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Laura Vergueiro OPULÊNCIA E MISÉRIA DAS MINAS GERAIS 1981 (:lopyrzk#f(ê) Laura Vergueiro Clama : 123 (antigo 27) Artistas Gráficos CaHcaturas : Emílio Damiani Revisão \ José E. Andrade ÍNDICE .4 vilão edénlca O primeiro momento da mineração nas Minas Gerais A organização da capitania A formação social Minas Gerais, a síntese da Co16nia Indicações para leitura 7 14 27 44 75 80 editora brasiliense s.a. 01223 -- r. general jardim, 160 são paulo -- brasil A VISÃO EDÊNICA Ao lado da ilha das Sete Cidades e de tantas outras que povoaram o imaginário feudal, figurava a misteriosa ilha Brasil, de posição variável, situada em algum lugar do Atlântico. Uma vez descoberta a costa ocidental da América, a Terra de Santa Cruz e, logo a seguir, a Terra do Brasil -- como ficou-se chamando -- continuou sendo o lugar de eleição de mitos e sonhos, com sua natureza exuberante a que estavam tão pouco afeitos os europeus, as índias nuas em que os portugueses escorregavam assim que pu- nham os pés na terra, os pássaros coloridos e ca- ncros. Os filósofos da Igreja logo aventaram a possi- bilidade de se achar nessas novas paragens o Paraíso Terrestre, enquanto outros indivíduos começavam a atribuir características depreciativas à nova terra: a América era um continente inferior porque não tinha na sua fauna os grandes mamíferos europeus, dentre os quais se destacava o leão; a natureza dera a esta 8 Z,azzra Vergueü'o Opulência e Miséria das Minas Gerais 9 porção do mundo um solo pútrido e úmido, e fora pródiga justamente nas espécies animais que eram consideradas como inferiores: os répteis e os insetos. O homem americano também era inferior, espécie de criança grande, sem nenhuma maturidade e, pior do que tudo, imberbe -- sinal característico de sua pou- ca virilidade. A América foi, pois, o lugar privilegiado das mais diversas proleções do imaginário feudal, que nela edificou mitos edênicos e mitos depreciativos. Dentre os primeiros, desde cedo tomou vulto o mito do Eldorado: as terras, montes e montanhas de ouro puro, que se encontravam perdidos no coração da nova terra e que fariam a felicidade de quem os encontrasse. Na América Espanhola, a atividade agrícola que desde os primeiros tempos se desenvolveu em Cuba foi logo ofuscada pelo brilho do ouro; não se encon- traram nessa ilha grandes quantidades do metal pre- cioso, mas o imaginário do conquistador continuou sendo constantemente alimentado por relatos fantás- ticos que os índios faziam de riquezas incalculáveis, situadas ora mais para o Sul, ora para Leste, ora em direção ao Norte, depois de uma montanha redonda, ora rumo ao Sul, assim que se atravessasse um rio. Os tesouros astecas da América Central e, depois, os tesouros incas da região andina acusavam a existên- cia de prata e de ouro; mas foi com a descoberta das minas do Potosi(1545) que os espanhóis encontra- ram o seu Eldorado, inundando de prata o Velho Continente e acendendo mais uma vez a cobiça dos europeus. Nessa época, a Europa debatia-se na crise de desagregação do sistema feudal, em que tivera papel importante a intensificação das atividades mercantis. Mais do que nunca, escasseava metal nobre amoe- dável, as minas da Europa Central não dando conta da demanda. Assim sendo, os portugueses procu- raram seguir os passos dos espanhóis desde que tive- ram notícia de seus primeiros sucessos na busca de metal precioso. Quatro anos após a descoberta do Potosi, instalava-se na Bahia o governo geral e se intensificavam as buscas de ouro e prata, Francisco Bruza de Espinosa entrando pelo sertão baiano já em 1554. De vários pontos começaram a partir essas ''entradas'' -- denominação dada aos empreendi- mentos realizados sob o patrocínio da Coroa portu- guesa ou aos que, tendo sido idealizados por parti- culares, receberam apoio oficial significativo --: da Bahia, do Espírito Santo, do Ceará, de Sergipe, de Pernambuco. Foi, entretanto, a atividade dos mame- lucos de São Paulo que constituiu o