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DESCRIÇÃO O nascimento da Filosofia, na Grécia Antiga. As diferenças entre mito e razão, cosmologia e cosmogonia. O papel da pólis e da política no contexto do nascimento da Filosofia. Mitos e alegorias em Platão. A lógica como ferramenta para o pensamento racional. Falácias e outras falhas argumentativas. PROPÓSITO Compreender a origem da Filosofia e como ela se desenvolveu, fornecendo ferramentas para construir reflexões mais profundas, sem falhas e sobre todos os temas, de todas as áreas, inclusive no âmbito do nosso cotidiano: seja na hora de formular um pensamento complexo, seja quando usamos argumentos racionais. OBJETIVOS MÓDULO 1 Comparar diferentes versões sobre a origem da Filosofia MÓDULO 2 Identificar questões iniciais da disciplina nascente e a maneira como ela se desenvolveu MÓDULO 3 Listar algumas maneiras de aprimorar a construção de argumentos racionais, a partir das diversas formas de conclusão INTRODUÇÃO Alguma coisa aconteceu ali na Grécia por volta do século VII ou VI antes da Era Comum que mudou a maneira de o mundo inteiro pensar o nascimento da Filosofia. Ou melhor, essa é, na verdade, apenas umas das versões da história. Antes de tudo é preciso explicar que a Grécia não era um país como o conhecemos hoje, mas cidades espalhadas por uma região que, à época que nos referimos, ia do sul da península itálica e ilha da Sicília (a Magna Grécia) até onde fica atualmente a Turquia (a Grécia Oriental). Aliás, o evento que marca “oficialmente” o nascimento da Filosofia teria acontecido exatamente nessa parte da Grécia-Turquia, na região da Jônia. Desde o início, sabe-se que a Filosofia é uma maneira de pensar e resolver problemas. A partir de então, essa forma de encarar as questões da vida vem sendo debatida: era uma novidade ou apenas uma adaptação? Era uma continuação ou uma ruptura? Sendo possível chegar a algum tipo de definição sobre o que foi (e é) essa filosofia, seria a tentativa de responder às dúvidas do mundo usando o lógos , isto é, o termo grego para a razão, o discurso, o entendimento ― tudo ao mesmo tempo. javascript:void(0) E assim, como você verá ao longo deste conteúdo, a Filosofia rapidamente se tornou a base sobre a qual todo o conhecimento da chamada civilização ocidental se apoiou desde a sua célebre ― e polêmica ― data de nascimento. Trata-se de uma base fixa, mas que pode, dependendo do intérprete, ser deslocada para outro lugar, outro período e outros autores. Mas se não fosse assim tão controversa e objeto de disputa, também não seria a Filosofia. ERA COMUM “Era Comum” (E.C) substitui as expressões “antes de Cristo” (a.C) e “depois de Cristo” (d.C) concebidas na lógica cristã para marcar o calendário gregoriano. Em respeito às demais religiões, hoje utiliza-se A.E.C., sigla para “antes da Era Comum”, e E.C. para “Era Comum”. MÓDULO 1 Comparar diferentes versões sobre a origem da Filosofia NASCIMENTO DA FILOSOFIA Foto: knipsdesign/Shutterstock.com Determinar a data do surgimento de uma corrente de pensamento específica, de uma disciplina de estudo ou, enfim, de uma maneira nova de encarar os problemas do mundo é, em geral, uma tarefa difícil, mesmo quando temos uma espécie de “certidão de nascimento”. Além disso, não é por falta de uma “certidão” com data de nascimento e até mesmo de um “pai” que a questão surge, pois é bastante comum que se diga que Tales de Mileto, que viveu entre o final do século VII A.E.C. e o início do século VI A.E.C. na região da Jônia, onde hoje é a Turquia, foi o primeiro filósofo. O problema é que estabelecer isso não resolve muitas coisas, já que ainda ficam no ar as mesmas dúvidas sobre quais foram as influências, os caminhos pregressos; em síntese, dúvidas sobre o que faz da Filosofia o que ela é, o que nos daria um parâmetro para saber o que poderíamos considerar como o seu início. Uns poucos eruditos ― como o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) ― dizem que a Filosofia (a verdadeira Filosofia) teria surgido apenas a partir da tríade Sócrates-Platão- Aristóteles, entre os séculos V e IV A.E.C., e os pensadores que vieram antes participariam de outra coisa, de uma cosmologia (uma explicação racional sobre a origem do mundo) ou do simples estudo da natureza (que na época dos gregos antigos era chamada de phýsis , cujo termo, por sua vez, deu origem ao termo “física” da atualidade). É comum, inclusive, que esses primeiros pensadores sejam também chamados de fisiólogos. Há quem proponha quase o oposto, como o polêmico alemão Friedrich Nietzsche (1844- 1900) em alguns trechos mais controversos da sua obra. Segundo o autor, a Filosofia teria nascido, existido e perecido apenas no “curto” tempo dos pensadores que vieram antes de Sócrates, Platão e Aristóteles ― e que por vezes são também chamados por essa razão de “originais” ou pré-socráticos. Foto: Davidandrade/Wikimedia commons/CC BY-SA 2.5 Busto de Sócrates, cópia romana da obra original de Lisipo, em bronze (século I a.C.) Outros estudiosos, em maior número, dizem que a Filosofia, ou ao menos uma protofilosofia (isto é, uma disciplina ainda incipiente, pouco desenvolvida), nasceu em outros lugares e em outras épocas e que os gregos são apenas continuadores dessa tradição cuja origem se perderia no espaço e no tempo. Imagem: Spinoziano/Wikimedia commons/Domínio Público Diógenes Laércio em gravura do século XVII. Há até o curioso caso do grego Diógenes Laércio (c. 200-250 A.E.C.), considerado uma espécie de primeiro historiador da Filosofia e biógrafo dos filósofos antigos. Logo na frase que abre a sua obra mais famosa, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (LAÊRTIOS, 2008), já diz: “Dizem alguns que a Filosofia, exceto o nome, teve sua origem entre os bárbaros”, ou seja, fora da Grécia. Em seguida, ele começa a elencar as tais possíveis localidades de origem: Pérsia, Babilônia, Assíria, Índia, isso tudo do lado oriental da Grécia, e até mesmo na banda ocidental, entre os celtas e druidas. Em seguida, Diógenes ainda lembra que alguns egípcios também diziam que a nação dos faraós e das pirâmides seria o berço dessa forma bem particular de pensar. Essa passagem, apesar de rapidamente mencionada por Diógenes, é um dos elementos mais fortes na controvérsia sobre a origem da Filosofia ― até hoje se discute o que teria influenciado os gregos. Já havia na época de Tales sábios, livres-pensadores, eruditos, gente instruída e muito iluminada que encarava os problemas que encontrava e tentava dar respostas à altura das questões. Isso no mundo inteiro. Ou seja, não foi a Grécia que “inventou” o pensamento, senão um tipo de pensamento específico. Na Índia e na China antigas, para ficar em apenas dois exemplos famosos, Buda (c. 563-483 A.E.C.) e Lao-Tsé (604-517 A.E.C.) já despontavam como grandes nomes que inspiraram ― e ainda inspiram ― uma multidão. Isso sem contar os profetas do Oriente Médio retratados na Bíblia, os grandes homens da Antiguidade, os xamãs ameríndios que não deixaram nada registrado por escrito e foram apagados pela história oficial, e os grandes expertos africanos que foram também escanteados na hora de contarem como nós chegamos até aqui. Além, é claro, de uma infinidade de nomes que poderiam encher todas as páginas da internet. Imagem: Daderot/Wikimedia commons/CC BY-SA 1.0 Alto-relevo representando Cenas da Vida de Buda do período da Dinastia Kushan (entre os séculos II e III d.C.). Voltando a Diógenes, ainda nos parágrafos iniciais ele tenta resolver a questão de uma maneira até bastante abrupta e diz, sem meias palavras, que todos os que defendiam a origem da Filosofia fora da Grécia “pecam por ignorância”. Atualmente, quem acredita nessa excepcionalidade grega — como se os nascidos naquela região àquela época não precisassem de nada nem ninguém fora das suas fronteiras para criar a Filosofia — pode ser acusado de ser etnocêntrico, isto é, de praticar um tipo de preconceito que considera determinado grupo socialou etnia automaticamente superior aos demais. Tal comportamento, elevado ao extremo, pode ter consequências nefastas. Exemplo disso pode ser tanto a relação entre colonizadores e colonizados, ao longo da História, como os regimes