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Educação do Campo e Formação de Professores Diálogos Conceituais e Práticos Organizadores: Fernanda Maria Coutinho de Andrade Márcio Gomes da Silva Tatiana Pires Barrella UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO 2015 ii UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO Educação do Campo e Formação de Professores Diálogos Conceituais e Práticos Capa e identidade visual: Lucas Kato (CEAD-UFV) Edição de conteúdo: João Batista Mota (CEAD-UFV) Projeto Gráfico: Coordenadoria de Educação Aberta e a Distância (CEAD) Lilian Aparecida Santana Copyright by Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa Todos os direitos reservados, nenhuma parte pode ser reproduzida sem a autorização escrita e prévia do detentor do Copyright. Ficha Catalográfica Educação do Campo e Formação de Professores, Diálogos, Conceituais e Práticos/ Fernanda Maria Coutinho de Andrade, Márcio Gomes da Silva, Tatiana Pires, Barrela, Emiliana Maria Diniz Marques, Maria Cortes, Ïsis Antunes Fernandino, Felipe Nogueira Bello Simas, Tommy Flávio Cardoso Wanick Loureiro de Sousa, Ananda Deva Assis Trivelato, Rubens Aranda Valente, Lucas Rafael Bigardi. Viçosa/MG, Universidade Federal de Viçosa, Departamento de Educação, 2015. 175p, 29cm. Inclui Bibliografia ISBN: 1 – Educação Infantil do Campo. 2 – Princípios e Práticas Pedagógicas da Educação Escolar do Campo. 3 – Agroecologia e Educação do Campo. iii ORGANIZADORES, OS AUTORES E AS AUTORAS Fernanda Maria Coutinho de Andrade Engenheira Agrônoma (1994), UFV. MS Fitotecnia (1999), UFV. Doutorado Fitotecnia (2004), UFV. Professora de Licenciatura em Educação do Campo, UFV. Márcio Gomes da Silva Bacharel em Gestão de Cooperativas (2008), UFV. MS Extensão Rural (2010), UFV. Professor da Licenciatura em Educação do Campo, UFV. Tatiana Pires Barrela Engenheira Agrônoma (2001), UFV. MS Fitotecnia (2003), UFV. Doutorado Fitotecnia (2010), UFV. Professora de Licenciatura em Educação do Campo, UFV. Emiliana Maria Diniz Marques Psicóloga (2001), UFRJ. Arte-Educadora (2001), Uni-Rio. Mestre em Educação (UEMG, 2012). Professora de Licenciatura em Educação do Campo, UFV. Maria Cortes Pedagoga (2000), UFV. Técnica do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata – CTA-ZM. Ïsis Antunes Fernandino Pedagoga (2011), UFV. Professora de Artes no Espaço Florescer (Pedagogia Waldorf), Viçosa. Felipe Nogueira Bello Simas Engenheiro Agrônomo (2000), UFV. MS Solos e Nutrição de Plantas (2002), UFV. DS Solos e Nutrição de Plantas (2006), UFV. Professor de Licenciatura em Educação do Campo, UFV. iv Tommy Flávio Cardoso Wanick Loureiro de Sousa Engenheiro Ambiental (2011), UFV. MS Solos e Nutrição de Plantas (2014), UFV. Professor de Licenciatura em Educação do Campo, UFV. Ananda Deva Assis Trivelato Bacharel e Licenciada em Dança (2008), UFV. Mestranda em Patrimonio Cultural, Paisagem e Cidadania, UFV. Rubens Aranda Valente Licenciatura em Pedagogia (1999), UFV. Especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional (2003), Evata-FAGOC. Especialização em Inspeção Escolar (2007), Faculdade Integrada de Jacarepaguá. Professor dos anos iniciais aos 21 anos na Rede Municipal de Ensino de Viçosa. Lucas Rafael Bigardi Engenheiro Agrônomo (2013), UFV. Mestrando em Agroecologia, UFV. v AGRADECIMENTOS Ao Ministério da Educação A SECADI / DPECIRER: Diretoria de Políticas de Educação do Campo, Indígena e para as Relações Étnico – raciais. A Universidade Federal de Viçosa. Ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Ao Departamento de Educação. A Coordenadoria de Educação Aberta e a Distância da UFV. A Pró Reitoria de Planejamento e Orçamento da UFV. A Pró Reitoria de Extensão e Cultura da UFV. A equipe de trabalho do curso de Licenciatura em Educação do Campo da UFV. As tutoras do curso de Aperfeiçoamento em Educação da Campo: Patrícia Muratori de Lima e Silva Negrão, Ana Carolina da Costa Carvalho. Aos professores colaboradores: Willer Araújo Barbosa, Eugênio Alvarenga Ferrari, Lourdes Helena da Silva, Maria do Carmo Couto Teixeira, Silvane Guimarães Silva Gomes. Aos estudantes de Licenciatura em Educação do Campo/UFV: Rubens Aranda Valente, Tiago dos Santos Pires, Franklin de Jesus Pereira, Fabíola dos Santos Rita, Edynei Miguel Cristino. vi MENÇÃO HONROSA MEC (Ministério da Educação) SECADI / DPECIRER: Diretoria de Políticas de Educação do Campo, Indígena e para as Relações Étnico - raciais DEDICATÓRIA Este trabalho é dedicado aos povos do campo, aos educadores (as) e educandos (as) das escolas do campo e dos cursos de Licenciatura, Especialização e Aperfeiçoamento em Educação do Campo do Brasil. vii Sumário Apresentação ............................................................................................................ x CAPÍTULO I - Educação Infantil do Campo .......................................................... 1 1. História e concepção de Infância ................................................................. 2 1.1. Desenvolvimento do conceito de infância ............................................ 2 1.2. O conceito de infância no Brasil ........................................................... 4 1.3. O ECA e o desenvolvimento de diretrizes para a Educação Infantil .. 5 2. Bases legais e funcionamento da Educação Infantil do Campo ................... 7 2.1. Origem e pressupostos da Educação do Campo ................................... 7 2.1.1. Origem da Educação do Campo .................................................. 7 2.1.2. Por um novo projeto de Educação, de Campo e de Sociedade . 10 2.2. Educação Infantil do Campo ............................................................... 12 2.2.1. As infâncias do e no campo .............................................................. 12 2.2.2. Educação Infantil do Campo ............................................................ 14 2.2.3. Dispositivos legais que envolvem a Educação Infantil do Campo .. 16 3. A Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica ................. 18 3.1 A criança e os Referenciais Curriculares Nacionais ............................ 18 3.1.1. A criança de 0 a 3 anos .............................................................. 20 3.1.2. A criança de 4 a 5 anos .............................................................. 21 4. Processos de Desenvolvimento e Aprendizagem ....................................... 22 4.1. Desenvolvimento cognitivo, motor e emocional ................................ 22 4.2. A aprendizagem na infância ................................................................ 24 5. Infância, Cultura e Diversidade ................................................................. 30 5.1. Disfarçando as diferenças e negando as igualdades ........................... 32 5.2. O domínio europeu no período colonial .............................................. 32 5.3. Os primeiros brasileiros ....................................................................... 33 5.4. A chegada dos africanos ...................................................................... 34 5.5. A chegada dos imigrantes .................................................................... 36 5.6. Dificuldades e sucessos ....................................................................... 37 5.7. A mistura dos povos ............................................................................38 viii 6. Orientações gerais para Educação Infantil ................................................. 40 6.1. A importância do ritmo na Educação Infantil ..................................... 40 6.2. O ambiente educativo .......................................................................... 42 6.3. A postura e quem educa....................................................................... 42 6.4. Cuidar e educar .................................................................................... 43 6.5. Orações e atitude que expressem um sentimento de espiritualidade .. 44 7. Abordagens metodológicas ......................................................................... 44 7.1. Atividades artísticas e trabalhos manuais ........................................... 44 7.2. Música .................................................................................................. 46 7.3. Histórias e contos ................................................................................. 46 7.4. Educação ambiental ............................................................................. 47 7.5. Hortas e jardinagem ............................................................................. 48 Referências Bibliográficas .............................................................................. 49 CAPÍTULO II - Princípios e Práticas Pedagógicas da Educação Escolar do Campo .................................................................................................................... 52 1. A trajetória por outra educação e sociedade: origem, desenvolvimento e fundamentos da Educação do Campo.................................................................... 53 1.1. Dados da precariedade e desigualdade ............................................... 55 1.2. Princípios fundantes da educação do campo ...................................... 57 1.3. O direito à terra e à reforma agrária .................................................... 60 1.4. Valorização da agricultura familiar camponesa .................................. 