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PENSAMENTO CIENTÍFICO Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira Amanda Soares de Melo CONHECENDO A DISCIPLINA A disciplina de Pensamento Científico tem como objetivo proporcionar maior facilidade de compreensão da importância do conhecimento no mundo real, tanto na solução de problemas teóricos como práticos, favorecendo a identificação dos diversos tipos de conhecimentos, distinguindo suas principais particularidades e, principalmente, identificando seus limites para a solução de problemas cotidianos. Ao longo da disciplina, com base em exemplos objetivos, exploraremos as distinções entre o conhecimento vulgar e o científico, desconstruindo mitos popularmente aceitos sobre suas aplicabilidades e enfatizando seus desafios no mundo globalizado. Examinaremos também os diversos tipos de conhecimentos filosóficos existentes frequentemente associados com o científico, destacando seus aspectos valiosos e suas dificuldades que se refletem no estabelecimento de uma aceitação universal por parte de pesquisadores acadêmicos no campo da ciência e da filosofia. Finalmente, avaliaremos a relação entre o conhecimento filosófico e o religioso, com o objetivo de proporcionar clareza e entendimento profundo das consequências da aplicabilidade desses conhecimentos na realidade. O estudo desta disciplina favorecerá a fomentação de uma cultura intelectual mais sofisticada, contribuindo para melhores tomadas de decisão frente aos desafios globais, sobretudo na problemática da mudança climática e da saúde pública, e ajudando na resolução dos problemas pertinentes à vida cotidiana. NÃO PODE FALTAR QUAL A DIFERENÇA ENTRE O SENSO COMUM E O CONHECIMENTO CIENTÍFICO? Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira Fonte: Shutteracjstock. Deseja ouvir este material? CONVITE AO ESTUDO Caro aluno, Observe o quanto o mundo real é baseado em dois principais pilares: ciência e tecnologia. Hoje, mais do que em outras épocas, a relação desses dois campos proporcionou inovação global e facilidade de acesso à informação. A inovação contribuiu para o rápido progresso tecnológico da sociedade, principalmente com a automatização provocada pelo uso de Inteligência Artificial, e o acesso à informação aumentou com a ascensão da Internet. Os mecanismos de buscas das grandes empresas, como o Google e o Bing, unificaram esses dois elementos e, com base em algoritmos cada vez mais refinados, proporcionaram a emergência de anúncios e resultados de buscas cada vez mais personalizados de acordo com os dados de acessos dos usuários. No entanto, o rápido progresso tecnológico não preparou cognitivamente a população para a avaliação crítica das informações recebidas nos meios digitais com acesso à Internet. Atualmente, em todo o mundo, enfrentamos o problema da fake news, que é um conceito em inglês para designar notícia falsa. A fake news atinge todos os setores da atividade humana, trazendo sempre algum dano real, como a consequênciaacj dos boatos do movimento antivacina, que contribuíram para que doenças até então erradicas no Brasil, como a febre amarela, voltassem à tona. A fake news se aproveita da falta de entendimento do grande público sobre o que é conhecimento e como avaliá-lo. Dessa forma, o indivíduo-alvo acaba não tendo o fundamento e as ferramentas necessárias para identificar o quão real é a informação recebida. Ao decorrer do livro, você será capaz não apenas de entender os diversos tipos de conhecimentos, mas também de identificar um tipo peculiar de crença psicológica que finge ser científica, geralmente sustentando narrativas fantasiosas ou sensacionalistas. O resultado será a compreensão da atividade científica, da importância de sua aplicação na vida cotidiana e do impacto que o falso conhecimento, elemento de estrutura das fake news, provoca na sociedade contemporânea. PRATICAR PARA APRENDER Você já precisou procurar alguma informação para a realização de um trabalho? É muito provável que sim. Qual o principal meio de busca para encontrar a resposta que você precisa? Provavelmente, você responderá Google, Bing ou algum outro site de pesquisas online. Diferentemente, nas gerações anteriores ao surgimento e popularização da Internet, as buscas eram realizadas através de bibliotecas, livros, sumarizações e enciclopédias. A Era da Informação trouxe uma enorme facilidade, no sentido de praticidade, do encontro de informações. No entanto, com o excesso de informações, é possível que não tenhamos acesso a algo verídico. Portanto, será necessário questionar: “As primeiras respostas do Google realmente são o conhecimento mais coerente frente à realidade?” Com o advento do mundo contemporâneo, o indivíduo que tem um conhecimento sólido em sua prática profissional é muito valorizado, mesmo sendo preciso que ele esteja disponível para aprender e atualizar sua formação profissional, exigindo cada vez mais uma busca por conhecimentos mais avançados em sua área de atuação. Pensar cientificamente é uma ótima maneira para garantir uma progressão de aprendizado, autocorreção e adaptação conforme a necessidade. Sendo assim, o profissional cientificamente orientado pensará nos meios de maximizar sua produtividade, levando em conta os impactos que o trabalho excessivo poderia causar em seu estado de saúde e, ao mesmo tempo, proporcionando maior capacidade de gestão na organização de tarefas em equipe. Em uma sala de aula, quatro estudantes são desafiados pelo professor de Filosofia a responderem a três questões, que são recorrentes ao longo da história da humanidade. 1. De onde viemos? 2. Para onde vamos após a morte? 3. Por que estamos aqui? Cada aluno, em seu modus operandi, adota uma postura diferente em relação às respostas. Um vê o mundo a partir do (A) conhecimento científico; outro, do (B) religioso; o seguinte, do (C) filosófico e, por fim, o último, através do (D) senso comum. Diante dessa situação, a resposta de cada um é: Aluno A: Tudo se iniciou no Big Bang, e através de um processo de evolução por meio da seleção natural. Após a morte, nossa consciência não mais existe. Não há nenhum propósito especial, com base no que conhecemos através da ciência. Aluno B: Deus criou o Céu e a Terra tal qual está escrito na Bíblia. Para o paraíso ou inferno. Para atender aos desígnios de Deus. Aluno C: Qual é a origem do Universo? Qual é a melhor teoria científica? Podemos advogar pela defesa do Big Bang? É necessário submeter ao escrutínio da filosofia analítica a análise semântica das teorias científicas. Do mesmo modo, é necessário clarificar o conceito de morte, olhando pelas implicações do conhecimento científico. Essa pergunta traz problemas de ordem metafísica, portanto, é necessário analisar o significado do conceito de propósito. Aluno D: Depende do contexto. Um indiano, provavelmente, responderia com base em suas crenças culturais regionais, manifestando explicações de caráter hinduísta. Se fosse um japonês, provavelmente advogaria pelo zen budismo. Um brasileiro responderia conforme as crenças compartilhadas de sua região, por exemplo, existem regiões no Brasil onde há prevalência de mitos da origem da vida e do universo que têm uma relação intrínseca com crenças religiosas africanas, enquanto outras são fortemente influenciadas pelo catolicismo europeu. Nesse sentido, como foi explicado no texto, o conhecimento popular absorve sempre aspectos de outros conhecimentos quando incorporados fortemente pela cultura. Nessa interação, percebemos que cada aluno apresenta sua perspectiva pessoal frente às três grandes questões. Assim, recomenda-se instigá-los sobre as possíveis consequências das adoções de certos tipos de conhecimento e crenças para os desafios de sua vida diária e do mundo contemporâneo, tratando de fazê-los responder qual o melhor tipo de conhecimento para uma situação específica e comoconciliá-lo com outros. Por exemplo, como a adoção de uma crença oriunda do conhecimento religioso poderia impactar em questões de saúde individual e coletiva? Qual consequência o conhecimento vulgar, aquele de senso comum, traria para a sociedade ao enriquecer mais rapidamente do conhecimento científico? A absorção do conhecimento científico, tanto no âmbito individual como coletivo, nos tornaria melhores tomadores de decisão? Essas questões, consequentemente, reforçariam a existência de diferentes tipos de conhecimentos no âmbito da vida cotidiana e fomentariam o pensamento crítico dos alunos. Saber muito não lhe torna inteligente. A inteligência se traduz na forma que você recolhe, julga, maneja e, sobretudo, onde e como aplica esta informação. Carl Sagan, trecho do documentário Cosmos (1980). CONCEITO-CHAVE DOXA, O CONHECIMENTO VULGAR DA SOCIEDADE Desde Aristóteles, o conceito de conhecimento tem sido central no debate filosófico. Inicialmente, conhecimento era tratado como um tipo de crença racional, verdadeira e justificada. Crença, porque faria relação com um estado psicológico do sujeito; racional, porque envolveria o exercício de nossas faculdades cognitivas; verdadeira, porque faria alusão a objetos ou fenômenos da realidade; e, principalmente, justificada, porque requereria um conjunto de enunciados estruturados logicamente. Essa definição, porém, não dá conta dos diversos tipos de conhecimentos existentes, alguns dos quais serão tratados ao longo do livro. Para começar nossa jornada, vamos entender um pouco o conceito de conhecimento vulgar, também chamado senso comum ou saber popular. Etimologicamente, refere-se ao conceito aristotélico de doxa, ou simplesmente opinião. O conhecimento vulgar trata-se de um conhecimento que não quer nenhum tipo de