nazifascistas do século XX. Em ambos os casos, determinado grupo desconsiderava por completo todos aqueles que lhe era diferente, levando os desconsiderados à destruição, fosse cultural, fosse literalmente. De qualquer forma, e para voltar ao ponto de Diógenes (que seguia determinados preconceitos típicos de seu tempo, mas ― importante frisar ― não propunha mesmo a eliminação do estrangeiro, do diferente), lembremos que um dos argumentos levantados por ele é que a própria palavra “filosofia” tinha origem grega. Parece, à primeira vista, um argumento fraco: não é porque batizamos determinado fenômeno que ele pertencerá a determinada nação. Entretanto, se desconsiderarmos essa ligeireza no raciocínio que pula muitas etapas para acompanharmos o que ele tinha provavelmente em mente, dá para perceber que há algo de razoável no ponto levantado por Diógenes. Como se sabe, “filosofia” é um termo que é a junção das palavras gregas filos (que quer dizer algo como amigo) e sofia (sabedoria), ou seja, numa leitura etimológica, que remete à origem das palavras, é o amor à sabedoria. O que Diógenes pode estar querendo implicitamente sugerir é que, sem ser uma relação direta de causa-e-consequência, mas também sem ser exatamente uma “coincidência”, quando tal termo foi cunhado na Grécia, teria havido também uma transformação da maneira de se pensar o mundo. É inegável a influência de outras culturas nos povos que formavam a Grécia antes do período de Tales, Anaximandro e Anaxímenes (a tríade seminal de Mileto), principalmente por conta do comércio e intercâmbios diversos com outras áreas do mundo, em especial na parte a leste da região, a que adentra a Ásia. Os gregos, contudo, organizaram essa herança e a transformaram em algo bastante diferente a ponto de a produção que dali surgiu ser vista como uma novidade, tanto que merecia um novo nome: filosofia. Aliás, nome dado por um dos mais famosos pensadores originais: Pitágoras de Samos, aquele do conhecido teorema. MITO VERSUS RAZÃO Imagem: Livioandronico2013/Wikimedia commons/CC BY-SA 4.0 A Queda dos Gigantes , por Giulio Romano (1534). Ao tentarmos estabelecer o que é a filosofia, ou seja, quando determinado tipo de pensamento começou a ser chamado assim, percebemos que é possível encontrar um grande apanhado de diferentes versões (CHAUÍ, 2002). Um dos exemplos é o debate já mencionado entre uma possível origem oriental, externa, em oposição à origem espontânea, interna. Podemos encontrar, porém, outras discussões interessantes que estão de acordo com vários dos principais nomes da Filosofia dos tempos recentes (reforçando que aqui “recente” é relativo aos termos dessa senhora disciplina de já quase três milênios de idade), a saber, que a sua origem está associada tanto a certa ideia de equilíbrio como, inversamente, de desproporção. Foto: Jastrow/Wikimedia commons/Domínio Público Apollo Belvedere . Nietzsche (1992) fala sobre como haveria, no momento anterior ao chamado período clássico (que vai de Sócrates, passando pelo seu discípulo Platão e chegando no seu aluno, Aristóteles) uma força dionisíaca na produção artística de certas peças teatrais que foram chamadas de tragédia. Essa energia associada a Dionísio, o deus dos excessos, da embriaguez, do próprio teatro, teria sido coibida, dominada, diminuída, no período clássico para uma mentalidade apolínea, isto é, associada a Apolo, o deus da ordem, da temperança, da justiça. O que todos de forma geral concordam é que a Filosofia, tal qual se consolidou em consenso, modifica a forma de pensar, saindo de uma interpretação de mundo povoado por mitos e cujas pessoas criam nas superstições as mais selvagens, para um mundo em que as explicações são ligadas a uma cadeia longa de causa e consequência, uma proposição menos ligada ao divino, um tipo de entendimento do mundo em que a vida dita material importa mais. A discussão sobre quem começou esse tipo de forma de interpretar o mundo, entretanto, não se esgotou. Foto: Jastrow/Wikimedia commons/CC BY-SA 2.5 Estátua de Dionísio, mármore do século II d.C. Um dos argumentos sobre por que tal acontecimento se deu nas cidades gregas lembra que seus habitantes eram hábeis comerciantes que frequentavam regularmente o estrangeiro. Assim, as lendas sobre povos vizinhos sempre eram confrontadas com a realidade ao se encontrar esses povos face a face. Não adiantava dizer que o homem persa comum tinha três metros de altura quando, ao chegar à Pérsia, percebia-se que o vizinho era bem mais parecido consigo do que se esperava. Outro fator que também colaborou para transformar o pensamento grego de uma fonte puramente mítica para uma filosofia tem a ver com a tradição poética que remete a Hesíodo e a Homero (de cuja identidade ninguém tem certeza, até hoje, podendo ser apenas um conjunto de poetas que estabeleceu um conteúdo escrito a partir de certas narrativas orais antiquíssimas). Esses poetas já tinham começado um processo de sistematização que abriu a possibilidade de os primeiros filósofos tentarem, a partir de uma cosmogonia, estabelecer uma cosmologia. Se ambos os termos (cosmogonia e cosmologia) remetem a maneiras de explicar como do caos original no princípio de tudo surgiu o mundo ordenado, a cosmogonia responde essa questão personificando cada um dos elementos da phýsis e fazendo uma genealogia desses seres. Assim, água, ar, terra e fogo se transformam em deuses individuais que, a partir dos encontros sexuais entre si, geram todas as coisas que existem. Já os cosmólogos, que seriam os primeiros filósofos (também conhecidos como pré- socráticos), despersonalizam os elementos e os tratam como potências impessoais, ativas, mesmo em alguns casos ainda sagrados. Os mitos seguem a lógica da cosmogonia ― geralmente narram a ordenação do mundo a partir da ação de um deus ou de um demiurgo que poderia ser também rei. A Filosofia, por sua vez, revisita a mesma questão (como um mundo se organiza a partir do caos?), mas tenta explicá-la com argumentos racionais, fundamentando pelo discurso e pelo pensamento todas as coisas que existem, o todo, isto é, o ser. PÓLIS E POLÍTICA Imagem: Cheposo/Wikimedia commons/Domínio Público Oração Fúnebre de Péricles , por Philipp Foltz (1877). Haveria outra forma de explicar o início da filosofia na Grécia ― era um modo de pensar mais de acordo com a organização social que apareceu especialmente nas comunidades daquela região, naqueles tempos, e que se chamou pólis. Mais do que a invenção do calendário, que marca abstratamente o tempo, da moeda, que traz um valor real para a abstração numérica nas relações comerciais de troca, e da escrita alfabética, que transcreve também de forma abstrata as palavras e os pensamentos ― e a abstração é inegavelmente uma marca importantíssima na filosofia desde seu início ―, o nascimento da cidade-estado, ou pólis, seria a principal motivação histórica para a Filosofia. Essa é a tese da professora Marilena Chauí (2002). A política, a maneira criada para se ordenar nesses espaços, proporcionaria uma espécie de efeito de espelhamento na Filosofia. Antes das pólis, as antigas povoações tinham como fio aglutinador o que a professora chama de “mestres da verdade”, ou seja, poetas, adivinhos e reis de justiça, todos que trabalham dentro de uma lógica ainda bastante permeada por mitos. Já a pólis precisou de um novo modelo organizador da verdade, esse princípio fundamental para que se haja cooperação, correlação, para que haja, enfim, qualquer tipo de aglomeração social mais coesa e ordenada. O filósofo veio se apossar desse espaço político antes ocupado pelo poeta, pelo adivinho, pelo rei da justiça, todos personagens que apenas proferem verdades, sem muita preocupaçãocom o seu lastro material, com o fundamento “realista” dessa verdade. E o filósofo veio substituí-los usando novas, digamos, “tecnologias sociais”, ou seja, baseando-se no diálogo, nas trocas, nos debates entre as mais diversas figuras. Essa era a alma da pólis. Foto: Snotty/Wikimedia commons/Domínio Público Sacerdotisa de Delphos , por John Collier (1891). Vale ressaltar que os filósofos não foram os primeiros a propor diálogos públicos ― os guerreiros gregos também participavam de assembleias em que todos teriam