62 1.5. Soberania alimentar ............................................................................. 65 1.6. Agroecologia ........................................................................................ 69 1.7. Educação popular ................................................................................. 70 1.8. Pesquisa como princípio formativo: as pesquisas participantes ......... 72 1.9. O trabalho como princípio educativo .................................................. 74 2. Desafios da transformação da escola rural em escola do campo e a organização do trabalho pedagógico ..................................................................... 76 2.1. Formação de educadores do campo .................................................... 79 2.2. Organização do trabalho pedagógico .................................................. 83 2.3. Projeto político-pedagógico do campo ................................................ 86 2.4. Transversalidade e interdisciplinaridade ............................................. 94 ix 3. Escola e comunidade: percurso pelas classes multisseriadas, formação por alternância e propostas de atividades .................................................................... 95 3.1. Classes multisseriadas ......................................................................... 96 3.2. Práticas socioculturais e práticas educativas ..................................... 101 3.3. Avaliando o processo ......................................................................... 104 3.4. Alternâncias educativas ..................................................................... 106 3.5. Exemplos de práticas pedagógicas que extrapolam os limites da sala de aula ....................................................................................................... 111 Conclusão ...................................................................................................... 114 Referências Bibliográficas ............................................................................ 116 CAPÍTULO III – Agroecologia e Educação do Campo ..................................... 121 Introdução ...................................................................................................... 122 1. O que é agroecologia? ............................................................................... 123 1.1. Estudo de agroecossistemas .............................................................. 126 1.2 Bases epistemológicas da Agroecologia ............................................ 128 1.3 Princípios e práticas em Agroecologia ............................................... 130 2. Agroecologia como modelo de desenvolvimento do campo ................... 134 2.1. A Crise da agricultura industrial ....................................................... 134 2.2. Transição agroecológica para soberania alimentar e nutricional ...... 139 2.3. Agroecologia e agricultura familiar .................................................. 142 3. Agroecologia e relações de gênero e relações etno-sociais ..................... 145 3.1. Relações raciais.................................................................................. 146 3.2. Relações de gênero ........................................................................... 147 3.3. Mudanças nas relações de gênero e relações etno-sociais ............... 150 4. Agroecologia como matriz pedagógica na Educação do Campo ............. 155 4.1. Agroecologia e a formação por área de conhecimentos ................... 158 4.2. Agroecologia: proposta de aprendizagem significativa .................... 161 4.3. Agroecologia e metodologias ativas de ensino aprendizagem ......... 163 4.4. Articulando conteúdos das Ciências da Natureza e das Ciências Humanas e Sociais por meio de aulas práticas de Agroecologia ............. 169 Referências Bibliográficas ............................................................................ 171 x Apresentação O movimento da Educação do Campo tem menos de duas décadas de existência. Proposta originada com as reivindicações camponesas, associada à luta pela terra e reforma agrária e pela luta pelo direito à educação. A educação construída a partir das demandas e necessidades dos povos que moram no campo e nele produzem suas formas de vida. Surge em contraposição ao atual modelo de desenvolvimento do campo, de bases capitalistas, representado pelo agronegócio, pelas grandes propriedades, pela monocultura, causando danos ao ambiente e inviabilizando a permanência da população camponesa nesses territórios. Ao contrapor-se ao modelo hegemônico, a Educação do Campo propõe outro projeto de sociedade, com novas bases de desenvolvimento do campo. Contrapõem-se, assim, à denominada Educação Rural, que se vincula à ideologia dominante e está presente na grande maioria dos territórios camponeses, reproduzindo valores hegemônicos que pautam a primasia do urbano sobre o rural, desconsiderando a diversidade e pluralidade dos modos de vida presentes nesses territórios. Esta proposta de educação, ainda em processo de construção, requer políticas públicas específicas para sua consolidação, dentre elas, políticas de formação continuada de educadores. Assim, em 2014, visando a formação continuada dos (as) educadores (as) das escolas do campo, como iniciativa da SECADI / DPECIRER/MEC, são propostos os cursos de Aperfeiçoamento em Educação do Campo. Este livro é fruto do trabalho do grupo de educadores do curso de Aperfeiçoamento em Educação do Campo, modalidade semi-presencial, oferecido pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) em parceria com o MEC, no período de dezembro de 2014 a agosto de 2015. Com duração de 8 meses, o curso abarcouconteúdos referentes à Educação Infantil do Campo, às Práticas Pedagógicas da Educação Escolar do xi Campo e a Agroecologia. Tais temas viraram capítulos deste livro que, longe de pretender esgotar a discussão em torno de cada um desses assuntos, se propõem como material de explanação ampla e introdutória, abarcando, porém, conceitos centrais e fundantes para o Movimento da Educação do Campo. O primeiro capítulo aborda a Educação Infantil do Campo. Voltada para as crianças, pequenas moradoras das áreas rurais, a Educação Infantil é um direito e precisa ser implementada ou ampliada até 2016. Para melhor compreensão desta conquista, este capítulo, trará elementos que informam sobre o contexto histórico e social, assim como a regulamentação legal das propostas pedagógicas para as creches e pré-escolas situadas no campo. Procurou-se também, aprofundar outro grande desafio na garantia do direito à Educação Infantil do Campo, que está relacionado diretamente com a construção da identidade da infância. As autoras reafirmam a necessidade da escola priorizar o estudo do desenvolvimento integral da criança, respeitando sua individualidade e sua história pessoal, especialmente suas formas de vida enquanto moradora do campo, considerando e valorizando suas etnias, seus valores, suas identidades de gênero, suas religiosidades. As ideias contidas neste primeiro capítulo possuem desdobramentos diretamente vinculados à realidade da Educação do Campo e a prática da Educação Infantil. Em ambas as perspectivas, é preciso compreender as principais orientações que ancoram o fazer desafiador de educar respeitando os diferentes saberes que compõe a realidade escolar. O segundo capítulo abarca dimensões das Práticas Pedagógicas na Educação Escolar. Neste capítulo, são aprofundados alguns princípios da Educação do Campo e apresentados conceitos que embasam outra proposta de educação e sociedade. Discute-se as práticas pedagógicas em classes multisseriadas e a educação por alternância e aborda-se a construção (ou reconstrução) dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas do campo e a formação de educadores para atuação na Educação do Campo, vislumbrando a xii diversidade de possibilidades de atividades, passíveis de serem desenvolvidas com estudantes de diferentes idades, nas escolas do campo e suas comunidades. Este segundo capítulo está dividido em três unidades. A primeira aprofunda questões referentes ao Movimento da Educação do Campo, abordando sua origem e trajetória e os fundamentos que o embasam na luta por outra educação e sociedade. A segunda unidade aponta os desafios para a transformação das escolas rurais em escolas do campo e traz questões necessárias de serem observadas na organização do trabalho escolar e reconstrução dos Projetos Políticos Pedagógicos. Por fim, a terceira unidade abarca questões referentes às Classes Multisseriadas e às Alternâncias Educativas, ampliando o debate sobre a integração entre escola e comunidade. O terceiro capítulo, dividido em quatro unidades, dedica-se ao diálogo sobre a Agroecologia. Inicia-se discutindo o que é Agroecologia, trazendo conceitos e definições, juntamente com as bases epistemológicas, princípios e práticas que darão bases para a sua utilização nas práticas pedagógicas. Na segunda unidade a Agroecologia é focada como modelo de desenvolvimento do campo: como modelo de contraposição a agricultura industrial, mas também como solução a produção de alimentos saudáveis e proposta a agricultura familiar. Na terceira unidade a Agroecologia é apresentada como movimento e prática da diversidade, refletindo sobre as relações de gênero e étno-sociais. Finalizando o capítulo, a Agroecologia surge como proposta de matriz pedagógica na Educação do Campo, com potencial de contribuir com o aprendizado ativo, significativo e contextualizado à realidade das escolas do campo. Esperamos que este material teórico-didático cumpra com o objetivo de promover o conhecimento sobre as discussões que embasam o projeto da Educação do Campo no país, favorecendo a reflexão sobre as práticas educativas nos diversos territórios camponeses e mesmo em outros territórios. 