exercício crítico, também não envolve nenhum tipo de verificação experimental. Geralmente, ele é transmitido culturalmente, de gerações a gerações, muitas vezes preservando mitos que eram aceitos em determinada época. Por exemplo, o mito de que o chinelo virado com a sola para cima traz azar, ou a ideia de que um trevo de quatro folhas traz sorte. No entanto, também é verdade que alguns ensinamentos transmitidos pelo conhecimento vulgar possam ser verdadeiros, como a ideia de não colocar a mão no fogo para não se queimar, ou mesmo não entrar em uma lagoa se não souber nadar, porque é possível se afogar. O conhecimento vulgar também pode se enriquecer do conhecimento científico, especialmente quando este último se torna bastante popularizado ao ponto de seu entendimento se tornar familiar por quase toda população. Por exemplo, a ideia de que certos alimentos, como carnes, são mais bem preservados quando congelados, evitando sua contaminação e exposição a microrganismos no ambiente aberto. Apesar de estabelecer uma pequena relação com o conhecimento científico, o conhecimento vulgar não é suficiente para explicar a realidade, exatamente por preservar em seu núcleo ensinamentos que podem ser falsos ou simplesmente mitos. CONHECIMENTO RELIGIOSO O conhecimento religioso pode se enriquecer do conhecimento vulgar, especialmente das tradições culturais e religiosas cultivadas ao longo do tempo. Por exemplo, na preservação dos mitos gregos de que os deuses reinavam nos céus, apropriada pelas religiões politeístas. Esse tipo de conhecimento requer um elemento-chave para alcançá-lo, ao menos da forma como defenderam diversos pensadores da Idade Média, que é a iluminação religiosa como método para conhecer a verdade ou a Deus. Essa iluminação religiosa seria como um sentimento de vislumbre por uma paisagem maravilhosa, como relatou o cientista Francis Collins (apud SHERMER, 2012) em sua experiência pessoal. É como um sentimento de inspiração e encantamento com algo notoriamente belo, diante do qual uma pessoa não encontra palavras para expressar tal sensação. No entanto, essas experiências religiosas podem ser despertadas mediante o uso de substâncias psicoativas, como alucinógenos ou antidepressivos, ou podem ser vivenciadas igualmente por qualquer pessoa que tenha apreço pela natureza, de modo que seu principal método não caracteriza uma forma autêntica e racionalmente justificada para conhecer a realidade. Por conta da subjetividade envolvida durante a iluminação religiosa, não é possível demonstrar que a observação pessoal produziu cenas reais no cérebro dessas pessoas. Outro método comumente cultivado na construção do conhecimento religioso é a hermenêutica. A hermenêutica é um tipo de filosofia subjetivista, como defendeu o cientista e filósofo argentino Mario Bunge, porque ela dependeria simplesmente da interpretação do autor para trazer à luz dos escritos bíblicos a extração de um suposto fato vivenciado em tempos remotos. A hermenêutica é uma abordagem problemática, pois ela não exige a investigação empírica da realidade, como a recolha de dados para contrastar fatos históricos bem documentados com a interpretação pessoal do hermeneuta ou teólogo. O hermeneuta e o teólogo são os responsáveis por construir esse tipo conhecimento, embora o primeiro contemple uma atividade mais geral, podendo abarcar o uso da hermenêutica para textos literários ou filosóficos. No entanto, como foi apontado anteriormente, o simples fato de invocar a subjetividade do interpretador, ao invés de fatos objetivos, lança um desafio na validade desse tipo de conhecimento. O CONHECIMENTO FILOSÓFICO: EMPÍRICO E RACIONALISTA O conhecimento filosófico é amplo, abarcando diversos posicionamentos ao longo da história da filosofia, especialmente o empírico e o racionalista. Esse tipo de conhecimento também pode incluir o religioso, uma vez que a base de todo conhecimento são os pressupostos filosóficos. Noções de verdade, intuição, dedução, cognoscibilidade, crença, realidade, fenômeno, utilidade e outras são conceitos filosóficos indispensáveis em qualquer tipo de conhecimento. O conhecimento empírico pressupõe a cognoscibilidade dos fenômenos com base nas experiências sensíveis do sujeito, enquanto o racional pressupõe que o conhecimento já é derivado da mente do sujeito, independentemente de qualquer experiência empírica. David Hume e John Locke eram filósofos empiristas e, portanto, defendiam que a fonte de conhecimento derivava dos dados sensíveis. René Descartes, por outro lado, acreditava que o conhecimento eterno ou matemático poderia ser alcançado pelo simples uso da razão, sem a necessidade de qualquer experiência empírica. Embora seja verdade também que ele tenha defendido que uma junção de mais fatores era condição necessária para alcançar verdades absolutas ou irrefutáveis, por via de seu método cartesiano, que estabelecia, no mínimo, quatro condições, como evidência, análise, ordem e enumeração, ele deduzia que todos esses princípios eram alcançados mediante o uso da razão. Embora Descartes tivesse defendido o papel da razão como principal responsável pelo conhecimento absoluto, ele fez investigações empíricas durante toda sua vida, especialmente nos campos da anatomia e da fisiologia, contribuindo para uma descrição de partes do cérebro humano, como a glândula pineal, e especulando sobre sua real função no organismo. Houve também pensadores de grande importância da filosofia que tentaram unir os dois tipos de conhecimentos, sendo o mais famoso o filósofo Immanuel Kant, que lançou as bases de seu método racioempirista. Esse método consistia em tomar elementos que ele considerava verdadeiros do empirismo e do racionalismo. Kant apropriou-se do fenomenismo dos empiristas, em que a fonte de conhecimento se dá através dos fenômenos, e não da realidade em si. Kant acreditava que não poderíamos conhecer nada além das aparências, de modo que todo o mundo estaria subordinado a impressões ou dados sensíveis, tal como acredita Hume. Maisainda, Kant buscou resgatar o apriorismo do racionalismo, argumentando sobre a plausibilidade de verdades independentes da experiência, que, segundo ele, estariam ali, prontas na mente. O racioempirismo kantiano levou a discussões calorosas no campo da filosofia e, junto com outros pensadores, inspirou posições bem diferentes entre si na filosofia – especialmente, a fenomenologia e o positivismo lógico. O incômodo com a posição de Kant é que ele havia se apropriado de elementos problemáticos de ambos os conhecimentos empírico e racionalista, não levando em consideração a própria ciência da época na elaboração de sua filosofia. Os astrônomos Galileu Galilei e Johannes Kepler, por exemplo, já investigavam a realidade além dos fenômenos limitados a dados sensíveis. Galileu estendeu sua percepção com um telescópio que ele havia aprimorado e descobriu três satélites de Júpiter, enquanto Kepler havia calculado a trajetória das elipses planetárias usando ferramentas matemáticas, hipóteses auxiliares e instrumentação de medidas. Isaac Newton, um dos maiores nomes da revolução científica, estabeleceu leis científicas que poderiam se aplicar a quaisquer objetos não diretamente observáveis, mas com velocidades menores do que a da luz. Isso, porém, não foi suficiente para ruir a possibilidade de unificação entre empirismo e racionalismo. No século XX, o cientista e filósofo Mario Bunge procurou unificar o empirismo com o racionalismo, resgatando o conceito de racioempirismo, mas se desvinculando das posições kantianas notoriamente emblemáticas. Bunge uniu a experiência empírica com a condição de exercê-la mediante uso crítico da razão como forma de investigar a realidade. Mais ainda, ele estabeleceu que seria necessária a unificação do realismo com o cientificismo proclamado dos filósofos da ala radical do iluminismo francês, sobretudo com Condorcet, para formular verdades mais profundas sobre o mundo. O realismo é a filosofia que advoga a existência de um mundo independente do sujeito (realismo ontológico) e que ele pode ser conhecido (realismo epistemológico), mesmo que indireta e parcialmente, enquanto o cientificismo é a posição segundo a qual a ciência pode produzir o conhecimento mais profundo e verdadeiro da realidade, em comparação com outras formas de conhecimentos, como o religioso proveniente da iluminação religiosa ou mesmo do interpretacionismo hermenêutico. Porém, diferente da concepção caricata difundida sobre o conceito de cientificismo, ele não é uma posição preconceituosa e nem autorrefutável, mas uma atitude esperada de qualquer pesquisador interessado em investigar a realidade e que acredita que o progresso científico é possível e desejável. Mais ainda, o cientificismo é um tipo de filosofia que enriquece a ciência, favorecendo a investigação científica, em vez de focar a atenção exclusiva na contemplação excessiva de leituras sagradas ou de ideias do próprio indivíduo, como faziam os filósofos irracionalistas e teólogos, que negligenciaram séculos de progressos científicos. O cientificismo, hoje, está entrelaçado com o realismo, dando origem à posição conhecida como realismo científico. O realismo científico é a filosofia que admite que podemos tratar teorias científicas como descrições ou representações verdadeiras do mundo, mesmo que sejam, por vezes, incompletas. É a posição mais defendida dentro da filosofia da ciência, em comparação com sua concorrente antirrealista. O antirrealismo, por sua vez, evita fazer uso de afirmações ou teorias que não correspondam diretamente à observação pura da realidade, desconsiderando o progresso contínuo provocado pela física de partículas ao estudar acontecimentos ou elementos que são imperceptíveis diretamente à nossa experiência sensível ou mesmo a teorização ou modelagem matemática de fenômenos macrossociais que escapam da observação individual do pesquisador sociológico. Em resumo, o conhecimento filosófico é amplo, contemplando posições muitas vezes compatíveis ou relacionáveis com a ciência, enquanto outras vezes apresentando um tipo de conhecimento totalmente oposto ao científico. Sua característica mais fundamental é o exercício de análise lógica dos enunciados e das teorias científicas, geralmente realizadas por filósofos analíticos ou filósofos da ciência. Seu mérito reside no fato de que ele alimenta tacitamente a ciência em um processo de feedback positivo, proporcionando um vocabulário mais refinado para a ciência e, ao mesmo tempo, alimentando seu repertório de problemas com os novos dados da investigação científica. ASSIMILE 1. No mínimo, existem quatro tipos de conhecimentos, cada qual com sua utilidade e aplicação no mundo real. 2. O conhecimento filosófico também tem uma relação de absorção com outros tipos de conhecimentos, principalmente com o científico, contribuindo para o fornecimento de um tratamento conceitual adequado e o levantamento de problemas sobre a realidade. 