direito a emitir suas opiniões e proferir suas falas para decidir estratégias de ataque, por exemplo. Além disso, todos eram considerados iguais perante as regras que o próprio grupo tinha estabelecido. Tudo ― e esse detalhe pode espantar hoje em dia ― na maior laicidade possível. Isto quer dizer: nessas discussões, a questão religiosa não era necessariamente central. Mas esse detalhe já aparece até na mitologia descrita por Homero. Nesses escritos, já havia um caráter mais “democrático”, menos autoritário, ainda que as personagens fossem deuses. Em várias ocasiões, Zeus chama os outros deuses do Olimpo para debater sobre determinada ação, em vez de tomar uma decisão auto ou monocrática. Os filósofos acrescentam a esse tipo de procedimento ― esse debate público dos guerreiros, dos deuses ― a busca pela verdade: um termo tão plural que, ao longo de toda a História, se mostrou inalcançável como meta, mas que continua regulando nossas relações interpessoais, nosso destino, nossa vida. A filosofia, assim, nasce desse discurso público, preocupado com o diálogo, sempre em compartilhamento com os demais membros da comunidade, em busca da tomada de decisão. O filósofo se abastece das opiniões dos seus companheiros na tentativa de produzir argumentos para convencê-los, tornando sua reflexão como a verdade aceita, mesmo que momentaneamente. O inverso também pode ocorrer, caso não consiga convencer ninguém. Além de ser uma espécie de cosmologia, de fisiologia, de ser uma leitura racionalista do mundo, a Filosofia, acima de tudo, nasceu também política e da política, visto que preocupada com as questões à sua volta e desejosa por resolver os problemas mais práticos possíveis que porventura havia. A abstração filosófica servia e tem que servir para o mundo material. Como se propusesse intrinsecamente que o mundo até pode ter nascido do caos, mas vivemos, e podemos tentar continuar a viver, em algo mais próximo da ordem. Vejamos as condições para o surgimento da Filosofia na Grécia clássica. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. POR QUE É TÃO DIFÍCIL ESTABELECER COM EXATIDÃO O SURGIMENTO DA FILOSOFIA, APESAR DE HAVER UM QUASE CONSENSO SOBRE QUEM TERIA SIDO O PRIMEIRO FILÓSOFO (TALES), SUA REGIÃO (JÔNIA) E O PERÍODO EM QUE VIVEU (SÉCULOS VII-VI A.E.C)? A) Porque Tales não deixou qualquer obra escrita, o que, consequentemente, faz com que não tenhamos certeza se ele viveu ou não. B) Porque Tales é apenas um dos nomes da Jônia e provavelmente o menos importante entre todos os que ali apareceram. C) Porque ainda ficam dúvidas sobre as influências que esse primeiro pensador recebeu e, principalmente, sobre o que seria exatamente a filosofia. D) Não é nada difícil: na verdade, qualquer tipo de controvérsia nesse sentido é apenas a discussão infantil sobre assuntos desimportantes. E) Porque dizer que a Filosofia é grega poderia soar como uma espécie de xenofobia em relação aos demais povos da Antiguidade. 2. NA BUSCA DA COMPREENSÃO PELO NASCIMENTO DA FILOSOFIA, ALGUNS CONCEITOS SÃO FUNDAMENTAIS. É O CASO DE COSMOGONIA E COSMOLOGIA. MAS SE AMBAS TENTAM EXPLICAR COMO O MUNDO SE ORDENA A PARTIR DO CAOS, QUAL É, EM RESUMO, A DIFERENÇA ENTRE COSMOGONIA E COSMOLOGIA? A) A cosmogonia é a demonstração do cosmos como ágon , que quer dizer disputa em grego; já a cosmologia mostra o cosmos muito mais ordenado, como representado pelo termo grego lógos . B) A cosmogonia tenta explicar o mundo a partir da racionalidade, da lógica, da matemática, enquanto a cosmologia é o inverso: baseia-se apenas em narrativas ficcionais e de caráter alegórico. C) A separação demonstra um tipo de preconceito tradicional da cultura ocidental, que coloca as culturas baseadas em mitos numa posição de inferioridade em relação àquelas que se basearam na razão. D) A cosmogonia é relacionada com os primeiros filósofos, os pré-socráticos, que tinham uma relação direta com os seres da natureza; já a cosmologia remete à tríade Sócrates-Platão- Aristóteles, na época clássica da Filosofia. E) A cosmogonia tenta personificar todos os elementos da phýsis em seres divinos, enquanto a cosmologia despersonaliza os elementos e os tratam como potências impessoais. GABARITO 1. Por que é tão difícil estabelecer com exatidão o surgimento da Filosofia, apesar de haver um quase consenso sobre quem teria sido o primeiro filósofo (Tales), sua região (Jônia) e o período em que viveu (séculos VII-VI A.E.C)? A alternativa "C " está correta. Para saber a origem de uma disciplina, é necessário saber o que essa disciplina é . Assim, seria possível investigar em que momento tal modo de pensar surgiu ― sem qualquer segurança de se encontrar resposta, já que, no caso da Filosofia, não necessariamente teríamos registros históricos. Para piorar, as definições de filosofia variam muito ― como também variam os seus marcos temporais. 2. Na busca da compreensão pelo nascimento da Filosofia, alguns conceitos são fundamentais. É o caso de cosmogonia e cosmologia. Mas se ambas tentam explicar como o mundo se ordena a partir do caos, qual é, em resumo, a diferença entre cosmogonia e cosmologia? A alternativa "E " está correta. Os cosmólogos, também conhecidos como fisiólogos ou mesmo pensadores originais, organizam sistematicamente o mundo à sua volta, com uma narrativa lógica, que respeita causa-e-consequência. Já a cosmogonia está num âmbito mais mitológico, com deuses que são responsáveis por tudo o que há. MÓDULO 2 Identificar questões iniciais da disciplina nascente e a maneira como ela se desenvolveu QUESTÕES INICIAIS DA FILOSOFIA Foto: Richard Panasevich/shutterstock.com Quando nasceu, a Filosofia possuía certas questões bem particulares. Muitas, se não todas, chegaram até hoje, ainda nos convidando a pensar. De certa forma, essas perguntas estavam dentro do conjunto de pensamentos da já mencionada cosmologia, isto é, da tentativa de produzir uma explicação para a ordem do mundo. Não uma explicação qualquer, mas uma que fosse racional e que não ficasse à mercê da vontade de deuses temperamentais. Para começar, os filósofos originais não acreditavam que algo vinha do nada, ou que voltava ao nada. Parece meio óbvio, mas é bem diferente do que aconteceria muitos séculos depois com o cristianismo, por exemplo, segundo o qual o mundo foi criado a partir do nada (ex nihilo é a expressão em latim utilizada) por um ser onipotente. O caos, o estado original do mundo, diriam os filósofos originais, já era algo, mas um algo bagunçado. Um aglomerado de elementos confusos, desarrumados, incoerentes. O que eles queriam saber é como que dessa barafunda se fez a luz. Haveria, sim, eles sugeriram, uma espécie de fundo eterno em todas as coisas, mas também, e ao mesmo tempo, quase numa contradição, uma transformação constante. Para, então, evitar que o mundo se degrade por completo e bem rapidamente, era necessário um sistema interno de compensações. E eles queriam saber como funcionaria esse sistema. Imagem: Olcia/Wikiart/Domínio Público A Desintegração da Persistência da Memória , por Salvador Dalí (1954). Esse fundo eterno em que brotam todas as coisas que existem recebia o nome de phýsis , que tem uma infinidade de possibilidades de tradução. Desde esse brotar referido, passando pelo que faz algo o que ele é, ou seja, uma espécie de essência de cada coisa; como também a própria ideia de natureza, como o arcabouço onde todas as outras coisas podem se criar e sereproduzir. Aliás, como já aludido, “natureza” é provavelmente o termo mais utilizado para traduzir tal palavra. Já a tal transformação constante de todos os seres que existem foi chamada pelos gregos de kínesis , que veio a dar em nosso “cinema”, e cuja tradução mais aproximada é de “movimento”. É preciso, contudo, pensar esse movimento em sentido mais lato, denotando qualquer modificação de estado dos entes, como o crescimento, o envelhecimento, a morte, e também a mudança de estado de espírito, físico etc. Imagem: xennex/Wikiart/Domínio Público Dupla Imagem para o Destino , por Salvador Dalí (1954). Tal sistema demonstrava que qualquer ente tinha, ao mesmo tempo, um fundo comum e eterno, a sua phýsis , mas também sempre se modificava a cada instante, estava sempre vindo a ser, possuía, em