capítulo mais significativo da história da busca dos metais precio- sos na Colónia; as empresas de Brás Cubas -- de roteiro incerto, ocorridas em 1560 -- e de Luas Mar- tins -- que, em 1561, inaugurou a mineração no Jaraguá -- representaram, ao que tudo indica, os primeiros ensaios paulistas no tocante à mineração do ouro de lavagem . Naturais de uma região segregada do litoral e situada à margem da atividade económica domi- nante na Colónia seiscentista -- a plantação de cana- 'n 10 Lavra Vergueiro Opulência e Miséria das Minas Gerais 11 ros de jornada foram dispersando-se, e o velho Fer- não Dias chegou a executar um filho bastardo que conspirara contra ele. Consta que vendeu toda a prata de sua casa e os demais objetos de,valor para poder continuar a busca. Por fim, em 1681,.julgou ter encontrado as pedras preciosas, morrendo logo em seguida de febres, ou ''carneiradas''. Tratava-se, porém, de turmalinas, e a viagem de Fernão Dias não apresentou maior interesse económico. Sua im- portância deveu-se ao fato de ter desvendado boa parte do sertão das Gerais, abrindo caminhos e plan- tando roças que seriam de grande serventia para bandeiras futuras. Tanto na bandeira de Fernão Dias como na de Antonio Pares de Campos (1716) e na de Bartolomeu Bueno da Sirva, o Moço (1722), o elemento edênico apresenta varias implicações. Fernão Dias descobriu o sertão das Minas Gerais enquanto perseguia o so- nho das esmeraldas: a lendária Serra de Sabarabuçu que muitos, antes e depois dele, cultivaram; como tantos outros, estava impregnado do imaginário de sua época, onde as montanhas resplandecentes de esmeraldas tinham papel de destaque. Mas, uma vez tocadas, as pedras preciosas se metamorfosearam em turmalinas sem valor: o ''verde engano'' de que fala Carlos Drummond de Andrade no poema Garfo ]Wz- n, era! ': :E as esmeraldas, Minas, que matavam de esperança e febre 12 .Z,atira Verpueiro Opulência e Miséria das Minas Gerais 13 e nunca se achavam e quando se achavam eram verde engano?'' + + constituíram peças importantes da chamada acumu- lação primitiva de capital, verificada nos centros he- gemânicos. Produzindo açúcar, algodão, tabaco, ou- ro e prata, representaram importante fonte de lucro para o comércio europeu A mitificação da América foi um dos aspectos do arcabouço ideológico que revestiu a colonização moderna das novas terras; a sua depreciação foi um outro lado da moeda, ser- vindo aos europeus como comprovante de sua supe- rioridade e como justificativa dos atos arbitrários e cruéis que viessem a cometer em terras americanas. Mas este aspecto não nos interessa no momento. Antõnio Pares de Campos -- precursor da ban- deira de Pascoal Moreira Cabral que, em 1718, des- cobriu as minas do Cuiabâ, em Mato Grosso -- teria entrado para o sertão em menino, na compa- nhia do pai, o bandeirante Manual Campos Bicudo. Naquela ocasião, vislumbrara nos confins da bacia Platina uma serra em cujos penhascos a natureza desenhara símbolos parecidos com os da Paixão de Cristo: a Serra dos Martírios, onde se dizia existirem riquezas fabulosas. Com a bandeira de Campos Bi- cudo seguia então a de Bartolomeu Bueno da Salva, o velho Anhangüera, que também levava consigo o filho, de nome igual ao seu. Junto com o pequeno Antonio Pares de Campos, o menino viu a serra, e como o companheiro, voltaria à sua procura muitos anos depois. Buscando um objeto comum -- uma das muitas serras lendárias que povoavam a imagi- nação dos colonos americanos --, deram com coisas diferentes: Pares de Campos foi ter às imediações de Cuiabá, enquanto Bartolomeu Bueno, o Moço, des- cobria as riquíssimas minas de Golas. A visão edênica recobrou frequentemente o carâ- ter mais profundo da colonização americana: criar riqueza, através da agricultura ou da mineração de metais preciosos, para fomentar o desenvolvimento das metrópoles, permitindo-lhes superar a crise do feudalismo. De fato, enquanto duraram, as colónias l Opulência e Miséria das Minas Gerais 15 cou o descoberto ao concunhado, Bartolomeu