1 Capítulo I- Educação Infantil do Campo Desenho de Yasmin Martins – 5 anos Autoras: Emiliana Marques, Isis Antunes Fernadino, Maria Cortes 2 1. História e concepção de infância 1.1. Desenvolvimento do conceito de infância Hoje em dia, quando se fala em criança, é visualizada alguma criatura bastante distinta do adulto. Mas esta distinção nem sempre ocorreu. Philippe Ariès, em sua obra “A história social da criança e da família”, publicada em 1960, aponta que esta diferença entre adultos e crianças, surgiu somente a partir do século XIII, transformando o conceito tanto historicamente quanto socialmente. A partir daí, começa a surgir algumas ideias a respeito, pouco mais próximo da percepção contemporânea. Nesse sentido, a história da infância surge como possibilidade para muitas reflexões sobre a forma como, atualmente, se entende e se relaciona com a criança. Neste texto buscou-se aprofundar sobre a construção do conceito de infância a partir de duas perspectivas: a de Philippe Ariès, de que o sentimento da infância teria surgido apenas na Modernidade, e dos apontamentos teóricos de Moysés Kuhlmann Jr., Jacques Gélis, Daniele Alexandre-Bidón e Pierre Riché, que, em seus estudos, apontam a preocupação com as crianças em períodos anteriores, como na Idade Média, por exemplo. O surgimento do conceito de infância é preocupação de diversas áreas do conhecimento. Existem muitas pesquisas no campo da História, Sociologia, Filosofia, Psicologia, Biologia, Antropologia, Arqueologia, entre outras, sendo possível o entrelaçamento de diferentes pesquisadores com suas diferentes perspectivas. Até o século XVIII, não se fazia diferenciação entre crianças e adolescentes. A ideia de infância era marcada pela dependência econômica, ou seja, somente se saía da infância ao se sair da dependência. Independente da idade, o critério que se estabelecia era a situação econômica e não a biológica. Este fato sugere que a singularidade desta fase da vida não era observada. 3 De acordo com o pensamento da época, a criança ainda não tinha personalidade humana. Acredita-se que esta ideia seja ancorada no alto índice de mortalidade. Por este motivo grande parte das famílias sentia-se na obrigação de ter muitos filhos – para salvar alguns. O bem-estar dos filhos ainda não era prioridade dos pais. A maioria das crianças morria por falta de cuidados, asfixiada pelos próprios pais enquanto dormiam na mesma cama ou mesmo afogadas durante a cerimônia de batizado. "Perdi dois ou três filhos, não sem tristeza, mas sem desespero", reconhece Montaigne (MOTAIGNE, apud ARIÈS, 1981, p. 157). Outro fato curioso diz respeito aos naufrágios, em que as crianças não tinham prioridade de embarque e eram deixadas para trás. O vestuário também não diferenciava entre adulto e criança. As vestes diferenciavam apenas a condição social: servo, nobre ou religioso. O tamanho das roupas era a única diferenciação entre roupas de adultos e crianças. Sobre as brincadeiras, Ariès (1978) coloca que, crianças de quatro a cinco anos, praticavam o arco e já jogavam cartas. Aos seis anos, jogavam xadrez e participavam de jogos de adultos, como o jogo de raquetes e inúmeros jogos de salão. Também assistiam a lutas entre os bretões, ao espetáculo de cães lutando com ursos e participavam das festas tradicionais. Com sete anos, aprendiam a caçar, atirar e matar. Contudo, já no início do século XVII, as brincadeiras tidas como infantis começaram a ser estimuladas. Surgem certas cautelas em permitir a participação em jogos “imorais” com o discurso de queas crianças precisavam ser resguardadas e que sua moral precisava ser preservada Ariès (1978). Como resultado desta educação de cunho mais moralista, realizada pelos colégios, consolida-se o sentimento de infância. Havia o esforço para que as crianças não entrassem abruptamente no contexto dos adultos. A infância já era compreendida como período de fragilidades e tornava-se necessário investir no desenvolvimento moral e intelectual. Em seguida, há investimento para que as crianças participassem de classes de acordo com suas idades. 4 1.2. O conceito de infância no Brasil No Brasil a negação da infância também aconteceu. Os efeitos da escravidão sobre as crianças escravas e filhas de escravas foram desastrosos. Os documentos da época apontam que havia maior preocupação com cavalos que com escravos. Às crianças negras, era vedado o acesso à escola e à saúde. Em contraponto, as crianças brancas tinham suas negras amas de leite, que dedicavam seu tempo aos filhos dos senhores, em consequência, estreitavam os laços de afetividade com filhas e filhos brancos de suas senhoras. Era também neste convívio que as misturas de culturas iam se consolidando (FREYRE, 2001). A história mostra que o contexto da sociedade escravista estava muito longe de exercitar o sentimento de infância. A criança negra entrava precocemente no mundo do trabalho escravo e a partir daí, com sete anos, já era considerada “adulta”. Era dos 4 aos 11 anos que a criança era adaptada para desempenhar os afazeres dos escravos adultos. Seu valor estava diretamente ligado às suas habilidades de produção (FLORENTINO & GÓES, 1991). Todavia, em 1875 - pouco antes da Abolição – o pesquisador alemão Friedrich Froebel, cria os jardins-de-infância e defende o processo educativo sem obrigações porque, segundo ele, para que aconteça o conhecimento é necessário levar em conta os interesses da criança, considerando cada uma e, se faz, por meio da prática. Entretanto, estes jardins de infância faziam parte do sistema privado de educação (ARCE, 2002). No século 20, em 1930, o setor público se responsabiliza pela educação das crianças, Educação Infantil, visando atender às crescentes pressões pelos direitos trabalhistas em consequência das lutas sindicais da nova classe trabalhadora do Brasil. Mas principalmente para atender à nova ordem educacional: pública, gratuita e para todos. Inicia-se o processo de valorização, defesa e proteção das crianças. Surgem as primeiras formulações dos direitos básicos da infância, com o 5 reconhecimento de que criança é um ser humano especial, com especificidades próprias e, portanto, dignas também de direitos próprios. Todo este movimento culminou na Constituição de 1988, que reconheceu que a Educação Infantil é direito da criança e não mais de mães ou pais que precisam trabalhar fora de casa. Além da Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e posteriormente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, legitimam a universalização do acesso às escolas voltadas para a infância. 1.3. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o desenvolvimento de diretrizes para a Educação Infantil Pode-se afirmar que o grande avanço em prol dos direitos da infância e da adolescência acontece em 1990, com a Lei Federal n. 8.069, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em consonância com o artigo 227 da Constituição Federal que afirma: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." (BRASIL, 2010. Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65). Desde sua criação, o ECA, no Brasil, é lei à frente do seu tempo e marco referencial legal, em termos de legislação destinada à proteção da infância e da adolescência, que influencia sobremaneira as práticas educativas e as políticas públicas destinadas à educação (LINHARES, 2010). Se por um lado o ECA é considerado como lei “utópica” ou mesmo “inaplicável”, por outro, há também o entendimento da sua importância na modificação das mentalidades, numa sociedade habituada a se omitir diante das injustiças das quais são vítimas crianças e adolescentes. Nesse sentido, o ECA “ratifica a tendência do ordenamento jurídico brasileiro de se criar microssistemas, a fim de amparar as chamadas “faixas etárias vulneráveis” que, 6 sem dúvida alguma, são merecedoras de tutela maior da sociedade e do Estado” (LINHARES, 2010, p. 10). Em 1996, é promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação e a partir daí, a Educação Infantil em creches e pré-escolas passou a ser legal, dever do estado e direito da criança (BRASIL, 1996, art. 30, inciso l). Mudou-se o caráter assistencialista das creches e a Educação Infantil passou a ser importante etapa da Educação Básica brasileira. A mudança significativa do processo até então vigente, é que no sistema de creche são atendidas crianças de 0 a 3 anos e na pré-escola, crianças de 4 a 6 anos, dividindo-as em faixas etárias (BRASIL, 1996, art. 30, inciso Il). No entanto, outra mudança significativa aconteceu às crianças de 6 anos com a Lei nº 11.114, de 16 de maio de 2005 – que alterou a LDB e tornou obrigatória a matrícula das crianças de seis anos de idade no Ensino Fundamental. Deste modo, a Educação Infantil passou a abarcar as crianças de 0 a 5 anos de idade (BRASIL, 2005, art. 32). A Emenda Constitucional n. 59, de 2009, introduziu a obrigatoriedade da educação para crianças de 4 e 5 anos, cuja determinação deverá ser implementada até 2016, alterando o inciso I, do art.208 da Constituição Federal (BRASIL, 2009, artigos 1 e 6). Deste modo, grande desafio se apresenta as mães e pais, comunidade em geral e gestores municipais. Muito além do cumprimento do prazo estipulado, o desafio se coloca no sentido de conquistar a escola desejada: Que Educação Infantil queremos? Como implementá-la? Fica evidente que o debate do conceito de infância é construção social. Especialmente porque a sociedade também sofre transformações. As crianças começam a ter voz e vez e suas necessidades estão sendo priorizadas. Ainda não se tem na prática, todos os direitos garantidos, mas caminha-se para que este mundo seja um lugar justo e de valores humanitários, com possibilidades reais para que as crianças se desenvolvam respeitando seu tempo. 