resumo, um devir. Essa variação entre uma estabilidade e um movimento intrigava os filósofos originais ― e intriga os filósofos até hoje. Se tudo muda, sempre, é possível dizer que algo ainda é o mesmo? Ou ainda: como algo sai de uma unidade, como essa identidade da phýsis , e se torna diferente e múltiplo? Ou o inverso: como algo que é múltiplo, como, por exemplo, o caos, que os gregos diziam ser o início de todas as coisas, pode se tornar algo ordenado e, de certa forma, uno, como a phýsis ? Por fim, essa distinção entre movimento e estabilidade, modificação e identidade, diferença e repetição (título de um livro do filósofo francês do século XX, Gilles Deleuze, demonstrando a atualidade da discussão), fez com que os filósofos originais sugerissem um caminho para interpretar essa divergência. Aliás, de forma geral, é possível ver que não há exatamente uma ruptura por completo, um jogar tudo fora e recomeçar do zero, com a chegada de Sócrates-Platão-Aristóteles na cena filosófica. Os pensadores da época clássica, apesar de terem uma abordagem mais sistemática e ainda mais racional que os seus antecessores, frequentemente faziam referência a um ou outro filósofo predecessor e eram bastante reverentes à história da Filosofia. Platão, por exemplo, menciona com bastante reverência Parmênides no seu diálogo homônimo. O pré-socrático foi quem teria pela primeira vez falado do ser ― esse termo que a Filosofia de um modo geral gosta de usar como aquilo que estabelece o “uno” de todas as coisas, para falar sobre o que alguma coisa é . Já Aristóteles, tão costumeiramente professoral, faz quase sempre uma lista histórica dos seus predecessores em muitos dos inúmeros temas sobre os quais ele escreveu. Imagem: Kallinikov/Wikimedia commons/Domínio Público Detalhe da obra Academia de Atenas , de Rafael Sanzio (1510), destacando a figura do filósofo pré-socrático Parmênides. PLATÃO: MITOS E ALEGORIAS POR TODOS OS LADOS Foto: Jonund/Wikimedia commons/Domínio Público A Caverna de Platão , por Michael de Coxcien (século XVI). Além dessas citações às suas influências, os filósofos também fazem uso frequente de mitos antigos e de histórias que inventam e que não são exatamente “realistas” ― ao contrário, são profundamente metafóricas. O caso mais conhecido é o da alegoria da caverna. No capítulo VII de A república , talvez o livro mais famoso e importante de Platão e de toda a história da Filosofia, Sócrates ― professor de Platão e protagonista da maioria dos diálogos platônicos ― narra para Glauco (irmão mais velho de Platão) uma história com homens acorrentados dentro de uma habitação subterrânea, com apenas uma saída, virada para a luz exterior, luz esta fornecida pelo sol. Os homens, considerados prisioneiros, não se mexem e só conseguem enxergar as sombras daquilo que acontece atrás deles, projetadas na parede. Um deles consegue se desvencilhar dos grilhões e sai da gruta em direção ao exterior e ao sol. Num primeiro momento, ele tem dificuldade de enxergar, mas, aos poucos, vai se acostumando até que vê as coisas como elas são e, depois, o próprio sol. Impressionado com a visão das coisas verdadeiras, ele, que estava acostumado a apenas ver meras sombras, decide voltar e contar para os demais prisioneiros a verdade, mas a recepção não é das melhores. De maneira bem resumida, esse é o mito (ou alegoria) da caverna. Segundo consta no iniciozinho dessa mesma passagem, tal trecho tinha a intenção de falar sobre educação. Já ao fim do excerto, Sócrates refaz seus cálculos se referindo aos conceitos mencionados na obra, como, além da própria educação, falar também sobre justiça, sobre a construção da cidade ideal, sobre os filósofos como melhores governadores etc. Imagem: xennex/Wikiart/Domínio Público Retrato de Juan de Pareja ajustando um cordão em seu bandolim , por Salvador Dalí (1954). Mas seria também possível aplicar a alegoria às propostas que irão ainda aparecer, como ideia, o Bem, a relação entre verdade e aparência etc. O homem que consegue sair para ver o sol estaria vendo as coisas como elas são, sem qualquer anteparo. Platão é considerado um dos pioneiros no uso de analogias para tentar explicar conceitos filosóficos. Em seus diálogos, essas passagens funcionam como os exemplos dados por professores em salas de aula. É um recurso didático, pedagógico, e também filosófico, porque nos faz pensar junto a ele, acompanhar seu caminho de raciocínio. Outra história que ficou famosa é a do anel de Giges, da mesma obra. Nesse pequeno conto (PLATÃO, 2000) Glauco é o narrador, Sócrates é o ouvinte. A trama se passa com Giges, que foi rei da Lídia (c. 687-651 A.E.C.) na Ásia Menor. Segundo a narrativa de Glauco, Giges consegue chegar ao trono após ter encontrado um anel que o torna invisível e que, por isso, o deixa agir de maneira “injusta”, sem reprovação dos pares. Assim, ele pode matar o monarca anterior a ele (Candaules) e casar-se com sua viúva. O ponto de Glauco era demonstrar que só agimos de forma “justa” porque temos uma responsabilidade coletiva (somos vistos pelos outros), enquanto Sócrates, com suas noções idealizadas, pensa o inverso: é melhor sermos sempre justos. Imagem: Themadchopper/Wikimedia commons/Domínio Público Sócrates em busca de Alcibíades na Casa de Aspásia , por Jean-Léon Gérôme (1861). Para Sócrates, ser justo tem a ver com agir de forma a estar adequado ao que se é. “Conhece- te a ti mesmo”, a famosa frase que ficava no templo dedicado a Apolo, é um aforismo que Sócrates gostava. Para explicar esse seu ponto e fazer um paralelo entre a justiça individual e a coletiva, ele começa então a montar sua famosa cidade perfeita. O ponto aqui é outro, entretanto: a forma como Platão também se utilizava de narrativas ficcionais para filosofar. Inclusive, apesar de Giges ter existido segundo relatos de historiadores, como Heródoto (485–425 A.E.C.), Platão tomou a liberdade de inventar esse “detalhe” do anel. Foto: Jastrow/Wikimedia commons/CC BY-SA 2.5 Busto de Heródoto, cópia romana do período imperial (século II d.C.). Os exemplos dessa mistura de ficção e filosofia em Platão abundam. Ele próprio, um grande defensor da verdade acima de tudo, propõe no Livro III de A República uma “fábula honesta” ou uma “nobre mentira”, “daquelas que se forjam por necessidade”. Novamente com Sócrates como narrador, ele continua a montar a sua cidade ideal , com seus habitantes e suas respectivas funções. Sócrates, após ter discorrido sobre lavradores, artesãos, comerciantes, havia chegado aos guerreiros, aqueles que ele imaginava que iriam ser também os líderes da cidade. Para tanto, ele queria incutir na cabeça desses guerreiros que eles não tinham sido gerados por uma mãe e um pai, mas pela própria cidade. Sua intenção, ao optar pela mentira, era tornar os guerreiros intimamente conectados com essa cidade ideal. DIVISÕES FILOSÓFICAS Imagem: Mharrsch/Wikimedia commons/Domínio Público Discurso de Sócrates , por Louis Joseph Lebrun (1867). Um aspecto colateral na obra de Platão é que ele estabeleceu quais eram os temas da filosofia, o que se deveria buscar, como pensar filosoficamente.Os filósofos que vieram depois ou tentaram aprofundar determinadas questões já exploradas por Platão assentiram com ele ou se tornaram críticos do filósofo clássico grego. Ninguém mais conseguiu lhe ser indiferente. O primeiro entre os seus seguidores, e críticos, foi Aristóteles, seu discípulo mais famoso. Entre os dois gigantes há vários tipos de desacordo ― o aluno sempre tenta superar o professor. Mas um dos desacordos mais importantes talvez seja o modo de operar a filosofia. Se Platão era mais dialético, deixando que o raciocínio se formasse a partir do diálogo entre duas opiniões opostas, Aristóteles era sistemático. Criava longas históricas e detalhadas explicações dos inúmeros temas que ele explorava. Assim, ele se tornava um professor mais “direto”, de quem você já sabia o que esperar ao pegar um livro. Basta ver o título de suas obras para pelo menos ter alguma ideia do que ele aborda. São nomes como Física , Do céu , Meteorologia , Mecânica , Metafísica , Política , Economia , Ética (a Nicômaco) , Retórica , Poética etc. Esse tipo de divisão, se não agiu diretamente, talvez