresentar impugnação às contas do administrador judicial, sendo certo que o parecer contrário do Ministério Público, que será ouvido no prazo de cinco dias, será tido como impugnação. Havendo impugnação, o administrador judicial deverá ser ouvido no prazo que o juiz entender mais adequado, podendo produzir ou requerer a produção de provas. Ao final, as contas serão julgadas por sentença, que desafia recurso de apelação. A sentença que não aprovar as contas fixará desde logo a indenização devida pelo administrador à massa falida, hipótese em que o processo falimentar não poderá ser encerrado, pelo menos enquanto não executadaessa sentença pelo novo administrador judicial, tudo na forma dos arts. 154-156 da LFRE. O juiz poderá ainda decretar a indisponibilidade ou o arresto – não o sequestro – dos bens do ex-administrador judicial. Encerramento da falência Depois de aprovadas as contas, o administrador apresentará um relatório final, resumindo o processo, e quatro pontos são obrigatórios: I. indicação do valor do ativo realizado; II. valor do passivo declarado; III. pagamentos feitos aos credores concursais e extraconcursais, estes já declarados na prestação de contas, e IV. indicação expressa da responsabilidade do falido, individualizando as classes e os credores concursais que não foram pagos e o percentual do saldo em aberto. Em seguida, o juiz encerrará o processo por meio de sentença, agora de natureza desconstitutiva, que desafia o recurso de apelação, podendo ter como causa o esgotamento do valor obtido com a venda do ativo ou, o que é raro, o pagamento integral dos credores. Em ambos os casos, porém, a sentença que encerrar a falência extingue as obrigações do falido e importará em cancelamento do CNPJ do falido (art. 156). gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 113 Incidente de extinção das obrigações: a reabilitação do falido A reabilitação do falido, disciplinada no art. 158 e seguintes da LFRE, tem funcionado como forma de extinção das responsabilidades civis e criminais, dando-lhe feição híbrida, com natureza inegavelmente desconstitutiva, pois permite que o devedor volte a exercer atividade empresarial. É induvidoso, contudo, que não existe interesse algum dos sócios em retornar ao mercado por meio da sociedade que um dia foi falida. O verdadeiro objetivo do incidente de extinção das obrigações sempre foi “desvincular” o “CPF” dos sócios do “CNPJ” de uma sociedade falida, a fim de que outras pessoas jurídicas das quais participem não enfrentem restrições para obtenção de crédito, sobretudo perante as instituições financeiras. O pedido de extinção das obrigações do falido será autuado em apartado e pode ter as seguintes causas de pedir: Art. 158. Extingue as obrigações do falido: I - o pagamento de todos os créditos; II - o pagamento, após realizado todo o ativo, de mais de 25% (vinte e cinco por cento) dos créditos quirografários, facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir a referida porcentagem se para isso não tiver sido suficiente a integral liquidação do ativo; III - (revogado); IV - (revogado); V - o decurso do prazo de 3 (três) anos, contado da decretação da falência, ressalvada a utilização dos bens arrecadados anteriormente, que serão destinados à liquidação para a satisfação dos credores habilitados ou com pedido de reserva realizado; VI - o encerramento da falência nos termos dos arts. 114-A ou 156 desta Lei. Em vista dessa nova sistemática, o simples encerramento da falência extingue automaticamente as obrigações do falido, consoante clara dicção do inciso IV do art. 158 c/c o art. 156. No entanto, ainda no curso do processo falimentar, o falido ou os seus sócios podem pedir, por meio incidente autuado em apartado, a declaração, por sentença, de extinção das obrigações do falido, mormente uma sociedade empresária. O pagamento integral dos credores e o pagamento de mais de 25% dos credores quirografários, depois de realizado todo o ativo, previstas nos incisos I e II do art. 158, são realmente muito raras. Contudo, certamente se tornará comum o pedido de extinção das gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 114 obrigações do falido pelo decurso do prazo de três anos da decretação da falência, fenômeno esse denominado pela doutrina de fresh start. Inicialmente, salientamos que o instituto do fresh start tem raízes no princípio da dignidade da pessoa humana e, com todas as vênias aos entendimentos em contrário, só deve ser aplicado na sua integralidade aos empresários individuais e aos sócios pessoas naturais com responsabilidade ilimitada. De fato, se já é difícil imaginar a volta ao mercado de uma sociedade empresária que já foi falida, é absolutamente impensável esse retorno ainda durante a tramitação do seu processo de falência, tão somente porque já se passaram três anos da sentença de quebra. No que toca às pessoas jurídicas cujos titulares ou sócios possuem responsabilidade limitada, a falência daquelas não impede e nunca impediu que estes permanecessem ou retornassem ao mercado por meio de outras pessoas jurídicas. Defendemos, portanto, que o pedido de extinção das obrigações de uma pessoa jurídica falida (sociedade empresária ou Eireli) pelo decurso de três anos da sentença de falência, uma vez acolhido, terá como única consequência a sua total desvinculação dos sócios ou titular em todos os cadastros públicos e privados, ressalvada a possibilidade de ação rescisória prevista no art. 159-A. Com efeito, ao nosso sentir, mesmo após a sentença de extinção das obrigações de uma pessoa jurídica falida, e enquanto não encerrado o processo de falência, será possível a arrecadação dos seus bens e direitos para posterior liquidação em benefício dos credores. Caso se entenda pela aplicação integral do instituto do fresh start às pessoas jurídicas falidas, deixamos aqui alguns questionamentos que terão de ser respondidos pela doutrina e pela jurisprudência: a) Descoberto algum bem (antigo) da sociedade falida após a sentença de extinção de obrigações, ele deve ser arrecadado e liquidado em favor dos credores ou entregue aos sócios para distribuição entre eles na forma de haveres? b) Na hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, qual deve ser o termo a quo para a contagem do prazo de três anos, a sentença de quebra ou a decisão que desconsiderou a personalidade jurídica? c) Como ficam os incidentes de desconsideração da personalidade jurídica já iniciados antes da sentença de extinção das obrigações, mas ainda sem decisão? d) Pode ser instaurado um IDPJ após a sentença de extinção de obrigações? e) Ainda é possível o ajuizamento da ação de responsabilidade prevista no art. 82 após a sentença de encerramento da falência? O requerimento deve ser processado em apartado (art. 159, § 6º, da LFRE) como um incidente processual é decidido por sentença, que desafia recurso de apelação (art. 159, § 5º, da LFRE). gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 115 Ademais, qualquer credor pode propor ação rescisória contra a sentença ou acórdão que extinguir as obrigações do falido, desde que o faça no prazo decadencial de dois anos, a contar do trânsito em julgado, e que comprove que o falido tenha sonegado bens, direitos ou rendimentos de qualquer espécie anteriores à data do requerimento. Demonstração de regularidade fiscal Para que se declare a extinção das obrigações do falido, o devedor deve comprovar a sua regularidade fiscal, consoante art. 191 do CTN. Os tribunais superiores, contudo, suavizaram a exigência legal e sedimentaram a jurisprudência que dá ao devedor a opção de pedir a extinção das suas obrigações com ou sem a apresentação das CNDs. No último caso, a sentença de extinção das obrigações fará uma ressalva quanto ao passivo fiscal.78 78 STJ, REsp 834.932/MG. Rel. ministro Raul Araújo, 4ª Turma, Julgamento: 25/08/2015, DJe, 29/10/2015. gustavosp Realce gustavosp Realce 116 Ao regular os planos de recuperação judicial, olegislador deixou clara a mudança de orientação adotada na Lei nº 11.101/05, uma vez que a recuperação passou a se destinar exclusivamente às empresas viáveis, sendo certo que essa avaliação deixava de ser legal ou judicial e passou para a responsabilidade dos credores. Essa mudança de orientação veio prestigiar o entendimento mais moderno e majoritariamente adotado em outros países, no sentido de que são os credores, em tese, os maiores interessados na recuperação da empresa. Assim, serão estes que, normalmente organizados em assembleia, definirão, conforme as perspectivas daquela empresa, o futuro da sociedade em crise. O norte do processo de recuperação judicial é a preservação da empresa, princípio este positivado no art. 47, da LFRE, assim redigido: Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. A redação do dispositivo acima denota a preocupação do legislador com a preservação da empresa. Tal preocupação, em relação às sociedades anônimas, é ressaltada pelo professor José Edwaldo Tavares Borba, ao afirmar que tais sociedades não são apenas “um mero instrumento de produção de lucros para a distribuição aos detentores do capital”,79 mas, sim, uma “instituição 79 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 134. MÓDULO III – RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS gustavosp Realce gustavosp Realce 118 destinada a exercer o seu objeto para atender aos interesses de acionistas, empregados e comunidade”. Ou seja, em razão da sua função social, a empresa deve ser preservada sempre que possível, pois gera riqueza econômica e cria emprego e renda, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento social do País. Além disso, a extinção da empresa provoca a perda do agregado econômico representado pelos chamados intangíveis, como nome, ponto comercial, reputação, marcas, clientela, rede de fornecedores, know-how, treinamento e perspectiva de lucro futuro, entre outros. Alterações legislativas Depois da sua publicação, em 9 de fevereiro de 2005, a LFRE sofreu pequenas alterações em decorrência da Lei Complementar nº 147/2014, em uma vã tentativa de melhorar o sistema em benefício das micro e pequenas empresas. No entanto, a profunda alteração ocorreu apenas com a publicação da Lei nº 14.112, em 24 de dezembro de 2020, que aglutinou diversos projetos de lei que estavam tramitando há anos no Congresso Nacional. Nessa grande reforma de 2020, nem todos os nós do sistema foram desatados, mas é inegável o esforço do Poder Legislativo em modernizar os institutos da falência e de recuperação de empresas, aclarando alguns pontos obscuros e harmonizando interesses até então inconciliáveis. No que toca aos processos de recuperação de empresas, destacam-se nessa grande reforma: � o surgimento de três caminhos para a equalização do passivo fiscal dos devedores em dificuldades; � a proteção ao crédito fiscal nos processos de recuperação judicial; � a limitação da prorrogação do stay period por apenas mais um período de 180 dias; � a possibilidade de os credores apresentarem plano de recuperação judicial alternativo em duas hipóteses; � a adoção da Lei Modelo da United Nations Commission on International Trade Law (Uncitral) – Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional – para os processos de insolvência transnacional; � a definição das regras sobre o litisconsórcio ativo nos processos de recuperação