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Centro Universitário Leonardo da Vinci Curso Bacharelado em Serviço Social MARLI RAIMONDI LORRENZZETTI 0506 TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E OS IMPACTOS NA VIDA DOS ADOLESCENTES DO NÚCLEO SOCIOTERAPÊUTICO JOINVILLE - NSJ JOINVILLE 2021 MARLI RAIMONDI LORRENZZETTI VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E OS IMPACTOS NA VIDA DOS ADOLESCENTES DO NÚCLEO SOCIOTERAPÊUTICO JOINVILLE - NSJ Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à disciplina de TCC – do Curso de Serviço Social – do Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI, como exigência parcial para a obtenção do título de Bacharel em Serviço Social. Samara Leorato – Orientador Local JOINVILLE 2021 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E OS IMPACTOS NA VIDA DOS ADOLESCENTES DO NÚCLEO SOCIOTERAPÊUTICO JOINVILLE - NSJ POR MARLI RAIMONDI LORRENZZETTI Trabalho de Conclusão de Curso aprovado do grau de Bacharel em Serviço Social, sendo-lhe atribuída à nota “______” (_____________________________), pela banca examinadora formada por: _____________________________________________ Presidente: Prof. Samara Leorato - Orientador Local ___________________________________________________ Membro: Regina Miranda da Silva - Profissional da Área ___________________________________________________ Membro: Neide Mary Camacho Solon - Profissional da área JOINVILLE 30/06/2021 DEDICATÓRIA Dedico esse trabalho primeiramente a minha mãe. Assim como muitas mulheres, vivenciou a violência, fez parte de um sistema patriarcal e machista, mas que não a impediu de nos dar amor e nos ensinar a ter fé. Também dedico as minhas irmãs, cunhadas e a todas as mulheres que não desistiram de suas famílias e lutam por seus direitos. “Os filhos são como as águias, ensinarás a voar, mas não voarão o teu voo. Ensinarás a sonhar, mas não sonharão os teus sonhos. Ensinarás a viver, mas não viverão a tua vida. Mas, em cada voo, em cada sonho e em cada vida Permanecerá para sempre a Marca dos ensinamentos recebidos”. Madre Teresa de Calcutá AGRADECIMENTOS Primeiramente agradeço a Deus por ter dado condições e força para a conclusão do curso. Foram muitas barreiras nesses quatro anos, mas Ele me sustentou e conduziu pelas mãos até o fim. Ao meu marido, meu maior incentivador, que nos momentos de angústia e desânimo não me deixou desistir e sempre acreditou no meu potencial. Obrigada por existir em minha vida. Aos meus filhos, que por vezes recorri a eles, meus tesouros mais preciosos. Agradeço por todo carinho, compreensão e paciência. Sou grata a minha supervisora de campo Rosangela, pelas valiosas contribuições dadas ao longo do estágio, por disponibilizar de seu tempo e conhecimento, contribuindo com minha formação. Também quero agradecer ao NSJ, por ter aberto as portas para a realização do estágio, a coordenadora Elaine e toda equipe que me recebeu com muito carinho e possibilitaram fazer minha pesquisa de conclusão de curso. Grata também aos adolescentes do NSJ que aceitaram participar da pesquisa, por compartilhar suas histórias de vida e significações acerca da dolorosa vivência da violência, contribuindo para a pesquisa e principalmente para o aprimoramento pessoal e profissional. A minha tutora Samara, que aceitou nos orientar e acompanhar em um momento difícil, não medindo esforços para nos ajudar e nos manter motivados nessa etapa final. Aos meus colegas de curso de Serviço Social, pelas trocas de ideias e ajuda mútua. Juntos conseguimos avançar e superar todos os entraves. A minha sobrinha Patricia, minha amiga, companheira e incentivadora em todos os momentos, que me impulsionou a fazer a graduação. Finalmente meus agradecimentos a minha mãe, sempre presente na minha vida e de minha família, fundamental para eu ser a pessoa que sou, referência de mãe para mim. Saudades eternas. “Uma pessoa que seja capaz de amar é aquela que recusa aquilo que faz mal” (Mario Sergio Cortella) RESUMO O presente trabalho traz a discussão sobre a violência doméstica e o uso de substâncias psicoativas pelos adolescentes do NSJ na cidade de Joinville, compreendendo-a em sua perspectiva histórica e os reflexos que são evidenciados na contemporaneidade. Para isso foi utilizada uma pesquisa bibliográfica e descritiva por meio de pesquisa de campo utilizando o questionário como instrumento. A violência doméstica tem raízes desde a antiguidade, percebendo-se ligação com o uso de substâncias lícitas e ilícitas, ficando mais evidente com a realização do estágio em Serviço Social no Núcleo Socioterapêutico Joinville. Este fenômeno ocorre desde os tempos mais remotos, está enraizado na sociedade e é replicado cotidianamente através de práticas opressoras e hegemônicas. A violência doméstica e o uso de drogas mostram-se difícil, visto que esse fenômeno se inicia por vezes, no ambiente doméstico, local que seria sinônimo de segurança e acolhimento. Compreender a percepção da violência enraizada e praticada no âmbito privado e a relação com a drogadição que se evidencia nos adolescentes em tratamento no NSJ. PALAVRAS-CHAVE: Violência doméstica; Adolescência; Substância Psicoativa. LISTA DE SIGLAS CAPS IJ – Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil CEDAW – Convenção de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher CNDM – Conselho Nacional dos Direitos da Mulher CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social CSW – Comissão sobre o Status da Mulher DDM – Delegacia de Defesa da Mulher ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação NSJ – Núcleo Socioterapêutico Joinville OEA – Organização dos Estados Americanos OMS – Organização Mundial da Saúde ONU – Organização das Nações Unidas PAEFI – Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos PTS – Projeto Terapêutico Singular SPA – Substâncias Psicoativas TUS – Transtorno por Uso de Substâncias UNICEF – Fundo Internacional das Nações Unidas Para a Infância SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11 2. APRESENTAÇÃO DO TEMA .............................................................................................. 13 2.1 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER ........................................................................................ 14 2.2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO ........................................................................................................ 16 2.3 IDEOLOGIA PATRIARCAL ..................................................................................................... 19 2.4 A IMPORTÂNCIA DO MOVIMENTO FEMINISTA NA LUTA PELOS DIREITOS DAS MULHERES ..................................................................................................................................... 21 2.4.1 Avanços das leis voltadas para a mulher .............................................................................. 23 2.5 INTRODUÇÃO À LEI MARIA DA PENHA NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER ............................................................................................ 24 2.6 VIOLÊNCIA NO ÂMBITO FAMILIAR ................................................................................... 26 2.6.1 Violência Física ....................................................................................................................26 2.6.2 Violência Psicológica ........................................................................................................... 27 2.6.3 Violência Sexual .................................................................................................................. 27 2.6.4 Negligência........................................................................................................................... 28 2.7 RELAÇÕES FAMILIARES ....................................................................................................... 29 2.7.1 Diversidades nas Configurações Familiares ......................................................................... 30 2.7.2 Família e Responsabilidade Escolar ..................................................................................... 32 2.7.3 A Família e a Dependência Química .................................................................................... 33 2.8 ADOLESCÊNCIA E USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS ............................................ 34 2.8.1 Adolescência ........................................................................................................................ 35 2.9 DESCRIÇÃO GERAL DO NÚCLEO SOCIOTERAPÊUTICO JOINVILLE ........................... 38 2.9.1 Programa de Tratamento ...................................................................................................... 39 2.9.2 Atividades que Promovem o Desenvolvimento Emocional ................................................. 40 2.10 O SERVIÇO SOCIAL .............................................................................................................. 41 3. PROBLEMATIZAÇÃO DO TEMA E A RELAÇÃO COM A QUESTÃO SOCIAL ............ 46 4. JUSTIFICATIVA .................................................................................................................. 49 5. OBJETIVOS.......................................................................................................................... 51 5.1 OBJETIVO GERAL ................................................................................................................... 