tenha servido de desculpa para, com o passar do tempo, abrir espaço para a Filosofia se especializar em subcategorias como epistemologia, estética, ética, lógica, metafísica, política. Cada uma dessas subcategorias também já se dividiu em muito outras mais, e atualmente é bem provável que alguém de lógica fale uma língua que outro estudioso de estética não compreenda, e vice-versa. É como se cada um criasse sua epistemologia. Episteme quer dizer “conhecimento”, já lógos é das palavras mais famosas da história da Filosofia e tem significados vários nos quais os gregos pensavam concomitantemente: razão, pensamento, linguagem, explicação. Epistemologia, então, quer dizer, na forma literal, a explicação do que é o conhecimento. Apesar de o termo ser recente, a ideia de uma epistemologia nasceu praticamente junto à Filosofia. Além de tentar entender o mundo à nossa volta, a Filosofia, ao menos a partir dos filósofos clássicos, já se perguntava o que é esse “entender”. Dito de outra forma: como podemos entender algo? Basta apenas repetir uma informação? Ou devemos nos apropriar desse conhecimento e ser transformados por ele? Dá para ver a importância de tal tipo de disciplina quando se pensa num momento em que diálogos entre posições contraditórias se tornam inconciliáveis com frequência cada vez mais assustadora. A epistemologia pode, por exemplo, tentar pensar quais são os fundamentos em que se baseiam o conhecimento da outra pessoa para que o que se fala consiga furar a armadura de proteção e criar algum tipo de movimento, de diálogo. A estética é outra subdivisão da filosofia que igualmente só entrou no léxico oficial bem recentemente (século XVIII), embora a discussão remeta a Platão e companhia, no mínimo. Em A república , é famosa a passagem em que Sócrates expulsa os poetas da sua cidade ideal, por considerar que eles representariam a imitação da realidade material que era, por sua vez, já uma imitação da ideia verdadeira. Ou, usando a alegoria da caverna para nos ajudar, o mundo material seria o mundo dentro da caverna, o mundo verdadeiro, o lá de fora. A arte seria apenas a imitação do mundo dentro da caverna. Imagem: Archaeodontosaurus/Wikimedia commons/Domínio Público Apesar das reservas de Platão contra os poetas, a herança greco-romana valorizou a poesia épica, como demonstra a obra Apoteose de Homero , por Jean-Auguste-Dominique Ingres (1827). Depois Aristóteles escreveu sobre a Poética , tratando dos gêneros literários de sua época; no século XVIII o filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten cunhou o termo estética, a partir do grego aisthésis , que quer dizer algo como percepção, sensibilidade, e desde então a discussão sobre arte, objetos e produtos que mexem com nossa sensibilidade se tornou bastante comum na Filosofia. A ética aparece já com esse nome ao menos em Aristóteles, e é um dos termos mais ligados diretamente com a Filosofia. Sua origem em grego é ethos , que quer dizer algo como “caráter”, e foi traduzida para o latim pelos romanos como mos ou, no plural, mores , que veio a dar em moral. Imagem: Fulvio314/Wikimedia commons/CC BY-SA 3.0 Alcebíades é advertido por Sócrates , por François-André Vincent (1776). De forma bastante resumida, a ética seria o tipo de aprendizado com o qual devemos ter contato para agirmos corretamente, para fazermos o bem, para encontrarmos a felicidade. O filósofo judeu-holandês, de origem portuguesa, Baruch Espinosa, escreveu um importante livro chamado de Ética no século XVII, que é referência até hoje sobre o assunto. Esse tipo de preocupação leva à política, que foi igualmente um foco filosófico desde o princípio, e talvez uma das preocupações que mais caminhou junto à história da Filosofia. Qual é a melhor forma de se viver em sociedade? Como organizar as pessoas dentro de comunidades? Como abrir mão de liberdades individuais em prol de um bem coletivo? Perguntas assim aparecem desde o princípio das questões filosóficas. A república nada mais é que a tentativa de responder exatamente a essas perguntas. Depois de Platão, a política está em Aristóteles, Agostinho, Maquiavel, Hobbes, Marx e em vários filósofos da atualidade ― isso só para citar poucos e famosos nomes. Se não for a política, outra candidata ao posto de mais antiga “companheira” da Filosofia será, certamente, a metafísica ― muitas vezes até se confundindo com a própria Filosofia. Outra vez o nome apareceu depois da própria discussão ― cerca de 250 anos após a morte de Aristóteles, quando tentaram reunir os escritos do estagirita (pois nascido na cidade de Estagira) e apelidaram a coletânea de textos que vinha após a Física de ta meta ta physica , algo como “o que vai além e/ou acima da física”. A metafísica, contudo, estava presente desde Tales, quando, segundo a única informação que nos chegou dele, falou que tudo era água, pois a metafísica é a divisão da filosofia que pergunta o que algo é, o “ser” de cada um dos entes, o que faz algo ser o que se é. O que faz uma cadeira ― o exemplo preferido de todos os professores de Filosofia ― ser uma cadeira e não um lápis, um sentimento ou uma equação matemática, por exemplo? Por fim, para encerrar essa pequena amostra não exaustiva dos caminhos que a Filosofia tomou ao longo da sua trajetória, outra companheira de primeira hora, e talvez a motivação que fez os filósofos originais se destacarem de outras maneiras de se pensar na época, foi a lógica. Com um termo que é aparentado diretamente de lógos , que por sua vez é um dos termos mais conectados com a Filosofia, como já visto, a lógica é a organização de determinado sistema a partir de certos princípios aceitos como universais. Quando se diz que 2 + 2 é igual a 4, estamos partindo do princípio de que tal soma é uma verdade incontestável porque já temos assentada dentro de nós a informação que ao acrescentarmos duas unidades a outras duas unidades o resultado será sempre, invariavelmente, quatro unidades. Qualquer resultado diferente disso vai nos parecer errado ou... ilógico. Aristóteles foi o primeiro a tratar do tema diretamente, ao lembrar que o homem é o único animal que tem lógos , que é capaz de fazer uso da linguagem, esta forma abstrata de lidar com o mundo físico. A linguagem é a ferramenta necessária que nos permite nos comunicar, pensar, para, enfim, nomear o mundo, mas é preciso respeitar determinadas regras para que ela faça sentido. A lógica é a especialização que estuda essas regras. Foto: Jastrow/Wikimedia commons/Domínio Público Busto de Aristóteles, cópia romana da obra de original de Lisipo, em bronze, de 330 a.C. Essas são apenas algumas subdivisões, algumas disciplinas correlacionadas diretamente com a filosofia. Na atualidade, a filosofia se misturou com outras disciplinas como antropologia, artes, literatura, e emprestou suas ferramentas para a análisede outros temas como a Educação, a Ciência, a História, e se propõe a pensar até assuntos menos estabelecidos historicamente, como os esportes, a cultura pop, ou o assunto que tem crescido fortemente nos últimos tempos, a ecologia. O que nos faz pensar que todos, invariavelmente todos os assuntos que existem, podem produzir questões relevantes para a Filosofia. Vejamos um pouco mais sobre a importância da analogia do conhecimento filosófico. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. QUE TIPO DE VARIAÇÃO PARADOXAL METAFÍSICA IMPRESSIONOU OS FILÓSOFOS ORIGINAIS? OU, EM UMA LINGUAGEM MAIS CORRIQUEIRA, QUE ELEMENTOS RELACIONADOS À PERMANÊNCIA DOS SERES MAIS CHAMOU A ATENÇÃO DOS PRÉ-SOCRÁTICOS (E AINDA IMPRESSIONA OS FILÓSOFOS DE HOJE EM DIA)? A RESPOSTA POSSÍVEL É: A) Cosmos e caos, porque mostram como há uma tendência à desagregação no mundo, uma entropia constante, uma direção ao desparecimento completo. B) Movimento e estabilidade, porque demonstram que todas as coisas que existem são, ao mesmo tempo, as mesmas sempre, e estão também em constante transformação. C) Cosmogonia e cosmologia, porque mostram que há duas maneiras quase antagônicas de explicação do mundo, que sobreviveram aos tempos. D) Natureza e razão, porque são duas forças que não foram, nem podem ser devidamente entendidas em suas totalidades. E) Harmonia e conflito, porque apontam para duas possibilidades totalmente antagônicas de entendimento do que seria o fazer da Filosofia. 