3. Apenas o conhecimento científico possui um mecanismo de autocorreção com o qual ajuda a ciência a se ajustar cada vez mais à realidade. O CONHECIMENTO CIENTÍFICO O conhecimento científico é um tipo de conhecimento sui generis, ou seja, uma classe de conhecimento único em sua forma. Esse tipo de conhecimento levou séculos para que fosse desenvolvido e teve a participação de diversos filósofos ao longo da história, especialmente o egípcio Ibn al-Haytham e o filósofo inglês Robert Grosseteste, além de figuras notoriamente conhecidas como Francis Bacon, Galileu Galilei e David Hume. Haytham é considerado o primeiro cientista, porque aplicou métodos empíricos de investigação para estudar a óptica, sobretudo os efeitos da luz. Grosseteste, por outro lado, é uma figura comumente negligenciada em livros históricos, mesmo tendo importância central no desenvolvimento das bases do método científico. Por outro lado, a literatura vigente considera apenas as contribuições de Bacon, Galileu, Hume e Descartes. Bacon advogava pela noção de conhecimento intuitivo, ou seja, a ideia de que, com base em observações particulares, era possível realizar generalizações. Galileu, por outro lado, é conhecido por realmente ter aplicado um método científico para a investigação de objetos celestes, indo além do que os empiristas defendiam, ao usar o raciocínio abstrato, a imaginação e a instrumentalização adequada para ultrapassar suas experiências sensíveis. Hume, porém, limitava-se a propor um método atrelado à percepção, de modo que se fôssemos levar ao pé da letra sua posição, não seria possível algo como biologia molecular, cosmologia e principalmente mecânica quântica, já que essas disciplinas transcendem a pura percepção do investigador científico. Descartes, no entanto, conciliou um aspecto importante que Hume também defendia, o chamado ceticismo metodológico. O ceticismo metodológico é a posição que nos permite duvidar de certas conjecturas ou hipóteses que não foram submetidas à prova. Essa posição é basicamente uma dúvida razoável, nunca absoluta, na falta de boas evidências. Em resumo, essa é a posição que norteia toda a atividade científica ainda hoje. Com base numa compreensão mais profunda da realidade, os filósofos do século XX tentaram caracterizar de forma objetiva o conhecimento científico, buscando delimitá-lo de outras formas de conhecimentos, sendo a figura mais importante dessa atitude o filósofo austríaco Karl Popper. REFLITA 1. O que torna o conhecimento científico confiável? 2. Como o conhecimento filosófico pode contribuir com o conhecimento científico? 3. De forma satisfatória, é possível estabelecer um critério de demarcação entre ciência e pseudociência, indo além das concepções propostas no século XX? Karl Popper (2013) tentou propor um critério de demarcação entre ciência e não ciência (onde se incluem artes, filosofia e pseudociência), como objetivo também de responder ao problema de Hume. Sua ideia era de que nenhuma observação é suficiente para confirmar uma teoria, que bastaria um contraexemplo para demonstrar sua falsidade. Analogamente ao exemplo mais tipicamente usado, o fato de observar cisnes brancos em uma região não permite fazer uma generalização apressada de que todos os cisnes são brancos, pois a observação de um cisne negro refutaria a teoria. Então, Popper lançou a condição de que toda teoria, para ser científica, deveria ser passível de falseabilidade ou falseacionismo, ainda mais porque contribuiria para seu refinamento. A falseabilidade é a condição de que teorias devem ter a capacidade de serem provadas falsas em alguma circunstância. Popper argumentava que a confirmação trivial não assegurava uma boa teoria, utilizando a psicanálise como exemplo de caso para mostrar que a observação do analista geraria uma confirmação excessiva, embora não suficiente para avaliar seu grau de verdade. Mais ainda, ele argumentou que a falta de condições de refutação da teoria psicanalítica seria um elemento vital para sua fossilização, como o caso do inconsciente freudiano, que admite a existência de três instâncias psíquicas ou entidades desencarnadas (id, ego e superego), mas que nunca é clarificado se são conceitos meramente simbólicos ou objetos tão reais quanto axônios, neurônios, sinapses e partículas. Com seu critério de demarcação, Popper foi duramente criticado pelos filósofos irracionalistas, sobretudo Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Kuhn (2017) defendeu que existiam, no mínimo, duas ciências: a normal e a extraordinária. A normal é a ciência acerca da qual existe minimamente um consenso estabelecido entre a comunidade científica. Em seguida, dentro da ciência normal, segundo Kuhn, ocorre uma crise sem precedentes, ocasionada por uma nova descoberta, passando a existir a dificuldade de estabelecimento de um consenso. Quando essa nova descoberta se consolida, ocorre uma revolução científica, dando início à etapa de uma nova e extraordinária ciência, rompendo com velhas concepções de mundo. Pense, por exemplo, na revolução científica ocasionada pela emergência da teoria da relatividade geral, que, embora seja sempre lembrada como fruto do trabalho de Albert Einstein, também teve a contribuição de outros grandes nomes da física, como Henri Poincaré. A relatividade provocou uma reação de incerteza na comunidade científica por conta de sua aceitação total ao longo de anos e das limitações físicas agora evidentes das teorias newtonianas para o estudo de objetos de grande massa. Isso, porém, não significa que a relatividade geral demoliu a física de Newton. Isso também não sustenta a defesa de Kuhn de que não existe algo como progresso científico. A teoria da relatividade e o uso da mecânica de Newton têm permanecido de pé ainda hoje, sendo a última responsável pela possibilidade de envio de foguetes ao Espaço. Feyerabend (2011), por outro lado, foi ainda mais radical e sentenciou que não existe algo como método científico e que, na ciência, “tudo vale”, de modo que não existiriam regras para serem seguidas, a ponto de, segundo ele, os cientistas diversos romperem com os protocolos de investigação para formularem suas ideias. Feyerabend foi seduzido por essa visão por conta de sua descrença na medicina científica e a suposta experiência de cura por uma curandeira, o que o levou a relativizar o status epistemológico da medicina em seus trabalhos. Sua posição ficou conhecida como anarquismo epistemológico. Embora essa seja a visão que mais prevalece na academia, ela é falsa, porque ignora que não existe ciência sem método científico (ou seja, sem regras minimamente estabelecidas e/ou procedimentos experimentais de investigação, principalmente de acordo com os princípios da pesquisa bioética) e, principalmente, sem ethos (ou código de conduta) tacitamente aceito pela comunidade científica. Uma ciência sem método não seria capaz de investigar a realidade em todos os seus níveis, também não seria capaz de progredir ao longo dos anos e, mais importante, sem ethos tanto a verdade como a mentira teriam pesos igualmente válidos dentro da comunidade científica. O ethos da ciência foi primeiramente clarificado pelo sociólogo da ciência Robert K. Merton (1968). Ao investigar a comunidade científica, ele identificou alguns princípios que norteavam a pesquisa científica, sendo eles: comunismo epistêmico, universalismo, desinteresse, ceticismo coletivo e originalidade. O comunismo epistêmico enfatiza que o conhecimento científico é propriedade de todos, portanto, ele deve ser sempre acessível; o universalismo advoga que todos os cientistas, independente de sua etnia ou localização geográfica, podem contribuir com a ciência; o desinteresse destaca que os cientistas devem agir conforme a comunidade, de acordo com os interesses coletivos, sempre acima dos interesses pessoais; o ceticismo coletivo determina que as reivindicações científicas devem ser submetidas à análise crítica da comunidade; e, finalmente, a originalidade diz respeito à ideia de que as demandas científicas devem contribuir com a novidade, seja na formulação de novos problemas, dados ou teorias. A suspensão do ethos leva ao florescimento da pseudociência. O conceito de pseudociência, de antemão, exige uma compreensão do que é a ciência. No entanto, nenhum filósofo havia sido capaz de conceituar a ciência de forma adequada, deixando sempre espaço para que