51 5.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ...................................................................................................... 51 6. METODOLOGIA DE PESQUISA ........................................................................................ 52 7 ANÁLISE DOS DADOS DA PESQUISA ............................................................................... 53 7.1 APRESENTAÇÃO DOS DADOS .............................................................................................. 53 7.2 ANÁLISE DOS DADOS ............................................................................................................ 58 7.3 RESULTADOS ........................................................................................................................... 61 7.4 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ........................................................................................... 64 8 CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 66 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 69 APÊNDICE ............................................................................................................................... 75 ANEXO ..................................................................................................................................... 76 11 1. INTRODUÇÃO O tema do Trabalho de Conclusão de Curso é oriundo da disciplina de Estágio Supervisionado em Serviço Social, realizado inicialmente no PAEFI – Serviço de Proteção e Atendimento Especializado às Famílias e Indivíduos, ofertado pelo CREAS II – Bucarein – Centro de Referência Especializado de Assistência Social. Posteriormente, deu-se continuidade no NSJ – Núcleo Socioterapêutico Joinville, onde ambos os campos pesquisados têm uma notória ligação com a Violência Doméstica que observou-se ser demandas urgentes instauradas no âmbito familiar e com reflexos que perpassa por gerações. A prática da violência doméstica é um exemplo da aprendizagem passada por gerações, homens autores de violência tendem a reproduzir as atitudes vivenciadas ao longo da história, ou seja, a mulher era dominada pelo pai e posteriormente após o matrimônio pelo marido. Mas gradativamente começa a ter uma nuance diferente com a revolução industrial, com o adentramento da mulher no mercado de trabalho e na participação financeira nos provimentos do lar. Doravante ao processo de observação, vislumbrou-se a oportunidade de pesquisar sobre a relação que há entre a violência doméstica e a ligação com o uso de substâncias psicoativas dos adolescentes em tratamento no NSJ na cidade de Joinville – SC. A realização do estágio trouxe o interesse em buscar compreender as consequências que são retratadas na vida social, física e psicológica dos filhos. É fato que quando se traz o tema no qual se reporta a violência, logo se correlaciona com a questão da criminalidade, da marginalidade e dos estigmas classificados pela sociedade. Mas nem sempre se reporta nesse sentido, ela também tem suas raízes na área da família, da infância e da juventude, desmistificando a violência doméstica que assume sua forma de variáveis maneiras, inclusive quando se reporta a gênero, crianças e adolescentes. Dessa forma, procurou-se compreender, influências que os adolescentes possam ter herdado ou desenvolvido a partir do convívio familiar ou negligência que por ventura tenha sido submetido, até mesmo a falta de autonomia e autoestima da figura da mãe, regrando conformismo e não atitudes para se romper com o ciclo da violência. As mudanças ocorridas na sociedade contribuíram para que houvesse uma análise crítica dos impactos das políticas públicas no enfrentamento a violência doméstica. Na busca por reduzir os índices de ocorrência foi criado: o Conselho Nacional dos Direitos Da Mulher (CNDM) e da Delegacia da Mulher, Vara da Infância e da Juventude, a reformulação da 12 Constituição Federal com o reconhecimento à criança e o adolescente como sujeitos de direitos, sancionada a Lei Federal 8.069 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA). O ECA caracteriza os sujeitos que possuem entre 12 e 18 anos incompletos, são considerados adolescentes. Tampouco nesse período tem se desbravado como uma idade crítica, propensa a crises, no qual o sujeito se depara com novos grupos e novas descobertas, vivendo assim, conflitos que regem participação e ajuda da família. O presente trabalho possui como tema: Violência Doméstica e os Impactos na Vida dos Adolescentes do NSJ. Dispõe como objetivo geral: analisar a relação entre a violência doméstica no âmbito familiar e o uso de substâncias psicoativas por adolescentes. E como objetivos específicos; realizar estudo sobre a violência doméstica contra a mulher e aos filhos, com resgate da luta das mulheres contra o sistema patriarcal e machista; identificar, segundo a opinião dos adolescentes, se há relação entre a violência doméstica e o uso de substâncias psicoativas e qual o papel que as drogas exercem na situação da violência vivenciada; refletir sobre a perspectiva que os adolescentes participantes da pesquisa, que passaram por situações de violência e drogas na adolescência, tem em relação ao futuro e como enfrentam os problemas vivenciados. Para alcançar os objetivos propostos foram realizadas pesquisas bibliográficas, exploratória, descritiva e pesquisa de campo. Além dessa metodologia, o instrumental técnico-operativo do Serviço Social será de grande importância, com o uso da entrevista, da observação e do diário de campo para tornar o artigo acadêmico mais completo. Acredita-se que o referido trabalho proporcioneuma reflexão sobre a necessidade de um olhar mais específico sobre a situação da violência doméstica e da atuação e intervenção do assistente social, uma vez que as expressões da questão social se modificam constantemente, urgindo que o profissional necessita estar em constante aprendizado e capacitação, na implementação das leis, como um viabilizador na promoção da garantia dos direitos. 13 2. APRESENTAÇÃO DO TEMA A violência doméstica ocorre desde os primórdios da humanidade como um fenômeno social. Ficavam evidenciados os papéis desempenhados do homem e da mulher, caracterizados como uma identidade cultural que era permeada ao longo do tempo por gerações, dando ao homem superioridade e apropriação sobre a mulher reduzindo ela a um ser inferior, impedindo que tivesse autoridade e autonomia na vida social. Segundo Fraga (2002, p.44): A violência acompanha o homem desde os primórdios da história, a essa violência, o autor chama de “original” que seria praticada como uma necessidade incontrolável pela sobrevivência diante de questões que não lhes ofereciam em absoluto qualquer que fosse a possibilidade de saída a não ser a violência em si. (FRAGA, 2002, p. 44). A violência é um fenômeno social, construído culturalmente ao longo da história da humanidade. Ela revela relações de desigualdades e de conflitos entre oprimidos e opressores. Neste contexto de desigualdades, as estruturas de poder e dominação, sejam elas de caráter individual ou de caráter grupal, se impõem sobre os dominados através da expropriação cultural, política, social e econômica e pela desvalorização da vida e violação de direitos humanos (Minayo, 1997). As relações entre os gêneros se estabelecem a partir da construção histórica dos poderes. Foi estabelecida, por muito tempo, a relação entre a condição feminina e suas características próprias. Criou-se, desta maneira, uma história de uma mulher submissa e anulada, frente ao domínio do homem. No entanto, as relações de poder inserem-se numa ótica fragmentária e transformável deste, onde o poder não é algo absoluto, mas estabelece-se nas nuances das realidades, nos microuniversos (FOUCAULT, 1979). Com isso, observou-se também a necessidade de sensibilização social em prol da prevenção de problemáticas emergentes no nosso meio social, oriundas das transformações históricas ocorridas em nossa sociedade e que refletem diretamente nas famílias, vindo a contribuir com um olhar para as crianças e adolescentes, que igualmente como a mulher tem uma figura despercebida dentro de casa e alheia a eventuais problemas que se negam a enxergar por decorrência de negligência familiar. A família precisa ter a sensibilidade de identificar atitudes e gestos que não são expressados por fala, mas estar atento ao olhar, ou não olhar, depende daquilo que o adolescente quer que saibamos, dialogar, saber onde vai e com quem. Muitos problemas 14 poderiam ser evitados, ou o porquê e quando o adolescente começou a fazer uso de algum tipo de substância psicoativa. Será que foi escondido ou com a permissão dos pais? Foi em decorrência de abusos, tanto físicos, como psicológicos ou sexual? Ninguém nasce sendo um alcoolista ou um drogado, tem uma história por trás de cada vida. Acontece com famílias de todas as posições sociais, a diferença é que geralmente o adolescente com uma condição melhor, não está em déficit com a saúde e escolaridade, quanto aquele adolescente que está em vulnerabilidade social. A abordagem deste conteúdo exprime as contrariedades da evolução histórica ocasionadas por situações adversas, tanto cultural, patriarcal, social, formadores das desigualdades sociais provenientes de nossa sociedade, culminando diretamente na essência familiar. 