Bueno da Silveira, sertanistaveterano que encabeçará mui- tas expedições de preação. Bartolomeu Bueno não perdeu tempo, organizando uma bandeira e desco- brindo ouro em ltaverava. A notícia do achado logo se espalhou, chegando a Lisboa através da correspondência dos governantes coloniais com a Corte. O rei, D. Pedra ll de Por- tugal, determinou que o governador da capitania do Rio de Janeiro -- à qual estava subordinada a região das Minas Gerais -- fosse a São Paulo verificar a veracidade das informações e, no caso de procede- rem, estabelecer os meios adequados à exploração das novas minas. Unido ao entusiasmo que normalmente desperta o descobrimento de minas de metais preciosos, o interesse oficial pelo ouro das Gerais estimulou os habitantes de São Paulo, que se lançaram à procura de novos ribeirões auríferos nos sertões recém-des- vendados. Toda esta primeira fase mineradora carac- terizou-se pela exploração do ozzro de p/ácer, ou seja, pela mineração aluvional. Levas sucessivas de pau- listas se concentraram ao longo dos ribeirões: Miguel Garcia e seus companheiros no Gualaxo do Sul (1694); Manuel Garcia, o Velho, no Tripuí (1695-96), enquanto, na mesma época, Belchior da Cunha Bar- regão e Bento Leite da Silvo começavam a catar ouro no ltacolomi, e Salvador Mendonça Furtado desco- bria o primeiro ouro no Ribeirão do Carmo. Mas foi a partir de 1698, quando o taubateano Antonio Dias de Oliveira encontrou as formidáveis minas de Ouro + O PRIMEIRO MOMENTO DA MINERAÇÃO NAS MINAS GERAIS + Reza uma tradição que alguns dos companhei- ros de Fernão Dias, desertando da bandeira e en- trando pelos matos e serranias das Gerais, acabaram encontrando ouro. Entretanto, é a Antonio Rodri- gues Arzão, paulista também, que parece caber, mais do que aos outros, a descoberta do primeiro ouro das Gerais. Em 1693 andava ele apresando índios para os lados do sertão da Casa da Casca quando deparou com um ribeiro que Ihe pareceu contar cascalho aurífero. Experiente, como tantos outros paulistas, em virtude da atividade mineradora que desenvolvera nas minas de Curitiba e Parana- guâl Arzão extraiu do regato três oitavas de ouro, sendo obrigado a interromper o trabalho devido aos ataques dos índios da região. Seguiu para a capitania do Espírito Santo, e, ao voltar a São Paulo, comuni- 16 l,aura Vergtzefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 17 Preto, que começou a acorrer às Minas uma quanti- dade maior de pessoas. A importância de Ouro Preto foi confirmada no ano seguinte por novo alvéolo aurí- fero, rico como os anteriores, descoberto pelo padre João de Faria Fialho -- daí o nome que recebeu: ribeiro do Padre Faria; seguiram-se Ribeirão Bueno, Arraial dos Paulistas, Passa Dez, todos na mesma região . Este primeiro momento das Minas de Ouro foi marcado por um sem-número de tumultos, de crimes, de convulsões de toda a sorte, contando entre elas as crises generalizadas de fome e de carestia de alimen- tos. Não só da capitania vizinha de São Paulo vieram os aventureiros em busca de riqueza fácil: nos portos de Santos e do Rio de Janeiro muitos navios foram abandonados pela tripulação, a quem os trabalhos nos regatos auríferos pareciam muito mais promisso- res do que as longas travessias marítimas, o medo dos vagalhões, o escorbuto. Desesperados, os coman- dantes recorriam às autoridades locais, que por sua vez escreviam ao rei dando queixa da situação. O mesmo acontecia com os soldados das guarnições, que, desprezando o soldo garantido e a ração diária de farinha, deixavam as praças à mercê das incursões dos piratas estrangeiros e iam tentar a sorte nas Minas. A deserção dos soldados de infantaria da guarnição do Rio tomou tais proporções que o reí, reconhecendo a impossibilidade de conter as fugas, ordenou que os fugitivos que acaso fossem captu- rados tivessem a pena das galés, devendo trabalhar à força na construção de fortificações e trazer calceta e n E0q 'B R Be ] Ê g B = B :3 >. : S U B ÇJ q = S a © R W 18 Z,aura Verguefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 19 grilhões nos pés. Já os soldados que se destacassem no cumprimento dos deveres teriam licença a cada três meses para irem às Minas negociar, conti- nuando, assim, ''mais gostosamente'' a servirem seu Da Bahia também acorreram muitos indivíduos atrás do ouro, e uma das medidas desde logo toma- das pelas autoridades foi o fechamento e o bloqueio dos caminhos que iam desta capitania às Minas, procurando, assim, impedir que por essas vias saísse ouro contrabandeado. Da própria Metrópole vieram aventureiros, e as estatísticas mostram que cerca de 10 mil indivíduos deixaram anualmente Portugal com destino à Coló- nia durante os sessenta primeiros anos do século XVIII. Tratou-se, pois, de um verdadeiro rus#, para alguns -- como Caio Prado Jr. -- superior ao ocor- rido com a descoberta das minas californianas do século XIX. Os que assim se moviam atraídos pela visão tentadora do Eldorado encontravam uma realidade bastante diferente da que lhes coloria os sonhos. Os aglomerados mineradores formaram-se rapidamen- te, devido ao afluxo repentino de grandes levas hu- manas. Sendo assim, não havia roças de alimentos que bastassem para atender à substância daquela quantidade de gente, e ainda não se passara o tempo necessário à formação de um complexo abastecedor da região que se ia devassando. Nos anos de 1697-98 e de 1700-1 ocorreram crises de fome que chegaram a atingir proporções catastróficas, os mineiros mor- rem renda à míngua ''com uma espiga de milho na mão, sem terem outro sustento'', como disse o jesuíta An- tonil. Em decorrência da terrível escassez de gêneros, os poucos que conseguiam entrar na zona minera- dora alcançavam preços fantásticos, as Minas pas- sando a ser, por quase todo o século XVlll, o centro de inflação da Colónia. Os gatinhos chegaram a ser vendidos muito caro devido à enorme quantidade de ratos existente nos arraiais auríferos; há documentos que aludem ao fato de terem então muitos índios se alimentado de bichos de taquara, que deviam ser atirados vivos à água fervendo, pois, uma vez mortos, eram ''veneno refinado'' A fome provocou o abandono de inúmeros ar- raiais, como o de Ribeirão do Carmo e o da Serra de Ouro Preto. Após terem acorrido às Minas com tanto entusiasmo, os moradores desertavam, dando ori- gem, na sua fuga desordenada, a novos arraiais. A partir de então, as lavras auríferas passaram a ter roçam de mantimentos, procurando-se não mais des- cuidar das plantações e da criação de animais domés- ticos, necessários à vida; simultaneamente, tentou-se encarar o problema do abastecimento das Minas de modo racional, uma das principais medidas adota- das sendo a construção do Caminho Novo, levada a cabo pelo filho de Fernão Dias, Garcia Rodrigues Foram três os principais centros que articula- ram o comércio abastecedor das Minas durante todo o século XVlll: São Paulo, Rio de Janeiro e Salva- dor. São Paulo fornecia milho, trigo, marmelada, Pais + 20 Zazzra Vergueiro Opulência e Miséria das Minas Gerais 21 frutas em geral, servindo ainda como entreposto do gado -- bois, cavalos, muares -- que vinha dos cam- pos e coxilhas do sul da Colónia e da região platina. No Rio de Janeiro desembarcavam escravos africanos e artigos europeus, sobretudo produtos de luxo: velu- dos, pelúcias, vidros, louças. De Salvador vinham escravos provenientes da Ãfrica e também das re- giões açucareiras do Nordeste, que, conhecendo des- de a segunda metade do século XVlll um período de estagnação, revendiam sua força de trabalho para o centro mais dinâmico da Colónia; a Bahia enviava ainda às Minas o gado que criava nos currais do Rio São Francisco e as mercadorias provenientes da Eu- ropa, tais como tecidos, ferramentas, sal, ferro. To- do esse transporte era feito em lombo de burro e de cavalo -- daí a necessidade desses animais; os cami- nhos eram precários, e muita mercadoria se perdia no percurso. Dizem alguns estudiosos da arquitetura mineira que o largo emprego da pedra sabão, de ocorrência