judicial e � a implementação de instrumentos e regras processuais tendentes a conferir maior celeridade aos processos de falência e de recuperação judicial. Espécies de recuperação de empresas O instituto da recuperação de empresas é dividido em recuperação judicial e recuperação extrajudicial. Apesar de inúmeras diferenças, o que mais salta aos olhos é o fato de que na gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 119 extrajudicial toda a negociação, desde a proposta do devedor até a composição final, dá-se antes do ajuizamento da ação, cujo objetivo é apenas a homologação do acordo coletivo, a fim de que, em certos casos, ele tenha eficácia para todos, inclusive para os não aderentes. Enxergamos dois grandes problemas que acabam desestimulando a utilização desse instituto, o primeiro é a dificuldade de negociar com os credores, um a um, para se chegar a um consenso coletivo, enquanto o segundo é o fato de o devedor ficar sem nenhuma proteção contra a ação dos credores durante essas negociações, fazendo com que o tempo milite contra os seus interesses. Já na recuperação judicial, toda a negociação é desenvolvida sob a fiscalização do juiz e do administrador judicial, uma vez que o processo se inicia antes mesmo da apresentação da proposta aos credores, ou seja, do plano de recuperação, sendo certo que o devedor ganha uma proteção especial que impede a ação individual dos credores com exatamente esse objetivo, forçar a negociação coletiva. Por sua vez, dentro da recuperação judicial há uma nova bifurcação, já que ela se divide em plano especial, que só pode ser usado por pequenos e microempresários, e plano comum ou ordinário, colocado à disposição de todos os empresários, inclusive aqueles. Legitimidade ativa Como já aludido, o objetivo da recuperação judicial é reerguer a empresa em crise. Dessa forma, só terão legitimidade ativa para pedir recuperação as sociedades empresárias, as Eirelis e os empresários individuais, nos termos do art. 1º da LFRE. No que se refere às sociedades empresárias mencionadas no art. 2º da LFRE, nenhuma delas poderá pedir recuperação judicial. A nossa opção legislativa foi dar apenas ao devedor a legitimidade ativa para requerer a recuperação judicial, afastando-a dos credores, do Ministério Público e dos empregados do devedor. A única ressalva fica por conta do parágrafo único do art. 48 da nova LFRE, que estende essa legitimidade ativa ao cônjuge sobrevivente, aos herdeiros e ao inventariante do empresário individual falecido, bem como aos sócios remanescentes, quando se tratar de sociedade empresária.80 Sentimo-nos na obrigação de registrar que o STJ, em decisão monocrática do ministro Fernando Gonçalves, nos autos do AI nº 1.008.393/RJ, seguindo outra decisão da 4ª Turma,81 deu provimento ao recurso da Casa Portugal, uma associação civil sem fins lucrativos, a fim de que tivesse seguimento o seu processo de recuperação judicial. Esse perigoso precedente se escorou na teoria do fato consumado, pois o plano de recuperação já havia sido homologado pelos 80 Note-se que o professor Fábio Ulhoa Coelho afirma que, quando o legislador se referiu a sócio remanescente, quis referir-se a sócio minoritário, permitindo, assim, que os sócios que discordaram, em assembleia geral, de eventual rejeição de proposta de recuperação judicial, possam aduzir em juízo o pedido de recuperação. COELHO, Fábio Ulhoa. Comentário à nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 125. 81 REsp. 1.004.910/RJ. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 120 credores e estava sendo regularmente cumprido, e na própria função social que a entidade inegavelmente possuía. Parece caminhar para o mesmo destino, embora por outros fundamentos, o Caso da Universidade Cândido Mendes (Ucam). Como já alinhavamos, o Tribunal de Justiça do Rio de janeiro, encampando a denominada “teoria dos agentes econômicos”,negou provimento ao agravo de instrumento interposto pelo Ministério Público contra a decisão que deferiu o processamento do pedido de recuperação da mantenedora da Ucam, uma associação civil filantrópica82. Já ressaltamos que, na grande reforma de 2020, os legisladores não encamparam essa teoria e mantiveram o instituto da recuperação restrito aos empresários. Recuperação judicial do produtor rural Não é preciso dimensionar o gigantismo econômico da atividade rural no nosso País, o chamado “agronegócio”. Consequentemente, são muitos os interesses em torno da sistemática jurídica que disciplinará a eventual dificuldade econômica daqueles que atuam nesse importante segmento da nossa economia. Os produtores rurais, como se sabe, podem optar pela inscrição no registro público de empresas mercantis, a Junta Comercial, e, assim, se tornam empresários para todos os fins de direito, inclusive para o pedido de recuperação judicial. Contudo, os legisladores, sensíveis às inúmeras divergências acerca dos contornos da recuperação judicial do produtor rural, seja pessoa natural, seja pessoa jurídica, entendeu por bem disciplinar detalhadamente o tema, conforme §§ 2º, 3º, 4º e 5º do art. 48 da LFRE. Parece-nos que, na linha da jurisprudência83 e doutrina84 então majoritárias, continua sendo imprescindível que o produtor rural providencie a sua inscrição na Junta Comercial antes do pedido de recuperação, a fim de adquirir a qualidade de empresário, consoante arts. 971 e 984 do Código Civil, e para atender à exigência do art. 51, inciso V, da LFRE. Entretanto, o produtor rural pode contar o tempo de atividade antes do registro para fins de atendimento da exigência prevista no caput do art. 48 da LFRE. 82 TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0031515-53.2020.8.19.0000. 6ª Câmara Cível. Des. Rel. Nagib Slaibi Filho. Julgado em 02/09/2020. Maioria de Votos. 83 Tese vencedora: ministros Salomão, Raul Araújo e Antônio Carlos Ferreira. Tese vencida: ministros Buzzi e Isabel Gallotti. 84 Nesse sentido três Enunciados do Conselho da Justiça Federal: 97 – O produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido; 201 – O empresário rural e a sociedade empresária rural, inscritos no registro público de empresas mercantis, estão sujeitos à falência e podem requerer concordata e 202 – O registro do empresário ou sociedade rural na Junta Comercial é facultativo e de natureza constitutiva, sujeitando-o ao regime jurídico empresarial. É inaplicável esse regime ao empresário ou sociedade rural que não exercer tal opção. gustavosp Realce 121 No que toca à documentação contábil, fiscal e financeira exigida no art. 51 da LFRE, o legislador fez algumas adequações à realidade do produtor rural, assim como em relação às regras referentes aos créditos sujeitos e não sujeitos aos efeitos do processo, consoante veremos oportunamente. Litisconsórcio ativo Certamente, o litisconsórcio ativo nos processos de recuperação judicial sempre foi um dos grandes “nós” do sistema, haja vista a lacuna legislativa que existia sobre o tema. Por consequência, a jurisprudência sempre se revelou confusa, contraditória e casuística. Felizmente, com a recente reforma, o tema passou a ser tratado nos arts. 69-G a 69-J da LFRE, que consagrou a possibilidade do litisconsórcio ativo nos processos de recuperação judicial em duas modalidades: a consolidação processual e a consolidação substancial. Consolidação processual A regra do litisconsórcio ativo em recuperação judicial é que ele se dê pela denominada consolidação processual, que preserva a autonomia de ativos e passivos dos devedores. Por conseguinte, dois ou mais devedores poderão pedir recuperação judicial juntos, desde que integrem o mesmo grupo econômico, de fato ou de direito, e apresentem, individualmente, todos os documentos exigidos pela LFRE, em especial aqueles relacionados no art. 51. Nessa toada, cada devedor deverá propor aos seus respectivos credores meios próprios e específicos de soerguimento, o que pode ser formalizado pela apresentação de um plano para cada devedor, ou até por meio de um plano único. Na consolidação processual, qualquer que seja a opção, planos individuais ou plano único, as deliberações serão sempre separadas85, o que pode resultar na aprovação dos planos de alguns devedores e na rejeição de outros, hipótese em que os processos, de falência e de recuperação judicial, serão desmembrados. Há de se consignar que, com base no princípio da autonomia da vontade, os credores podem aprovar um plano que importe em consolidação substancial dos ativos e passivos de alguns ou de todos os devedores, ou em solução semelhante, como a estrutura de waterfall86, desde que, repise-se, as votações sejam separadas. 85 STJ, AREsp. 949.625-RS. 86 TJRJ, 0014816-26.2016.8.19.0000 – Agravo de Instrumento. Des. Carlos Santos de Oliveira – Julgamento: 26/07/2016 – 22ª Câmara Cível gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 122 Consolidação substancial Em caráter absolutamente excepcional, o juiz poderá determinar a consolidação substancial dos ativos e dos passivos de todos os devedores, ignorando as suas personalidades jurídicas autônomas e tratando-os como se fossem um único devedor. Para tanto, consoante art. 69-J da LFRE, deve estar provada nos autos profunda confusão patrimonial, acrescida de pelo menos duas outras circunstâncias previstas nos incisos desse dispositivo. Na nossa avaliação, portanto, a consolidação substancial por decisão judicial, ontologicamente, nada mais é do que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica nos processos de recuperação judicial. Vejamos o texto legal: Art. 69-J. O juiz poderá, de forma excepcional, independentemente da realização de assembleia-geral, autorizar a consolidação substancial de ativos e passivos dos devedores integrantes do mesmo grupo econômico que estejam em recuperação judicial sob consolidação processual, apenas quando constatar a interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos, cumulativamente com a ocorrência de, no mínimo, 2 (duas) das seguintes hipóteses: I - existência de garantias cruzadas; II - relação de controle ou de dependência; III - identidade total ou parcial do quadro societário; e IV - atuação conjunta no mercado entre os postulantes. Repise-se que, ao nosso sentir, a consolidação substancial de ativos e passivos só pode ser implementada se aprovada pelos credores, em votações segregadas, ou por determinação judicial, quando comprovado o abuso da personalidade jurídica por conta de confusão patrimonial de tal intensidade que não seja possível separar os ativos e os passivos sem grande dispêndio financeiro, hipótese em que os seus causadores devem ser identificados e responsabilizados, inclusive por meio da incidência dos arts. 64 e 168 da LFRE. Nesse sentido: Recuperação judicial requerida por três empresas. Decisão que determinou a consolidação substancial. Agravo de instrumento de banco credor. Na consolidação processual há litisconsórcio ativo, com a condução conjunta de recuperações judiciais de devedoras que compõem um grupo societário, sem eliminação da independência patrimonial. Na consolidação substancial, diferentemente, há reunião de ativos e passivos das litisconsortes. Pode ser voluntária, quando os credores gustavosp Realce gustavospRealce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 123 assim deliberarem em assembleia, ou obrigatória, nos casos em que houver abuso de