2.1 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER A violência de um modo geral está presente na sociedade desde a antiguidade, manifestando-se em várias formas e aspectos. Está enraizada em diversos espaços, especialmente nos lares, onde deveria ser um lugar de aconchego, proteção, refúgio das famílias. No entanto se considerarmos que a violência está associada a contextos sociais e períodos históricos distintos, o que é considerado violência para uma sociedade, nem sempre o será para outro, dependendo do contexto histórico. As mulheres por serem consideradas mais vulneráveis, sucessivamente são o alvo de tais violência, ficando expostas a prática, intencionalmente subordinadas a maus tratos, xingamentos como um ser inferior e não digna de respeito. Constata-se que as mulheres foram perseguidas e maltratadas pelo fato de serem mulheres, diferentemente do que ocorreu com os homens, que também foram reprimidos e subordinados, mas por razões externas e não simplesmente porque eram homens. Os jovens, enquanto jovens, eram reprimidos e subordinados, mas ao se transformarem em velhos, adquiriam status e passavam a ocupar postos importantes. [...]. O mesmo não sucedia com as mulheres, que se perpetuavam como seres subordinados. (TELES; MELO, 2002, p.30) Justificada muitas vezes como forma de reivindicar respeito, a violência caracteriza-se como um fenômeno que surgiu, sendo propício ao desenvolvimento da sociedade. Só que em 15 pleno século XXI, a mulher sofre discriminação até mesmo da própria família quando é alvo de violência, ou seja, ela é culpada em qualquer situação. Segundo Rocha (2007, p. 91-92): Em virtude da denominada “sacralidade familiar”, é construído um “muro de silêncio” em torno dos fatos ocorridos no seio da família. [...] As mulheres se tornam “culpadas” e seus agressores, homens íntegros, que apenas desejavam defender a honra e o bom nome da família. Assim também acontece com mulheres estupradas, sobre as quais pesa sempre a suspeita de que foram sedutoras e, portanto, responsáveis pela violência sexual masculina. (ROCHA, 2007, p. 91-92). Azevedo e Guerra (2000) e Chauí (1984) afirmam que a violência é a imposição da força e a considera sob dois ângulos: a violência com a finalidade de dominação/exploração, superior/inferior, ou seja, como resultado de uma assimetria na relação hierárquica e o tratamento do ser humano não como sujeito, mas como coisa, caracterizado pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, quando a fala e atividade de outrem são anuladas. “Assim, tanto num caso quanto no outro, estamos diante de uma relação de poder, caracterizada num polo pela dominação e no outro pela coisificação”. (AZEVEDO, GUERRA, 2000, p. 46). A cultura da violência doméstica decorre das desigualdades no exercício do poder, levando assim uma relação de “dominante e dominado”, que apesar de se obter avanços na equiparação entre homens e mulheres, a ideologia patriarcal ainda vigora, e a desigualdade sociocultural é uma das principais razões da discriminação feminina (DIAS,2007, P.15-16). As consequências deixadas por essa violência podem permanecer com a vítima ao longo de sua vida, com sequelas que podem ser irreversíveis, se não corporais, mas de âmbito psicológico e sentimental. O fenômeno da violência, portanto, é algo que está presente ao longo da história da humanidade e há muito vem sendo objeto de estudo. A representação que se tem sobre a violência é mutável e novos olhares devem ser lançados sobre o fenômeno para sua devida compreensão e possíveis intervenções, uma vez que “[...] ela traduz a existência de problemas sociais que não são transformados em debates e em conflitos da sociedade” (WIEVIORKA, 2007, p. 1150). Comprovando com essa perspectiva relacionada ao contexto cultural, Minayo (2007) apresenta o fenômeno da violência considerando os aspectos histórico, humano e social. O aspecto histórico se caracteriza pelas expressões de violência ao longo da história da humanidade, ou seja, dentro das especificidades da sociedade e da época pertinente. A dimensão humana se dá porque é o indivíduo quem praticao ato violento. Entretanto, não se 16 deve confundir a violência propriamente dita com a agressividade, inerente a todo ser humano, enquanto um instinto necessário à sobrevivência, defesa e adaptação das pessoas em sua própria construção subjetiva (FREUD, 1920). Por fim, a violência se insere na construção social e cultural da sociedade e do tempo histórico em que está sendo vivenciada. 2.2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO A violência de gênero consiste em qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que coloque a mulher em situação inferior, subjugando-a e causando sofrimento, tanto no âmbito público como no privado. É uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres, em que a subordinação não implica na ausência absoluta de poder. Piovesan (2002, p. 214) conceitua a violência contra a mulher como: [...] qualquer conduta – ação ou omissão – de discriminação, agressão ou coerção, ocasionado pelo simples fato de a vítima ser mulher, e que cause danos, morte, constrangimento, limitação, sofrimento físico, sexual, moral, psicológico, social, político ou econômico ou perda patrimonial. Essa violência pode acontecer tanto em espaços públicos como privados. (PIOVESAN, 2002, p. 214). A violência decorrente da diversidade de gênero encontra-se inserida em um contexto social marcado por um pensamento que enaltece as desigualdades entre os sexos. Nesse sentido, pode-se dizer que tal pensamento, fundado na desigualdade de gêneros e na inferioridade feminina, ensejou a inovação legislativa para proteger essa parte da população vítima da violência de gênero (OLIVEIRA, 2010). Essa desigualdade de gênero é salientada pela relação de poder entre o homem e a mulher, a julgar o mais forte e o mais fraco, predomínio do homem nos contextos sociais e pela submissão das mulheres, papéis impostos pela sociedade e consolidados desde os primórdios da humanidade. A violência de gênero tem sua origem na descriminação histórica contra as mulheres, ou seja, num longo processo de construção e consolidação de medidas e ações explícitas e implícitas que visam submissão da população feminina, que tem ocorrido durante o desenvolvimento da sociedade humana. (TELES; MELO, 2012, p. 27). 17 Cavalcanti (2006) ressalta que a violência de gênero é a mais perversa manifestação das relações de poder e de desigualdade entre os sexos. As diversas formas de agressão existentes também têm sua gênese no cenário cultural histórico de discriminação e subordinação das mulheres. A desigualdade criada em torno do masculino e do feminino abriu as portas para uma série de comportamentos relacionados ao domínio e ao poder de homens sobre mulheres, gerando o uso da violência. O homem historicamente recebeu da sociedade o aval para ser o chefe da casa, passando a crer que possui o direito de usar a força física sobre sua companheira ou ex‐companheira, como forma de impor e cobrar o comportamento que considera adequado para si e para ela. Percebe-se que existe uma relação histórica e cultural que perpassa várias gerações e define papéis sociais do homem e da mulher, a ideologia do patriarcado e machismo, a imposição daquele que se auto proclama chefe da casa e de tudo que está dentro dela, inclusive da mulher. Essa forma de violência vem sendo construída mediante o processo de socialização das pessoas, ocorrido durante a educação e costumes familiares, além do ambiente social (escolar/comunitário) em que os indivíduos irão conviver e se desenvolver. Em face ao contexto social e político, e devido a intensa luta do movimento feminista, especialmente entre as décadas de 60 e 70 do século XX, muitos documentos nacionais e internacionais foram redigidos, na tentativa de reverter essa situação, garantindo cada vez mais a igualdade e a dignidade a que a mulher tem direito. Dessa forma, a Organização das Nações Unidas (ONU) vem, há muito tempo, buscando formas de garantir a proteção das mulheres, instituindo em 1946 a Comissão sobre o Status da Mulher (CSW) que elaborou diversos estudos e análises sobre as condições das mulheres no mundo. Como resultado, foram elaborados diversos documentos internacionais, tais como: Convenção dos Direitos Políticos das Mulheres em 1952; Convenção sobre a Nacionalidade das Mulheres Casadas em 1957; Convenção sobre o Casamento por Consenso, Idade Mínima para Casamento e Registro de Casamento em 1962. (SOUZA, 2009). Em 1975 a ONU proclamou o Ano Internacional da Mulher e atestou o período de 1976-1985 como a Década da Mulher. Todas essas ações impulsionaram ainda mais as atividades dos movimentos feministas que, a exemplo da I Conferência Mundial sobre a Mulher, formularam propostas que pudessem incluir aos documentos oficiais questões específicas para melhorar as condições de vida de mulheres do mundo todo. Em 1979, a ONU aprovou a Convenção de Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), conhecida como a “Lei Internacional dos Direitos das Mulheres”, que entrou em 18 vigor somente em setembro de 1981. Tal documento considera que a discriminação contra a mulher: [...] viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e à humanidade (CEDAW, 1979, p. 19). Em pouco tempo, podemos observar um grande empenho por parte dos órgãos de proteção internacionais e da sociedade, para que as mulheres também possam ser tratadas igualitariamente em direitos, visando à não violação de sua integridade física, psicológica, emocional e social, ganhando cada vez mais força com cada acordo e tratado assinado internacionalmente. O Brasil ratificou a Convenção de