reivindicações não científicas se passassem como ciência. O filósofo Mario Bunge (2010) mostrou que a concepção popperiana de ciência deixava espaço para que reivindicações parapsicológicas fossem tratadas como ciência, simplesmente porque satisfaziam o critério de falseabilidade. Porém, como Bunge enfatizou, o que torna um campo científico não é sua condição de falseabilidade, mas uma série de princípios, entre os quais estão incluídos um fundo de conhecimento, uma base formal, uma epistemologia realista, uma ontologia materialista, um ambiente livre de pesquisa e, principalmente, a prática de um ethos entre membros da comunidade científica. Nesse sentido, Bunge (2014) define a ciência como um sistema de ideias caracterizados como um conhecimento sistemático, racional, exato, verificável e, portanto, falível, sendo uma representação conceitual do mundo. Além disso, quando um campo falha em satisfazer a maior parte dos princípios de cientificidade, ele pode ser considerado pseudocientífico. A pseudociência, consequentemente, pode ser conceituada de forma oposta à ciência, como sendo um sistema de crenças subjetivas, irracionalistas ou puramente intuicionistas, inexata, inverificável e, portanto, dogmática, pois ela não submete à prova suas crenças, não exige uma linguagem clara, precisa e objetiva, nem um vocabulário articulado de ideias inter-relacionadas, e, quando se mostra falha, como na hipótese da existência do inconsciente freudiano da psicanálise ou das ondas psi da parapsicologia, ela permanece estagnada no tempo, não atualizando suas crenças à luz de novas evidências. Em resumo, o conhecimento científico é um tipo especial de conhecimento, que possui em seu aspecto central a revisão constante de hipóteses e teorias científicas, sempre submetendo à prova conjecturas e, mais ainda, proporcionando a melhor representação da realidade em todos os seus níveis (físico, químico, biológico, psicológico, social, artificial, etc.). Por ser um tipo de conhecimento antidogmático por princípio, ele não deve ser confundido com a pseudociência, em que, em sua característica mais essencial, o livre debate de ideias é substituído pelo culto à autoridade e pela salvação contínua de crenças falsas, por conta do sentimento de incerteza provocado pelo mal entendimento da ciência. EXEMPLIFICANDO 1. O conhecimento vulgar(ou senso comum) absorve todos os tipos de conhecimentos ao longo dos anos. No entanto, ele pode conservar em seu núcleo crenças falsas sobre a realidade. Por sua vez, o conhecimento religioso possui, ao menos, duas abordagens principais, como a que é baseada na iluminação religiosa e a interpretacionista, advogada por teólogos ou hermeneutas. De forma semelhante ao conhecimento vulgar, esse tipo de conhecimento pode manter ideias falsas em seu núcleo, sobretudo por focar sua abordagem mais no indivíduo subjetivo do que na investigação da realidade externa. 2. O conhecimento filosófico é amplo em sua forma, sendo difícil delimitá-lo. Por essa razão, ele pode ser desenvolvido em uma relação de dependência do conhecimento científico, como também é possível fazê-lo de forma independente. No entanto, sua característica mais fundamental tem sido a clarificação dos conceitos utilizados em diversos tipos de conhecimentos. Além disso, ele é um tipo de conhecimento que permite fazer certas generalizações sobre a realidade. Por exemplo: todos os objetos existentes são materiais; todos os objetos reais possuem propriedades físicas, como energia; a realidade é um grande sistema emergente e material; as leis da natureza revelam a impossibilidade da existência de entidades desencarnadas, como almas, espíritos, inconsciente freudiano ou cérebros dualísticos. 3. O conhecimento científico é único em sua forma. É o tipo de conhecimento que produz o entendimento mais profundo e verdadeiro sobre a realidade, indo além das percepções empiristas, a partir do momento que destaca o importante papel da teorização e modelagem para representar a realidade com base nas evidências. Sua característica mais fundamental é o mecanismo de autocorreção, que permite corrigir imprecisões e, então, refinar cada vez mais as explicações sobre o mundo. Por sua natureza particular, é um conhecimento antidogmático por princípio. No decorrer do livro, foram exemplificados os diversos tipos de conhecimentos existentes, bem como os desafios que cada um deles enfrenta. Também foi explicado como diferentes tipos de conhecimentos podem ser relacionados com outros, como na relação recíproca entre o conhecimento filosófico e o científico, em que um enriquece o outro, proporcionando um aumento gradual do conhecimento na esfera da atividade humana. Dessa forma, espera-se que, com base nessa introdução, você tenha a capacidade de distinguir os diversos tipos de conhecimentos, bem como de procurar aprofundar seu conhecimento ao longo dos anos. FAÇA VALER A PENA Questão 1 A falseabilidade é o princípio filosófico no qual uma teoria, para ser considerada científica, deve ser capaz de realizar predições que sejam possíveis de serem provadas falsas em alguma circunstância. Um exemplo bastante difundido para expressar a ideia é a observação de um grupo de cisnes brancos não ser suficiente para afirmar que todos os cisnes são brancos, já que a observação de um cisne negro refutaria a afirmação. Qual o primeiro filósofo a propor a falseabilidade como um critério de demarcação para a ciência? a. David Hume. b. Karl Popper. c. Francis Bacon. d. René Descartes. e. Robert Grosseteste. Questão 2 O ethos da ciência é o conjunto de princípios éticos coletivos que norteia a comunidade científica. Esses princípios foram percebidos, pela primeira vez, pelo sociólogo da ciência Robert K. Merton, que destacou seus aspectos principais. Quais princípios formam o ethos da ciência? a. Autoritarismo - universalismo - niilismo - desinteresse - originalidade. b. Comunismo - universalismo - ceticismo - desinteresse - originalidade. c. Socialismo - relativismo - ceticismo - interesse - familiaridade. d. Dogmatismo - irracionalismo - individualismo - interesse - falsidade. e. Comunismo - absolutismo - ceticismo - desinteresse - originalidade. Questão 3 A pseudociência é conhecida por conta de sua marginalidade frente ao conhecimento científico do momento, de modo que ela não segue nenhum critério objetivo de investigação e nem sequer cultiva uma comunidade crítica para a análise de suas ideias. Quais são as características fundamentais da pseudociência? a. Originalidade, ceticismo, racionalismo e claridade conceitual. b. Falsidade, dogmatismo, relativismo e claridade conceitual. c. Originalidade, ceticismo, racionalismo e obscurantismo. d. Falsidade, subjetivismo, dogmatismo e obscurantismo. e. Falsidade, obscurantismo, ceticismo e claridade conceitual. REFERÊNCIAS BUNGE, M. Caçando a Realidade: a luta pelo realismo. Tradução de Gita K. Guinsburg. [S.l.]: Editora Perspectiva, 2010. BUNGE, M. La Ciencia, su Método y su Filosofía. [S.l.]: Editora Sudamericana, 2014. BUNGE, M. Las pseudociencias ¡vaya timo! 2. ed. [S.l.]: Editora Laetoli, 2014. BUNGE, M. 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O Mundo Assombrado Pelos Demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. [S.l.]: Editora Companhia das Letras, 2006. FOCO NO MERCADO DE TRABALHO QUAL A DIFERENÇA ENTRE O SENSO COMUM E O CONHECIMENTO CIENTÍFICO? Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira Fonte: Shutterstock. Deseja ouvir este material? SEM MEDO DE ERRAR Para resolver o problema, é necessário entender o contexto histórico e filosófico por trás da origem de cada tipo de conhecimento, destacando os aspectos fundamentais que levaram à sua aceitação ou rejeição, fazendo analogias ou experimentos mentais (ou seja, imaginando circunstâncias nas quais certos tipos de conhecimentos poderiam ser aplicados, levando em consideração seus possíveis impactos na esfera da vida cotidiana) para reforçar a aprendizagem. Um caminho para levar à resolução da situação-problema consiste na utilização da analogia do conhecimento científico com a atividade política, entendendo suas principais diferenças, mas destacando seus aspectos de interdependência. Por exemplo, embora a ciência dependa da política para uma série de condições, sobretudo no direcionamento de recursos para suas atividades, ela não é decidida de modo semelhante, de modo que a ciência não advoga pela democracia para chegar a um consenso, mas opera com base nos estudos e na qualidade da evidência resultante da investigação da realidade, confrontando muitas vezes uma visão dominante dentro da ciência, ou mesmo crenças políticas e religiosas individuais dos próprios cientistas, até a aceitação plena de teorias mais bem confirmadas, como ocorreu historicamente no processo de aceitação da teoria da evolução de Charles Darwin e sua implicação filosófica e política no contraste com o criacionismo bíblico, e na emergência da mecânica quântica, da qual alguns físicos, como Albert Einstein, resistiram-se a aceitar a natureza indeterminística da realidade. Isso significa que muitas vezes seremos confrontados com visões que entram em desacordo com nossas preferências políticas, ideologias e crenças religiosas, mas isso não éum sinal de que devemos abrir mão do conhecimento científico. Na verdade, devemos trabalhar criticamente para absorvê-lo da melhor forma possível, especialmente para ajustar nossas crenças e visões de mundo à realidade. Pense, por exemplo, no caso das Testemunhas de Jeová e o embate notório em questões de ordem filosófica, sobretudo ética, e de saúde pública, que norteiam as ciências da saúde, no que se refere à rejeição de práticas