personalidade. Doutrina de SHEILA C. NEDER CEREZETTI. Hipótese dos autos em que as recuperandas pleitearam apenas a consolidação processual, não havendo provas de abuso de personalidade jurídica que ensejasse a consolidação substancial. Cabimento, portanto, apenas da consolidação processual, ressalvada a possibilidade de os credores deliberarem em assembleia pela consolidação substancial voluntária. Decisão agravada reformada. Agravo de instrumento provido (TJSP; Agravo de Instrumento 2028810- 87.2019.8.26.0000; Relator: Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de São Bernardo do Campo – 2ª Vara Cível; Julgamento: 22/10/2019). Como consequências da aplicação da consolidação substancial, em obediência ao art. 69-L, haverá extinção das garantias fidejussórias cruzadas e dos créditos intercompany87, sem olvidar que a aprovação ou a rejeição do plano de recuperação afetará todos os devedores, isto é, ou todos se recuperam ou todos terão a falência decretada. Recuperação judicial transnacional Importante desdobramento da possibilidade de litisconsórcio ativo em recuperação judicial é definir se entre as sociedades requerentes pode figurar alguma sociedade estrangeira, ou seja, criada e estabelecida em outro país. O primeiro caso no Brasil em que a questão foi debatida foi na recuperação judicial do Grupo OGX, uma vez que duas das sociedades requerentes eram austríacas, com sede em Viena, sem filial ou ativos no Brasil. Naquele caso nos posicionamentos de forma contrária, escorando o nosso parecer no art. 12 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) e no art. 3º da LFRE. O juízo acolheu o nosso posicionamento e excluiu as sociedades estrangeiras do processo, mas o TJRJ deu provimento ao recurso interposto pelas recuperandas, determinando a reinclusão das sociedades austríacas, com fundamento na teoria da preservação da empresa e no art. 4º da Lindb.88 Desde então, aguarda-se o julgamento do recurso de agravo de instrumento que negou a admissibilidade do recurso especial89 pelo STJ, mas é fato que aquele precedente abriu caminho 87 Sobre conceito de crédito intercompany nos processos de recuperação judicial em litisconsórcio ativo, ver: TJRJ, Embargos de Declaração no Agravo de Instrumento nº 0071168-38.2015.8.19.0000, 22ª Câmara Cível, Rel. Des. Rogério de Oliveira Souza, julgado em 27/09/2016). 88 TJRJ, 0064658-77.2013.8.19.0000. 14ª Câmara Cível. Des. Rel. Gilberto Campista Guarino. Julgamento: 19/02/2014. 89 AREsp nº 871152/RJ. gustavosp Realce 124 para vários outros casos de processamento de recuperação judicial no Brasil envolvendo sociedades estrangeiras, como nos casos dos Grupos OAS, Oi e Sete Brasil. Outro importante precedente que merece registro é a recuperação judicial do Grupo Constellation, antiga Queiroz Galvão, pois envolveu 18 pessoas jurídicas, sendo que apenas quatro eram brasileiras. Pela profundidade do voto condutor, recomendamos a leitura do v. acórdão da 16ª Câmara Cível do TJRJ, nos autos do Agravo de Instrumento nº 0070417- 46.2018.8.19.0000, julgado em 26 de março de 2019, da relatoria do eminente desembargador Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto. Nada obstante esse histórico, a recente reforma deve pôr fim a boa parte das discussões sobre os processos de insolvência transnacional, uma vez que agora podemos contar com os arts. 167-A a 167-Y da LFRE, que refletem a adoção pelo Brasil da Lei Modelo da Uncitral para os processos de insolvência transnacional90. Entre as principais regras podemos destacar: � a isonomia de tratamento entre os credores nacionais e estrangeiros; � a prevalência das regras previstas em tratados e acordos internacionais em relação às normas previstas na LFRE; � a diferenciação do processo principal e não principal, a fim de definir qual jurisdição será responsável pela condução geral dos processos; � o reconhecimento de que, quando o processo brasileiro não for o principal, só poderá abarcar os bens e direitos localizados no nosso território e � a ampla flexibilidade dos protocolos de cooperação entre as jurisdições. Requisitos da petição inicial do requerimento de recuperação judicial A petição inicial deve demonstrar que o requerente preenche os requisitos subjetivos e objetivos exigidos pela LFRE, respectivamente nos arts. 48 e 51, para o deferimento do processamento do pedido. Embora possa decidir imediatamente sobre o processamento do pedido, havendo necessidade, o juiz poderá determinar a realização de uma perícia prévia de constatação91, a ser realizada em cinco dias, para verificar as reais condições do devedor e a regularidade documental, podendo, ocasionalmente, verificar se o devedor realmente possui o seu principal estabelecimento naquele local, tudo conforme o art. 51-A da LFRE. 90 Disponível em: https://www.machadomeyer.com.br/pt/imprensa-ij/a-insolvencia-transnacional-e-a-reforma-da-lei-de- recuperacoes-e-falencias. 91 O CNJ expediu a Recomendação nº 57, de 22 de outubro de 2019, que orienta os magistrados a determinar a denominada “perícia prévia de constatação”, a ser realizada em cinco dias, para que o “perito” verifique a regularidade da documentação e as reais condições da requerente. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 125 Nesses casos, a perícia será realizada sem a apresentação de quesitos ou oitiva das partes, e a remuneração será fixada a posteriori. Requisitos subjetivos Cabe ao devedor comprovar na sua petição inicial que preenche alguns requisitos legais, de caráter subjetivo, para obter o deferimento do processamento do seu pedido de recuperação judicial. Atividade empresarial há mais de dois anos (caput) Segundo o caput do aludido artigo, o devedor deve comprovar que exerce regularmente a atividade empresarial há pelo menos dois anos. Nada obstante a aparente simplicidade de interpretação, inúmeras questões têm surgido ao longo dos anos de vigência da LFRE. O STJ já decidiu que não bastam os dois anos de registro na Junta Comercial, exigindo-se do requerente a prova de que está naquele ramo de atividade, ou correlato, também há mais de dois anos.92 Por outro lado, o TJSP admitiu o processamento da recuperação judicial de uma sociedade empresária constituída na Junta Comercial há menos de dois anos, mas que havia adquirido o estabelecimento empresarial de outra sociedade do mesmo grupo econômico, que funcionava há vários anos, sendo a sua sucessora.93 Já o TJRJ deferiu o processamento do pedido de recuperação judicial de uma sociedade que sequer estava registrada na Junta Comercial, uma vez que os seus atos constitutivos estavam arquivados perante o Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas.94 Advirta-se que alguns sócios pessoas naturais, em uma inequívoca tentativa de protegerem os seus patrimônios pessoais, colocados em risco em razão de garantias fidejussórias concedidas sobre dívidas da sociedade empresária, estão constituindo firmas individuais no mesmo ramo da sociedade empresária para, depois do biênio legal, ingressarem com pedido de recuperação judicial em litisconsórcio ativo.95 Mais uma vez salientamos que o produtor rural pode contar o tempo de atividade regular anterior ao registro para postular a sua recuperação judicial. 92 STJ, REsp 1478001/ES. Rel. ministro Raul Araújo, 4ª Turma, Julgamento: 10/11/2015. 93TJSP; Agravo de Instrumento 0057528-17.2008.8.26.0000; Relator: Pereira Calças; Órgão Julgador: N/A; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Julgamento: 04/03/2009; Registro: 19/03/2009. 94 TJRJ, 0039244-09.2015.8.19.0000 – Agravo de Instrumento. Des. Carlos Santos de Oliveira – Julgamento: 08/09/2015 – 22ª Câmara Cível. 95 TJRS, Agravo de Instrumento nº 70065413031, 5ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Isabel Dias Almeida, Julgamento: 26/08/2015 (Caso Herter Cereais). Pendente o REsp. nº 1612031/RS. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 126 Voltemos a repisar que, se a jurisprudência caminhar para a adoção da denominada “teoria dos agentes econômicos”, não haverá mais qualquer sentido na aplicação da regra prevista no caput do art. 48 da LFRE. Não ser falido e não ter obtido recuperação judicial há menos de cinco anos (incisos I, II e III) O empresário falido não pode pleitear recuperação judicial. Por seu turno, com o objetivo de só manter no mercado os empresários realmente viáveis, não se revelaria prudente autorizar o devedor empresário, a todo momento, requerer uma nova recuperação judicial, razão pela qual se veda novo pedido de recuperação judicial se a anterior ocorreu nos últimos cinco anos. Atente-se que a proibição ocorre em relação à anterior obtenção da recuperação judicial, que se dá pela sentença homologatória do plano de recuperação aprovado pelos credores. Sócios controladores e administradores não condenados por crimes da LFRE (inciso IV) De interesse puramente acadêmico, este requisito é alvo de acirradas críticas doutrinárias por suposta violação do princípio constitucional da intranscendência. Na prática, contudo, basta uma simples alteração contratual para contornar o problema e seguir adiante, com a apresentação do pedido de recuperação judicial com o quadro societário e administrativo sem pessoas naturais ostentando condenação por crime falimentar ou recuperacional. Não se admite a aplicação da analogia para ampliar o rol de crimes, cujas condenações dos sócios controladores ou dos administradores, que impedem o acesso à recuperação judicial. Requisitos objetivos A petição inicial deve ser instruída com uma série de documentos e informações de ordem objetiva, exigidos pelo art. 51 da LFRE, sendo oportunas breves considerações sobre cada um deles. Situação patrimonial e razões da crise (inciso I) Logo após a demonstração do preenchimento dos requisitos subjetivos, o requerente deve narrar na petição inicial o histórico da empresa, bem como os motivos da crise, comprovando-os, e detalhar a atual situação patrimonial. Essa narrativa tem como destinatários os credores, isto é, não cabe ao juiz analisar ou julgar a versão trazida pelo devedor. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 127 Demonstrações contábeis (inciso II) O devedor deve instruir o seu pedido de recuperação com os três últimos balanços contábeis completos, além de um especialmente levantado até a data do pedido. Esta tem sido uma grande dificuldade enfrentada por empresas de pequeno e médio porte, uma vez que muitas vezes não possuem esses documentos dentro das formalidades legais. Há de se ressaltar que não cabe ao juiz, muito menos ao Ministério Público, analisar a viabilidade do devedor, portanto, apresentados os documentos contábeis, por pior que pareça a situação econômico-financeira do empresário, são os credores que devem decidir se há ou não chance de recuperação. Caso alguma informação contábil desperte suspeita, como o valor de estoque muito elevado, recomenda-se determinar ao administrador judicial uma avaliação melhor desse ponto já no primeiro relatório mensal de atividades, mas sem prejuízo do despacho de deferimento do processamento do pedido. Por fim, quando se tratar de devedor produtor rural, o cumprimento dessa exigência se dará mediante a apresentação dos documentos previstos no § 3º do art. 48 da LFRE. Relação de credores (inciso III) Caberá ao devedor apresentar a relação completa dos seus credores, sujeitos ou não ao processo de recuperação judicial, inclusive fiscais, com a indicação precisa de todas as informações exigidas pelo inciso ora analisado. Note-se que a lei, atendendo a um reclamo doutrinário96, agora é ainda mais clara ao não restringir a relação aos credores concursais, muito embora apenas estes devam ser levados em conta para a fixação do valor da causa. Importante lembrar que é considerado crime, com pena de dois a quatro anos de reclusão, a apresentação de relação de créditos falsa ou simulada, conforme art. 175, da LFRE. Relação de empregados (inciso IV) A relação completa dos empregados, com os seus respectivos cargos, salários e demais informações tem sido objeto de uma peculiaridade, qual seja, o pedido de sigilo quanto aos nomes dos empregados e os seus respectivos salários, sob o fundamento de proteção a “intimidade”. Tratando-se de um processo coletivo, entendemos descabida tal proteção, muito embora, mesmo que deferida, por força do estatuto da advocacia não se poderá negar pleno acesso a essas informações aos advogados de qualquer dos credores submetidos ao processo, muito menos ao Ministério Público e ao administrador judicial. 