2. A AFIRMAÇÃO A SEGUIR PODE SER CONSIDERADA VERDADEIRA, NO CONTEXTO DA ORIGEM DA FILOSOFIA: NA EPISTEMOLOGIA DA FILOSOFIA CLÁSSICA, UMA DAS ÁREAS QUE MAIS É LEMBRADA É A ESTÉTICA ? MAS É NECESSÁRIO COMPREENDERMOS OS CONCEITOS EM DESTAQUE. ASSIM, PODEMOS AFIRMAR QUE EPISTEMOLOGIA E ESTÉTICA SÃO, RESPECTIVAMENTE: A) A explicação do que é o conhecimento. / O estudo dos objetos que afetam nossa sensibilidade. B) O nosso caráter. / A tradução para o latim da mesma palavra. C) A disciplina que estuda as alegorias usadas na filosofia. / A forma de autopreservação dos filósofos. D) Outro nome para a ciência e para mitologia. / A forma de dizer arte e razão. E) Um modo de operar a filosofia desenvolvido por Aristóteles. / O tipo de comportamento praticado pelos filósofos pré-socráticos. GABARITO 1. Que tipo de variação paradoxal metafísica impressionou os filósofos originais? Ou, em uma linguagem mais corriqueira, que elementos relacionados à permanência dos seres mais chamou a atenção dos pré-socráticos (e ainda impressiona os filósofos de hoje em dia)? A resposta possível é: A alternativa "B " está correta. Kínesis e phýsis , os termos em grego para movimento e natureza, trazem um problema sobre a definição do ser: como algo pode estar parado e em movimento ao mesmo tempo? Ao longo dos séculos, esse foi e continua sendo um debate crucial para se saber o que algo é . Os gregos antigos resolveram o imbróglio dizendo que a essência das coisas, imóvel, só poderia ser vista com os "olhos da alma", enquanto a aparência representaria essa mutação constante. 2. A afirmação a seguir pode ser considerada verdadeira, no contexto da origem da Filosofia: Na epistemologia da Filosofia clássica, uma das áreas que mais é lembrada é a estética ? Mas é necessário compreendermos os conceitos em destaque. Assim, podemos afirmar que epistemologia e estética são, respectivamente: A alternativa "A " está correta. Epistemologia é a área da Filosofia que estuda como o conhecimento é formado. Já estética é o segmento filosófico que explora a arte, objetos e produtos que mexem com nossas percepções sensíveis. MÓDULO 3 Listar algumas maneiras de aprimorar a construção de argumentos racionais, a partir das diversas formas de conclusão LÓGICA VERSUS ILÓGICA Foto: Outisnn/Wikimedia commons/CC BY-SA 3.0 Nero e Sêneca , por Eduardo Barrón (1904). Comecemos com uma provocação: AOS 16 ANOS MATEI MEU PROFESSOR DE LÓGICA. INVOCANDO A LEGÍTIMA DEFESA ― E QUAL DEFESA SERIA MAIS LEGÍTIMA? ― LOGREI SER ABSOLVIDO POR CINCO VOTOS CONTRA DOIS, E FUI MORAR SOB UMA PONTE DO SENA, EMBORA NUNCA TENHA ESTADO EM PARIS. (CARVALHO, 1956, p. 16) Assim, o escritor mineiro Walter Campos de Carvalho (1916-1998) começa um dos seus livros mais famosos, A lua vem da Ásia . Sua obra é muitas vezes chamada de fantástica, de surrealista, de insana, absurda, incoerente ― e com apenas estas primeiras linhas já dá para se deduzir o porquê. Ao ler esse trecho, a cabeça parece dar um nó. Não faz sentido, não tem relação entre uma frase e outra, não tem... lógica. Bem que o narrador avisou no início que havia matado o professor de lógica ― e assim teria se liberado de certas regras para escrever um livro em que a tal matéria não seria respeitada. Claro que a proposta do livro é, de fato, uma provocação. Muitas obras de arte recorrem ao expediente de tentar quebrar certa estrutura de sentido para dar esse nó e nos fazer pensar num outro tipo de mundo, um mundo em que certas regras que parecem banais não funcionariam perfeitamente. Lembre-se de Dalí e seus relógios derretendo; em Magritte, que desenhou um homem de costas, para o espectador, cujo reflexo no espelho não mostra seu rosto, mas sua nuca; em Escher e toda sua tentativa de criar situações que desafiassem as leis básicas da gravidade, como veremos mais adiante. Imagem: artfann/Wikiart/Domínio Público Não deve ser reproduzido , por Rene Magritte (1937). Já em um mundo diferente desse, como o dos negócios ou a universidade, para citar dois entre muitos, a lógica assume um forte protagonismo. Principalmente quando o assunto é a tentativa de comunicação de determinado enunciado. Desde Aristóteles, cujos escritos sobre a disciplina foram reunidos numa obra que recebeu depois o título de Organon , isto é, “ferramenta” ou “instrumento”, a lógica é usada para dar rigor a argumentos. O estagirita acreditava que a lógica “analisa” as ideias para fundamentá- las, justificá-las ou, o inverso, para derrubá-las. Para ele, os silogismos eram o objeto desse estudo, isto é, um argumento constituído de proposições das quais se pode extrair uma conclusão. E não somente para a filosofia: todo e qualquer tipo de texto dentro do âmbito da universidade precisa respeitar certas regras lógicas, sobretudo para fazer sentido para quem o lê. Isso quer dizer mais que meramente respeitar regras ortográficas e gramaticais. Se dissermos: “Nós vai ao cinema”, apesar de a frase estar errada do ponto de vista gramatical, é possível entender seu sentido. Agora, se dissermos: “Cinema vamos ao nós”, não faz qualquer sentido, mesmo que as palavras, caso ordenadas corretamente (Nós vamos ao cinema), estejam corretas gramaticalmente. É possível e desejado que, ao se criar um texto argumentativo, se encadeie as premissas para se chegar a uma conclusão, assim como fazemos com uma frase, com cada um dos elementos no lugar correto. Que o texto tenha um sentido narrativo, ou seja, se sustente pelos pressupostos de cada um dos parágrafos ― e internamente, também: que cada parágrafo tenha seu próprio sentido lógico. É possível, também, falar algumas bobagens usando a forma da lógica, seja para provocar deduções equivocadas, seja porque a lógica, como área de pesquisa, se interessa principalmente com a estrutura formal das sentenças, não com o seu conteúdo. Nesse sentido, é aceitável, por exemplo, dizer que “toda fruta é azul; banana é uma fruta; logo, banana é azul”. Do ponto de vista lógico formal, faz sentido, já que a progressão de raciocínio é respeitada, mas, da perspectiva da realidade, é um absurdo, já que nem toda fruta é azul, a começar pela própria banana. Para tornar as coisas um pouco mais complicadas, um argumento pode fazer completo sentido dentro de determinado universo ― científico, por exemplo ― e não funcionar em outro ― como o religioso, para continuar no mesmo exemplo. Para a lógica, nenhum campo de pensamento é necessariamente superior a outro ― não há exatamente uma predominânciada religião sobre a ciência, ou vice-versa. Elas tratam de temas próprios e têm suas próprias lógicas internas, às quais elas devem respeitar para que “façam sentido”. Imagem: Alonso de Mendoza/Wikimedia commons/Domínio Público Ceia em Emaús , por Caravaggio (1606). EXEMPLO Um exemplo genérico: a religião cristã diz que Deus existe. Dentro da lógica interna do pensamento cristão, em que as bases para julgar algo como verdadeiro ou falso se baseiam na Bíblia, nos dogmas, nas pregações etc., é possível afirmar que tal enunciado é verdadeiro. Entretanto, se estivermos no âmbito da ciência, é bem mais complicado confirmar tal enunciado. Ou seja, uma sentença pode ser verdadeira a partir de uma perspectiva, e, de outra, não ser. Também é possível que alguns campos recorram mais frequentemente a raciocínios lógicos que outros. Os exemplos da religião e da ciência são bons para isso. Assim como vimos no caso da diferença entre cosmogonias e cosmologias, a religião não precisa seguir de perto, a todo momento, o raciocínio lógico; ao contrário, ela tem uma outra poderosa ferramenta, a fé, que segue outros tipos de sustentação bem diferentes da razão e da lógica. Já a ciência, pelo menos se pensarmos na sua estrutura mais tradicional, que remete a Bacon, Descartes e a todo um grande elenco de pensadores, filósofos, cientistas, matemáticos dos séculos XVI e XVII, se baseia totalmente na lógica e em seus esquemas de premissas, raciocínios e conclusões. Para tentar resolver todas essas questões foi que a lógica se aprimorou como campo de estudo. No primeiro andar desse grande prédio, se estuda o que são argumentos, inferências, falácias, como