e cuidados médicos relacionados ao uso da técnica de transfusão de sangue por seus seguidores. A rejeição do conhecimento científico levaria essas pessoas a permanecerem em sofrimento, a adoecerem progressivamente, simplesmente porque não conseguiram conciliar suas crenças e visões de mundo com o conhecimento científico. O conhecimento vulgar também está enraizado em diversas concepções equivocadas do mundo, principalmente nas que trazem algum dano não apenas à humanidade, mas à natureza e aos animais. Por exemplo, a crença social compartilhada de que gatos pretos trazem azar, o que instiga o comportamento de maus-tratos contra animais, simplesmente porque a população não teve acesso ao conhecimento científico para entender a origem e a consequência dos mitos ao longo da história. Apenas o conhecimento científico pode elucidar essas questões, mostrar seus impactos no mundo real e avaliar o quão realistas são as crenças culturais ou religiosas mais bem difundidas. Em outras palavras, o conhecimento científico enriquece a cultura e alimenta a sociedade, contribuindo para que o senso comum se afaste cada vez de concepções equivocadas do mundo. Um elemento-chave que contribui para a absorção do conhecimento científico pelo senso comum é entender que a formulação desse tipo de conhecimento que se dá através da construção das teorias científicas não surge espontaneamente do nada, nem de forma isolada com a pura observação de um fenômeno, mas se baseando em um problema e um fundo de conhecimento anterior. Contrastar a ciência e a pseudociência também ajuda a entender os aspectos que influenciam os grupos humanos. Evidenciar o princípio de abertura às novas ideias que o conhecimento científico proporciona e sua característica de testar ideias que não nos parecem razoáveis à primeira observação, como quando estamos pensando em comprar um carro usado e fazemos perguntas sobre a condição atual do automóvel, contribui para ajustar nossa visão de mundo a uma posição mais crítica e realista. Mais ainda, a consequência fundamental do senso comum absorver a ciência é, a curto prazo, a formação de melhores tomadores de decisões. NÃO PODE FALTAR QUAIS SÃO AS CARACTERÍSTICAS DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO? Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira Fonte: Shutterstock. Deseja ouvir este material? PRATICAR PARA APRENDER Provavelmente, você já se perguntou o que torna o conhecimento científico diferenciado em comparação com outras formas de conhecimento, razão pela qual diversas grandes potências reservam uma parcela de seu PIB para investir em ciência e tecnologia, mas não encontrou nenhuma explicação dentro de um contexto histórico apropriado que detalhasse as principais características do conhecimento científico. Sem um contexto adequado é impossível discutir o que é conhecimento científico, bem como explicar quais seriam suas características e o porquê desse tipo de conhecimento ser único em sua espécie. Por causa dessa dificuldade de entendimento da ciência, você, em alguma parte de sua vida, perguntou: “Por que os cientistas estudam planetas distantes em vez de concentrarem seus esforços em problemas sociais vigentes, como a desigualdade social, a extrema pobreza e a desnutrição?” ou “Por que investir milhões de dólares em pesquisas básicas?” Com um pouco de tratamento filosófico e história da ciência, seria possível responder que diversos esforços coletivos promovidos dentro do contexto da história da Era Espacial contribuíram direta e indiretamente para o surgimento de tecnologias usadas no dia a dia, como travesseiros, painéis solares, satélites artificiais, detectores de fumaça e muitos outros. Poderia também ser respondido que uma compreensão profunda da genética levou ao desenvolvimento de alimentos transgênicos, que são ricos em proteínas, contribuem para a redução do uso de agrotóxicos e auxiliam diretamente no combate à desnutrição em países do continente africano. Explicar a origem de todo esse processo de construção de conhecimento enriquece a cultura à medida que revela como as características do conhecimento científico auxiliam no progresso tecnológico, principalmente na produção de vacinas em contextos de pandemias, como a da Gripe Espanhola e do novo coronavírus (SARS-CoV-2). Em uma sala de aula, um professor de Filosofia da Ciência escolhe três alunos com o objetivo de atribuir a cada escolhido uma disciplina que alegue o status de ciência: a primeira disciplina é a Astronomia (atribuída ao aluno A), a segunda disciplina é a Sociologia (atribuída ao aluno B) e a terceira disciplina é a Psicanálise (atribuída ao aluno C). Em seguida, os alunos são convidados a aplicar o ceticismo científico na disciplina atribuída a eles para avaliar suas hipóteses e teorias, bem como questionar suas bases analisando a possível compatibilidade com os resultados da ciência. Supondo que os alunos tiveram êxito no trabalho proposto, considere o resultado a que cada aluno chegou: a. A astronomia é uma ciência porque suas teorias são compatíveis com os dados disponíveis das melhores agências espaciais. b. A sociologia é uma ciência porque suas teorias são baseadas em evidências. Além disso, a sociologia consegue, com base no uso de modelagem computacional, realizar predições sobre fenômenos sociais com alto nível de acurácia. c. A psicanálise não parece ser uma ciência, ou talvez seja uma pseudociência, porque suas principais hipóteses não constituem uma teoria científica. Mais ainda, algumas alegações sobre possíveis entidades ou objetos não podem ser testadas ou demonstradas empiricamente. Ela também tem outro ponto falho, que consiste na ausência de uma formalização lógica adequada da qual seja possível a extração objetiva do significado de um conceito central no campo. Normalmente, o próprio aluno C poderia indagar sobre o motivo pelo qual a psicanálise ainda mantém um local prestigiado em universidades públicas e particulares, sendo que ela falha em cumprir os requisitos mínimos esperados de um campo que alega produzir conhecimento científico. Quais seriam os possíveis indicadores que revelariam o porquê de certas pseudociências, como a psicanálise, ainda manterem algum prestígio na academia, mesmo não cumprindo requisitos esperados de uma atividade que preza pela verdade? A ciência é mais que um corpo de conhecimento, é uma forma de pensar, uma forma cética de interrogar o universo, com pleno conhecimento da falibilidade humana. Se não estamos aptos a fazer perguntas céticas para interrogar aqueles que nos afirmam que algo é verdade, e sermos céticos com aqueles que são autoridade, então estamos à mercê do próximo charlatão político ou religioso que aparecer. Carl Sagan, entrevista de 1996. CONCEITO-CHAVE CONHECIMENTO CIENTÍFICO: SISTEMATICIDADE, FALIBILIDADE E QUESTIONABILIDADE Algumas características essenciais do conhecimento científico mostram como ele é um conhecimento único em sua espécie, trazendo maior nível de confiabilidade em comparação com outros tipos de saberes no mundo contemporâneo. Um aspecto central é seu princípio de sistematização, que é basicamente a forma como seus enunciados são estruturados logicamente, evitando confusões da linguagem ordinária, como contradições lógicas e polissemia. A sistematização do conhecimento científico permite que seus enunciados não entrem em contradição ao longo de uma explicação a respeito dealgum fenômeno da realidade, evitando a utilização de jargões desnecessários e, por vezes, incompreensíveis, como sentenças que fazem parte de muitos sistemas filosóficos dos chamados filósofos do irracionalismo, como Friedrich Hegel e Martin Heidegger. A adoção de uma estrutura lógica dentro de enunciados científicos permitiu que qualquer discurso ou método dialéticos fosse extirpado do conhecimento científico, contrariando a crença popular de que a dialética é um elemento indispensável na atividade científica. Isso ocorre desde o surgimento da ciência moderna, admitindo tacitamente o Princípio da Não Contradição de Aristóteles, que assegura que afirmações contraditórias não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Portanto, a ciência evita o uso de proposições contraditórias, como “esse círculo é quadrado”, “toda verdade é uma mentira” e “tudo é relativo”. A dialética é um conceito problemático desde Heráclito, significando em seus primórdios a ideia de que existe um Princípio da Unidade dos Contrários, ou seja, a ideia de que todas as coisas que existem possuem uma contraparte ou uma entidade oposta (por exemplo, partículas e antipartículas). Muitos séculos depois, o filósofo Hegel buscou desenvolver a dialética dentro de seu sistema filosófico, admitindo alguns pressupostos da tese original, como a ideia de que existe uma unidade dos opostos e a noção segundo a qual todas as coisas mudam. No entanto, Hegel foi muito pouco claro sobre o que ele queria dizer com “dialética”, de modo que até hoje não existe um consenso entre filósofos sobre o que ela é: uma lógica não clássica, que romperia com o Princípio da Não Contradição da ciência moderna; uma ontologia das coisas; ou simplesmente ambas. Apesar do extenso debate filosófico sobre a dialética, ela não conseguiu ganhar espaço em nenhuma ciência natural, social ou biossocial – nem mesmo na ciência formal, com a lógica e a matemática. Outro aspecto central do conhecimento científico é a falibilidade, que significa que todo discurso científico é passível de correção, evitando assim qualquer tipo de dogmatismo, como a estagnação de uma hipótese científica e o culto à autoridade. Esse conceito está presente na tese do filósofo da ciência Karl Popper (2013), que