Eliminação de todas as formas de discriminação contra a Mulher somente em 1984, fazendo reserva a alguns artigos que diziam respeito sobre a igualdade entre homens e mulheres na esfera familiar (SOUZA, 2009). E foi em 1985, após intensa pressão dos movimentos feministas nacionais para o reconhecimento da violência doméstica contra as mulheres dentro do âmbito doméstico enquanto crime, o então secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo, Michel Temer, criou a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM). No mesmo ano, outras seis capitais implantaram suas próprias delegacias especializadas para o atendimento às mulheres vítimas de violência: Belo Horizonte -MG, Cuiabá -MT, Curitiba -PR, Florianópolis -SC, Vitória -ES e Recife -PE. (SOUZA; CORTEZ, 2014). Já em 1993, a ONU aprovou a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, foi o primeiro documento internacional que apresenta especificamente sobre essa forma de violência, entendida como “[...] uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres que conduziram à dominação e à discriminação contra as mulheres pelos homens e impedem o pleno avanço das mulheres” (ONU, 1993). No ano seguinte, foi assinada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), definindo-se que essa forma de violência se refere a “[...] qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (ONU, 1994). Tal documento foi ratificado pelo Brasil em 1995, após eliminar, em 1994, as ressalvas feitas à ratificação da Convenção de Eliminação de todas 19 as formas de Discriminação contra a Mulher. Em 1995 também ocorreu a quarta Conferência Mundial da Mulher, que chamava a atenção dos governantes a condenarem a violênciacontra a mulher, eliminando quaisquer alegações baseadas em tradições, costumes ou religião como desculpas para a legitimação de tal violação. Cabe salientar que a violência de gênero é um fenômeno que não obedece a fronteiras, princípios ou leis e, consequentemente crianças e adolescentes, são tão vítimas por conviverem em lares e em uma sociedade que ainda nos dias de hoje fazem descriminação quanto ao gênero mais frágil. 2.3 IDEOLOGIA PATRIARCAL Conforme Engels, a vida da mulher foi marcada por modelos diferentes, segundo o contexto histórico. No período pré-histórico, ficaram evidenciados os papéis desempenhados pelo homem e pela mulher, que chegou a alcançar posição proeminente na sociedade. Já na época civilizatória, com o advento da família patriarcal, a construção da identidade feminina se forma e se enraíza, na interiorização pelas mulheres, de normas enunciadas pelos discursos masculinos de conformidade com os estereótipos de cada povo e de cada território, com papel fundamental da religião na manutenção e reprodução desse sistema. Os papéis e estereótipos impostos à mulher diversificam-se de acordo com a expectativa de cada povo e em épocas distintas, ou por outras palavras, a mulher deveria realizar em sua vida aquilo que concernisse à cultura de determinado povo, em determinada época. Ao longo da história no Brasil, as práticas patriarcais caracterizam autoridade e dominação do homem sobre a mulher. Está muito enraizado na cultura brasileira, configurando uma visão de poder sobre o sexo feminino aprendidos desde a infância, onde se instala na consciência de ambos os sexos, o papel secundário da mulher e estabelecendo lugar de destaque ao homem. Como ressalta Saffioti (2004, p. 34-35), os homens gostam de ideologias machistas, sem sequer ter noção do que seja uma ideologia. Mas eles não estão sozinhos. Entre as mulheres, socializadas todas na ordem patriarcal de gênero, que atribui qualidades positivas aos homens e negativas, embora nem sempre, às mulheres, é pequena a proporção destas que não portam ideologias dominantes de gênero, ou seja, poucas mulheres questionam sua inferioridade social. Desta sorte, também há um número incalculável de mulheres machistas. 20 E o sexismo não é somente uma ideologia, reflete, também, uma estrutura de poder, cuja distribuição é muito desigual, em detrimento das mulheres. Minayo (2007, p. 11) compreende que: Na visão arraigada no patriarcalismo, o masculino é ritualizado como o lugar da ação, da decisão, da chefia da rede de relações familiares e da paternidade como sinônimo de provimento material. É assim, porque tal concepção configura uma representação social solidificada e naturalizada por meio dos valores tradicionais de gênero. (MINAYO, 2007, p. 11). Com a definição dos papéis impostos pela sociedade patriarcal a mulher tem seu espaço restrito e até mesmo de conformismo, aceitando a incumbência dada a ela de ser somente aquela que deveria ser responsável pelo funcionamento do lar e a manutenção da família. Já desde a infância, na casa dos pais sendo educada para atender o pai e os irmãos, reafirmando a prática após o casamento, aceitando tudo como natural. Scott (2013, p. 16) declara que através da ideologia patriarcal “[...] a mulher deveria obedecer ao pai e o marido, passando a autoridade de um para outro através de um casamento monogâmico e indissolúvel”. Vive-se, portanto, sob a lei do pai e, assim, do marido, a tradição patriarcal se reafirmando através do matrimônio, como única alternativa imposta a ela, a de cuidar da casa e procriar. Assim o regime patriarcal se sustenta em uma economia domesticamente organizada, assegurando ao homem que tivesse alguém para servir a ele quando voltasse do trabalho e satisfaze-lo sexualmente. A cultura da violência intrínseca no casamento permanece nos dias atuais (LAGE; NADER, p. 300), ressalta “[...] que essa visão nunca foi exclusiva dos homens, sendo compartilhada por muitas mulheres, que também consideram que a violência doméstica faz parte das relações conjugais”. Durante muito tempo a violência sofrida pelas mulheres não era considerado um problema social onde precisasse da intervenção do Estado, pelo fato de ocorrer no espaço doméstico, ficando à família o dever de resolver. É justamente no âmbito familiar, lugar que deveria ser de segurança, onde mais se propaga a violência contra a mulher, muito mais difícil de identificar, sendo que agressor e vítima estão sob o mesmo teto. E com a caracterização que já foi incumbida a mulher de que se “ela apanha é porque merece”, se calam e vivem um dia após o outro, conformando-se com a situação, devido a função de manter a família em seu funcionamento. 21 Dessa forma, os filhos crescem nesse ambiente, reportando o comportamento do pai sobre a irmã, ou até mesmo a própria mãe, com a ideia que essa é a função do homem, “tudo posso”, inclusive o uso de álcool e até mesmo a experimentação das drogas. Ao longo da história e insatisfeitas com a posição credenciada as mulheres, elas vêm clamando pela busca da igualdade de direitos e condições, principalmente, buscando ocupar seu lugar na sociedade, sendo reconhecidas como cidadãs dignas e não mais sob o jugo do patriarcado e recebendo opressão por conta do gênero. No entanto, a busca por esses direitos, não foram fáceis e ainda nos dias de hoje existe muito preconceito sobre a posição da mulher na sociedade. 2.4 A IMPORTÂNCIA DO MOVIMENTO FEMINISTA NA LUTA PELOS DIREITOS DAS MULHERES No decorrer da história a desigualdade de gênero, especialmente considerando as sociedades mais antigas onde a referência que se tinha era o modelo de família patriarcal, era aquela onde o homem era o provedor e a mulher servia apenas para constituir família, cuidar e educar os filhos e ser submissa aos caprichos do marido, realizando suas vontades e aquilo que lhe davam prazer, ou seja, a mulher era mantida no ambiente doméstico e submissa a figura masculina, resultando em uma pessoa anulada e desprovida de direitos. O movimento feminista surge para romper com essa tradição arcaica que tinham como base a subordinação da mulher, descaracterizando a visão hierárquica exercida pelo homem e oportunizando um novo olhar para o papel da mulher na sociedade. Segundo Alves e Pitanguy (1981), o movimento feminista contrariou as identidades femininas e masculinas socialmente estabelecidas e que se traduziam em relação de poder entre os sexos. E para Teles (1993), o feminismo, num formato universal, buscou como movimento de conotação política combater a opressão patriarcal configurada na sociedade, objetivando a melhoria da condição da mulher em vários setores, quais sejam, social, econômico, político e ideológico. No Brasil uma das primeiras lutas das mulheres foi o movimento sufragista. Essa conquista deve-se à pressão realizada pelo movimento feminista no Congresso Nacional. Após uma longa jornada de lutas e debates que vieram a acontecer no ano de 1932, as mulheres conquistaram o direito ao voto, porém de forma parcial. Somente dois anos depois, em 1934, quando da inauguração de um novo Estado Democrático de Direito e por meio da 22 Constituição da República, é que esses direitos políticos conferidos as mulheres foram assentadas em bases constitucionais. Nos primeiros anos da década de 60, lança-se a pílula anticoncepcional, num contexto em que o movimento feminista no mundo vai se configurando como uma luta não só por espaço político e social, mas como uma luta por uma nova forma de relacionamento entre homem e mulher. O surgimento da pílula anticoncepcional oportunizou à mulher a reintegração ao mercado de trabalho, além de proporcionar o planejamento familiar, ou seja, planejarem através do estilo de vida quantos filhos desejavam ter e em qual período, possibilitando que a mulher tivessemais autonomia, combatendo a