funciona uma boa exposição de pensamento, as diferenças entre deduções e induções. Tudo para fazer com que nós pensemos com mais lógica. ANALISANDO A LÓGICA Como já é possível inferir (ou concluir, na linguagem da lógica), um argumento é a exposição de determinado enunciado, de determinado conjunto de sentenças, para construir um tipo de sentido. Tal argumento pode ser considerado forte ou fraco, válido ou inválido, verdadeiro ou falso, e uma série de outros tipos de avaliações. Mas como avaliar quando um argumento pode ser considerado forte, válido, verdadeiro? Um dos procedimentos mais usados para saber se um argumento é verdadeiro ou falso é a redução ao absurdo (do latim reductio ad absurdum ). Confronta-se uma ideia com a posição que é seu inverso e verifica-se se ela se sustenta. Tal proposta se baseia no fato de que a lógica clássica, aristotélica, não admite qualquer contradição, baseando-se sempre no princípio da não contradição. Não é possível dizer que algo é e não é ao mesmo tempo. Por exemplo: ou o chão está molhado ou o chão está seco. Ele não pode estar molhado e seco ao mesmo tempo. Imagem: zakhar/Wikiart/Domínio Público Rede de relatividade , por MC Escher (1953). Para melhor se pensar em como isso pode funcionar, volte à nossa provocação inicial: utilizar- se do “absurdo” é mostrar que uma das sentenças que compõem o argumento é falsa ou pelo menos não confiável, ou ainda que se o argumento for visto como um todo, ele contém afirmações que são impossíveis, com uma conclusão que é falsa ou inaceitável. Mas esse é apenas o primeiro ponto importante para se aprender na hora de construir um bom argumento. Outro ponto é a inferência. Termo importante dentro da lógica, inferir é concluir um raciocínio a partir de quaisquer premissas apresentadas. Inferimos algo quando de posse das informações já passadas e chegamos a uma outra informação, nova. Ou seja, criamos algo inédito, um pensamento que não existia antes, diante dos dados a que tivemos acesso. É a extração de elementos singulares, o passo seguinte, o que vem depois do “logo...”. Em um dos exemplos mais famosos da lógica (exemplo este atribuído erroneamente a Aristóteles, já que não se sabe exatamente quem o expôs pela primeira vez), se diz: Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal. Ou seja, dentro do conjunto “homem”, todas as partes individuais que o compõem são necessariamente mortais. Sócrates, esse personagem insólito que existiu de verdade, é necessariamente um homem, ou seja, está no grupo anterior, é uma de suas partes. Donde se pode inferir ― isto é, criar outra informação tendo como ponto de início as que foram dadas ― que Sócrates é, necessariamente, mortal. Essa é a conclusão do raciocínio, feita a partir das premissas, das frases que sustentam e fundamentam toda a lógica. O argumento é a defesa de uma tese ― e esse detalhe é importantíssimo para quando se escreve um texto argumentativo. Antes de começar a escrever o argumento, deve-se pensar o que queremos mostrar, o que queremos explicar. Ao descobrir o que se quer defender, qual é, em suma, a conclusão do argumento, é preciso montar as premissas para assegurar que, na hora correta, se infira a conclusão. Para avaliar um bom argumento, podemos usar inúmeras perguntas, tais como: há uma conexão adequada entre premissas e conclusão? A conclusão é um caminho “necessário” ou meramente provável das premissas? É possível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa? ATENÇÃO O texto argumentativo é um tipo específico de texto. Não é o caso das típicas redações de colégio sobre “minhas férias”. Esses são textos narrativos, memorialistas, não precisam, necessariamente, defender um ponto. Os textos argumentativos devem assumir necessariamente uma perspectiva, e para isso precisam de... argumentos. E não é apenas na universidade que é necessário argumentar, expor, arrazoar, justificar. Imagine se poderia existir o mundo jurídico e todas as suas batalhas retóricas sem qualquer tipo de raciocínio lógico? Os argumentos são as provas que fazem com que as pessoas infiram se o réu é inocente ou culpado. Também não há ciência sem uma forte argumentação para mostrar novas perspectivas. Igualmente no mundo dos negócios, na vida empresarial, nas vendas ― quando o vendedor diz que uma roupa ficou “linda”, ele está usando um argumento lógico, mesmo que, em certos casos, possa ser mentiroso, já que ninguém, podemos supor, compraria uma roupa para ficar feio. INDUÇÕES E DEDUÇÕES Imagem: Jonund/Wikimedia commons/ Domínio Público Aristóteles ensinando Alexandre, o Grande , por Charles Laplante (1866). A argumentação é o ponto central de todo e qualquer tipo de diálogo que se baseia em diferenças de entendimento sobre um assunto e que um lado precisa ou quer convencer o outro. Mas há várias formas de tentar convencer que não sejam pelos argumentos lógicos, como veremos a seguir. Antes, é importante ver que nem sempre uma conclusão é feita a partir de elementos incontornáveis que dão uma segurança no momento da inferência. Às vezes, é necessário fazer uma aproximação, uma indução. A indução infere um resultado baseado em uma probabilidade ― procedimento muito comum na própria ciência ou em pesquisas de opinião, para ficar em dois casos, apenas. Em um universo pequeno de dados, as probabilidades de erro são inversas, portanto, grandes, mas, quando se consegue aferir uma proporção considerável, e sendo a probabilidade inversa, as chances de a indução estar correta aumentam muito. Se formos numa biblioteca de um professor de filosofia e pegarmos, aleatoriamente, três livros, e todos esses livros forem de lógica, podemos induzir que os demais serão também da mesma disciplina e que o professor leciona lógica. Mas são induções com poucas bases para se sustentar. Se pegarmos metade dos livros da biblioteca e eles forem todos de lógica, a probabilidade de que os demais sejam igualmente de lógica aumenta ― mas, ainda assim, é uma indução com risco razoável de estar errada. Se pegarmos todos os livros, menos um, e esses livros forem na sua totalidade de lógica, a probabilidade de o último livro também ser de lógica é bem mais elevada. E certamente o professor de filosofia é especialista em lógica. Em 1620, o filósofoinglês Francis Bacon (1561-1626) desenvolveu um método de investigação e pesquisa que colocava em questão toda a tradição da lógica, que remetia a Aristóteles e ao seu Organon . Bacon reforçava, assim, uma nova forma de pensar, empirista, mais baseada nas experiências que em um recurso de abstração. Ele chamou esse método de indutivo. Foi um dos fundamentos para a criação do método científico, até hoje utilizado. Foto: Tm/Wikimedia commons/Domínio Público Retrato de Francis Bacon, de autor desconhecido (1731). Foto: DIREKTOR/Wikimedia commons/Domínio Público Retrato de Bertrand Russell, 1907. Um exemplo famoso sobre a indução se refere ao nascer do sol cotidianamente. Nada nos garante que amanhã, ao acordarmos, o Sol estará iluminando a Terra, forte ou fraco, atrás de nuvens, ou poderoso como numa manhã de verão. Esse tipo de problema mexeu com filósofos como Bertrand Russell (1872-1970), que lembrava que mesmo que algo tenha acontecido no passado, com frequência constante, nada nos garante que acontecerá no futuro. E Russel estava correto. Há casos em que induções levaram a conclusões equivocadas. Outro conhecido evento mostra isso. Até o século XVII, todos os cisnes conhecidos pela Europa eram da cor branca. Dizia-se, então, que os cisnes eram aves brancas. Até que, então, um cisne negro foi encontrado na Austrália, e quebrou a “regra” estabelecida. Quando se atinge a completa certeza a partir das premissas anteriores, quando o universo pesquisado é conhecido em sua totalidade, é possível então fazer uma dedução. Se voltarmos ao exemplo dos livros do professor de filosofia, se descobrirmos que todos os seus livros são mesmo de lógica, e que todos os livros de lógica do mundo são escritos com uma linguagem coerente, podemos deduzir que todos os livros do professor são coerentes. O caso de Sócrates sendo mortal também é um outro bom exemplo. Isto é: a dedução acontece quando as premissas nos dão a certeza