local, deveu-se ao fato de se quebrarem na viagempelos montes mineiros as pedras nós que vinham do Reino destinadas às construções. A mesma sorte tinham os órgãos, motivo pelo qual os numero- sos músicos da capitania acabaram construindo ou supervisionando a construção de seus próprios ins- trumentos musicais. Já nos primeiros anos do século XVlll existiam nas Minas três núcleos mineradores principais: Rio das Mortes, gravitando em torno do Arraial Novo (depois São João del Rei); a região de Ouro Preto e Ribeirão do Carmo, dominada pelos arraiais do mes- mo nome (anos depois, Vila Rica e Mariana); Rio das Velhas, que o Arraial do Sabarâ encabeçava. Nestes três núcleos viviam indivíduos das mais varia- das proveniências, e que logo se definiram em dois grupos principais: o dos paulistas, formado pelos descobridores dos primeiros ribeirões auríferos e por seus descendentes; o dos ''emboabas'', que agrupava os portugueses do Reino e os colonos vindos de re- giões outras que São Paulo, sobretudo da Bahia. Os paulistas, primeiros habitantes das Minas, julgavam- se detentores de vantagens e de direitos especiais, considerando a zona mineradora como propriedade sua; hostilizavam abertamente os que chegavam, co- mo demonstra o nome que usavam para designa-los: ''emboabas'', palavra que para alguns significava ''forasteiro'', e que para outros queria dizer ''aves de pés cobertos'', numa alusão clara às botas usadas pelos portugueses, e em oposição aos pés descalços dos mamelucos paulistas. Era grande a hostilidade que mutuamente se votavam essas duas facções, tor- nando tensa a vida quotidiana nos arraiais minera- dores, longe das autoridades e da justiça. A história do confronto entre os dois grupos é ainda hoje obscura, havendo certa confusão em torno dos incidentes. Entretanto, tudo indica ter sido um dos motivos da rivalidade o fato de alguns forasteiros começarem a tirar grandes lucros do comércio de abastecimento das Minas, passando, em decorrência disso, a gozar de influência crescente na região. A principal figura desse comércio era Manuel Nunes Viana, reinol que viera para a Bahia ainda menino e 22 'T Zebra yerguefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 23 funcionário com atribuições de governante. A maior parte das Minas estava então sob con- trole dos emboabas, os paulistas se achando confi- nados à região do rio das Mortes. Um destacamento sob o comando de Bento do Amaral Coutinho -- irmão de Francisco do Amaram Gurgel -- dirigiu-se para lá a fim de desalojar os paulistas de seu último reduto; não houve um choque significativo, os mora- dores se retirando para São Paulo e Parati sem ofere- cerem luta. Uma tropa composta na sua grande maioria por índios foi então cercada por Bento do Amaral, que, após prometer clemência caso entre- gassem suas armas, massacrou todos os indivíduos do corpo: é este o episódio que passou à História como o encontro do Capão da Traição. A esta altura, o governador do Rio de Janeiro, D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre, decidiu intervir no conflito, partindo para as Minas. Primeiramente, deteve-se algum tempo no Arraial Novo, no Rio das Mortes, saindo-se bem nas tenta- tivas de conciliação que empreendeu junto a paulis- tas e emboabas. Entretanto, seguindo viagem, foi barrado na altura de Congonhas do Campo por uma tropa sob comando de Nunes Viana, com quem se desentendeu, tendo de se retirar, humilhado, para o Rio de Janeiro. Os paulistas, por sua vez, retroce- diam até São Paulo e juravam vingança pelo episódio do Capão da Traição. ' ' A Coroa, pelo que podia depreender através da correspondência administrativa, desconfiava que D. Fernando estivesse sendo parcial em relação aos pau- X 24 Z,aura Vergzzeíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 25 listas. De qualquer forma, era época de trocar de governante no Rio, sendo designado para esse cargo Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, que, tendo já ocupado o mesmo posto nas capitanias do