7 2. Bases legais e o funcionamento da Educação Infantil do Campo A Educação Infantil do Campo situa-se na interface da Educação Infantil com a Educação do Campo. Suas bases legais e diretrizes curriculares assumem tal intercessão como ponto de referência para aprofundamento teórico-prático e construção de políticas públicas específicas. Deste modo, para compreender as especificidades da Educação Infantil do Campo, torna-se necessário conhecer os fundamentos da Educação do Campo. 2.1. Origem e pressupostos da Educação do Campo 2.1.1. Origem da Educação do Campo O Movimento da Educação do Campo se insere de modo específico nas lutas pelo direito à educação pública, gratuita e de qualidade no Brasil, pautando as demandas próprias dos povos do campo, dando visibilidade e fortalecendo seus modos de produção de vida, em processos de resistência e emancipação. Associada às organizações e aos movimentos sociais do campo, a Educação do Campo articula-se às lutas pela terra, reivindicando o direito a educação pensada a partir do contexto do campo, com a participação dos seus sujeitos, vinculada a sua forma de vida, sua organização do trabalho, relação com o tempo, valores,saberes, memórias, enfim, considerando sua cultura específica e suas necessidades humanas e sociais (MARQUES, 2012). Segundo Munarim (2011): O principal berço de origem é a luta dos trabalhadores rurais sem terra que, desde o início da década de 1980 reivindicam escola pública em cada novo acampamento ou assentamento da Reforma Agrária. A partir da segunda metade da década de 1990, notadamente o Movimento Sem Terra (MST) e, pouco mais tarde, as organizações sindicais vinculadas à Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (CONTAG), bem como outras organizações e movimentos sociais, fazem da educação escolar uma questão destacada em suas pautas. Com a entrada em cena de setores de universidades públicas, dinamizam-se ainda mais os debates acadêmicos, pesquisas e publicações, embates jurídicos e públicos, gerando-se, então, o “Movimento Nacional de Educação do Campo” (MUNARIM, 2011, p.10). 8 A 1ª Conferência Nacional por uma Educação do Campo ocorreu em julho de 1998, promovida à nível nacional pelo MST, pela CNBB, UnB, UNESCO, e pelo UNICEF. Foi idealizada um ano antes, durante o I Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (I ENERA). Cumpriu o papel de rearticular as lutas educacionais dos povos do campo, constituindo marco na consolidação da concepção da Educação do Campo. Fonte: elaboração das autoras. Em contraposição à Educação Rural O termo Educação do Campo contrapõe-se semântica e ideologicamente a Educação Rural, pautando a superação dos seus pressupostos teóricos e políticos. De acordo com Munarim (2011): Supostamente contrária à essência da Educação Rural, a nova concepção reivindica o sentido de educação universal e, ao mesmo tempo, voltada à construção de autonomia e respeito às identidades dos povos do campo (MUNARIM, 2011, p.10). As estatísticas oficiais confirmam a necessidade de se implementar e efetivar educação escolar que atenda, de fato, aos moradores do campo, garantindo seus direitos à educação. Em comparação com o meio urbano, as 9 estatísticas do campo revelam os mais baixos índices no que tange o acesso à escola, o nivelamento série-idade, o contingente de pessoas alfabetizadas e que concluíram o ensino fundamental e médio, a qualificação dos seus profissionais. O cenário da educação no campo revela ainda a dificuldade quanto ao deslocamento para as escolas e o referencial urbano nos currículos e modo de funcionamento da grande maioria dos estabelecimentos de ensino (MOLINA e FREITAS, 2011; MUNARIM, 2011). O sentido do pertencimento Embora o sentido da expressão no campo possa abarcar também o lugar de concretização desta educação, garantido o direito das pessoas ao seu acesso preferencialmente no local onde moram, sem necessidade de longos deslocamentos para onde se agrega maior número de pessoas, normalmente, os centros urbanos dos municípios, o termo do campo compreende este significado, agregando o valor de pertencimento. Como afirma Frigotto (2011): As preposições para, no e do campo, aparentemente inocentes, na realidade expressam, na história da educação dos homens e mulheres do campo, o vetor entre processos educativos alienadores e mantenedores da ordem do capital, e processos educativos que pautam o horizonte da emancipação humana e das formas sociais que cindem o gênero humano. Educação para o campo e no campo, expressam as concepções e políticas do Estado, ao longo da história, que se alinham à perspectiva da educação como extensão ou na perspectiva do ruralismo pedagógico. Assim, educação escolar para o campo consiste em estender modelos, conteúdos e métodos pedagógicos planejados de forma centralizada e autoritária, ignorando a especificidade e particularidade dos processos sociais produtivos, simbólicos e culturais da vida do campo. Por outro lado, educação no campo mantém o sentido extensionista e cresce-lhe a dimensão do localismo e do particularismo. Trata-se da visão de que as crianças, jovens e adultos do campo estão destinados a uma educação menor, destinada às operações simples do trabalho manual e também com a perspectiva de que permaneceriam para sempre no campo (FRIGOTTO, 2011, p. 35). 10 Os povos e as escolas do campo No que tange à política de educação do campo, a legislação brasileira define como Populações do Campo: os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural (BRASIL, Decreto nº 7.352, art. 1º parágrafo 1º, inciso I, 2010). As Escolas do Campo, por sua vez, são aquelas situadas em área rural, conforme definida pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, ou aquelas situadas em área urbana, desde que atenda predominantemente a populações do campo (BRASIL, Decreto nº 7.352, art. 1º parágrafo 1º, inciso II, 2010). 2.1.2. Por um novo projeto de Educação, de Campo e de Sociedade O Movimento Nacional pela Educação Básica do Campo denuncia o descaso com a educação pública no país que se vincula ao projeto dominante de sociedade, articulado com os atuais modos de produção capitalista, que promovem a crescente e indiscriminada industrialização dos processos de produção no campo, favorecendo os latifúndios e a acentuação das desigualdades sociais, exacerba a violência e criminaliza os movimentos sociais populares. Ao denunciar esse estado de coisas, o Movimento da Educação do Campo coaduna com o projeto educacional e societário de sentido contra-hegemônico para o Brasil (MARQUES, 2012). 11 Reforma Agrária, Agroecologia e Sustentabilidade A Educação do Campo surge atrelada à luta por terra, local de trabalho e sobrevivência dos diferentes povos do campo. Sua consolidação se associa a denúncia dos latifúndios improdutivos do país, em favor da redistribuição das terras para as pessoas que nela vivem e produzem. Coaduna com a proposta agroecológica de produção e desenvolvimento do campo, com métodos naturais de controle de pragas e manejo do solo, com o mínimo de impacto ambiental. Visa a soberania alimentar, com produção de alimentos diversificados e sustentabilidade local. O binômio campo-cidade Na concepção da Educação do Campo, o binômio campo-cidade adquire sentido de complementaridade, reconhecendo as diferenças entre esses dois meios de modo horizontal, com interdependência, uma vez que o urbano não vive sem o campo e vice-versa. A Educação do Campo contrapõe-se tanto ao ruralismo como ao urbanocentrismo, pautando o reconhecimento da diversidade, não em termos de menor ou maior valor, mas promovendo a visibilidade e fortalecendo a luta pelos direitos dos sujeitos do campo (MARQUES, 2012). Combatendo a negatividade com positividade e superação Caldart (2008) aponta as características de negatividade, positividade e superação concernente à Educação do Campo. Negatividade no sentido dos valores associados aos seus sujeitos, concebidos como atrasados, inferiores, de segunda categoria, com direito à educação restrita ao acesso escolar, tendo seus conhecimentos desprezados como ignorância e cujo destino pode ser a miséria. A esses valores sobrepõem-se denúncia e resistência; denúncia que combina apontamentos e práticas concretas do que fazer; resistência que não é espera 12 passiva, mas positividade, com propostas para as políticas públicas, a educação, as organizações comunitárias, as escolas, a produção. A Educação do Campo enquanto superação anuncia novo projeto para a sociedade, educação e escola, com nova concepção de campo e das relações deste com a cidade,na perspectiva da emancipação humana. 