opressão social enraizada na sociedade. O ingresso da mulher no ambiente de trabalho não era bem visto pela sociedade, os homens sempre dominaram os espaços onde nem se imaginava uma mulher ocupando, não condizendo com a ideologia patriarcal que atribuía a ela o lar, os cuidados com a família e os afazeres domésticos. Aquelas que ocupavam um espaço no mercado de trabalho eram consideradas mão de obra barata, desvalorizadas monetariamente e socialmente, ficavam com as tarefas rotineiras e repetitivas, chegando no final do dia em uma situação exaurida, num completo esgotamento físico e mental, sem contar que a lida não termina por aí, porque ao retornar para seu lar fica sentenciado a ela as tarefas da casa e os cuidados com a família. Marx e Engels (1998, p. 26) trazem uma visão capitalista acerca da diferença de gênero, sendo que, neste contexto apresentado pelos autores: O burguês vê na mulher um mero instrumento de produção. Ouve dizer que os instrumentos de produção devem ser explorados coletivamente e, naturalmente, não podem pensar senão que o destino de propriedade coletiva caberá igualmente às mulheres. Não pode conceber que se trata precisamente de suprimir a posição das mulheres como meros instrumentos de produção. Dentre os desafios, está o de superar a desigualdade salarial e a isonomia em todos os aspectos no âmbito laboral, tais como a discriminação que sofrem as mulheres, a dupla jornada de trabalho, as responsabilidades familiares, que ainda permanecem, em sua grande maioria, sob sua responsabilidade. A partir das práticas desiguais da sociedade, percebe-se que no ambiente doméstico também há a propagação da desigualdade de gênero, resultando em violência contra a mulher, tudo isso muitas vezes acontecendo de forma oculta, sem que os outros percebam o que se passa no âmbito familiar. 23 A constante luta pela igualdade social resultou na participação de movimentos feministas na criação ou modificação de legislações e de políticas públicas, promovendo o reconhecimento a pessoa da mulher como cidadã de direito, sem distinção de sexo. No decorrer dessas lutas por direitos iguais houve avanços relevantes na legislação, aspirando por uma sociedade mais justa e igualitária. No entanto, em virtude de muitas mulheres ainda viverem de forma anulada, sem que se trabalhe a autoestima e autonomia, a vida de muitos filhos resultam na reprodução do mesmo ciclo, da mesma forma como ela fica submetida a uma vida de tradição, ou seja, dependente do cônjuge, os filhos ficam sujeitos a dar continuidade no estilo de “família”, acontecendo dessa forma, a reprise da história. 2.4.1 Avanços das leis voltadas para a mulher A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, é considerada o marco da "transformação da universalidade abstrata dos direitos naturais (...) em particularidade concreta dos direitos positivos” (BOBBIO, 1992, p. 30). A Declaração também enfatiza os direitos humanos básicos, como o direito à vida, a liberdade de expressão de opinião e de religião, entre outros. Assim, são direitos inerentes a todos os seres humanos, independente de raça/etnia, sexo, nacionalidade, classe, religião ou qualquer outra condição. Os direitos humanos são resultado de lutas sociais concretas e estão sujeitos a avanços e retrocessos. Por serem garantias históricas, mudam com o tempo, adaptando-se às necessidades específicas de cada momento. Todo ser humano é portador de direitos e sua promoção é imprescindível para o pleno exercício da cidadania. No caso especifico da violência doméstica, tem-se como marco a Lei no 11.343 de 7 de agosto de 2006. De acordo com Barsted (1994), a inércia da sociedade diante de violência doméstica perdurou durante muito tempo até que, com a abertura e fortalecimento da democracia no Brasil, após a ditadura militar, em 1985, e, com o advento da Chamada Constituição Cidadã, em 1988, grupos de mulheres começaram a se mobilizar com o objetivo de alertar a sociedade para a questão da violência contra a mulher que até então era silenciada e negligenciada pelos setores públicos existentes. As propostas de igualdade social entre homens e mulheres são recentes na nossa sociedade: no Brasil, a partir de 1988 passa-se a tratar ambos igualmente perante a lei, através da Constituição Federal, que foi elaborada com ampla participação da sociedade, alcançando muitas das reivindicações da época. 24 A Constituição Federal de 1988 propiciou grandes inovações, principalmente nas questões direcionadas à família, urgindo que homens e mulheres tenham os mesmos direitos e deveres igualmente. Com a promulgação da Constituição, permitiu que o país inovasse nas questões de direitos e democracia, contudo ainda existe uma resistência muito grande devido a cultura que está enraizada na sociedade, nem mesmo todo o sistema de proteção legal criado até hoje foi suficiente para coibir condutas de violação aos direitos humanos das mulheres. O modelo do homem que apresenta um comportamento violento, tão contrário ao pacto social da boa convivência, parece desafiar o que entendemos por justiça. Observamos, na prática, a sustentação diária do mito do cidadão de papel, apresentado por Gilberto Dimenstein (1998), quando ele analisa que a realidade brasileira está muito distante da imagem objetivo, na qual se pretende uma sociedade justa e igualitária, capaz de excluir todas as formas de opressão e violência contra a mulher. Considera-se importante discorrer sobre a elaboração da Lei 11.340 aprovada em 2006, a lei apregoada a violência doméstica e que recebe a nomenclatura da vítima, Maria da Penha, que deu início ao enfrentamento nacional diante dos casos de abusos e opressão vivenciados pelas mulheres vítimas de violência doméstica. 2.5 INTRODUÇÃO À LEI MARIA DA PENHA NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER Inicialmente é importante destacar que a Lei 11.340/2006, particularmente conhecida como Lei Maria da Penha, tem como referência a mulher que inspirou essa lei. Farmacêutica bioquímica, natural do Ceará, mãe de três filhas, teve início as agressões praticadas pelo marido logo após o nascimento das meninas. A agressão era tanto física como psicológica, resultando com o passar do tempo em duas tentativas de homicídio. Uma das tentativas ocorreu enquanto ela dormia com um tiro nas costas que a deixou paraplégica, após alguns meses o agressor tentou eletrocutá-la enquanto a vítima estava no banho. Mesmo diante das denúncias, o agressor saiu impune. Devido a omissão do Estado, Maria da Penha juntamente com o apoio de organizações não governamentais, mobilizaram-se para que houvesse ações que coibissem a prática da violência de gênero. Com a impunidade e desleixo da justiça brasileira, foi encaminhado o caso para a Organização dos Estados Americanos (OEA), exigindo que o Brasil tivesse um 25 posicionamento diante do processo de Maria da Penha, além de notificar o país como um estado violador, negligência e omissão diante os casos de violência doméstica contra a mulher. O governo brasileiro se viu obrigado a cumprir as recomendações da OEA, criando um novo dispositivo legal que trouxesse maior eficácia na prevenção e punição da violência doméstica contra a mulher. A partir de então o Brasil formula a Lei 11.340, aprovada em 2006 por unanimidade, sendo inclusive, considerada pela ONU, como a terceira melhor lei contra violência doméstica do mundo. A elaboração dessa lei contou com a participação de movimentos feministas, em busca da erradicação, prevenção e punição da violência praticada contra a mulher, é um resultado de muitos anos de lutas para que as mulheres pudessem dispor de uma lei própria que assegurasse seus direitos e lhe oferecesse um mínimo de dignidade. Essa Lei tipifica a violência doméstica como uma das formas de violaçãodos direitos humanos. Altera o Código Penal e possibilita que agressores sejam presos em flagrante, ou tenham sua prisão preventiva decretada, quando ameaçarem a integridade física da mulher. A lei veio com o principal objetivo de garantir os direitos fundamentais a todas as mulheres, coibindo toda e qualquer forma de violência, além de incluir a punição dos agressores, proteção e assistência as mulheres em situação de violência doméstica. Por intermédio da Lei 11.340/2006, percebe-se que essa protege a mulher de vários casos de violência doméstica contra a mulher, prestando amparo e condições que resgatem sua identidade e cidadania. Através desse instrumento definem-se formas da violência, dividida em violência física, psicológica, moral, patrimonial e sexual, tornando-se imprescindível compreender as manifestações da violência praticada contra a mulher, possibilitando assim um maior entendimento da amplitude da Lei Maria da Penha. Segundo Dias (2007, p.26): Chegou o momento de resgatar a cidadania feminina. É urgente a adoção de mecanismos de proteção que coloquem a mulher a salvo do agressor, para que ela tenha coragem de denunciar sem temer que sua palavra não seja levada a sério. Só assim será possível dar efetividade à Lei Maria da Penha. (DIAS, 2007, p. 26). Vale ressaltar que a Lei Maria da Penha é a maior política pública de enfrentamento à violência doméstica e, também, de violência de gênero, mas não pode ser considerada como único mecanismo de defesa e proteção às mulheres. 