Norte, possuía uma vasta experiência de negócios coloniais. Assim que chegou ao Rio, em junho de 1709, o novo governador partiu para as Minas sem se fazer anunciar, atingindo o Rio das Velhas em pou- cos dias. Manuel Nunes se encontrava ausente do arraial de Caeté, onde vivia, motivo pelo qual Albu- querque Ihe enviou uma mensagem ordenando que deixasse imediatamente Minas. Talvez por jâ se en- contrar enfraquecido, em desentendimentos com o grupo baiano que até então o apoiara, o grande potentado aquiesceu, retirando-se para suas fazen- das de gado do São Francisco, onde passou a viver. Albuquerque dirigiu-se a sequer para outros arraiais auríferos, sendo recebido em todos eles como gover- nador legal da região. Restava entender-se com os paulistas, que, segundo boatos, faziam preparativos em São Paulo a fim de marcharem sobre as Minas. buscando vingança para a humilhação sofrida no ano anterior. No caminho de volta para o Rio, quando passava por Guaratinguetâ, o governador encontrou o destacamento paulista, comandado por Amador Bueno da Veiga. Segundo algumas fontes, o contato foi extremamente tenso, os chefes paulistas falando tupi entre si e aventando a possibilidade de liquidar o representante do poder real; este tudo compreendia por ter aprendido a língua geral no Maranhão. Im- permeáveis às tentativas conciliadoras do governan- te, os paulistas se negaram a recuar, continuando caminho enquanto Albuquerque, doente e desgos- toso, ganhava o Rio de Janeiro. Conseguiu, entre- tanto, fazer chegar às Minas um aviso notificando o avanço dos paulistas; assim, quando estes chegaram ao Rio das Mortes, esperava-os um destacamento emboaba. Houve uma série de pequenos choques sem maior importância, e os paulistas recuaram após alguns dias, não havendo explicações plausíveis para esse fato. Foi este o último episódio do conflito. A chamada guerra dos emboabas oferece inte- resse pelos diferentes níveis de confronto que apre- sentava. Num plano mais geral, tem-se a oposição entre os paulistas -- mineiros e desbravadores da região -- e os emboabas -- como tais entendendo-se toda a sorte de aventureiros que chegaram às Minas após terem os habitantes de São Paulo nela estabele- cido suas lavras. Mas hâ também o desentendimento entre a Coroa -- que na pessoa de Bomba Gato opõe- se ao monopólio de géneros levado a cabo por Frei Francisco de Menezes e Francisco do Amaral -- e os habitantes das Minas, que desejavam ver assegurado o abastecimento de seus arraiais, sem se incomo- darem muito com o modo pelo qual ele era levado a cabo. Por outro lado, hâ o conflito entre os elementos emboabas ligados ao contrabando de gêneros e a Coroa, que estabelecera postos em pontos estraté- gicos -- tais como desfiladeiros e passagens de rios -- onde deveriam ser cobradas taxas sobre toda a mercadoria que entrasse nas Minas. Por fim, hâ a oposição entre os paulistas e a Coroa, já que aqueles 26 l,atira Vergueíro não atenderam aos apelos de Albuquerque e, num ato que colocava em risco. a legitimidade do poder metropolitano sobre a Colónia, marcharam para o Rio das Mortes a fim de tirarem a desforra do inci- dente do Capão da Traição. A ORGANIZAÇÃO DA CAPITANIA Toda essa gama de dissensões era apreendida pelo olhar metropolitano no seu nível mais abran- gente: tratava-se de uma sedição que pusera em che- que o domínio da Coroa sobre a Colónia, desrespei- tando os representantes oficiais, procurando soluções alternativas de mando, enfim, pondo em risco a inte- gridade e a subordinação daquela que já surgia como a mais promissora região económica do Império Co- lonial Português. Urgia, pois, integrar as Minas ao aparelho administrativo colonial, subordinando-as mais diretamente ao centro de decisão metropoli- tano. A criação de um núcleo local de poder surgiu de imediato como a solução mais adequada, a pre- sença de um governante nos arraiais auríferos ser- vindo de elemento neutralizador dos conflitos que emergissem. Por outro lado, o controle sobre a ri- queza que se