96 Essa é a orientação do Enunciado 78 do CJF. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Nota § 3º Para a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo, o cálculo do período de exercício de atividade rural por pessoa física é feito com base no Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir o LCDPR, e pela Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e balanço patrimonial, todos entregues tempestivamente. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência) gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 128 Certidão de regularidade do Registro Público de Empresas Mercantis (inciso V) Atende-se a essa exigência mediante a simples juntada de cópia dos atos constitutivos do devedor arquivados perante a Junta Comercial. Relembre-se, todavia, que há discussão acerca da possibilidade de pedido de recuperação judicial formulado por sociedade empresária registrada no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas e por sociedades estrangeiras. Relação de bens dos sócios controladores e dos administradores (inciso VI) Assim como o nome dos empregados, usualmente a relação de bens é objeto de pedido de sigilo, a fim de preservar a “intimidade” dos sócios e dos administradores do devedor em recuperação judicial.97 Somos contrários a esse sigilo, muito embora, como já alinhavado, ele não possa ser oposto aos advogados de qualquer dos credores, nem ao Ministério Público e ao administrador judicial. Em verdade, a exigência prevista nesse inciso reflete a preocupação do legislador com as costumeiras fraudes, pois já não surpreende o fato de uma sociedade empresária em dificuldades não possuir ativos compatíveis com a atividade que explora, enquanto os seus sócios, principais causadores do insucesso, ostentam invejável saúde financeira e patrimonial, podendo contribuir para a reestruturação por meio de aportes de capital. Advirta-se para o denominado controle indireto e, principalmente, para a manobra de alteração, muitas vezes fraudulenta, das pessoas naturais que exercem a administração dos negócios do devedor na véspera do pedido de recuperação judicial. Extratos bancários (inciso VII) Alguns doutrinadores defendem que, além de serem de pouca importância neste primeiro momento, tais informações poderão ser utilizadaspor credores de má-fé e em prejuízo do prosseguimento do negócio, expondo a empresa a um risco desnecessário para a sua preservação. De toda maneira, a lei não esclarece de qual período devem ser os extratos. Certidões de protestos (inciso VIII) Não há maiores dificuldades para o atendimento dessa exigência. Entretanto, as certidões de protesto são objeto de uma discussão de grande importância para a recuperação da empresa e que ainda divide os tribunais. Trata-se do pedido de pedido de natureza cautelar formulado pelos devedores, logo após o despacho que defere o processamento do pedido de recuperação judicial, a 97 SANTOS, Paulo Penalva. Palestra proferida na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), em 7 de março de 2005. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 129 fim de não retardar o início do processo, de suspensão dos efeitos – publicidade – dos protestos, referentes às dívidas sujeitas aos efeitos da recuperação judicial. Há precedentes de diversos tribunais, especialmente do Paraná98 e do Rio de Janeiro,99 admitindo essa suspensão da publicidade dos protestos, apenas em relação ao devedor em recuperação judicial e referente às dívidas que estão sendo tratadas no processo, com arrimo no princípio da preservação da empresa e na própria da ausência de prejuízo aos credores, na medida em que não ficam impedidos de realizar os seus protestos, conforme entendimento sedimentado pela Súmula 581 do STJ e pelo Enunciado nº 54 do CJF. Há, por certo, precedentes contrários, a maioria do TJSP, que se escora na ausência de previsão legal e no atendimento ao princípio da publicidade e da proteção a terceiros de boa-fé.100 Relação dos processos judiciais e disputas arbitrais, com estimativa de valores (inciso IX) Essa exigência é extremamente relevante para que os credores possam sopesar a viabilidade econômica do devedor. É preciso redobrado cuidado para analisar a estimativa de valores, uma vez que essa é uma tarefa potencialmente subjetiva e pode comprometer a projeção de caixa para o futuro. Preenchidos todos os requisitos alinhados nos arts. 48 e 51 da LFRE, o juízo deverá deferir o processamento do pedido de recuperação judicial, nos termos no art. 52. Havendo alguma pendência, o devedor deverá ser intimado para supri-la, sob pena de indeferimento da petição inicial, aplicando-se subsidiariamente a legislação processual comum. Relatório detalhado do passivo fiscal (inciso X) Realmente, não há como os credores avaliarem a viabilidade do devedor em recuperação judicial sem conhecer em detalhes o seu passivo fiscal, especialmente após ser conferida legitimidade às Fazendas Públicas para pedirem a convolação da recuperação judicial em falência. Relação de bens e direitos do ativo não circulante (inciso XI) Antes da reforma, a relação de bens e as suas respectivas avaliações só eram exigidas quando da apresentação do plano de recuperação judicial, conforme art. 53, inciso III, da LFRE. Após a recente reforma, com a maior preocupação de se estabelecer um eficaz controle dos ativos do 98 TJPR, AI 1698627-3. Órgão Julgador: 18ª Câmara Cível. Relator: Pericles Bellusci de Batista Pereira. Julgamento: 26/06/2017 12:56:00. Fonte/Data da Publicação: DJ: 2058 29/06/2017. 99 TJRJ, AI 0042281-15.2013.8.19.0000, 10ª Câmara Cível. Rel. Des. José Carlos Varanda. Julgamento: 22/01/2014. 100 TJSP; Agravo de Instrumento 2048010-51.2017.8.26.0000; Relator: Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Limeira – 2ª Vara Cível; Julgamento: 15/09/2017; Registro: 15/09/2017. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 130 devedor, sobretudo não circulantes, a lei passa a exigir a relação desses bens – sem a necessidade de laudo de avaliação –, junto com a petição inicial. Essa opção, muito embora crie mais uma exigência para os pedidos de recuperação judicial, nos parece bem-vinda, a fim de dar maior segurança jurídica e eficácia ao art. 66 da LFRE. Há que se consignar a expressa referência aos bens dados em garantia e abrangidos pela regra prevista no § 3º do art. 49 da LFRE, que também devem ser relacionados, e os seus respectivos instrumentos contratuais devem acompanhar a relação. � Sigilo Muitas vezes, os devedores pedem a decretação do sigilo em relação a alguns dos documentos que são apresentados por exigência do art. 51 da LFRE. Temos recorrido com êxito contra decisões que acolhem essas pretensões, como no caso já mencionado do Grupo Constellation, a conferir: 7- Os documentos exigidos com o requerimento da recuperação passam a integrar o contraditório e não podem ser sonegados às próprias partes, donde a nulidade de decisão que limita seu acesso ao juiz e ao Membro do Ministério Público. [...] (TJRJ, AI nº 0070417-46.2018.8.19.0000. 16ª Câmara Cível. Rel. Des. Eduardo Gusmão. Julgamento: 26/03/2019). Nesse mesmo sentido, TJSP, AI nº 2036910- 94.2020.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Azuma Nishi, julgado em 11/08/2020) Preenchidos todos os requisitos alinhados nos arts. 48 e 51 da LFRE, deverá o juízo deferir o processamento do pedido de recuperação judicial, nos termos no art. 52. Havendo alguma pendência, o devedor deverá ser intimado para supri-la, sob pena de indeferimento da petição inicial, aplicando-se subsidiariamente a legislação processual comum. Créditos sujeitos aos efeitos da recuperação De acordo com o art. 49, caput, da LFRE, a recuperação judicial atinge “todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”. A melhor exegese desse dispositivo, especialmente quando combinado com o art. 6º e os seus parágrafos, é adotar como parâmetro a data do fato gerador do crédito. Assim, ocorrendo um acidente por culpa do devedor antes do pedido de recuperação, ainda que a ação indenizatória seja proposta após a recuperação, eventual crédito estará sujeito aos seus efeitos, mesmo que não habilitado até o encerramento do processo. gustavosp Realce gustavosp Realce 131 Da mesma forma, em uma relação de trato sucessivo, como o contrato de trabalho, todas as verbas devidas ao trabalhador por fatos anteriores ao pedido estarão sujeitas ao processo de recuperação judicial, enquanto as posteriores não, independentemente da forma e do momento em que forem reconhecidas. Nesse sentido: AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL E PROCESSUAL CIVIL. CPC/2015. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CRÉDITO DECORRENTE DE AÇÃO DE COMPLEMENTAÇÃO DE AÇÕES. CONDENAÇÃO ILÍQUIDA. SUJEIÇÃO AO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. FATO GERADOR ANTERIOR À DATA DO PEDIDO DE RECUPERAÇÃO. PRECEDENTES. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA. 1. Controvérsia acerca da suspensão de execução provisória ('ex vi' do art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/2005) de crédito decorrente de sentença condenatória em demanda por complementação de ações, pendente de trânsito em julgado na fase de liquidação. 2. Precedentes desta Corte Superior, proferidos em demandas relativas a crédito trabalhista e de responsabilidade civil, no sentido de que a data do fato gerador da obrigação seria o marco temporal para a sujeição ou não do crédito à recuperação judicial, ainda que a liquidação venha a ocorrer em data posterior. 3. Caso concreto em que a pretensão de complementação de ações se enquadra na responsabilidade civil contratual, devendo-se, portanto, tomar como fato gerador o inadimplemento, ou seja, a subscrição de ações em número menor do que o devido, fato que ocorreu na década de 90, muito antes do pedido de recuperação judicial. 4. Sujeição do crédito ao plano de recuperação judicial no casoconcreto, devendo-se suspender a execução provisória, como bem entendeu o juízo 'a quo'. 5. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. (AgInt no REsp 1793713/DF, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/04/2019, DJe 15/04/2019)101 Há de se destacar que a sujeição aos efeitos do processo de recuperação independe da sua inscrição no QGC, isto é, mesmo que um crédito anterior ao pedido não tenha sido relacionado 101 Nesse sentido, em relação ao crédito trabalhista: AgInt no REsp 1260569/SP, Julgamento: 18/04/2017. gustavosp Realce 132 pelo devedor e também não seja habilitado ao longo do processo, qualquer que seja a razão, ele se sujeitará aos efeitos do processo e será alcançado pela novação, prevista no art. 59 da LFRE, convertendo-se para a “moeda da recuperação”. Frise-se a possibilidade, por força do § 2º do art. 49 da LFRE, de o devedor optar por não submeter determinada classe de credores aos efeitos do processo de recuperação judicial, não propondo qualquer modificação quanto a eles, de forma que os credores dessa classe não teriam direito de voto nas assembleias de credores. Note-se que não é facultado ao devedor excluir “esse” ou “aquele” crédito de uma classe, pois tal manobra violaria o princípio pars conditio creditorum e comprometeria o resultado de eventual votação em assembleia, especialmente para aprovação do plano de recuperação. Créditos não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial Os créditos que surgirem após o pedido não estarão submetidos aos efeitos do processo de recuperação (art. 49 da LFRE) e dos efeitos novatórios de eventual plano homologado (art. 59 da LFRE), e, em caso de convolação em falência, serão tratados como créditos extraconcursais. Há de se ressaltar que o parágrafo único do art. 67 da LFRE expressamente admite que os fornecedores de bens ou serviços necessários à manutenção da atividade que continuarem a negociar com o devedor nas mesmas bases anteriores ao pedido poderão ter tratamento diferenciado no plano de recuperação judicial, desde que dentro da razoabilidade. Além dos créditos por fatos posteriores ao pedido de recuperação e os créditos das classes que, por opção do devedor, não terão as suas condições modificadas pelo plano, também estarão afastados dos seus efeitos da recuperação judicial alguns créditos que possuem tratamento especial, por força de lei. Devido às peculiaridades que cercam cada um deles, o estudo deve ser individualizado. Créditos de empréstimo DIP Agora disciplinado nos arts. 69-A até 69-F da LFRE, o DIP Financing tem-se revelado um importante instrumento de capitalização para as empresas em processo de recuperação judicial, como alternativa para a falta de crédito junto ao sistema financeiro. Trata-se de um mútuo contraído durante o processo de recuperação judicial, normalmente junto a alguns dos seus credores concursais, para garantir ao devedor o capital de giro suficiente para atravessar a fase mais aguda do processo de recuperação judicial. DIP significa debtor-in- possession, originada no Direito norte-americano,102 para designar todo o empréstimo obtido pelo devedor após o início do processo de reestruturação. 102 O financiamento DIP é disciplinado pela Seção 364 do Bankruptcy Code – Chapter 11. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 133 Em razão dos riscos naturais dessa operação, que podem ser atenuados por garantias reais fiduciárias, o retorno financeiro do investimento costuma ser atrativo, sendo certo que muitos credores concursais já questionaram a falta de oportunidade para participar desses aportes e, assim, de se beneficiar do “pacote de bondades” que costuma ser destinado aos seus participantes. Em razão das extremas vantagens destinadas a esses investidores, o ideal é que o empréstimo DIP seja colocado como uma cláusula do plano de recuperação judicial. Entretanto, sem estabelecer maiores parâmetros, o art. 69-A da LFRE estabelece que “o juiz poderá, depois de ouvido o Comitê de Credores, autorizar a celebração” desse contrato de financiamento. Para dar maior segurança e atrair mais interessados a financiarem os devedores em recuperação judicial, uma vez desembolsados pelo investidor os recursos, a operação torna-se imutável, ainda que aquela autorização judicial seja reformada em grau de recurso, conforme art. 69-B da LFRE. Entendemos que, na hipótese de desembolso parcial apenas em relação a essa parte, o contrato deverá ser considerado imutável. Por derradeiro, em caso de falência, o valor efetivamente entregue ao devedor por meio do empréstimo DIP ganhou um lugar de destaque na ordem de prioridades dos créditos extraconcursais, só estando atrás das restituições in natura, do art. 85, e das obrigações previstas nos arts. 150 e 151, conforme art. 84, inciso I-B, todos da LFRE. Crédito tributário Por força do art. 187 do CTN, o passivo tributário do devedor não pode ser tratado no bojo do processo de recuperação judicial e, com apoio no art. 6º, § 7º-B, da LFRE, as execuções fiscais não devem ser suspensas pelo deferimento do processamento do pedido, salvo se o devedor aderir a alguma modalidade de parcelamento, mormente aquelas disciplinadas nos arts. 10-A e 10-B da Lei nº 10.522/02, c/c art. 155-A, § 3º, do CTN, ou se transacionarem com as Fazendas Públicas, com esteio no art. 10-C da Lei nº 10.522/02 c/c a Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020. Realmente, se considerarmos a própria natureza contratual do instituto da recuperação judicial e o princípio da legalidade estrita a que se submetem os agentes administrativos, sobretudo na questão tributária, revela-se correta a opção do legislador. Nessas duas novas formas de parcelamento, disciplinadas nos arts. 10-A e 10-B da Lei nº 10.522/02, o devedor em recuperação judicial pode refinanciar o seu passivo fiscal, respectivamente, em até 120 meses, na primeira modalidade, ou em até 24 meses, na segunda, cada qual com as suas respectivas vantagens e desvantagens, cuja análise extrapolam os objetivos do nosso estudo. O devedor em recuperação judicial ainda tem à sua disposição a possibilidade de transação tributária, com prazo máximo de quitação também em 120 meses, cuja disciplina se encontra na Lei nº 13.988/20, c/c o art. 10-C da Lei nº 10522/02. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 134 Diante do preenchimento da lacuna existente, está afastada a possibilidade de recuperação judicial do devedor empresário que não conseguir regularizar a sua situação fiscal, seja porque as execuções fiscais podem prosseguir normalmente após o despacho que deferir o processamento do pedido, seja em razão da eficácia plena que deve ser reconhecida ao art. 57 da LFRE. Ademais, em harmonia com o disposto no art. 10-A, § 4º-A, inciso IV, da Lei nº 10.522/02, foram acrescentados os incisos V e VI ao art. 73 da LFRE, permitindo expressamente que as Fazendas Públicas peçam a convolação da recuperação judicial em falência. Devemos observar que alguns entes federativos já possuem legislação própria disciplinando o parcelamento para o devedor em recuperação judicial em relação aos seus créditos. É o caso do Rio de Janeiro, por força da Lei nº 8.502, de 30 de agosto de 2019; de Minas Gerais, com a Lei nº 21.794, de 16 de outubro de 2015; de Pernambuco, pela Lei Complementar nº 148, de 4 de dezembro de 2009, alterada pela Lei Complementar nº 185, de 1º de novembro de 2011; do Paraná, pela Lei nº 18.132, de 3 de julho de 2014; e de Rondônia, pela Lei nº 4.703, de 12 de dezembro de 2019, entre outros. Não menos importanteé a discussão acerca da exclusão ou não do passivo fiscal não tributário do processo de recuperação judicial. A questão ganhou maior relevância quando sociedades empresárias com expressivos passivos decorrentes de multas das agências reguladoras e de acordos de leniência entraram em recuperação judicial. Não há jurisprudência sedimentada nos tribunais. Nas poucas vezes em que tivemos de nos manifestar, opinamos pela exclusão desses créditos do concurso da recuperação judicial, pois não há previsão legal para que a autoridade administrativa, qualquer que seja ela, disponha sobre esses créditos, sobretudo diante da possibilidade de o plano ser aprovado mesmo contra o voto daquele que representa o Poder Público, inclusive com a previsão de deságios. Nesse sentido, trazemos à colação um importante precedente do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), que já utilizamos para dar corpo a um agravo de instrumento que interpomos sobre o tema, mas não provido pelo TJRJ103: Agravo de Instrumento. Impugnação de crédito. Recuperação Judicial. Crédito derivado de multa por infração à legislação trabalhista. Inclusão no quadro geral de credores. Impossibilidade. Dívida ativa não tributária. Não submissão à recuperação judicial. Honorários advocatícios recursais. Fixação. I – In casu, o crédito discutido originou-se de multas administrativas por infração à legislação trabalhista decorrentes de autos de infração lavrados pelo Ministério do Trabalho, motivo pelo qual defendem as agravantes tratar-se de 103 TJRJ, AI 0077795-19.2019.8.19.0000. 2ª Câmara Cível. Des. Rel. Jessé Torres Pereira Júnior. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 135 débito não tributário, devendo o crédito da União se submeter à recuperação judicial. II – Contudo, os créditos da Fazenda Pública, fiscais tributários ou não, estão fora do alcance do concurso de credores, devendo ser cobrados por meio de execução fiscal e, por consequência, não podem ser incluídos no concurso de credores. III – Em caso de improvimento do recurso, devem ser majorados os honorários advocatícios arbitrados em primeiro grau, nos termos do artigo 85, § 11, CPC. Agravo de instrumento conhecido e desprovido (TJGO, 5259919- 92.2018.8.09.0000 – Agravo de Instrumento. Rel. desembargador Carlos Alberto França. 2ª Câmara Cível. Julgamento: 19/09/2018). No caso da recuperação judicial do Grupo OI, a questão chegou a ser decidida em segunda instância, que determinou a sujeição dos créditos da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aos efeitos do processo de recuperação judicial. Contudo, antes que o STJ julgasse em definitivo o recurso da agência reguladora, com a entrada em vigor das regras sobre transação tributária, Oi e Anatel celebraram um acordo de transação tributária104, pondo fim às discussões. Por fim, é preciso sublinhar que o juiz da recuperação judicial não pode mais obstar a constrição de bens do devedor em recuperação judicial determinada pelo juiz da execução fiscal. A lei é suficientemente clara ao prever que ele só poderá determinar a “SUBSTITUIÇÃO” do bem constrito por outro menos essencial à continuidade das atividades.105 Créditos com direito real de propriedade e assemelhados Também não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, de acordo com o § 3º do art. 49 da LFRE, o credor titular da posição de proprietário fiduciário, o arrendador mercantil e o negociante de imóvel – vendedor, promitente vendedor ou titular de reserva de domínio –, cujo contrato tenha cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade.106 De igual forma, com fulcro no § 4º do art. 49 da LFRE, estão excluídos dos efeitos do processo de recuperação judicial os créditos decorrentes dos contratos de ACC e ACE. Nessas duas últimas hipóteses, o legislador pretendeu incentivar a redução dos juros, “com spreads não impactados pelo risco associado à recuperação judicial”, o que é fundamental para o desenvolvimento econômico do País.107 É fundamental, na visão de parte da jurisprudência, para 104 https://www.infomoney.com.br/mercados/agu-fecha-acordo-e-da-50-de-desconto-em-divida-da-oi-que-pagara-r-72- bilhoes-a-anatel/ 105 Foi nossa a sugestão para a redação do §7º-B da LFRE. 106 Arts. 521 e 1.417 do CC. 107 COELHO, Fábio Ulhoa. op. cit. p. 131. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Nota O ACC (de Adiantamento sobre Contrato de Câmbio) é uma antecipação de recursos em moeda nacional (R$) ao exportador, por conta de uma exportação a ser realizada no futuro. Já o ACE (de Adiantamento sobre Cambiais Entregues) é uma antecipação de recursos em moeda nacional (R$) ao exportador, após o embarque da mercadoria para o exterior, mediante a transferência ao Banco do Brasil dos direitos sobre a venda a prazo. 136 um efetivo controle judicial, que a instituição financeira requeira ao juízo da recuperação autorização para promover a “compensação” dos recursos, o que pode ocorrer nos autos principais ou em um incidente de “restituição”.108 No fim de 2019, a 3ª Turma do STJ, em apertada votação – 3 x 2 –, decidiu que apenas o valor principal do adiantamento de contrato de câmbio ou do crédito à exportação – ACC e ACE – não estaria sujeito à recuperação judicial, ao contrário dos seus encargos – juros –, que deveriam submeter-se ao concurso.109 Discordamos desse posicionamento, pois não há essa distinção no § 4º do art. 49 da LFRE. É preciso registrar que durante o prazo de suspensão das ações e execuções, previsto no art. 6º, § 4º, da LFRE, não será possível a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor de bens de capitais que sejam essenciais ao desenvolvimento da atividade empresarial. Citem-se, como exemplo, os ônibus de uma sociedade transportadora em recuperação judicial, obtidas por meio de leasing ou alienados fiduciariamente. Advirta-se que precedentes do STJ, ao nosso sentir trazendo enorme insegurança jurídica, impedem a retomada do bem após o decurso do stay period ou, pior ainda, mesmo depois de homologado o plano de recuperação, quando o juiz se convencer da sua essencialidade para o devedor. Revela-se, ao nosso sentir, um verdadeiro absurdo “suspender” indefinidamente o direito de propriedade do credor, porque dessa forma ele não recebe nem fora e nem dentro do processo de recuperação. De toda forma, confira-se: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. BENS DADOS EM GARANTIA FIDUCIÁRIA. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. BENS ESSENCIAIS. SUJEIÇÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. SÚMULA 83/STJ. 1. Hipótese em que a Corte a quo entendeu, observando o princípio da preservação da empresa, que os bens objetos do litígio, mesmo que oferecidos como garantia fiduciária, não poderiam ser retirados da posse da recuperanda, por serem essenciais à manutenção das atividades empresariais. 2. O acórdão recorrido está em harmonia com a jurisprudência do STJ, segundo a qual o credor titular da posição de proprietário fiduciário ou detentor de reserva de domínio de bens móveis ou imóveis não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial (Lei 11.101/2005, art. 49, § 3º), ressalvados os casos em que os bens gravados por garantia de alienação 108 STJ, AgRg no Ag 1197871/SP. Rel. ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, Julgamento: 11/12/2012, DJe, 19/12/2012 109 STJ, REsp 1810447/SP. Rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, Julgamento: 05/11/2019, DJe, 22/11/2019. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Nota Prorrogação do stay period = durante 180 dias do devedor em recuperação judicial, a partir do despacho do processamento ele fica protegido contra execuções,contra penhora dos seus credores em demandas individuais, a fim de que todos se habilitem no processo de recuperação judicial e ai tentem uma solução amigável com o devedor. A jurisprudência do STJ permitia a prorrogação deste prazo. O legislador resolveu criar um limite e a nova redação do art 6 só permite esta prorrogação uma única vez por mais 180 dias, trazendo a possibilidade dos credores apresentarem um plano alternativo a aquele apresentado pelo devedor gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 137 fiduciária cumprem função essencial à atividade produtiva da sociedade recuperanda (AgInt no AgInt no AgInt no CC 149.561/MT, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 22/08/2018, DJe 24/08/2018). 3. Estando o acórdão recorrido em consonância com a jurisprudência firmada nesta Corte Superior, o recurso especial não merece ser conhecido, ante a incidência da Súmula 83/STJ: "Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida". 4. Agravo Interno não provido. (AgInt no AREsp 1660732/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 14/09/2020, DJe 22/09/2020). Nesse sentido, AgInt no AREsp 1475536/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/08/2020, DJe 27/08/2020. Depositante de coisas fungíveis Questão interessante envolve os contratos de depósito de coisas fungíveis, como sacas de soja, de algodão e de milho, nas recuperações judiciais dos armazéns gerais. Esses depositantes devem submeter-se ao processo, sendo arrolados como credores de obrigações dar, entregar? Ayoub e Cavalli defendem que esses depositantes não se sujeitam à recuperação judicial, podendo reivindicar normalmente os seus bens, sob pena de configuração de apropriação ilícita, salvo se ficar comprovado que o depósito é irregular, como o bancário, nos termos do art. 645 do CC.110 Dívida propter rem – despesas condominiais As dívidas condominiais dos imóveis ocupados pela devedora anteriores ao seu pedido de recuperação judicial são créditos concursais, ou seja, devem submeter-se aos efeitos novatórios do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores e homologado judicialmente? Essa questão realmente não é simples, e nesses 15 anos de vigência da LFRE a jurisprudência já foi e voltou diversas vezes, inclusive nos feitos falimentares. Inicialmente, como a dívida propter rem é inerente ao próprio bem, a jurisprudência era no sentido de que ela tinha absoluta prioridade quando da venda do bem, razão pela qual a dívida condominial era considerada crédito não concursal, tanto na falência como na recuperação judicial. Contudo, 110 AYOUB, Luiz Roberto; CAVALLI, Cássio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 48. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 138 houve mudança de orientação quando a 2ª Seção do STJ passou a considerar a dívida propter rem sujeita ao concurso, nos seguintes termos: 3. No caso dos autos, em que as obrigações devidas são originárias de despesas condominiais consideradas propter rem, o tratamento a ser dado aos bens que garantem tais créditos é o mesmo: esses imóveis devem integrar o ativo da massa e as cotas condominiais respectivas serão habilitadas na ordem de sua classificação, concorrendo com os credores de mesma categoria (...). (CC 37.178/GO, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, 2ª SEÇÃO, julgado em 26/04/2006, DJ 21/08/2006, p. 225) Mais adiante, entretanto, o STJ voltou a decidir que a dívida propter rem não é do falido ou do devedor em recuperação judicial, mas, sim, da própria coisa, razão pela qual não precisaria ser habilitada e não estaria sujeita ao concurso de credores. Confira-se: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE COBRANÇA DAS DESPESAS CONDOMINIAIS. POSTERIOR FALÊNCIA DA ORA RECORRENTE. TAXAS CONDOMINIAIS ANTERIORES À FALÊNCIA QUE SE REFEREM À MANUTENÇÃO DA COISA. NATUREZA PROPTER REM. PREFERÊNCIA SOBRE OS CRÉDITOS ATRIBUÍDOS À MASSA FALIDA. IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DOS CRÉDITOS. CARÁTER EXTRACONCURSAL. ENTENDIMENTO DOMINANTE NESTA CORTE. SÚMULA Nº 568 DO STJ. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO, COM IMPOSIÇÃO DE MULTA. (...). 2. A atual jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que a taxa de condomínio se enquadra no conceito de despesa necessária à administração do ativo, tratando-se, portanto, de crédito extraconcursal, não se sujeitando à habilitação de crédito, tampouco à suspensão determinada pelo art. 99 da Lei de Falências. Precedentes. (...). (AgInt no REsp 1646272/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2018, DJe 30/04/2018). Finalmente, e agora analisando um precedente específico de recuperação judicial, o Ministro Luis Felipe Salomão, no dia 2 setembro de 2020, proferiu a seguinte decisão monocrática denegatória de Recurso Especial: gustavosp Realce gustavosp Realce 139 RECURSO ESPECIAL. DIREITO COMERCIAL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE DESPESAS CONDOMINIAIS. CRÉDITO EXTRACONCURSAL. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. HABILITAÇÃO DE CRÉDITO E SUSPENSÃO DO FEITO. NÃO CABIMENTO. 1. Os débitos condominiais estão compreendidos no conceito de despesas necessárias à administração do ativo, enquadrando-se como crédito extraconcursal. Portanto, não se sujeitam à habilitação de crédito e à competência do juízo universal. 2. Recurso especial não provido. (...). - É cediço que sendo a taxa condominial obrigação de caráter propter rem, ou seja, que surge por causa da própria coisa, tem-se que o seu pagamento visa não só a manutenção do imóvel gerador do débito, mas também a do condomínio do qual faz parte. Destarte, o crédito decorrente da taxa condominial não está sujeito à recuperação judicial, podendo a execução se processar normalmente, à medida que o pagamento das despesas condominiais é necessário à proteção do patrimônio da agravante e, por consequência, preserva o imóvel que poderá ser alienado, eventualmente, para garantir o plano de recuperação. (...). (STJ, REsp. 1879799-GO. Min. Luis Felipe Salomão. Decisão Monocrática publicada em 02/09/2020). Singularidade dos créditos sujeitos à recuperação judicial do produtor rural Na recuperação judicial do produtor rural, por força dos §§ 6º, 7º, 8º e 9º do art. 49, da LFRE, não estarão sujeitos aos seus efeitos os seguintes créditos: 1º- Os créditos referentes às operações estranhas à atividade rural; 2º - Os créditos não discriminados nos documentos que compõem a escrituração regular do produtor rural, previstos nos §§ 2º e 3º do art. 48, da LFRE; 3º - Os créditos decorrentes de operações de fomento à atividade rural, disciplinados nos arts. 14 e 21 da Lei 4.829/65, desde que já tenham sido renegociados antes do pedido de recuperação com a respectiva instituição financeira; 4º - Os créditos relacionados à dívida contraída nos 3 últimos anos anteriores ao pedido de recuperação com a finalidade de aquisição de propriedade rural, inclusive as garantias. gustavosp Realce 140 Por enquanto, na esteira da jurisprudência majoritária do STJ, o crédito decorrente da Cédula de Produto Rural (CPR) está sujeito aos efeitos do processo de recuperação judicial. Problemática da trava bancária Em muitos casos, a exclusão ora em exame praticamente esvazia o instituto da recuperação judicial, uma vez que se tem tornado cada vez mais comum a exigência de garantias fiduciárias, ou instrumentos correlatos, como condição sine qua non para a concessão de crédito no mercado, de maneira que apenas uma parcela ínfima do passivo do empresário em dificuldades estaria sujeita à renegociaçãono bojo de um processo de recuperação judicial. A grande vilã das recuperações judiciais, assim, seria a denominada “trava bancária”, materializada pelos contratos de