2.2. Educação Infantil do Campo 2.2.1. As Infâncias do e no campo A criança que mora no campo, é como todas as crianças. Gosta de brincar, de fantasiar, de interagir e explorar os espaços em torno de si. É observando e participando desse processo de interação que a criança campesina vai aprendendo sobre o mundo em que vive. E isso se dá por meio da busca por respostas às suas indagações e questões sobre a natureza e sobre a sociedade. É a vivência de experiências e a interação neste contexto onde permeiam conceitos, valores, idéias, objetos e representações variadas sobre os temas mais diversos, que permite à criança, na sua vida cotidiana, construir o conhecimento a respeito do mundo que as cerca. Reck (2007) descreve: O campo é concebido como espaço rico e diverso, ao mesmo tempo produto e produtor de cultura, é essa capacidade produtora de cultura que o constitui em espaço de criação do novo e do criativo e não, quando reduzido meramente ao espaço de produção econômica, como o lugar do atraso, da não cultura. O campo é acima de tudo espaço de cultura (RECK, 2007, p.23). A infância campesina vive o processo intenso de construção do conhecimento, quer seja no contexto da escola, ou colaborando com a família na lavoura - plantando e colhendo. Ajudando nas tarefas da casa, na diversão do pescar, do correr, do subir em árvores, ou mesmo cuidando e brincando com os animais, e especialmente no convívio com amigos/amigas entre outras atividades. Assim, fica evidente que o aprendizado acontece em todos os espaços. 13 Neste processo aprendem também a conviver com responsabilidades. Em consequência, os valores são pouco a pouco construídos e, a partir destes, a criança campesina influencia na história da sua família e de sua comunidade, tanto na perspectiva cultural, quanto social. A vida cotidiana das crianças campesinas e seus espaços de construção do conhecimento estão bastante próximos do mundo dos adultos e esta convivência, reflete diretamente no amadurecimento precoce das crianças. Contudo, mesmo com forte influência de seus pais, recriam as experiências reconstruindo suas percepções, dando outros significados, de acordo com suas necessidades. A identidade da vida das pessoas que moram no campo está intimamente ligada com a lida diária. Neste cotidiano existe o sentimento de pertencimento com os recursos naturais. A relação que estabelecem com os recursos naturais não configura como meros objetos de exploração e consumo. São parte do todo. Há relação de interdependência, cumplicidade, afetividade. E, sobretudo, com respeito à vida e compromisso com sua continuidade. É importante destacar que é neste contexto de relações com o meio, com a natureza, com o fazer da roça, que determina a formação da infância camponesa. A criança do campo, desde pequenina, constrói sua identidade a partir do contato com a terra, com as plantas, com os animais, com as pessoas. Exatamente por este motivo, a educação que deve acontecer no campo não pode ser pensada apenas como atividade intelectual. É processo global e complexo, no qual conhecer e intervir no real não se encontram dissociados. Aprende-se participando, vivenciando sentimentos, tomando atitudes diante dos fatos, escolhendo procedimentos para atingir determinados objetivos. Educamos não só pelas respostas dadas, mas principalmente pelas experiências proporcionadas, pelos problemas criados, pela ação desencadeada. Experiências, que são passadas de geração para geração, sem nenhum esforço ou preocupação com metodologias, mas, muitas vezes no diálogo silencioso da labuta. Todavia, é preciso entender que paralelo às experiências passadas de pais para filhos/as, destaca-se também a influência da cultura midiática, na construção 14 da vida das famílias camponesas, contrapondo o ser e o fazer tradicional, especialmente com forte influência da televisão. Há pouco mais de 30 anos, a vida no campo possuía outra autonomia, onde, além de produzir e reproduzir valores, guardavam suas sementes crioulas, sua cultura e seus valores. Certamente a infância também vivencia estas transformações. Esta é uma das questões que fomenta a luta dos povos campesinos por educação voltada à cultura do campo, onde muitos resistem à invasão do agronegócio e das sementes transgênicas com a cultura da troca das sementes crioulas, por exemplo. 2.2.2. A Educação Infantil do Campo A Educação Infantil do Campo, como o próprio nome diz, é do campo, construída a partir das pessoas que são do campo, nele residem e produzem suas formas de vida, seus alimentos, sustento, suas lutas, histórias, memórias, identidades e subjetividades. Uma educação que, além de considerar as especificidades das diferentes infâncias das crianças do campo, considera, também, cuidados especiais destinados a esse momento da vida. Para efetivar tais preceitos, a Educação Infantil do Campo reafirma os direitos dos povos do campo, o direito a terra e a vida digna em seus territórios. Assume, também, os princípios da pluralidade cultural, reconhecendo valores nos diferentes modos de ser no mundo, valorizando a diversidade étnico-racial, a diversidade religiosa, a diversidade de gênero, combatendo diferentes preconceitos sociais e formas de discriminação humana. Neste sentido, a Resolução nº 6 (BRASIL, 2010, art. 7º, inciso V) afirma: Na observância dessas Diretrizes, a proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve garantir que elas cumpram plenamente sua função sociopolítica e pedagógica: [...] V- construindo novas formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a ludicidade, a democracia, a sustentabilidade do planeta e com o rompimento de relações de dominação etária, sócio-econômica, étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa (BRASIL, 2010, Resolução nº 6). 15 É dever de qualquer estabelecimento de Educação Infantil zelar pelos cuidados com as crianças, protegendo-as de toda e qualquer forma de maus tratos, sejam físicos ou coação moral. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009, art. 8º, Parágrafo 1º, inciso X) garantem: “a dignidade da criança como pessoa humana e a proteção contra qualquer forma de violência – física ou simbólica – e negligência no interior da instituição ou praticadas pela família, prevendo os encaminhamentos de violações para instancias competentes” (BRASIL, 2009, Resolução nº 5). A educação nas instituições oficiais de ensino deve agregar valor à educação familiar. Nas especificidades dos diferentes campos brasileiros, cujos quintais das casas ofertam riqueza de possibilidades de brincadeiras, investigações e conhecimentos por parte das crianças sobre o mundo, vale o questionamento: Como uma creche ou pré-escola potencializa as experiências das crianças sobre o seu mundo? Como propiciar seu crescimento e socialização aguçando a curiosidade e vontade de aprender? A Resolução nº 5 (BRASIL, 2009, art. 8º, parágrafo 2º) garante a autonomia dos povos indígenas na escolha dos modos de educação de suas crianças de 0 a 5 anos de idade, estabelecendo, no entanto, propostas pedagógicas para os povos que optarem pela Educação Infantil: I - proporcionar relação viva com os conhecimentos, crenças, valores, concepções de mundo e as memórias de seu povo; II - reafirmar a identidade étnica e a língua materna como elementos de constituição das crianças; III - dar continuidade à educação tradicional oferecida na família e articular-se às práticas sócio-culturais de educação e cuidados coletivos da comunidade; IV - adequar calendário, agrupamentos etários e organização de tempos, atividades e ambientes de modo a atender as demandas de cada povo indígena (BRASIL, 2009, Resolução nº 5). A mesma Resolução nº 5 (BRASIL,2009, art. 8º, parágrafo 2º) estabelece que as propostas pedagógicas da Educação Infantil das crianças filhas de agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, 16 assentados e acampados da reforma agrária, quilombolas, caiçaras, povos da floresta, deve: I - reconhecer os modos próprios de vida no campo como fundamentais para a constituição da identidade das crianças moradoras em territórios rurais; II - ter vinculação inerente à realidade dessas populações, suas culturas, tradições e identidades, assim como a práticas ambientalmente sustentáveis; III - flexibilizar, se necessário, calendário, rotinas e atividades respeitando as diferenças quanto à atividade econômica dessas populações; IV - valorizar e evidenciar os saberes e o papel dessas populações na produção de conhecimentos sobre o mundo e sobre o ambiente natural; V - prever a oferta de brinquedos e equipamentos que respeitem as características ambientais e socioculturais da comunidade (BRASIL, 2009, Resolução nº 5). Cabe ainda ressaltar que, conforme Resolução nº 3 (BRASIL, 2008, art. 3º) é garantida a oferta da Educação Infantil nas próprias comunidades rurais, evitando o deslocamento das crianças para escolas de nucleação e fica proibido o agrupamento, em turmas multisseriadas, de crianças da educação infantil com crianças do ensino fundamental (BRASIL, 2008, Resolução nº 3). 