extraía do solo e que fluía irregular- mente para as outras capitanias e para o exterior sob 28 Z.azz ra VerEzzeira Opulência e Miséria das Minas Gerais 29 a forma de contrabando, requeria a montagem de um aparelho fiscal competente, cuja função era car- rear recursos para a Metrópole. Governo e fisco só poderiam atuar satisfatoriamente se fixados em nú- cleos urbanos -- base indispensável à atuação da burocracia que compunha estes aparelhos de poder. Foi assim que, decidindo desmembrar a capitania do Rio de Janeiro e criar uma capitania separada e autónoma que englobasse a região de São Paulo e a das Minas recém-descobertas, o rei investiu Antonio de Albuquerque de plenos poderes para fundar vilas, atribuição que trazia implícita a ''normalização'' da tumultuada população mineira. Ainda no final do século XVll, Artur de Sâ e Menezes, governador da capitania do Rio de Janeiro -- que, como vimos, abrangia também a região pau- lista e as Minas que vinham de ser descobertas --, iniciara uma política normalizadora que buscava po- liciar a população e diminuir a incidência de crimes, então muito freqüentes. Essa iniciativa não teve con- tinuidade, e os arraiais que se haviam formado cres- ceram ao léu, esparramando-se ao acaso pelo fundo dos vales e pelas encostas das montanhas, relacio- nando-se estreitamente com a atividade mineradora. Foi assim que o momento inicial da mineração se caracterizou por ajuntamentos situados nas bordas dos ribeiros, jâ que nessa primeira época se explo- rava o ouro de aluvião. Correspondem a uma fase pos- terior os aglomerados humanos que se fixaram nas encostas das montanhas, acompanhando os traba- lhos de prospecção; o ouro dos regatos havia sido abandonado pelos barrancos laterais e pelos veios subterrâneos, os mineiros, nesta fase, passando a esburacar a terra: eram as grupiaras e galerias, con- forme as chamavam. Da fase inicial são o arraial dos Camargos, Ca- choeira, São Bartolomeu, Casa Branca, Rio das Pe- dras. A nomeação de Antonio de Albuquerque e a sua transferência para as Minas provocou a criação das primeiras vilas das Minas, fixadas nos locais em que se encontravam os arraiais auríferos mais ricos e populosos. Albuquerque, que fora designado governador do Rio de Janeiro por carta datada de 9 de novembro de 1709, passou, no ano seguinte, a dirigir a nova capitania de São Paulo e Minas do Ouro. A carta régia que o nomeou denotava duas preocupações principais: a necessidade de normalizar a população mineira, ordenando-a em núcleos urbanos a serem fundados; a adição de uma política que premiasse com vantagens e honrarias os súditos fiéis e devo- tados ao serviço real. As vilas fundadas pelo governador correspon- diam à reunião dos arraiais auríferos mais significa- tivos: Vila Rica, por exemplo, nasceu da fusão dos arraiais de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, Padre Faria e Antonio Dias, situados em três vales contíguos. A primeira delas, criada a 8 de abril de 1711, foi a Vila do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo (mais tarde, Mariana, elevada à categoria de cidade e sede de bispado em 1745); no mês de julho seguiu-se a fundação de VUa Rica de Albuquerque 30 Zaura Verguefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 31 -- logo a seguir rebatizada de Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar, pois, segundo alguns, a atribuição de seu nome a um núcleo urbano colonial parecera ao rei atrevimento da parte do administrador -- e de Vila Rica de Nossa Senhora da Conceição do Sabarâ. O ímpeto urbanizados iniciado por Antonio de Albuquerque teve prosseguimento no governo de seu sucessor, D. Brás Baltasar da Silveira, que em 1713 criou São João del Rei e, no ano seguinte, Vila Nova da Rainha (Caeté) e Vila do Príncipe (Serro); 1715 foi o ano em que se criou Nossa Senhora da Piedade do Pitangui(Pitangui), assim como as três primeiras comarcas da capitania: Vila Rica, Rio das Velhas e Rio das Mortes; anos depois, seria criada a quarta comarca, Minas