26 2.6 VIOLÊNCIA NO ÂMBITO FAMILIAR Embora a violência está presente na sociedade desde os primórdios da história, no contexto do referido estudo, reporta-se à violência doméstica e uso de drogas na adolescência, dentro do âmbito familiar e a relevância em identificar a relação entre ambos. É entre o aconchego do lar que a família deveria oferecer proteção, segurança e condições dignas de crescimento. Mas também se sabe que no interior de muitos lares que crianças e adolescentes são vítimas de todo tipo de violência: física, psicológica, sexual e negligência. Saffioti (1999) compreende que nesse contexto existe uma sobreposição de violências de gênero e violência familiar e aponta que geralmente se estabelece um território em que todas as pessoas pertencentes a este são, simbolicamente, pertencentes ao chefe do território, muito frequentemente o homem. A violência praticada por pai e mãe também tem seu cunho na hierarquia e, muitas vezes, as mulheres que, “[...] tendo seus direitos humanos violados por seu companheiro, maltrata seus filhos” (SAFFIOTI, 1999, p. 83). É, portanto, desde a infância que o sujeito experimenta a exploração-dominação do patriarca, seja diretamente, seja através da mulher adulta. A violência doméstica é compreendida, pois, como formas de violações de direitos e de sujeito, porque o próprio indivíduo em sua singularidade e subjetividade está em sofrimento. A detecção desse tipo de violência, no entanto, se torna muitas vezes uma tarefa difícil, por se tratar do âmbito privado. Assim, apresenta-se velada num pacto de silêncio estabelecido implicitamente entre todos os membros da família, dificultando a resolução e vulnerabilizando ainda mais os infantes, que são sempre os mais frágeis nessa dinâmica (AMORIM, 2012). Dessa forma, a violência atravessa ciclos que veem a desencadear outros tipos de problemas, principalmente na vida das crianças e adolescentes que estão em processo de absorver, tantas as coisas boas como as ruins no convívio familiar. 2.6.1 Violência Física Para Guerra (1998) a violência física possui uma definição complexa que vem sofrendo transformações ao longo do tempo. No entanto, pode ser conceituada como ação que causa dor física na criança ou no adolescente. Segundo Braun (2002, p.21): 27 Os sentimentos gerados pela dor decorrente da violência física de adultos contra crianças são na maioria das vezes reprimidos, esquecidos, negados, mas eles nunca desaparecem. Tudo permanece gravado no mais íntimo do ser e os efeitos da punição permeiam nossas vidas, nossos pensamentos, nossa cultura. Por estarem em crescimento e desenvolvimento de sua personalidade as consequências das múltiplas formas de violências podem trazer danos temporários e até irreversíveis. Assim sendo, Assis e Ferreira (2012, p.53), as consequências dessa violência em ambiente doméstico se expressão de duas formas: A violência vivenciada no ambiente intrafamiliar pode se expressar de duas formas: a direta, quando a criança se encontra exposta à violência, ou seja, ela é o alvo da agressão, e a indireta, quando ela presencia episódios de violência entre seus pais. Ambas as formas de violência se tornam prejudiciais ao desenvolvimento físico, psíquico e social de uma criança. Os sintomas que surgem com maior probabilidade são falta de motivação, ansiedade, depressão, comportamento agressivo, isolamento e baixo desempenho escolar. 2.6.2 Violência Psicológica A violência psicológica representa uma espécie de tortura que agride ao desenvolvimento sadio da criança e do adolescente, causando-lhe sofrimento mental. Nessa situação, a vítima de violência psicológica, é afetada no seu sentimento de auto aceitação, perda da autoestima e consequentemente, gerando diversos problemas afetivos para a sua vida. Ela (a criança ou adolescente), mostra mudanças em seu comportamento, sinais de ansiedade, apresentam tiques nervosos, causa danos na aprendizagem, começam a mentir e fugir de casa. Violência psicológica, segundo Minayo (2002, p.105), também pode ser denominada como tortura psicológica, e “ocorre quando os adultos sistematicamente depreciam as crianças, bloqueiam seus esforços de autoestima e realização, ou as ameaçam de abandono e crueldade”. 2.6.3 Violência Sexual A violência sexual é uma das violências mais aterrorizantes que podem ocorrer na infância e adolescência, podendo causar prejuízos físicos e emocionais para o resto da vida. Segundo Azevedo e Guerra (2001, p.33) a violência sexual se configura como: 28 Todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança ou adolescente ou utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa. (AZEVEDO e GUERRA, 2001). O abuso sexual é uma das formas mais graves de maltrato infantil, consistindo na utilização de um menor, para satisfação dos desejos ou distúrbios sexuais de um adulto, muitas vezes encarregado dos cuidados da criança que é abusada. A OMS (1999), ao referir-se à violência sexual em que a vítima é uma criança ou um adolescente, adota o termo abuso sexual infantil. Abuso sexual infantil é o envolvimento de uma criança em atividade sexual que ele ou ela não compreende completamente, é incapaz de consentir, ou para a qual, em função de seu desenvolvimento, a criança não está preparada e não pode consentir, ou que viole as leis ou tabus da sociedade. O abuso sexual infantil é evidenciado por estas atividades entre uma criança e um adulto ou outra criança, que, em razão da idade ou do desenvolvimento, está em uma relação de responsabilidade, confiança ou poder (World Health Organization - WHO -, 1999, p. 7). Ocorre, que a violência sexual se torna um transtorno ainda maior quando se trata de vítimas como crianças e adolescentes. Pois, devido estarem em processo de desenvolvimento encontram-se em situações de maior vulnerabilidade, ocasionando sequelas que podem se reproduzir em algum escape, como por exemplo, ser um adolescente arredio, buscando refúgio no álcool e drogas. 2.6.4 Negligência A negligência e o abandono envolvem o não atendimento às necessidades físicas e emocionais da criança e a omissão de cuidados básicos. A literatura descreveque geralmente famílias negligentes apresentam uso desregrado de bebida alcoólica, elevado consumo de drogas, maior número de filhos e desestruturação familiar. A negligência está entre as formas mais comuns de maus tratos e abrangem a negligência física, emocional e educacional (Azevedo, 2007). Ainda, Moreschi (2018), atribui que: A negligência é a ação e omissão de responsáveis quanto aos cuidados básicos na atenção, como a falta de alimentação, escola, cuidados médicos, roupas, recursos materiais e/ou estímulos emocionais, necessários à integridade física e psicossocial da criança e do adolescente, ocasionando prejuízos ao desenvolvimento. Isto caracteriza o abandono, que pode ser parcial ou total. No parcial coloca a criança e 29 adolescente em situação de risco; no total elas ficam desamparadas e ocorre o afastamento total da família. (MORESCHI, 2018, p. 15). As situações de negligência na infância são justificativas utilizadas para a destituição do poder familiar. Não são raros os casos em que crianças se encontram em instituições de acolhimento ou com outros cuidadores em função de negligências direcionadas aos seus responsáveis. Por outro lado, muitas vezes nem a própria família possui essa possibilidade de cuidado, também é ou foi negligenciada. Gomide et al. (2003) afirmam que: As famílias que abandonam seus filhos são certamente vítimas dos mesmos processos de abandono que agora perpetuam em sua prole. Foram também negligenciadas, abusadas física e psicologicamente, desassistidas pela família e pelo Estado. (GOMIDE et al., 2003, p.44). Embora muitos casos de negligência ocorram porque os pais enxergam os filhos como um fardo, é preciso destacar que nem toda negligência é intencional. Existem famílias em situação de tamanha vulnerabilidade que simplesmente não têm condições de manter a criança, ou apenas reproduz nos filhos experiências repassadas que tiveram. 2.7 RELAÇÕES FAMILIARES Como explanado anteriormente, a família é referência quando se trata de proteção e segurança das crianças e adolescentes. No entanto, nem sempre é assim, é na família que se reproduz diversos tipos de violência, como os exemplos citados acima, sendo negligenciado a garantia de direitos que é conferido a eles. A família é um sistema formado pelo conjunto de relações estabelecidas entre seus membros, embora tenha sofrido mudanças quanto à sua estrutura e funcionamento nos últimos anos, ela continua sendo a principal base de segurança e bem-estar de seus membros, especialmente durante a infância e adolescência. Entretanto, como a família já vem de ciclo de violência intrínseca culturalmente, muitos adolescentes enfrentam diversos desafios e escolhas negativas que podem acabar prejudicando o desenvolvimento saudável, por isso é fundamental que a família esteja preparada para enfrentar estas situações (Senna & Dessen, 2012). Neste processo, escolhas que envolvem a adoção de comportamentos de risco tornam- 30 se uma preocupação importante, sendo especialmente relevante o problema do uso e abuso de drogas. 