2.2.3. Dispositivos legais que envolvem a Educação Infantil do Campo Pareceres normativos e resoluções da Educação Infantil: Resolução CEB nº 1, de 7 de abril de 1999 Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Parecer CNE/CEB 4, de 16 de fevereiro de 2000 Institui Diretrizes Operacionais para a Educação Infantil. Resolução CNE/CEB nº 5, de 17 de dezembro de 2009 Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Resolução CNE/CEB nº 6, de 20 de outubro de 2010 Define Diretrizes Operacionais para a matrícula no Ensino Fundamental e na http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB0199.pdf http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PCB04_2000.pdf http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=2298&Itemid= http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=6886&Itemid= 17 Educação Infantil. Resolução CNE/CEB nº 1, de 10 de março de 2011 Fixa normas de funcionamento das unidades de Educação Infantil ligadas à Administração Pública Federal direta, suas autarquias e fundações. Parecer CNE/CEB nº 17/2012, aprovado em 6 de junho de 2012 Orientações sobre a organização e o funcionamento da Educação Infantil, inclusive sobre a formação docente, em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Pareceres normativos e resoluções da Educação do Campo: 1. Parecer CNE/CEB nº 36/2001, aprovado em 4 de dezembro de 2001 Estabelece diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. 2. Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002 Institui Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. 3. Resolução CNE/CEB nº 2, de 28 de abril de 2008 Estabelece diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo. Pareceres e orientações da Educação Infantil do Campo: Orientações curriculares para a Educação Infantil do Campo. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=7644&Itemid= http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=11250&Itemid= http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/EducCampo01.pdf http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=13800&Itemid= http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/2008/rceb002_08.pdf 18 3. A Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica A Educação Infantil corresponde à educação oferecida a criança do nascimento até os 5 anos de idade e é considerada atualmente como indispensável. A expressão Educação Infantil, quando referida no sistema educacional, tem conceituação própria, não abrangendo a educação não formal como aquela sob responsabilidade familiar e em espaços domiciliares. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010) é adotada a seguinte definição: Educação Infantil: Primeira etapa da educação básica, oferecida em creches e pré-escolas, às quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social (BRASIL, 2010, p.12). É importante considerar que é crescente a expansão da Educação Infantil no Brasil acompanhando os processos de urbanização. Com as mudanças ocorridas na estrutura familiar devido a participação da mulher no mercado de trabalho, junto aos movimentos governamentais e da sociedade civil, torna-se lei, ou seja, dever do Estado, garantir a educação escolar pública em creches e pré- escolas para crianças de zero a cinco anos. Todas estas mudanças trazem a necessidade de aprofundamento sobre as concepções de criança e infância que irão orientar as creches e pré-escolas, afinal o que se pensa sobre a infância e sobre as crianças tem implicações diretas no mundo construído para elas. 3.1. A criança e os Referenciais Curriculares Nacionais Todas as crianças têm características singulares e que determinam formas de ser e se expressar típicas do período denominado infância. Por exemplo, é 19 tendência natural que a criança tenha o “brincar espontâneo”. Ela brinca, fantasia, imagina, nunca para quieta. Ela quer mover-se no espaço de maneira ampla, e desta forma estrutura seu corpo físico, constrói sua identidade social e coletiva, suas relações, experiências e cria bases para aprendizados futuros. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil apresentam concepção de criança e de seu processo de desenvolvimento. A criança, tida como centro do planejamento curricular, é compreendida como sujeito histórico e de direitos, que, por meio das interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, assim como constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. Esse processo de construção de sentido para o mundo físico e social ocorre através de diversos comportamentos. Entre eles destacam- se: brincar, imaginar, fantasiar, desejar, aprender, observar, experimentar, narrar, questionar. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010) é adotada a definição: Criança: Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, 2010, p. 12). Mas pensar em criança é também pensar em diferentes crianças, em infâncias, com modos de ser e se expressar próprios. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais para Educação Infantil - Volume I (BRASIL, 1996, p. 13), ressalta-se: A criança é um sujeito social e histórico que está inserido em uma sociedade na qual partilha de uma determinada cultura. É profundamente marcada pelo meio social em que se desenvolve, mas também contribui com ele. A criança, assim, não é uma abstração, mas um ser produtor e produto da história e da cultura (FARIA, 1999 citado por BRASIL, 1996, p.13). 20 De acordo com os Parâmetros Curriculares para Educação Infantil- Volume I, (BRASIL, 1996): Em síntese, para propor parâmetros de qualidade para a Educação Infantil, é imprescindível levar em conta que as crianças desde que nascem são: cidadãos de direitos; indivíduos únicos, singulares; seres sociais e históricos; seres competentes, produtores de cultura; indivíduos humanos, parte da natureza animal, vegetal e mineral (BRASIL, 1996, p.18). A criança é fruto de processo histórico, daí a importância da aquisição e construção de conhecimentos de modo significativo, ou seja, contextualizado à realidade social e cultural. 3.1.1. A criança de 0 a 3 anos É preciso considerar que até aproximadamente os três anos de idade, o cérebro, centro nervoso, de criança está em pleno desenvolvimento, cheio de vitalidade. Em nenhum outro momento da vida o cérebro está tão repleto de impulsos nervosos, de forma que, segundo Lanz (2005) esta fase é considerada a mais importante na vida do ser humano. As experiências nesta fase, realizadas através das brincadeiras, da imaginação, da fantasia e de vivências corporais, ficarão gravadas no cérebro formando a base para todo o pensar na vida escolar e na vida adulta. A criança que pôde desenvolver corretamente sua habilidade corpórea natural tem boa pré- disposição para o posterior pensar vivo e ativo. A criança nesta faixa etária também está em pleno desenvolvimento do seu organismo sensório. Assim, acolhe com grande confiança tudo o que o ambiente ao seu redor lhe oferece. Naturalmente ela quer tocar, pegar, sentir diferentes texturas. Por isso educar nos primeiros anos de vida é permitir à criança exercitar seus sentidos. Pelo fato de todos os órgãos de percepção sensória estar em formação, a criança responde com a repetição dos estímulos vindos do ambiente exterior. É 21 por meio da imitação deste ambiente que a criança aprende as primeiras palavras, a andar, a repetir o que é adequado ou impróprio no comportamento humano. Não são os ensinamentos de ordem moral ou conceitos intelectuais que ensinam as crianças, mas os gestos e ações que os adultos fazem a seu redor. A criança nesta fase aprende através da imitação e principalmente através da brincadeira livre e espontânea. Segundo o Referencial Curricular para Educação Infantil - Volume II (BRASIL, 1998): A instituição deve criar um ambiente de acolhimento que dê segurança e confiança às crianças, garantindo oportunidades para que sejam capazes de: experimentar e utilizar os recursos de que dispõem para a satisfação de suas necessidades essenciais, expressando seus desejos, sentimentos, vontades e desagrados, e agindo com progressiva autonomia; familiarizar-se com a imagem do próprio corpo, conhecendo progressivamente seus limites, sua unidade e as sensações que ele produz; interessar-se progressivamente pelo cuidado com o próprio corpo, executando ações simples relacionadas à saúde e higiene; brincar; relacionar-se progressivamente com mais crianças, com seus professores e com demais profissionais da instituição, demonstrando suas necessidades e interesses (BRASIL, 1998, p.27). 3.1.2. - A criança de 4 a 5 anos Assim como para a criança de 0 a 3 anos, a principal atividade nesta nova fase é brincar livremente. É no âmbito da brincadeira e da fantasia que ela se desenvolve neurologicamente, preparando assim a prontidão necessária para a aprendizagem posterior, no Ensino Fundamental. O intelecto e a memorização devem desenvolver-se livremente de maneira lúdica, através das brincadeiras, jogos, imaginação, histórias e contos infantis. Neste sentido o currículo e as rotinas das creches e pré-escolas devem ser elaborados cuidadosamente, visando o desenvolvimento integral das crianças e não apenas o aspecto cognitivo. Segundo o Referencial Curricular para Educação Infantil - Volume II (BRASIL, 1998), para as crianças de quatro a cinco anos: 22 Para esta fase, os objetivos estabelecidos para a faixa etária de zero a três anos deverão ser aprofundados e ampliados, garantindo-se, ainda, oportunidades para que as crianças sejam capazes de: ter imagem positiva de si, ampliando sua autoconfiança, identificando cada vez mais suas limitações e possibilidades, e agindo de acordo com elas; identificar e enfrentar situações de conflitos, utilizando seus recursos pessoais, respeitando as outras crianças e adultos e exigindo reciprocidade; valorizar ações de cooperação e solidariedade, desenvolvendo atitudes de ajuda e colaboração e compartilhando suas vivências; brincar; adotar hábitos de autocuidado, valorizando as atitudes relacionadas com a higiene, alimentação, conforto, segurança, proteção do corpo e cuidados com a aparência; identificar e compreender a sua pertinência aos diversos grupos dos quais participam, respeitando suas regras básicas de convívio social e a diversidade que os compõe (BRASIL, 1998, p.27 e 28). 