mútuo garantidos pela cessão fiduciária dos recebíveis do devedor, performados e não performados. Não por outro motivo, inúmeras teses foram criadas para tentar “quebrar” a trava bancária, submetendo os créditos desses contratos aos efeitos do processo de recuperação judicial e, por consequência, liberando esse fluxo de recebíveis para utilização no capital de giro dos devedores. A primeira tese sustenta que essa cessão fiduciária de recebíveis só poderia ser admitida se recaísse sobre títulos de crédito stricto sensu, e não sobre “créditos em geral”, com base em uma interpretação restritiva dos termos do art. 66-B, da Lei nº 4.728/65, que só se refere à alienação fiduciária de coisa móvel, fungível e infungível, e títulos de crédito.111 Essa tese, contudo, é rechaçada pela jurisprudência majoritária,112 sobretudo do STJ,113 que admite a alienação fiduciária de direitos de crédito, uma vez que estes são equiparados aos bens móveis pelo art. 82, III, do CC. Uma segunda tese exige que os contratos estejam registrados no cartório de títulos e documentos, sob pena de não se aperfeiçoar a garantia fiduciária.114 O STJ, por reiterados precedentes da 3ª Turma, decidiu pela desnecessidade do registro dos contratos para exclusão do crédito garantido por cessão fiduciária de recebíveis ou por reserva de domínio dos efeitos da recuperação judicial.115 A terceira tese criada está amparada exclusivamente no princípio da preservação da empresa. Ainda que reconhecida a propriedade fiduciária da instituição financeira sobre os recebíveis, o juízo da recuperação poderia determinar a quebra parcial da trava, durante o prazo do stay period, 111 TJRJ, 0042658-20.2012.8.19.0000 – Agravo de Instrumento. Des. Milton Fernandes de Souza – Julgamento: 15/01/2013 – 5ª Câmara Cível. 112 TJRJ, 0021547-43.2013.8.19.0000 – Mandado de Segurança. Órgão Especial. 113 REsp 1207117/MG. Rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, Julgamento: 10/11/2015, DJe, 25/11/2015. 114 TJSP, AI 994.08.048233-0, Julgamento: 30/06/2009, v.u. Rel. José Roberto Lino Machado. 115 Nesse sentido: REsp 1829641/SC. Rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, Julgamento: 03/09/2019, DJe, 05/09/2019. REsp 1797196/SP. Rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, Julgamento: 09/04/2019, DJe, 12/04/2019. gustavosp Realce gustavosp Realce 141 a fim de que parte dos recebíveis futuros seja utilizada pela devedora em recuperação para alimentar o seu capital de giro. Nesse sentido: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AGRAVO INTERNO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CONTRATO DE CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS GARANTIDO POR RECEBÍVEIS (TRAVA BANCÁRIA). LIBERAÇÃO DE 70% DOS VALORES CEDIDOS. MANUTENÇÃO. DECISÃO AGRAVADA QUE PONDERA O DIREITO DE CRÉDITO DO AGRAVANTE COM OS OBJETIVOS DE SUPERAÇÃO DA CRISE ECONÔMICO-FINANCEIRA DAS DEVEDORAS E DA FUNÇÃO SOCIAL DAS EMPRESAS. ART. 47 DA LEI 11.101/05. IMPLEMENTAÇÃO INTEGRAL DA TRAVA BANCÁRIA INVIABILIZARIA A CONTINUIDADE DAS UNIDADES PRODUTORAS. (...). 1. Travas Bancárias. Recuperação Judicial. Liberação de 70% dos valores objeto de cessão fiduciária de direitos creditórios garantido por recebíveis. 2. A decisão agravada se volta para a fase postulatória inicial do processo de recuperação judicial das agravadas, fase em que a lei defere às recuperandas um período de reorganização econômico-financeira com vistas a criar um ambiente estável e propício à execução de estratégias necessárias à superação da crise. 3. A suspensão das travas bancárias, na hipótese de recuperação judicial, deve ser analisada de forma casuística, ainda que exista orientação no sentido de que a cessão fiduciária de direitos sobre títulos de crédito possui natureza de propriedade fiduciária. 4. A prova até aqui produzida demonstra que se fosse autorizado o recebimento integral dos créditos representados pelos recebíveis futuros, performados ou não (caso tenha ou não ingressado em conta o valor da operação), em poucas semanas seria inviável a manutenção das operações comerciais das agravadas. 5. Em sede de cognição sumária, a decisão agravada, que determina o bloqueio em favor das recuperandas de 70% dos ativos representados por recebíveis futuros gravados com cláusula de cessão fiduciária, mantendo- se os valores equivalente aos 30% restantes depositados na conta de domicílio bancário, pondera de forma razoável o direito de crédito do agravante com os objetivos a serem alcançados de superação da crise econômico-financeira das devedoras e da função social das empresas.(...). PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO. PREJUDICADO O AGRAVO INTERNO. 142 (TJRJ, 0063637-22.2020.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). MÔNICA DE FARIA SARDAS - Julgamento: 16/12/2020 - VIGÉSIMA CÂMARA CÍVEL)116. Essa tese não foi acolhida pelo STJ, que chegou a denominá-la de teratológica, conforme se constata pelo precedente envolvendo a Companhia Energética do Pará (Celpa).117 Uma quarta tese, admitida inicialmente pelo TJSP, exigia a descrição pormenorizada dos bens e direitos cedidos fiduciariamente, sendo ineficaz a garantia pactuada em termos genéricos – “todas as duplicatas futuras que serão emitidas pelo devedor” ou “todo e qualquer recebível decorrente de contratos futuros do devedor” –, portanto, quirografário o crédito, com a consequente liberação de todos os recebíveis para o fluxo de caixa da devedora em recuperação judicial. Nesse sentido: Recuperação Judicial – Cessão fiduciária de créditos – Pretendida exclusão do procedimento concursal – Exame concreto da instituição da garantia fiduciária – Ausência de descrição dos bens afetados, sem atendimento aos requisitos previstos nos arts. 1362, inciso IV do CC/02 e 66-B da Lei 4528/65 – Decisão mantida – Recurso desprovido (AI, 2011315- 69.2015.8.26.0000, Relator: Fortes Barbosa; Comarca: Americana; Órgão julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Julgamento: 26/08/2015; Registro: 28/08/2015). O STJ refutou essa tese sob os seguintes fundamentos: RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PRETENSÃO DE EXCLUSÃO DE CRÉDITO CEDIDO FIDUCIARIAMENTE AO ARGUMENTO DE QUE O TÍTULO DE CRÉDITO (DUPLICATAS VIRTUAIS) NÃO SE ENCONTRARIA DEVIDAMENTE DESCRITO NO INSTRUMENTO CONTRATUAL. DESCABIMENTO. CORRETA DESCRIÇÃO DO CRÉDITO, OBJETO DE CESSÃO. RECONHECIMENTO. OBSERVÂNCIA DA LEI DE REGÊNCIA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A controvérsia posta no presente recurso especial cinge-se em saber se, para a perfectibilização do negócio fiduciário, a permitir a exclusão do credor titular da posição fiduciária dos efeitos da recuperação judicial, no específico caso de cessão fiduciária 116 A jurisprudência do TJRJ está bem dividida em relação a essa tese. Confira-se precedente em sentido oposto: 0060873- 97.2019.8.19.0000 – Agravo de Instrumento. Des(a). Sergio Ricardo de Arruda Fernandes – Julgamento: 18/08/2020 – 1ª Câmara Cível. 117 STJ, EDcl no RMS 41.646/PA. Rel. ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, Julgamento: 24/09/2013, DJe, 11/10/2013. 143 de direitos creditórios, o correlato instrumento deve indicar, de maneira precisa, os títulos representativos do crédito (in casu, duplicatas virtuais), como entendeu o Tribunal de origem; ou se é o crédito, objeto de cessão, que deve estar suficientemente identificado, como defende o banco recorrente. [...]. 4. A exigência de especificação do título representativo do crédito, como requisito formal à conformação do negócio fiduciário, além de não possuir previsão legal – o que, por si, obsta a adoção de uma interpretação judicial ampliativa – cede a uma questão de ordem prática incontornável.Por ocasião da realização da cessão fiduciária, afigura-se absolutamente possível que o título representativo do crédito cedido não tenha sido nem sequer emitido, a inviabilizar, desde logo, sua determinação no contrato (REsp 1797196/SP, Rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, Julgamento: 09/04/2019, DJe, 12/04/2019). Após enfrentar essa tormentosa questão inúmeras vezes, passamos a adotar um posicionamento intermediário e que, sob a nossa ótica, ainda não foi profundamente discutido no âmbito da 2ª Seção do STJ. Defendemos a manutenção da denominada “trava bancária” em relação a todos os recebíveis performados até a data do pedido de recuperação judicial, ainda que vincendos. Logo, todos os recebíveis cedidos relativos às operações concretizadas pelo devedor até a data do pedido de recuperação pertencem à instituição financeira credora e não podem ser liberados em favor do devedor, por maior que seja a sua dificuldade. Por seu turno, o saldo a “descoberto” na data do pedido de recuperação judicial possui natureza quirografária e deve submeter-se ao concurso. Nessa linha de ideias, confira-se o Enunciado nº 51 da I Jornada de Direito Comercial do CJF: “51 – O saldo do crédito não coberto pelo valor do bem e/ou da garantia dos contratos previstos no § 3º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005 é crédito quirografário, sujeito à recuperação judicial”. Por consequência, todos os recebíveis relativos às novas operações realizadas pelo devedor, ou seja, aquelas concretizadas após a data do pedido de recuperação, não podem ser retidas pela instituição financeira, sob pena de violação do princípio pars conditio creditorum. Seguindo essa trilha, confira-se o recente precedente do TJSP: Recuperação Judicial. Credor com garantia fiduciária sobre "recebíveis" (direitos creditórios da recuperanda oriundos de faturas de cartões de crédito, cujos valores são depositados em conta vinculada ao contrato de dívida). Decisão que determinou a devolução dos valores retidos pelo credor fiduciário na conta vinculada à respectiva cédula de crédito bancário. Alienação fiduciária regularmente constituída, diante da desnecessidade do registro da cédula de crédito bancário no Registro de Títulos e Documentos do domicílio da devedora como pressuposto para 144 a constituição da garantia. Existência de especialização da garantia. Cessão de crédito futuro possível. A retenção com base em crédito "performado" (constituído até a distribuição da recuperação) é irrepreensível; a do crédito a "performar" (não constituído até a distribuição da recuperação), contudo, não legitima as retenções, pois não constituída a alienação fiduciária. Essencialidade do dinheiro (recebíveis) que não enseja a aplicação da exceção prevista na parte final do § 3º do art. 49 da Lei de Recuperação e Falência, por não se tratar de bem de capital, tampouco o § 5º do mesmo artigo, que disciplina o penhor. Decisão reformada em parte para autorizar a liberação, em favor da recuperanda, apenas dos valores retidos após a distribuição da recuperação judicial (créditos "não performados"). Restituição, ao credor fiduciário do que retido antes deste termo (créditos "performados"). Recurso parcialmente provido (TJSP; Agravo de Instrumento 2047748- 33.2019.