2.7.1 Diversidades nas Configurações Familiares A família já passou e vem passando pelas mais amplas modificações, com relação aos seus valores pessoais e organizações próprias. Sua essência se mantém mesmo após tantas modificações, levando em consideração a essência das relações e a importância de seus vínculos e convivência entre os seus membros. Venosa (2011) destaca que no Brasil as famílias foram se constituindo no modelo patriarcal, que tem como base os efeitos da colonização feita pelos portugueses. Este modelo é caracterizado pelo homem como o centro do poder da família e da sociedade. Neste modelo familiar, a autoridade máxima é o marido, e a esposa ficava encarregada pelo cuidado das proles e organização da casa. A família, assim como as demais instituições, é um sistema bastante complexo, sendo ela de difícil definição conceitual e de intuito social responsável por propagar valores e normas sociais aos seus membros. Lévi-Strauss (1956) acreditava que existia um padrão ideal de configuração familiar, da qual a mesma devia seguir as características que seguem: [...] (1) tem sua origem no casamento; (2) é constituído pelo marido, pela esposa e pelos filhos provenientes de sua união; e (3) os membros da família estão unidos entre si por (a) laços legais, (b) direitos e obrigações econômicas e religiosas ou de outra espécie, (c) um entrelaçamento definido de direitos e proibições sexuais, e uma quantidade variada e diversificada de sentimentos psicológicos, tais como: amor, afeto, respeito, medo e outros (LÉVI-STRAUSS, 1956, p. 34). As famílias, a partir de todas as mudanças que ocorreram na história, passaram a não ser mais definidas pelos laços sanguíneos, mas sim, por um conjunto de interações, de afetos e relação (SEBEN, 2010). Giraldi e Waideman (2007), afirmam que “há, atualmente, diversas formas de organização familiar em nossa sociedade, abrindo um leque de possibilidades de 12 constituições familiares, apesar de todas se sustentarem dentro de um regime patriarcal”. As diversas configurações familiares que podem ser encontradas em nossa sociedade, por exemplo: pai e filho (a); mãe e filho (a); filho (a) e madrasta; filho (a) e padrasto; filhos de pais diferentes; filhos vivendo com irmãos que não são de sangue; filhos (as) de pais homossexuais; filhos (as) que vivem com parentes, entre outras formas de família. 31 [...] casamentos sucessivos com parceiros distintos e filhos de diferentes uniões; casais homossexuais adotando filhos legalmente; casais com filhos ou parceiros isolados ou mesmo cada um vivendo com uma das famílias de origem; as chamadas “produções independentes” tornam-se mais frequentes; e mais ultimamente, duplas de mães solteiras ou já separadas compartilham a criação de seus filhos (SIMIONATO; OLIVEIRA, 2003, p. 61). A família é considerada a base da constituição do indivíduo. É o primeiro grupo social em que se faz parte e, ainda, intitulamos como a instituição referência para o desenvolvimento do sujeito. Mesmo que, em muitas circunstâncias não seja o ideal almejado, todos nós temos vínculos e histórias envolvendo a família. Segundo Hurstel (2006), a família atual vem passando conflitos devido ao enfraquecimento do papel dos pais perante seus filhos, sendo que os pais perderam os pontos de referências habituais e estão sentindo, cada vez mais, dificuldades para assumir sua função e perceber qual é realmente o lugar e o papel que pais e filhos devem assumir dentro da família. Compreender não somente a família contemporânea, mas entendê-la em seu processo histórico de evolução de seus papéis, arranjos familiares, suas funções de criar vínculos sociais do indivíduo, contribui para uma nova forma de pensar sobre a atual condição das famílias. De acordo com Romanelli (2001), a família vem se destacando como uma instituição privada, sendo responsabilizada pela produção social, transmissora de padrões culturais e a coordenação à vida social. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) descreve família enquanto lugar que deve garantir a segurança e proteção de crianças e adolescentes, que começam a ser considerados enquanto sujeitos de direitos e em especial fase de desenvolvimento. Porém, o próprio documento aponta que no seio da família mesmo ocorrem violações diversas e legisla sobre esse aspecto em seus artigos 4º e 5º. (BRASIL, 1990). Também a Constituição Federal de 1988, menciona sobre a responsabilidade da família na garantia de assegurar que crianças e adolescentes tenham suas necessidades básicas atendidas. No Capítulo VII, Art. 227, estabelece: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, àprofissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988). 32 É possível observar a mudança no movimento dos cuidados e da atenção em relação às crianças e adolescentes no seio da família, em suas diversas constituições e formas de relações, que constituirão sua subjetividade e personalidade por meio da educação e orientação fornecida neste ambiente. Entretanto, as formas de cuidado parecem ainda não acompanhar e compreender tais mudanças. O que importa, no entanto, não é o número de pessoas, mas sim o movimento de cuidar e o tipo de cuidado dispensado. 2.7.2 Família e Responsabilidade Escolar A família é o principal suporte referencial que os filhos têm nos primeiros anos de vida, é nela que se busca um modelo e consequentemente tende-se a reproduzir aquilo que vivencia, pois, cada elemento da família (seja ela grande ou pequena), é na família que está todo o equilíbrio que o ser humano necessita à boa integração na sociedade e fundamentalmente à sua sobrevivência. Nesse sentido, compreende-se que a família está presente principalmente na primeira educação da criança. De acordo com Lacan (1938/2002), é a família que irá atuar na repressão dos instintos e na aquisição da língua materna. Assim, o ambiente familiar é considerado como o primeiro ambiente de educação no qual o ser humano está inserido, sendo este considerado como o local em que o indivíduo será inscrito no mundo simbólico. É no ambiente familiar, pois, que a personalidade do sujeito começará a ser construída, ou seja, o processo educativo que os pais cumprem em relação aos filhos (sono, alimentação, banho, etc.) gera uma mensagem aos infantes para que se adaptem e correspondam aos ideais de filho demandado pelos pais. Para Borges (2009), a aprendizagem, a socialização, o conhecimento e outras atribuições dadas à infância são consequências dessa primeira educação oferecida no seio familiar, que constituirá a organização do aspecto psíquico do sujeito. Também Szymanski (2004) enfatiza que é na família que ocorre o processo de socialização por meio da transmissão de valores, crenças, hábitos e conhecimentos. Nesse processo de educação é relevante a participação integral da família, os filhos imitam os comportamentos daqueles com o qual convivem, sendo de responsabilidade dos responsáveis prezar pela educação, tendo o compromisso de ofertar os direitos inerentes a elas. Interessante destacar que o Estado e família é que devem se responsabilizar pelo processo educacional, contando com a colaboração da sociedade. E os objetivos da educação consistem em contribuir para que ocorra o pleno desenvolvimento dos indivíduos, a formação 33 para a cidadania e preparação para a atuação profissional. De forma semelhante, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), ao se referir sobre os “Princípios e Fins da Educação Nacional” estabelece: Art. 2º A educação, é dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1996). Outra legislação que menciona primeiramente a família como responsável por garantir os direitos, incluindo à educação, é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em seu Art. 4º estabelece: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990). É possível refletir sobre o papel da família no sentido de contribuir com o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, quando não há muitas condições favoráveis ou diante da existência de violência doméstica. Como fica a dimensão emocional? E as relações sociais predominantes? Sendo a família responsável por promover o desenvolvimento pleno das pessoas, pressupõe-se que precisa ter condições para assumir essa função imprescindível para a vida em sociedade. 2.7.3 A Família e a Dependência Química É compreendido que a família é a base que representa uma favorável interação no processo de educação e crescimento da criança. Diante do exposto, é fato relevante que é essencial acompanhar e direcionar a criança e o adolescente nas etapas da vida delas, visto que, o adulto tem o dever de educar, cuidar, zelar, garantir que sejam repassados todos os direitos inerentes que é descrito na Constituição Federal e devidamente defendido pelo ECA. É constatado que parte dos adolescentes que realizam o tratamento no NSJ, estão em déficit escolar, uma idade que necessita ser acompanhada. Os pais precisam estar em contato com escola, professores, atentos ao material escolar, saber se está em sala de aula. Como muitos pais trabalham o dia todo, acabam ficando relapsos e acreditam que seus filhos estão 34 na escola. Quando se dão conta, ou são comunicados pela escola, descobrem que precisam lidar com a situação do envolvimento (dos filhos) com álcool, drogas, subsequentemente já em dependência química. A importância desta pesquisa está relacionada à busca do meio familiar de usuários de substâncias psicoativas, que estão internados no NSJ. Por vezes as equipes de saúde encontram dificuldades em manejar estas relações, até mesmo no que diz respeito ao acesso a estes familiares. Aqui entra o caso das famílias referenciadas acima, são diversos arranjos familiares e nem sempre se consegue a colaboração de todos. Genitores que não se falam, que já adquiriram uma outra família, resultando (alguns casos) em adolescentes negligenciados. Portanto se faz necessário investigar a dinâmica familiar dos usuários de substâncias psicoativas, para uma melhor compreensão das relações, evitando assim, pressupostos errôneos como a responsabilização da dependência por parte da família ou usuário. Diante disso, é de grande relevância pensar sobre a importância da família do usuário dependente de substâncias psicoativas, bem como a influência que ela pode exercer no processo de tratamento e recuperação do membro dependente. O processo de adoecimento do usuário dependente tem íntima relação com a dificuldade da família em lidar com o comportamento do membro dependente, necessitando de suporte terapêutico e acolhimento. Esse processo pelo qual transita, a família necessita, então, de grande atenção e acolhimento dos profissionais durante o atendimento dos usuários para que haja benefícios não só para o usuário, mas também para aqueles que estão envolvidos na situação. Foi possível perceber ao realizar o estágio no NSJ, que as famílias precisam tanto do tratamento como os adolescentes, necessitam apreender a lidar com a situação, fortalecer os vínculos que estão fragilidades ou rompidos, assim como, identificar pontos determinantes que precisam ser trabalhados, a fim de ajudar o adolescente a romper com a dependência química. 