estipulou que a falseabilidade ou refutabilidade é a condição para refinar cada vez mais hipóteses e teorias científicas. Esse princípio de falseabilidade é importante para a estruturação de hipóteses iniciais ou primitivas, por polir afirmações destituídas de evidências científicas, mas não é um critério de demarcação satisfatório para produzir conhecimento científico. Na verdade, mesmo que alguns cientistas considerem que a ciência siga o modelo popperiano, nenhum filósofo da ciência considera-o como um critério satisfatório – especialmente porque a pseudociência também mantém um nível de conciliação com o respectivo critério de demarcação. A falibilidade permite que a ciência progrida com novos dados e evidências, fazendo também com que as teorias sejam cada vez mais (re)ajustadas à realidade, produzindo um conhecimento diferenciado em comparação com os outros, sendo então mais profundo e verdadeiro. Essa posição também é admitida por filósofos científicos – ou seja, filósofos que estão em dia com os resultados da ciência e tecnologia –, que assumem que a ciência produz um tipo de conhecimento mais profundo e verdadeiro. A ciência também mantém em seu núcleo um aspecto de questionabilidade ou ceticismo, que significa dúvida metodológica e consiste na adoção do ceticismo científico, que é o princípio segundo o qual todas as hipóteses e teorias devem ser questionadas de forma metódica, responsável e cientificamente orientada. Isso significa que a ciência não adota um tipo de ceticismo conhecido como radical, em que tudo deve ser questionado, que advoga por um questionamento absoluto, irresponsável, descontrolado e, portanto, dogmático. A questionabilidade promovida na ciência é a que submete alegações e hipóteses destituídas de evidências razoáveis à crítica de outros cientistas, promovendo um diálogo construtivo, sadio e útil para o desenvolvimento da ciência. O ceticismo científico não deve ser confundido com o negacionismo da ciência, que é a posição que defende a rejeição completa ou parcial do conhecimento científico. O negacionismo da ciência está atrelado a posições ideológicas de seus praticantes, entrando em cena quando a ciência revela um fato em relação ao qual a pessoa está em desacordo por alguma razão política, religiosa ou cultural. Alguns exemplos de negacionismo da ciência incluem a negação de efetividade das vacinas, a rejeição da circunferência da Terra, a depreciação das consequências das mudanças climáticas e a resistência em aceitar a evolução biológica das espécies através do processo de seleção natural. OBJETIVIDADE, POSITIVIDADE, RACIONALIDADE E EXPLICABILIDADE No contexto do conhecimento científico, o conceito de objetividade não deve ser confundido com objetivismo, que é doutrina ideológica e pseudofilosófica de Ayn Rand. A objetividade se refere à pretensão clara e objetiva na formulação de enunciados científicos, evitando o subjetivismo interpretativo, que é a noção segundo a qual é possível a extração de diversas interpretações e múltiplos significados de um determinado texto. Por conta de a linguagem científica ser diferente da linguagem ordinária, principalmente pela sua construção lógica e sistematização, o subjetivismo não faz parte das proposições científicas. A objetividade é atrelada a uma concepção positiva de ciência, cujo papel é o acúmulo gradual de conhecimento por meio da confirmação empírica, em vez de uma estrutura desordenada que desmorona a cada nova revolução científica, como defendeu de forma irresponsável o filósofo e historiador da ciência Thomas Kuhn. Segundo Kuhn (2017), a ciência muda como a moda, de modo que o objetivo da ciência não seria mais a verdade. No entanto, essa concepção ignora que todas as revoluções científicas são sempre parciais, que elas nunca rompem totalmente com o conhecimento anterior, como é o caso da mecânica clássica de Newton, que, mesmo após o surgimento da teoria da relatividade geral e da mecânica quântica, ainda permanece válida para calcular a trajetória de objetos terrestres e continua sendo usada para enviar foguetes ao espaço. A teoria da evolução de Charles Darwin também é outro exemplo dessa característica positiva da ciência, pois ela foi atualizada com os dados da genética e da biologia molecular, revelando um panorama ainda mais abrangente sobre a evolução das espécies, explicando até a origem de certos traços comportamentais nos seres humanos modernos. No entanto, a ciência não progride apenas com base em experimentos, ela precisa de racionalidade. A racionalidade presente no conhecimento científico pode ser explicada de duas formas, pelo menos: a ideia de que todo discurso científico é debatível de forma organizada (com o exercício do uso da razão) ou a ideia de que o raciocínio formal é um alicerce na construção do conhecimento científico. A primeira ideia pressupõe tacitamente características anteriormente explicadas, como as noções de sistematização e de objetividade, de modo que apenas com uma linguagem compreensível, logicamente e objetivamente coerente, é possível discutir racionalmente conhecimentos e problemas científicos, enquanto a segunda exprime a ideia de que a construção de conceitos lógicos e formais serve para representar objetos que possuem existência concreta, material e real na realidade, como campos, partículas e cérebros. De acordo com a última definição, sem o raciocínio formal, o qual consiste na ciência formal da lógica e da matemática, nenhum conhecimento seria possível, pois são necessários sempre símbolos e expressões matemáticas não apenas para representarobjetos, mas também para quantificar os dados oriundos da investigação científica. Até mesmo a filosofia contemporânea, como a filosofia analítica e a filosofia científica, trata o raciocínio lógico-matemático como essencial para a produção de conhecimento filosófico. No entanto, o conhecimento científico busca trabalhar com o raciocínio formal visando fornecer uma explicação mais adequada com base nos dados e nas evidências da investigação científica, de modo que não é um mero exercício lógico destituído de valor empírico. A pretensão de elaborar cada vez mais proposições e teorias ajustadas à realidade revela o aspecto de explicabilidade da ciência. Sem a pretensão de explicar a realidade, ou algum de seus níveis em particular (físico, químico, biológico, psicológico, social, artificial, etc.), os cientistas não teriam qualquer motivo para investigar o mundo e produzir conhecimento científico. A explicabilidade, portanto, refere-se simplesmente ao papel da ciência em investigar o mundo e prover conhecimentos cada vez mais profundos sobre as coisas. ASSIMILE 1. O conhecimento científico advoga pelo princípio de racionalidade, de modo que seu discurso é universalmente compreensível. 2. O aspecto corretivo do conhecimento científico é sempre guiado pelas evidências da realidade. 3. Toda a atividade científica cultiva o questionamento cético moderado ou razoável, que é orientado pela evidência. REVISIBILIDADADE, AUTONOMIA, ACUMULABILIDADE E VERIFICABILIDADE O conhecimento científico é justamente difícil de definir por conta de suas diversas características. Em comparação com o conhecimento religioso, por exemplo, apenas o conhecimento científico tem como preocupação acja revisibilidade de seus conceitos e teorias mediante a investigação científica. Enquanto o conhecimento religioso admite múltiplas interpretações de um texto como igualmente válidas, o que importa no conhecimento científico é a compatibilidade de seu corpo de conhecimento com as evidências, independente do que um cientista pensa a respeito. Pelo mesmo motivo, a ciência não deve ser comparada com a política, pois seu conhecimento não é decidido como verdadeiro mediante uma votação por decreto ou escolha da população. O conhecimento científico é tratado como verdadeiro quando os resultados de uma investigação apontam numa determinada direção. Já a autonomia existente na ciência pode se referir ao âmbito individual e coletivo, como quando um cientista tem liberdade para investigar - seguindo os protocolos éticos da pesquisa científica - e quando a ciência tem liberdade para investigar problemas que contradizem anseios políticos. Por exemplo, quando os cientistas sociais podem estudar livremente os impactos das desigualdades sociais nas populações de baixa renda, ou quando o objeto de estudo são os efeitos sistêmicos das mudanças climáticas, que, normalmente, contradizem interesses privados de empresas ou políticos. Contraexemplo: quando os cientistas são impedidos de investigar por conta de sua nacionalidade ou etnia, como ocorreu com os físicos judeus durante a emergência do nazismo na Alemanha, ou quando os pesquisadores são perseguidos pelo governo com a desculpa de serem infiltrados de uma potência mundial rival ou advogarem por uma suposta ideologia contrária à aceita pelo Estado, como aconteceu no caso dos geneticistas de plantas na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Mesmo com todas as dificuldades que a história da ciência revela sobre o processo de construção do conhecimento científico ao longo dos séculos, toda a experiência passada é traduzida em conhecimento sociológico, revelando que a ciência e a política, embora sejam atividades completamente distintas, dependem de uma relação amigável para prosperarem, seja para promover a investigação científica fornecendo recursos financeiros do Estado, seja para usar os resultados científicos na elaboração de políticas públicas mais justas. A acumulabilidade do conhecimento científico é o que justifica seu aspecto de progresso, justamente porque exemplos de experimentos malsucedidos