4. Processos de desenvolvimento e aprendizagem Toda pessoa, por mais individual e original que seja, segue, devido a sua natureza, certas leis do desabrochar da personalidade, também chamadas de fases ou estágios de desenvolvimento. Para quem conduz o processo educativo, o desafio é perceber o momento oportuno de apresentar as ações pedagógicas adequadas para cada etapa do desenvolvimento. Para isso, é preciso perceber as perguntas que trazem as crianças, o interesse específico por aprender determinados conteúdos, ambos intimamente vinculados com a transformação corporal, afetiva e cognitiva expressas em cada fase de desenvolvimento. 4.1. Desenvolvimento cognitivo, motor e emocional Segundo Steiner (2006), a pessoa integral é constituída de três veículos de expressão: O CORPO, que confere a função de agir - funções sensório-motoras; AS EMOÇÕES que confere a função de sentir - experiências emocionais, sociais e afetivas; A MENTE que confere a função de pensar - funções cognitivas. 23 Pensando na plena realização do ser humano, todos esses aspectos precisam ser educados com a mesma atenção e por isso, na escola, é preciso pensar e desenvolver atividades para cada um deles. Na escola Waldorf, criada por Rudolf Steiner, o corpo é trabalhado principalmente por meio da brincadeira livre, que possibilita experiências sensoriais e trabalha de forma ampla a motricidade. Subir em árvores, pular corda, correr, balançar, tocar em materiais com diferentes pesos e texturas, fazer jardinagem, ginástica, caminhadas, dança, culinária, modelagem, pintura, desenho livre e trabalhos manuais são atividades que, além de colaborar na educação do corpo, fortalecem o caráter da criança, pois desenvolve a sua força de vontade, criando nela qualidades como a disposição para enfrentar dificuldades e resolver conflitos. As emoções podem ser trabalhadas em todas as oportunidades de interação social, como nos jogos e brincadeiras. Através da música, canto, desenho, pintura, modelagem, dramatizações, rodas rítmicas, cirandas, entre outras formas de expressão artística, são dadas muitas oportunidades para o refinamento da sensibilidade e a harmonização de conflitos na área afetiva e social. A mente é educada por meio do cultivo do pensar, que inicia na pré- escola com o exercício da fantasia, da imaginação livre, do conhecimento dos contos e histórias, do uso e apropriação de formas de representação e comunicação envolvendo resolução de problemas, até gradativamente atingir o desenvolvimento do pensamento mais abstrato no Ensino Fundamental. Com a educação integrada de todos os aspectos, a criança aprende a não dissociar seus pensamentos, sentimentos e ações, podendo tornar-se um adulto equilibrado, um ser humano completo. O importante é que tudo possa ser vivido no tempo certo, sem pressa, no tempo da criança, para que ela experimente com alegria todas as possibilidades que seu processo de amadurecimento lheproporciona. 24 4.2. A aprendizagem na infância Cada criança tem características individuais e socioculturais diversas e isto determina diferentes necessidades e formas de aprendizagem. De modo geral, existem muitas teorias na Educação, que delineiam práticas pedagógicas que envolvem a aprendizagem e que podem orientar professores no planejamento e prática diária. Vale ressaltar o material produzido para orientar as creches brasileiras, os referenciais curriculares da Educação Infantil, mas assim como outras teorias educacionais, apresentam-se, como o nome diz, como referencial e não como receita pronta. Alguns aspectos gerais a serem considerados no processo de aprendizagem das crianças: Interação e socialização Embora dependente do adulto para sobreviver, a criança é capaz de interagir num meio natural, social e cultural desde que nasce. Ela busca interagir constantemente com adultos e outras crianças e desta forma desenvolve processos de socialização, comunicação, resolução de conflitos, compartilhamento de ideias e sentimentos. Desta forma amplia sua capacidade de aprendizagem. É importante considerar que a criança até os três anos de idade, não tem condições plenas de se socializar. Não emprestar os brinquedos, ter ciúmes dos pais, defender seu espaço e até mesmo bater e morder são atitudes normais nesta idade, consequentes da incapacidade de socialização e da experiência primitiva de alguns sentidos corporais. A partir dos três anos, com o desenvolvimento gradual dos sentidos corporais e das experiências em grupo proporcionadas, a criança vai deixando de ser egocêntrica e vai despertando para o convívio social. Vigotski (1991) descreve sobre a interação social da criança como processo que se dá a partir e por meio de indivíduos com modos histórica e culturalmente 25 determinados de agir, pensar e sentir, sendo inviável dissociar as dimensões cognitivas e afetivas dessas interações e os planos, psíquico e fisiológico, do desenvolvimento decorrente. Nessa perspectiva, a interação social torna-se o espaço de constituição e desenvolvimento da consciência do ser humano desde que nasce. Individualidade Cada criança é única, com características físicas, emocionais e cognitivas singulares. Valorizar a individualidade na ação educativa é enriquecer as capacidades de cada criança, estimulando o que ela tem de melhor. Os professores devem criar situações educativas para que, dentro dos limites impostos pela vivência em coletividade, cada criança possa ter respeitados os seus hábitos, ritmos e preferências individuais. Vínculo e afetividade A criança nasce com capacidades sociais e afetivas. Busca interagir, ampliar suas relações e formas de comunicação, de modo que sente cada vez mais confiança e segurança para conquistar seu lugar no mundo e se desenvolver. A criança pequena aprende por imitação, reproduzindo os gestos dos adultos ou as manifestações do ambiente ao seu redor. Para aprender a criança precisa criar vínculo com o ambiente, os conteúdos e principalmente com o educador. É fundamental que o educador, possa estabelecer relação de afeto, amorosidade, confiança, respeito mútuo e cooperação, que será a base do trabalho a ser desenvolvido. 26 Imitação Por meio do contato físico com outras pessoas, da observação daqueles com quem convive e de situações de seu círculo afetivo, a criança aprende sobre o mundo, sobre si mesma e constrói sua identidade. A criança imita tudo ao seu redor: brincar de casinha, de médico, vestir roupas de adultos, cuidar de bonecas, nada mais é que atividade imitativa da vida dos adultos. Não se trata de repetição mecânica, como diz o Referencial Curricular para Educação Infantil- Volume II (BRASIL, 1998): A imitação é resultado da capacidade da criança observar e aprender com os outros e de seu desejo de se identificar com eles, ser aceita e de diferenciar-se. É entendida aqui como reconstrução interna e não meramente uma cópia ou repetição mecânica. As crianças tendem a observar, de início, as ações mais simples e mais próximas à sua compreensão, especialmente aquelas apresentadas por gestos ou cenas atrativas ou por pessoas de seu círculo afetivo. A observação é uma das capacidades humanas que auxiliam as crianças a construírem um processo de diferenciação dos outros e consequentemente sua identidade (BRASIL, 1998, p.21). Linguagem corporal A principal linguagem da criança é a linguagem do corpo. A criança ainda não desenvolveu seu cérebro o suficiente para criar esquemas de pensamento abstrato capazes de nortear suas ações. É através do próprio corpo que a criança constrói seu repertório de conhecimentos e se comunica com o mundo a seu redor. Atualmente, muitas correntes educacionais e teorias consideram a importância da maturação do corpo e do manuseio de materiais concretos para a aquisição das capacidades cognitivas, afetivas e orgânicas da criança. Vale ressaltar, o conceito de Psicomotricidade (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOMOTRICIDADE, 2014). Psicomotricidade é a ciência que tem como objeto de estudo o homem através do seu corpo em movimento e em relação ao seu mundo interno e externo. Está relacionada ao processo de maturação, onde o 27 corpo é a origem das aquisições cognitivas, afetivas e orgânicas. É sustentada por três conhecimentos básicos: o movimento, o intelecto e o afeto. Psicomotricidade, portanto, é termo empregado na concepção de movimento organizado e integrado, em função das experiências vividas pelo sujeito cuja ação é resultante de sua individualidade, sua linguagem e sua socialização (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOMOTRICIDADE, 2014). Este conhecimento é válido, sobretudo na elaboração dos conteúdos da Educação Infantil. Por exemplo, as noções matemáticas são construídas pelas crianças a partir das experiências proporcionadas pelas interações do seu próprio corpo com o meio. Fantasia Ao observar alguma criança brincando percebe-se como ela vive num mundo próprio, imersa em ambiente rico em fantasia. Cabe ao professor organizar o ambiente de forma que a fantasia e a imaginação