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jandira – 1ª Vara; Data do Julgamento: 24/09/2019). Deferimento do processamento do pedido Ao apreciar a petição inicial, o juiz verificará se os requisitos exigidos pelos arts. 48 e 51 da LFRE foram atendidos e, em caso positivo, deferirá o processamento do pedido, nomeando-se o administrador judicial. Note-se que esse despacho não se confunde com a decisão concessiva da recuperação judicial, já que se limita a acolher o pedido de tramitação da ação118 e, embora de cognição limitada, desafia recurso de agravo de instrumento,119 pois encerra verdadeira decisão interlocutória, com importantes efeitos sobre os direitos e obrigações do devedor e dos credores.120 Esse despacho de processamento conterá também as providências e produzirá os efeitos mencionados nos incisos do art. 52 da LFRE. Ademais, será determinada a expedição de edital, na forma do § 1º do art. 52 da nova Lei de Falências, contendo o resumo do pedido e da decisão, a relação nominal dos credores, a discriminação do valor atualizado e a classificação de cada crédito, além das advertências acerca dos prazos para apresentação de habilitações e divergências. 118 COELHO, Fábio Ulhoa. ob. cit. p. 153-154. 119 Enunciados nº 52 e 102 das Jornadas de Direito Empresarial e nº 61 das Jornadas de Direito Processual Civil, ambas do CJF. 120 SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial e falência: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 338. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 145 Registre-se que, nos termos do § 4º do art. 52 da LFRE, a partir do deferimento do processamento do pedido de recuperação, o devedor somente poderá desistir da reestruturação mediante aprovação dos credores em assembleia. Outros importantes efeitos são causados pelo deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial. Vejamos os principais. Dispensa das certidões negativas A partir do despacho de deferimento do processamento da recuperação, o devedor não mais precisará apresentar as CNDs para o normal prosseguimento das suas atividades, por exemplo, para renovação de um alvará ou para obtenção de uma licença para construção. A recente reforma retirou da parte final do inciso II do art. 52 da LFRE o seu trecho mais polêmico, “exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, observando o disposto no art. 69 desta Lei”. Com efeito, os devedores em recuperação judicial poderão participar de licitações e receber incentivos fiscais e creditícios se preencherem os demais requisitos exigidos pela legislação, em especial não possuírem débitos com o sistema de seguridade social, conforme § 3º do art. 195 da CF/88. Stay period e suspensão da prescrição Deferido o processamento, suspendem-se o prazo prescricional e as execuções em trâmite contra o devedor, assim como ficam proibidos quaisquer atos de constrição contra o seu patrimônio, na forma do art. 52, III, c/c o art. 6º, incisos II e III, da LFRE, fenômeno esse denominado de stay period. Note-se que as ações ilíquidas em tramitação contra o devedor não são afetadas e terão o seu prosseguimento normal, devendo os interessados pleitear perante os seus respetivos juízos de origem a reserva de valores junto ao juízo da recuperação judicial, conforme §§ 1º e 3º do art. 6º da LFRE. Uma vez transitada eventual condenação do devedor naquela ação ilíquida, o crédito definitivo poderá ser informado por meio de habilitação retardatária ou, como sempre defendemos, por meio de simples ofício do juízo de origem ao juízo da recuperação. O § 4º do art. 6º da LFRE prevê que esse prazo de suspensão será de 180 dias corridos e, em casos excepcionais, desde que não sejam decorrentes de culpa do devedor, poderá ocorrer uma única prorrogação por mais 180 dias. Esse prazo deve ser suficiente para que o plano de recuperação judicial proposto pelo devedor seja deliberado pelos credores, pois, do contrário, estes terão o direito de apresentar um plano alternativo, na forma do art. 4-A da LFRE, hipótese em que o stay period será renovado por mais 180 dias, conforme o inciso II desse parágrafo. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce146 É importante ressaltar que não se suspendem as execuções dos créditos não sujeitos ao processo de recuperação judicial, inclusive as execuções fiscais121. Nesses casos, o juízo da execução poderá determinar a constrição de bens do devedor em recuperação judicial, resguardada a competência do juízo da recuperação, apenas, para determinar, por meio de ato concertado de cooperação jurisdicional122, a SUBSTITUIÇÃO do bem penhorado por outro menos relevante para a continuidade da empresa, conforme art. 6º, § 7º-B, da LFRE. Nessa toada, deve ser revisitada a jurisprudência do STJ que conferia apenas ao juiz da recuperação judicial a competência para determinar todos os atos que impliquem restrição patrimonial do devedor em recuperação judicial, representada abaixo pelo seguinte precedente: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. INCIDENTE MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DEPÓSITO JUDICIAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DO SOERGUIMENTO PARA TODOS OS ATOS QUE IMPLIQUEM RESTRIÇÃO PATRIMONIAL. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. 1. Aplicabilidade do NCPC neste julgamento conforme o Enunciado Administrativo nº 3 aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC. 2. Tratando-se de recuperação judicial, o destino dos bens da empresa seguirá o que estiver fixado no plano aprovado, a cuja decisão se submete o juízo cível. 3. A competência do juízo do soerguimento visa garantir a preferência dos créditos e direcionar a execução ao juízo universal que deverá avaliar a essencialidade dos bens passíveis de constrição, bem como a solidez do fluxo de caixa da recuperanda. 4. Agravo interno não provido. (AgInt no CC 171.765/PR, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, 2ª SEÇÃO, julgado em 09/12/2020, DJe 11/12/2020) No que toca aos créditos não sujeitos aos efeitos do processo de recuperação judicial previstos nos §§ 3º e 4º do art. 49 da LFRE, em caso de inadimplemento do devedor, o § 7º-A do art. 6º da LFRE permite a execução desses contratos, mas impede a retomada dos bens de 121 STJ, REsp 1488778/SC. Rel. ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, Julgamento: 23/02/2016, DJe, 30/05/2016. 122 Art. 69 do Código de Processo Civil. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 147 capital essenciais à manutenção da atividade do devedor durante o stay period. Portanto, caso isso ocorra, poderá o juiz da recuperação judicial determinar a suspensão desse ato de constrição por meio de ato concertado de cooperação de jurisdição, previsto no art. 69 do CPC. Por outro lado, o mesmo STJ firmou posicionamento pelo prosseguimento das ações de despejo contra o devedor em recuperação judicial, inclusive durante o stay period: PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL (LEI N. 11.101/05). AÇÃO DE DESPEJO C/C COBRANÇA DE ALUGUÉIS. DEMANDA ILÍQUIDA. EXECUÇÃO. MONTANTE APURADO. HABILITAÇÃO DO CRÉDITO NO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. 1. Não há óbice ao prosseguimento da ação de despejo promovida em desfavor de empresa em recuperação judicial por constituir demanda ilíquida não sujeita à competência do juízo universal. 2. Por mais que se pretenda privilegiar o princípio da preservação da empresa, não se pode afastar a garantia ao direito de propriedade em toda a sua plenitude daquele que, durante a vigência do contrato de locação, respeitou todas as condições e termos pactuados, obtendo, ao final, decisão judicial – transitada em julgado – que determinou, por falta de pagamento, o despejo do bem objeto da demanda. 3. O crédito referente à cobrança de aluguéis deve ser habilitado nos autos do processo de recuperação judicial (AgRg no CC 133.612/AL, Rel. ministro João Otávio de Noronha, 2ª Seção, Julgamento: 14/10/2015, DJe, 19/10/2015). Mais uma vez, discordamos da orientação do STJ, pois defendemos que o despejo só pode ser decretado pelo não pagamento dos aluguéis posteriores ao pedido de recuperação judicial123, uma vez que os anteriores estão sujeitos aos efeitos do processo, e o seu pagamento seria uma afronta ao princípio pars conditio creditorum. Prestação mensal de contas Caberá ao administrador judicial acompanhar as atividades do devedor, reportando ao processo mensalmente, por meio de um relatório analítico das contas, tudo o que for relevante para o juízo, para o ministério público e, principalmente, para os credores. 123 Nesse sentido: AYOUB, Luiz Roberto; CAVALLI, Cássio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 42. gustavosp Realce gustavosp Realce gustavosp Realce 148 Essa tomada de contas não se deve restringir ao exame dos documentos contábeis do devedor, sendo oportuna vistorias in loco nos estabelecimentos do devedor para comprovar a veracidade das informações prestadas. Na esteira da nova redação do art. 22, inciso II, alínea “c”, da LFRE, o administrador judicial passa a ter o dever de fiscalizar a veracidade das informações prestadas pelo devedor, em um papel tipicamente de auditoria externa. Intimação do Ministério Público e das Fazendas A participação do ministério público já foi amplamente analisada no capítulo referente às falências, não havendo maiores controvérsias sobre a sua atuação após a decretação da falência. O mesmo, contudo, não acontece nos processos de recuperação judicial, haja vista que frequentemente se debate a presença do interesse público a justificar a intervenção ministerial. Certa ocasião, ao analisar o recurso do Ministério Público contra a decisão do juízo de que a oitiva do promotor de justiça, fora das hipóteses expressamente previstas na lei, era uma faculdade do magistrado, decidiu o TJRJ: Empresa em recuperação judicial – A intervenção do Ministério Público, em processo de recuperação judicial, é obrigatória, na forma do artigo 52, inciso V da Lei nº 11.101/2005, sendo-lhe conferida a prerrogativa de intimação pessoal dos atos do processo, nos termos do artigo 84, combinado com o parágrafo 2º do artigo 236, pena de nulidade absoluta, conforme artigo 246 do Código de Processo Civil. (TJRJ, 0015971-98.2015.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO, DES. CAMILO RIBEIRO RULIERE – Julgamento: 07/07/2015 – PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL). Já sob a égide do CPC/2017, ao enfrentar outro recurso interposto pelo Ministério Público contra decisão de primeiro grau que mandou colocar na capa de todos os processos de recuperação judicial a proibição de remessa ao promotor de justiça, mais uma vez decidiu o TJRJ: Agravo de Instrumento. Ação de Recuperação Judicial. Decisão pela desnecessidade de atuação do Parquet na ação recuperacional. Inconformismo. Intervenção obrigatória do Ministério Público. Fiscal da ordem jurídica. Inteligência do art. 52, V da Lei 11.101/05 e art. 178, I do CPC/15. Atribuição exclusiva do Ministério Público na identificação da existência do interesse que justifique a intervenção da Instituição na causa. Presença de interesse público primário. Garantia de gustavosp Realce 149 desenvolvimento equilibrado da ordem econômica. Tutela de bens jurídicos coletivos ou supraindividuais. Aplicação do art. 170 CF/88. Ministério Público como guardião da ordem econômica. Precedentes. Recurso provido. (TJRJ, AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0036247- 82.2017.8.19.0000. RELATOR: DES. JOSÉ CARLOS VARANDA. Julg. em 13/09/2017). Dessa forma, caberá ao representante do Ministério Público, na oportunidade em que for intimado do despacho de deferimento do processamento