são considerados, não apenas para refletir sobre os desafios metodológicos e epistemológicos da ciência, mas também para aumentar o rigor necessário durante a avaliação dos trabalhos que são submetidos para revistas científicas. Mais ainda, os resultados negativos na ciência, com base no olhar sociológico, podem revelar aspectos que foram negligenciados sistemicamente durante a época de aceitação ou implementação de uma ideia. Por exemplo, a aplicação política de ideias pseudocientíficas, que já não eram muito bem aceitas, no início do século XX, como a eugenia e o darwinismo social, levou ao extermínio de judeus, negros, pobres e pessoas com deficiência, sob o pretexto de “busca pela pureza genética”. A elucidação da pseudociência só foi possível graças ao princípio de verificabilidade da ciência, que é a ideia segundo a qual um enunciado, uma hipótese ou uma teoria deve ser passível de ser colocada à prova. No entanto, o conceito de verificabilidade requer um contexto adequado por conta de sua polissemia. A noção mais forte de verificabilidade foi apresentada pelo lógico Rudolph Carnap, durante a emergência do positivismo lógico do Círculo de Viena. Esse círculo era formado por um grupo de cientistas e filósofos interessados nos problemas filosóficos, históricos e sociológicos da ciência. A despeito dos mitos que circulam sobre o círculo, eles defendiam teses bastantes heterogêneas, tinham preocupações políticas e sociais sobre a atividade científica, não eram ingênuos e nem reducionistas (não reduziam todo o conhecimento às ciências naturais) e buscavam uma linguagem universal para a ciência. No entanto, a tese de Carnap ficou imensamente conhecida ao ponto de ser tratada equivocadamente como representativa de todo o círculo. A tese verificacionista de Carnap postulava que uma proposição tem sentido se, e somente se, existir alguma circunstância que permita sua verificação. Se não existisse alguma possibilidade de verificação, a proposição seria considerada como destituída de sentido e significado e, portanto, ela não faria outra coisa a não ser trazer pseudoproblemas. Essa tese foi duramente golpeada, justamente por outro filósofo que era simpatizante do círculo, mas que não fazia parte dele: Karl Popper. Karl Popper enfatizou que a tese não era suficiente como um critério para proposições, além de diversos outros problemas enumerados em sua obra A Lógica da Pesquisa Científica (2013), argumentando que a condição de verificabilidade não é suficiente para que uma proposição ou teoria seja considerada científica, mas simplesmente a condição de sua possível refutação. Para Popper, uma teoria é científica se, e somente se, existir alguma circunstância que permita sua refutação. Se não existir nenhuma circunstância passível de refutação, a teoria não é considerada científica. Com isso, Popper lançou as bases de sua hoje conhecida tese: o falseacionismo. REFLITA 1. Dado o sucesso do conhecimento científico na explicação de diversos fenômenos da realidade, o que torna a ciência um campo confiável? 2. Dado o contexto de negacionismo anticientífico na sociedade contemporânea, por que é importante adotar o ceticismo científico? 3. Por que a lógica é um elemento indispensável dentro do conhecimento científico? FACTUALIDADE, ANALITICIDADE E COMUNICABILIDADE A ciência não se resume a uma atividade puramente empírica. Ela também contempla disciplinas que lidam com aspectos formais do método científico, que usam seu aspecto de racionalidade para investigar problemas matemáticos, lógicos e semânticos. Para clarificar essa abrangência, é necessária uma distinção rápida sobre esses dois tipos de ciências: a ciência fática (ou factual) e a ciência formal. Como explica o filósofoMario Bunge em seu livro La Ciencia, su Método y su Filosofía (2014), a ciência fática lida com entes concretos ou materiais (como campos, partículas, animais, pessoas), adequa-se aos fatos e possui consistência empírica (como a física, a química, a biologia, a psicologia, a sociologia), enquanto a ciência formal lida com entes ideais (como números, conceitos, axiomas), adequa-se a um conjunto de regras e possui consistência racional (como a lógica e matemática). No entanto, tanto a ciência fática como a ciência formal normalmente se cruzam em um processo de enriquecimento contínuo. A ciência formal fornece à fática a analiticidade essencial para sua sistematização, formalização e objetividade. Com esse tratamento analítico, o conhecimento científico se torna mais exato, porque evita-se a ambiguidade e a armadilha da linguagem ordinária. Desse modo, justifica-se a definição de Bunge (2014) da ciência como um tipo de conhecimento sistemático, racional, exato, verificável e, portanto, falível, sendo a melhor reconstrução conceitual do mundo do qual fazemos uso. Finalmente, a ciência preza pela comunicabilidade, ou seja, os resultados científicos são passíveis de serem comunicáveis de forma objetiva para quaisquer pesquisadores ao redor do mundo. Mais ainda, os resultados podem ser traduzidos na linguagem ordinária com o objetivo de visar à popularização da ciência e ao enriquecimento cultural através da atividade de divulgação científica. EXEMPLIFICANDO 1. O conhecimento científico tem uma estrutura lógica ordenada, a qual permite a extração de proposições objetivas. 2. O conhecimento científico visa explicar a realidade em sua totalidade, adequando sua metodologia científica para o estudo de cada nível (físico, químico, biológico, psicológico, social e artificial). 3. O conhecimento científico progride ao longo do tempo, ajustando suas teorias às evidências, corrigindo imprecisões e mantendo seu aspecto questionador frente a uma gama de hipóteses sobre o mundo. Devido à natureza peculiar do conhecimento científico, suas diversas características revelam o porquê de ele poder ser considerado como um tipo de conhecimento mais profundo, verdadeiro e confiável. Embora muitos argumentem que o aspecto autocorretivo seja uma sentença de risco, o que levaria a duvidarmos cada vez mais do nível de verdade e profundidade desse tipo de conhecimento, ignora-se que a requerida compatibilidade das teorias com as evidências é o que aproxima a ciência da descrição mais precisa o possível da realidade. FAÇA VALER A PENA Questão 1 O ceticismo científico é uma das características fundamentais da ciência e de toda a atividade intelectual. O astrônomo e divulgador científico Carl Sagan escreveu uma obra chamada O Mundo Assombrado Pelos Demônios (2006), em que ele descreve exemplos de aplicação do ceticismo científico na vida cotidiana. O ceticismo, argumenta Sagan, é uma ferramenta indispensável para não deixar enganar a nós mesmos. Qual é a definição de ceticismo científico? a. Uma abordagem filosófica que adota a suspensão de juízo pela impossibilidade de provar algum fenômeno. b. Uma abordagem niilista que considera a ciência isenta de valores. c. A negação absoluta do conhecimento científico. d. Uma abordagem que consiste na dúvida metódica ou razoável aplicada a situações e afirmações destituídas de boas evidências. e. A crença religiosa no poder da ciência. Questão 2 A verificabilidade é a noção que advoga a preocupação com o teste experimental. No entanto, essa posição não pode ser confundida com o verificacionismo do Círculo de Viena e nem com o falseacionismo do filósofo da ciência Karl Popper. O que significa verificacionismo? a. Um critério de demarcação entre ciência e pseudociência. b. Um critério para verificar através da observação se certos enunciados são significativos. c. Um critério ético para a ciência. d. Um axioma matemático. e. Uma lógica não clássica. Questão 3 A lógica é uma ciência formal, embora possa ser aplicada na ciência fática com o objetivo de proporcionar melhor clareza e objetividade para os enunciados científicos. Seu uso evita a ambiguidade da linguagem ordinária, facilita o entendimento conceitual e impede a contradição no conhecimento científico. A dialética, por outro lado, tolera contradições e ambiguidades da linguagem ordinária. No entanto, ela ainda é considerada por muitos como uma ferramenta essencial para a ciência, os quais acabam ignorando suas implicações com o Princípio da Não Contradição de Aristóteles e defendendo que ela serve como uma técnica de comparabilidade entre ideias aparentemente distintas, a partir da qual, de alguma forma, seria possível a extração de uma nova ideia ou hipótese. Historicamente, qual pensador é considerado o pai da dialética? a. Friedrich Hegel. b. Friedrich Nietzsche. c. Martin Heidegger. d. Aristóteles. e. Heráclito. REFERÊNCIAS BUNGE, M. La Ciencia, su Método y su Filosofía. [S.l.]: Editora Sudamericana, 2014. CARNAP, R. The Logical Structure of the World and Pseudoproblems in Philosophy. [S.l.]: Editora Open Court, 2003. MARCONDES, D. Textos Básicos de Filosofia e História das Ciências: a revolução científica. [S.l.]: Editora Zahar, 2016. POPPER, K. A Lógica da Pesquisa Científica. 2. ed. [S.l.]: Editora Cultrix, 2013. SAGAN, C. O Mundo Assombrado Pelos Demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. [S.l.]: Editora Companhia de Bolso, 2006. FOCO NO MERCADO DE TRABALHO QUAIS SÃO AS CARACTERÍSTICAS DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO? Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira Fonte: Shutterstock. Deseja ouvir este material? SEM MEDO DE ERRAR Para resolver o problema, é necessário pensar nas circunstâncias sociais que moldam a administração e gestão universitária. Desse modo, pode-se concluir que a pseudociência mantém algum nível de prestígio e lugar na universidade, não por razões teóricas ou níveis de verdade, mas simplesmente pela pressão social exercida pelos próprios praticantes da disciplina, de modo que a simples existência de grupos fechados, onde apenas profissionais certificados da área sejam tolerados, contribui para o impedimento da livre circulação de ideias sobre os problemas que o campo enfrenta. Ao impedir que profissionais de outros campos relacionados tenham direito ao debate, como psicólogos experimentais, neurocientistas cognitivos e biólogos evolutivos, revela-se o indicador de dogmatismo, que está presente em qualquer pseudociência e visa impedir o fomento da crítica científica responsável com o objetivo não apenas de análise dos problemas de um campo, mas também de procurar ajustar suas hipóteses aos melhores dados disponíveis da investigação comportamental. Revelados seus aspectos opostos ao do conhecimento científico, justifica-se que um campo ou disciplina não se constitui de um saber científico autêntico. Então, é necessário também procurar saber as motivações que os envolvidos na prática teriam apenas para manter o ensino de psicanálise em instituições de educação, como a questão da remuneração excessiva envolvida e a reputação da qual gozam em certos setores universitários e da grande mídia. NÃO PODE FALTAR COMO AGIR COM ÉTICA NA PESQUISA CIENTÍFICA? Douglas Rodrigues Aguiar de Oliveira Fonte: Shutterstock. Deseja ouvir este material? PRATICAR PARA APRENDER Provavelmente, em algum momento de sua vida, você já pensou sobre as possíveis consequências éticas do uso de animais na pesquisa científica, ou mesmo sobre os experimentos nazistas com humanos. Com base nesses exemplos, é possível que você tenha considerado que a ciência poderia estar isenta de princípios éticos, ao menos é o que algumas pessoas defendem. No entanto, será que a ciência é um “tudo vale”,em que reflexões sobre a ética e a saúde dos indivíduos ou animais de laboratórios não são consideradas? Será que a ética representa um empecilho para o desenvolvimento pleno da ciência? Até que ponto devemos estar cientes da importância dos postulados éticos que norteiam a pesquisa científica? Na corrida não apenas por um entendimento profundo sobre doenças emergentes, mas também pelo desenvolvimento de medicamentos e vacinas, certos protocolos éticos desempenham sua importância na investigação científica. Além disso, a ética, enquanto campo de investigação, tem conseguido acompanhar a ciência com o objetivo de enriquecê-la ao estudar seus potenciais problemas éticos. Com base no estudo recíproco entre ciência e ética, alternativas cada vez mais humanísticas para o estudo em laboratório têm sido apresentadas, com o objetivo de evitar o uso e o teste desenfreados com animais. Mesmo o campo da tecnologia, que mantém uma relação bilateral com a ciência, também tem levado em consideração o raciocínio ético, principalmente ao pensar nas possíveis consequências sobre o desenvolvimento de armas e robôs automatizados em um contexto de guerra. Aqui, convido você a concentrar-se nos fundamentos éticos da pesquisa científica, analisando seus possíveis impactos e benefícios no desenvolvimento da ciência. Um grupo de cientistas quer investigar o cérebro humano e, para isso, eles lançam uma ficha de inscrição solicitando voluntários para sua pesquisa. A pesquisa é apresentada como tendo grande potencial para a área da saúde, com o objetivo de testar um futuro medicamento para a doença de Alzheimer. No entanto, a ficha de inscrição não diz nada sobre os possíveis riscos aos voluntários ao serem submetidos ao teste experimental. Em resumo, não há avaliação dos riscos sendo apresentada para os voluntários. Mesmo na ausência de protocolos de riscos, diversos voluntários assinam a ficha de inscrição com o objetivo de contribuírem para a ciência. Então, o grupo de cientistas inicia sua pesquisa neurocientífica. No experimento, os cientistas dividem seus voluntários em dois grupos: o grupo A e o grupo B. O grupo A recebe uma droga com potencial de reparar danos nas células cerebrais e maximizar a memória, enquanto o grupo B recebe placebo. Quem está incumbida de ministrar os comprimidos é uma enfermeira voluntária. No decorrer do experimento, o grupo A começa a relatar cefaleia, náuseas, vômitos, diarreias e perda de apetite. O grupo B, no entanto, relata apenas uma sensação de relaxamento. Então, após os cientistas decidirem dosar uma segunda leva de comprimidos, ocorre a morte de um voluntário no grupo A. O grupo de cientistas, então, decide que o experimento deve ser encerrado, por conta da morte e dos efeitos graves provocados pela ingestão da substância. acordo com a situação-problema, quais foram as violações éticas que o grupo de cientistas cometeu e que contribuíram para o fracasso do experimento científico? O progresso científico, guiado pelos princípios morais delineados nos demais mandamentos, é a condição indispensável do progresso humano e das liberdades individuais e por isso ele não será jamais obstado por qualquer princípio religioso, por relativismos culturais ou particularismos sociais que possam existir." Richard Dawkins. CONCEITO-CHAVE A ÉTICA NA PESQUISA CIENTÍFICA: A QUESTÃO DOS VOLUNTÁRIOS A ética é um campo de conhecimento filosófico que estuda os princípios éticos. No entanto, existe também uma ética científica, que é o enfoque multidisciplinar que, em conjunto com a ciência, busca avaliar a plausibilidade da adoção de certos princípios éticos e normas sociais. No geral, esse campo pode ser visto como o estudo do comportamento moral com base na antropologia, na psicologia, na sociologia e na história, tratando de abordar o surgimento, a manutenção, a reforma e o declínio das normas sociais, enquanto a ética filosófica analisa conceitos éticos, como altruísmo, bondade e cooperação, bem como filosofias éticas ou simplesmente preceitos morais, ou seja, ações justificadas por princípios éticos filosóficos que podem ser benéficas ou nocivas para outras pessoas. A ética também estuda a ciência – especialmente, as normas éticas que vigoram na comunidade científica. Ela estuda ainda o impacto ético de certos estudos que são feitos com animais e humanos. Além disso, a ética está interessada no comportamento inadequado durante o desenvolvimento de uma pesquisa – principalmente, na motivação do cientista em fraudar resultados. De fato, a ética é uma disciplina abrangente por conta de sua ampla gama de problemas estudáveis, sobretudo da ciência. Entre os diversos problemas éticos que advém da atividade científica, três merecem atenção: a questão do consentimento dos voluntários para o desenvolvimento de uma pesquisa, o problema da preservação de identidade e integridade e, por último, a relação entre voluntários e pesquisadores no decorrer da investigação científica. O primeiro problema ético, que envolve a questão do consentimento dos voluntários, refere-se à autorização prévia de uso de certos dados dos participantes na pesquisa científica. De outro modo, uma pesquisa que utiliza de forma indevida dados de seus voluntários sem o consentimento necessário está violando princípios éticos e, consequentemente, prejudicando a qualidade da pesquisa. O segundo problema ético, referente à preservação de identidade e integridade, refere-se à proteção de informações sensíveis dos participantes de um estudo experimental. Também se refere ao princípio de que os participantes devem estar cientes dos riscos envolvidos no teste experimental do qual serão voluntários – nesse caso, é importante deixar claros os possíveis riscos trazidos aos voluntários ao se submeterem ao experimento. O terceiro problema ético envolve a relação entre voluntários e pesquisadores. Nesse sentido, o problema mais evidente é a possível manipulação do comportamento dos voluntários de acordo com a intenção do cientista de obter um resultado específico em um estudo clínico. Por exemplo, um voluntário poderia agir de acordo com as expectativas do pesquisador ao ser submetido a um teste clínico para investigar a eficácia de algum fármaco – o que, consequentemente, enviesaria os resultados, prejudicando a qualidade da evidência. O voluntário poderia dizer que, ao ingerir o fármaco testado, ele conseguiu obter os melhores benefícios à saúde, mesmo que o relato, de fato, não proceda. Portanto, durante a condução de testes clínicos, principalmente no âmbito da saúde, é necessário que os voluntários sejam selecionados de forma aleatória (randomizados), que exista uma amostragem significativa para ser representativa e, mais ainda, que existam grupos de controle de placebo – especialmente para identificar a possibilidade de o resultado obtido sobre a eficácia do fármaco ser estatisticamente significativo quando comparado ao grupo que tomou placebo (por exemplo, uma pílula de farinha que visivelmente parece ser o fármaco real, mas sem suas propriedades farmacológicas). ÉTICA COM OS DADOS DA PESQUISA A ética também está relacionada à forma como o trabalho científico é produzido e apresentado na hora da avaliação pelos pares, de modo que plágios, manipulações de dados estatísticos e falsificações não são tolerados quando descobertos pelos revisores. Na pseudociência, acontece o contrário: a manipulação e falsificação de dados é sempre tolerada em nome do convencimento público em favor de uma hipótese. Por exemplo, o caso envolvendo o hoteleiro Erich von Däniken, autor do livro Eram os Deuses Astronautas? (2018), que falsificou dados para apoiar a sua reivindicação de que os alienígenas teriam visitado a Terra no passado e ajudado as civilizações antigas a construírem artefatos megalíticos; e o caso relatado pelo crítico literário
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