possam reinar de maneira ilimitada. Não é necessário ambiente requintado, tudo pode ser improvisado de forma simples, por exemplo: Cenários com panos ou fraudas de diferentes tamanhos e cores em que a criança possa se enrolar e vivenciar diferentes personagens; Caixas e biombos possam ser utilizados para criar casinhas de bonecas; Pedras, pauzinhos e materiais diversos da natureza para compor um ambiente, criar uma fazenda ou criadouro de animais; Quintal com árvores, onde as crianças possam subir e brincar explorando seu imaginário; Brinquedos feitos de madeira, bambu e materiais locais. http://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento http://pt.wikipedia.org/wiki/Intelecto http://pt.wikipedia.org/wiki/Afeto http://pt.wikipedia.org/wiki/Linguagem 28 Brincar Pensar em criança é principalmente pensar no brincar. Através do brincar espontâneo, a criança desenvolve sua imaginação, expressa desejos e sentimentos, experimenta papéis sociais e desenvolve capacidades importantes como a capacidade de resolver problemas e conflitos, construir regras e atitudes de solidariedade e cooperação. A criança ainda pequenina começa sua relação com o mundo brincando. Com o tempo aprende através da brincadeira a se relacionar com os elementos da natureza. Utilizam folhas, pauzinhos, pedras, constroem casas de areia, fazem bolos, comidinha, constrói lagos, rios com barquinhos e muitas outras brincadeiras. Pela vivência destes elementos através da fantasia, as crianças aprendem as leis básicas da natureza, reconhecendo as formas e qualidade de tudo o que existe. Segundo Trommer (2014) a criança aprende, por exemplo, o que significa:duro-mole, áspero-liso, em cima-embaixo, atrás - frente, direita- esquerda, perpendicular-horizontal, equilíbrio-desequilíbrio, quente-frio, leve- pesado. Nas brincadeiras de faz-de-conta as crianças imaginam diversidade de situações, desempenham funções sociais, negociam regras de convivência, representam, compartilham conhecimentos de mundo, elaboram sentimentos e emoções e criam noções como bom\ruim, bem\mal, feio\bonito, certo\errado, passividade\atividade etc., desenvolvendo concepções próprias de mundo, de sociedade e de si mesma. Para muitas pessoas a palavra brincar significa perda de tempo e nada de aprendizado. A tendência hoje em dia, da maioria dos espaços de Educação Infantil, se concentra na aprendizagem formal precoce, através da escrita, da leitura, do pensar lógico, esquecendo que, além da mente, as crianças possuem também sentimentos e que constroem seu conhecimento sobre o mundo e suas interações sociais, através da linguagem corpórea e não apenas por estímulos mentais. Atualmente, até mesmo a neurociência considera que a formação do 29 cérebro e a ampliação do número de sinapses (conexões nervosas) são estimuladas na criança pelo processo natural de brincar. Brincar é exploração, resolução de problemas, descobertas, investigações, exige concentração, persistência, criatividade, cooperação. Este deve ser o principal modo de aprendizagem. De acordo com Ignácio (1995) hoje em dia, muitas vezes só se dá valor a inteligência e, quando se pensa em educação, só se pensa em educação do pensar lógico. Mas o homem não é feito só de cabeça, ele também tem coração e membros. Ele não só pensa, como também sente e age. Espaços para o “brincar sadio”, junto ao currículo lúdico, proporcionam benefícios duradouros, ao passo que o aprendizado puramente formal iniciado precocemente desfavorece a criança, tornam-nas ressecadas e tristes. O brincar da infância, é o bem mais precioso que a criança leva pela a sua vida. As creches e pré-escolas devem criar condições para que a criança possa brincar livremente em múltiplos ambientes e com materiais diversos, pois esta é a principal forma de aprendizado nesta fase. Com relação ao brinquedo: A escolha do brinquedo deve ser feita de maneira minuciosa. Os melhores são aqueles feitos pelo calor das mãos das próprias famílias e educadoras, como: bonecas de pano ou palha, bichinhos de tricô, cavalinhos de pau, carrinhos de madeira; No quintal são brinquedos: tanque de areia, pátio de terra, gramado, tocos em diferentes tamanhos, árvores para subir, pedras, sementes, pauzinhos. O mais importante é o toque de fantasia que há em tudo; Não é necessário mobiliário requintado como jogo de cozinha de plástico ou bonecas atuais (que piscam, falam etc.). Isso inunda a criança de estímulos excessivos e ela logo não achará mais graça em brincar com coisas simples, que por si só são capazes de estimular o cérebro de maneira saudável. Estes 30 brinquedos “prontos” só fazem tolher a imaginação da criança que é tão rica, afinal, ela não será capaz de transformar toquinhos de madeira nos copos e pratos de sua cozinha, ou a boneca de pano feita pela educadora em seu querido bebê; Quanto mais natural e sem formas acabadas for o brinquedo, mais estimulará a fantasia e a capacidade de imaginação. 5. Infância, cultura e diversidade As primeiras ideias que vêm à cabeça, quando a maioria das pessoas pensa no conceito de diversidade cultural, dizem respeito à arte e suas manifestações. Essa primeira compreensão, embora verdadeira, é consideravelmente incompleta em relação ao que é proposto pelos Referenciais Curriculares Nacionais. As manifestações artísticas constituem apenas parte deste conceito temático. Diversidade Cultural é algo bem mais amplo. Neste texto, adota-se o conceito proposto de diversidade cultural (BRASIL, 1998): conjunto complexo dos códigos e padrões que regulam a ação humana individual e coletiva, tal como se desenvolvem em uma sociedade ou grupo específico, e que se manifestam em praticamente todos os aspectos da vida: modos de sobrevivência, normas de comportamento, crenças, instituições, valores espirituais, criações materiais, etc” (BRASIL, 1998, p.77). O mais importante neste momento, é utilizar o estudo da diversidade cultural como forma de eliminar o preconceito e lutar contra a exclusão social. É priorizar o objetivo ainda mais nobre, que ultrapassa o estudo de manifestações artísticas e ajuda os seres humanos a buscarem uma vida em sociedade mais equilibrada e mais feliz. Valorizar a diversidade cultural no contexto da infância campesina tem grande importância na formação das crianças, principalmente no que diz respeito à cidadania. Estes temas estão relacionados às vivencias das famílias que moram 31 no campo no que se refere à valorização de características étnicas, culturais, das relações de gênero, da religiosidade, etc. A escola, neste contexto, pode e deve trazer a oportunidade de oferecer às crianças e suas famílias a possibilidade de conhecer sua realidade como lugar complexo, com histórias diferentes e, sobretudo construindo a identidade coletiva do lugar em que moram. Priorizar a diversidade e a cultura no currículo da sala de aula, especialmente na escola situada no campo, é acreditar numa concepção que busca explicitar a diversidade cultural que compõe a sociedade brasileira. Compreender suas relações, marcadas por desigualdades socioeconômicas, por estereótipos e preconceitos, apontando transformações necessárias, oferecendo elementos para a compreensão de que valorizar as diferenças não significa aderir aos valores do outro. Mas, sobretudo, respeitá-los como expressão da diversidade, respeito que é, em si, devido a todas às pessoas, por sua dignidade intrínseca, sem qualquer discriminação. O conhecimento da diversidade cultural dará as crianças capacidade de buscar na infância e depois na adolescência e na vida adulta, uma vida mais equilibrada, na qual fazer o bem comum tem tanta importância quanto satisfazer as necessidades individuais e os interesses pessoais. Esta temática trata, tanto da diversidade cultural como da desigualdade social, daí sua importância. É proposto o conhecimento e a valorização da diversidade cultural do campo, visando também trabalhar a questão da desigualdade social e, principalmente, a discriminação. Outro aspecto importantíssimo da inserção do ensino da diversidade cultural na Educação Infantil do Campo é que, diante da heterogeneidade da composição populacional do Brasil, acabam prevalecendo estereótipos variados, sejam eles regionais, sejam relativos aos vários grupos étnicos, sociais, relações de gênero e culturais, levando a comportamentos discriminatórios, nocivos à vida e ao desenvolvimento social, econômico e cultural. É importante destacar o papel da escola em promover a interação com a comunidade. A realização do acolhimento e da socialização das crianças 32 pressupõe o enraizamento da escola na comunidade. A interação entre equipe escolar, alunas/os, pais/mães e outros agentes educativos possibilita a construção de projetos que visam a melhor e mais completa formação das crianças. A separação entre escola e comunidade fica demarcada pelas atribuições e responsabilidades e não pela realização do projeto comum. 5.1. Disfarçando as diferenças e negando as igualdades Um importante passo no sentido de expor e entender as razões sobre diferenças étnicas, culturais, sociais e econômicas na sociedade brasileira, é refletir sobre os processos históricos que causaram estas diferenças. O problema é que nem sempre há abertura para esse tipo de abordagem, já que, historicamente tem sido mais comum a sociedade disfarçar as diferenças e negar as igualdades. Indígenas, afros descendentes e as mulheres foram
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