sobre o que deve ser a conclusão. FALÁCIAS E OUTRAS FALHAS ARGUMENTATIVAS Nem todo argumento é válido. Em diversos casos, o argumento peca por recorrer ao que é chamado dentro da lógica de falácia: um erro de raciocínio que tenta sustentar premissas ou conclusões, mas que mostram verdadeiros buracos lógicos. Há vários tipos de falácia, como as que propõem tirar deduções em casos em que só se é possível fazer induções, isto é, que tiram uma conclusão como se fosse irrefutável, quando na verdade ela é, no máximo, probabilística. Ou quando as premissas são totalmente irrelevantes para o que se está tentando comprovar, mas ainda assim o argumentador insiste no ponto. Ou quando se usa da ambiguidade de determinados termos ou conceitos para confundir o interlocutor. Os tipos são inúmeros. Por isso que é importante estar sempre muito atento às premissas para saber se a conclusão de determinado argumento faz ou não sentido, é ou não lógico. Além disso, muitas vezes, quem argumenta usa de vários estratagemas, nem sempre racionais ou mesmo razoáveis, para enganar e convencer quem está do outro lado do debate, ou tendo que julgar o argumento. Um caso paradigmático para isso se dá quando se usa da força bruta para o convencimento. Os episódios de eleitores que são obrigados a votar em determinado candidato (chamado “voto de cabresto”) ou quando trabalhadores grevistas impedem (através do chamado “piquete”) que trabalhadores da mesma categoria optem por trabalhar , mostram perfeitamente que nem sempre podemos seguir nosso próprio raciocínio. Foto: Juliana F Rodrigues/shutterstock.com A força não precisa ser apenas física, também pode ser psicológica ou de ameaças. Um chefe que intimida seus funcionários a compactuar com suas escolhas, sem direito a um debate justo, está usando desse tipo de argumento à força. Há também certos argumentadores que recorrem à sua suposta autoridade ― não necessariamente no assunto em questão ― para nem precisar apresentar premissas ou embasar seus argumentos. Exige-se, então, que ele seja seguido por ser uma celebridade ou um especialista, mas em uma área que não tem a ver com a da discussão. Quando famosos médicos de especialidades como neurociência ou infectologia são chamados para falar sobre casos como o da covid-19, por exemplo, recorre-se a um típico argumento de autoridade. O mesmo acontece com figuras públicas que são sempre convocadas para opinar sobre qualquer que seja o tema. Há casos em que mesmo os próprios especialistas no tema, para evitar discussões penosas, em momentos em que a velocidade na tomada de atitude é necessária e o debate pode ser adiado, dão uma carteirada argumentando que são especialistas, e não precisam explicar suas motivações. Toda vez que se recorre à autoridade, o argumento, porém, é enfraquecido automaticamente. Já o recurso ad hominem (“contra o homem”, em latim) tenta desmerecer o interlocutor em vez de suas argumentações. É comum quando em uma discussão um dos debatedores começa a xingar o adversário, ou quando começa a gracejar ironicamente (como se tem tornado praxe nas discussões contemporâneas); ou quando se diz que aquela pessoa, por ser quem ela é, independentemente do que ela pode ou iria apresentar, jamais poderia falar sobre o assunto em questão. Os tipos de falácias e de ataque a argumentos são inúmeros, esses são apenas alguns poucos e mais famosos casos. Há famosos homens públicos que, inclusive, fazem uso dessas falhas para fingir que ganham suas discussões. Esse tipo de retórica vazia, em que não importa muito a lógica e a concatenação das ideias, está, infelizmente, muito em voga. Como diferenciar um discurso filosoficamente argumentativo de uma falácia? É o que veremos agora. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. POR QUE DIZEMOS QUE O FAMOSO ENCADEAMENTO "TODO HOMEM É MORTAL; SÓCRATES É HOMEM; LOGO, SÓCRATES É MORTAL" É UM EXEMPLO DE DEDUÇÃO LÓGICA? A) Por ser uma inferência que deixa espaço para inventarmos uma conclusão de acordo com a nossa vontade. B) Como uma indução, há sempre espaço para aproximações probabilísticas que chegam perto da verdade. C) Porque há uma proposta hipotética, que deve ser considerada como certa, independente da verdade. D) Porque podemos ter absoluta certeza da conclusão do argumento a partir das premissas apresentadas. E) Porque, apesar de não termos precisão em relação às premissas mostradas, podemos concluir com clareza. 2. QUANDO OS PAIS NÃO QUEREM MAIS DISCUTIR COM O FILHO OU A FILHA PEQUENA(O) SOBRE DETERMINADO COMPORTAMENTO E A/O MANDA CALAR, EM QUE TIPO DE FALHA ARGUMENTATIVA OS PAIS ESTÃO CAINDO? A) Ambiguidade, já que usam de termos que são confusos para as crianças para convencê-las a ficar quietas. B) Confundem uma dedução com a indução, demonstrando que algo que seria provável vira certo. C) Autoridade, já que na casa o arbítrio fica exclusivamente com os pais e eles não precisam prestar contas aos filhos. D) Uso da força bruta, já que eles são provavelmente mais fortes que a criança, que, por sua vez, é obrigada a obedecer, mesmo sem espaço para argumentação. E) Ad hominem , porque maltratam o nome dos filhos, mesmo que isso não fosse uma razão associada com a discussão em questão. GABARITO 1. Por que dizemos que o famoso encadeamento "Todo homem é mortal; Sócrates é homem; logo, Sócrates é mortal" é um exemplo de dedução lógica? A alternativa "D " está correta. A dedução acontece quando as premissas nos dão a certeza sobre o que deve ser a conclusão. No caso mencionado, dentro do conjunto “homem”, todas as suas partes são necessariamente mortais. Sócrates pertence a esse grupo anterior. Donde se pode inferir que Sócrates é, necessariamente, mortal. 2. Quando os pais não querem mais discutir com o filho ou a filha pequena(o) sobre determinado comportamento e a/o manda calar, em que tipo de falha argumentativa os pais estão caindo? A alternativa "D " está correta. Mesmo que os pais não usem da força física ou da ameaça, até mesmo a simples diferençade poder entre pais e filhos faz com que as crianças não tenham espaço para poder se opor às ordens dos pais. CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS Após um sobrevoo sobre as origens do que se convencionou chamar de Filosofia, é possível entender como tal modo de pensar se tornou hegemônico da história do chamado Ocidente. Mesmo que não se perceba, a Filosofia está presente quando tentamos convencer alguém, ou quando simplesmente nos esforçamos para conhecer e entender algo novo. E todas as vezes que tentamos nos expressar com clareza também estamos, de alguma forma, pagando um tributo a essa história. Se é difícil estabelecer o marco inaugural desta gigantesca máquina de produzir conceitos e pensamento, como é a Filosofia, dá para perceber que, no mínimo, um eco dela continua conosco, cotidianamente. Mesmo com todas as suas questões internas e seus próprios problemas, a Filosofia não parece se mostrar próxima do seu fim. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS CAMPOS DE CARVALHO, W. A lua vem da Ásia. São Paulo: Editora Livraria José Olympio, 1956. CHAUI, M. Introdução à história da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Cia das Letras, 2002, v. 1. LAÊRTIOS, D. Vida e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília: Editora UNB, 2008. NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia, ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo: Cia das Letras, 1992. PLATÃO. A república. 3 ed. Belém: EDUFPA, 2000. EXPLORE+ Escute o podcast Noites gregas , que fala sobre a mitologia grega. Conheça a tradição da filosofia africana, muitas vezes esquecida pela narrativa oficial, no site desenvolvido por Wanderson Flor do Nascimento, da Universidade de Brasília. Confira os artigos de Nastassja Pugliese, da UFRJ, especialmente sobre filosofia feminista. Leia os livros 38 estratégias para vencer qualquer debate ― A arte de ter razão , de Arthur Schopenhauer e Textos básicos de Filosofia e história das Ciências ― a revolução científica , de Danilo Marcondes. Ambos ajudarão a aprofundar o conteúdo aqui apresentado. CONTEUDISTA Ronaldo Pelli Junior CURRÍCULO LATTES javascript:void(0);
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