2.8 ADOLESCÊNCIA E USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS Ao se fazer referência a temática que aborda a violência doméstica e o uso de drogas na adolescência, faz-se necessário discorrer a faceta dessa fase da vida, que corresponde ao período de transição da infância para a vida adulta. 35 Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a adolescência é definida como um período biopsicossocial e compreende o período entre 10 e 20 anos (SANTOS, PRATTA, 2012), enquanto a Organização das Nações Unidas (ONU) entende a adolescência como fenômeno que ocorre entre 10 e 14 anos (UNICEF, 2011). Entretanto,para os efeitos deste estudo, utiliza-se a definição do ECA que compreende a adolescência do período entre 12 e 18 anos incompletos. Normalmente, o adolescer é compreendido como um período de pura mudança e inquietude. Marcada pelos impulsos do crescimento corporal, pelas mudanças do desenvolvimento emocional, mental e social, além de ser um período no qual o indivíduo lança mão de intensos esforços para alcançar objetivos referentes à sociedade e de seu grupo familiar. 2.8.1 Adolescência A adolescência é uma fase complexa e dinâmica do ponto de vista físico e emocional na vida do ser humano. É neste período em que ocorrem várias mudanças no corpo, que repercutem diretamente na evolução da personalidade e na atuação pessoal da sociedade. Os transtornos, os conflitos e outras manifestações que acometem os jovens nesta fase de transição para a vida adulta merecem ser compreendidas como ações preventivas, necessitando um olhar mais aprofundado em perceber mudanças de comportamento e intervir no início. Para Ferrari (1996), a adolescência é compreendida como sendo o momento de maior vulnerabilidade em que o ser humano pode se encontrar, período este em que o sujeito está passando por um evento de crise e ruptura com os modelos até então vigentes, sendo a expressão das contradições da ordem social estabelecida. Tal pensamento é corroborado por Calligaris (2000, p. 15) que define o adolescente como alguém que: [...] teve tempo de assimilar os valores mais banais e mais bem compartilhados na comunidade, cujo corpo chegou à maturação necessária para que ele possa efetiva e eficazmente se consagrar às tarefas que lhe são apontadas por esses valores e para quem, nesse exato momento, a sociedade impõe uma moratória. Desse modo, se percebe que, tanto a infância quanto a adolescência, são hoje compreendidas como categorias construídas historicamente, tendo, portanto, múltiplas 36 emergências. Essa ideia corrobora com os paradigmas da pós-modernidade, marcos da nossa contemporaneidade. De acordo com Aberastury e Knobel (1981), nesse período parece ocorrer um corte com tudo o que até antes foi vivido, sendo o adolescente um estranho em um corpo que não é dele, vivendo um papel que ele não conhece e convivendo com pais que também lhe são estranhos. Ele passa a se perceber como um estranho dentro de si, inserido em um local ao qual ainda não pertence. A adolescência, portanto, carrega consigo uma grande mudança não somente na estrutura biológica e psíquica do próprio adolescente, mas também na organização familiar. Cahn (1999) ainda afirma que na adolescência os processos de identificação são repetidos, porém, agora se amplia a área de atuação e de influência, corroborando com as observações de Erikson (1976), de que os adolescentes formam sua identidade modificando e sintetizando identificações pregressas em uma nova estrutura psicológica. O adolescente agrupa-se para tentar responder essa eterna dúvida do “Quem sou eu? ”, em busca de construir sua identidade e, nesse sentido, Freud (1920) enfatiza que, quando em grupo, o indivíduo sente-se mais protegido e mais homogêneo. O grupo passa então a se tornar uma parte da constituição de sua identidade e sua subjetividade. Apesar de em grupo, os adolescentes estão buscando sua unicidade. E, algumas das vezes para fazer parte de um grupo, o adolescente se submete a ceder a pedidos inusitados, que são prejudiciais para si mesmo e consequentemente, comprometendo toda sua família. 2.8.2 Drogas: Comportamento de Risco na Adolescência O consumo de drogas vem se tornando cada vez mais um problema que assola o mundo todo, sendo atualmente considerado e tratado como problema de segurança e de saúde pública. Entretanto, o consumo de drogas caracterizado pelo consumo esporádico e sem complicações nas demais esferas da vida do sujeito, eventualmente pode evoluir para um uso abusivo da substância até chegar à dependência física e psicológica. De acordo com Santos e Pratta (2006), para a OMS, o termo droga é compreendido como qualquer entidade química ou mistura de entidades que podem alterar a função biológica e, possivelmente, sua estrutura. Sendo assim, a dependência requer cuidados específicos, pois corresponde a um estado mental e por vezes físico, resultante da interação dessa entidade química com um organismo vivo, tendo como comportamento característico a compulsão do uso da droga para experimentar seu efeito e “[...] evitar o desconforto provocado por sua ausência” (p. 316). 37 Embasando-se nos estudos de Santos e Pratta (2012), é possível perceber que o uso e abuso de substâncias estão relacionadas à maximização do prazer, inerente ao psiquismo humano e mais intenso na adolescência. A droga entra como um objeto que vem testar os limites do próprio corpo, tramitando no limiar do princípio de prazer e o princípio de realidade (FREUD, 1920) e que ainda é muito frágil durante a adolescência. Desse modo, ao se fazer o consumo de drogas, o sujeito sente a necessidade constante de reviver as fantasias de onipotência como forma de encontrar alívio para a angústia que lhe consome. Na adolescência observa-se que tal situação ocorre de maneira ainda mais intensa em razão da fragilidade egóica em que se encontra (KESSLER et al., 2003). Nesse contexto, deduz-se que a droga exerce a função de objeto-tampão que funciona como uma forma de “[...] dar conta da questão da organização pulsional e da fragilidade estrutural dos vínculos afetivos, além de traduzir, sintomaticamente, o mal-estar de um determinado contexto familiar que está estruturado e vem funcionando de maneira tóxica” (SANTOS; PRATTA, 2012, p. 177). Por tratar-se de um momento especial do desenvolvimento humano, quando a identidade está sendo ainda definida e os valores estão sendo revistos e reformulados, os modelos de comportamento apresentados no âmbito familiar influenciarão diretamente os padrões de conduta do sujeito em formação, o adolescente. Geralmente, o adolescente tem início ao uso de substâncias ainda dentro de casa. Naquelas festas de família, começam a experimentar o álcool, por conta do fácil acesso e também da cultura ao redor da bebida. As mudanças que seu corpo apresenta, juntando com o tédio e rebeldia são riscos suficientes para a iniciação ao consumo. Ao fazer a experimentação sentem momentos de euforia, o tédio vai embora, tem aquela sensação de falsa alegria, então para amenizar as “frustações” da vida, voltam a fazer uso, até que se percebem não conseguir ficar sem o uso. Para Schenker e Minayo (2003a), a família tem papel fundamental na criação de condições favoráveis ao uso de substâncias por adolescentes ou para a criação de fatores de proteção. Sendo a família um dos primeiros ambientes de educação e socialização do indivíduo, como mencionado anteriormente, seus membros acabam por passar modelos de comportamentos para o infante. Logo, famílias disfuncionais podem transmitir normas desviantes através desses modelos e, segundo Schenker e Minayo (2003a, p. 302), “[...] os problemas de vinculação familiar advêm, em sua maioria, daqueles lares onde faltam habilidades para a criação dos filhos, reduzindo as chances de transmissão efetiva de normas sociais saudáveis”. 38 A dependência química é classificada como um transtorno mental e têm repercussões físicas, psicológicas e emocionais e acabam interferindo de maneira significativa na qualidade de vida do adolescente. Percebe-se essa situação com os adolescentes que fazem tratamento no NSJ. Algumas das consequências identificadas incluem o comprometimento do convívio familiar e social, redução escolar, o cognitivo fica comprometido, com dificuldades e transtornos mentais, se tem a sensação de estar sendo vigiado ou perseguido, escutam vozes que falam ou lhes dão ordens, enfim, as drogas influenciam negativamente em muitas
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