Novas. Em 1718, já sob o governo de D. Pedro de Almeida, conde de Assumar, fundou-se São José del Rei (Tiradentes). O objetivo máximo da criação das vilas fora ordenar melhor a população, evitando o surgimento de novos conflitos e, caso voltassem a ocorrer, possi- bilitando a aplicação de medidas punitivas mais efi- cientes. Mas a mesma população que, sob os olhos vigilantes dos administradores coloniais, fora jun- tada nos núcleos urbanos com o objetivo de possibi- litar um controle maior, começou, através do conví- vio mais íntimo, a tomar consciência de vários pro- blemas específicos à situação colonial. Um deles, que logo assumiu graves proporções, foi o caráter extor. sivo do aparelho fiscal. A voracidade do fisco achava-se presente em toda a parte. O Regimento das Terras, que remon- n = 8 'B e B R $ Ê g 0 U 8 b. 0 Q 8RB 8 Q 0 eB S BS 8 0 0 -.Q S 8 32 Loura Vergueiro Opulência e Miséria das Minas Gerais T 33 tava ao século anterior, distribuía as datas minerais da seguinte forma: a primeira de todas cabia ao descobridor do ribeiro, que tinha o direito de esco- lher o local que Ihe aprouvesse; a segunda era desti- nada à Fazenda Real, sendo vendida pelo maior preço em hasta pública; a terceira também era dada ao descobridor, que deveria explora-la e nela efetuar trabalhos de mineração; distribuíam-se as demais entre os pretendentes, conforme o número de escra- vos que cada um possuísse. Assim, ganhava maiores datas quem tinha mais escravos: os que tivessem 12 ou mais negros receberiam uma data de 30 braças em quadra (ou seja, o equivalente a 66 m:); no caso de lhes pertencerem menos de 12 escravos, os mineiros recebiam terra mineral na proporção de 2 braças e meia (5,5 m: ) por escravo. Logo ficou patente que este sistema de distri- buição privilegiava os indivíduos de maiores posses, ficando os homens livres pobres à mercê de ativi- dades esporádicas, a maior parte das vezes possuindo lavras de extensão insignificante, ou não possuindo lavra própria. Os burocratas coloniais sentiram de imediato que a situação era de desigualdade fla- grante, e procuraram atenuar o contraste entre as possibilidades dos ricos e as dos pobres. No quinto capitulo do Regimento, constava que se devia agir de modo a que ''todos, assim ricos, como pobres, fi- quem acomodados, e extraiam ouro''. Entre outros, o Ouvidor Geral da Comarca do Rio das Mortes -- que era a personagem judiciária de maior importân- cia da região -- notou, muitos anos depois, que acontecia exatamente o contrário, os ricos fazendo ''seleiros de terras minerais, em prejuízo dos Reais Quintos''. E aí residia a questão: não era a pobreza dos pequenos mineradores que doía para a Metró- pole, mas o fato de ser impossível aos homens pobres pagar os pesados tributos que deveriam seguir para o Reino e engordar a receita da Coroa portuguesa. O problema dos impostos e os protestos que con- tra os seus diferentes métodos de cobrança levanta- ram as diversas camadas da população constituem um dos capítulos mais dolorosos da história das Minas. O estreito vínculo existente entre o ímpeto urbani- zador e o estabelecimento do fisco é comprovado pelo fato de tér sido Antonio de Albuquerque o primeiro fundador de vilas e o primeiro administrador a lan- çar impostos sobre o ouro. Determinou ele que o quinto da produção aurífera -- que, pela lei, cabia à Coroa -- fosse cobrado por batera, o que significava que cada escravo que trabalhasse nas Minas deveria pagar uma determinada quantia ao Fisco, perfa- zendo, desta forma, a quantia correspondente ao quinto. Esta prática suscitou um sem-número de protestos, pois pagavam igualmente os que achavam ouro e os que não o encontravam. Albuquerque ado- tou então novo sistema, segundo o qual o quinto era extraído quando o ouro deixava a capitania. O sucessor de Albuquerque procurou fixar em 30 arrobas a contribuição anual da população das Minas, fazendo com que esta cota fixa correspon- desse ao quinto; mas o rei não concordou com o novo método, determinando que se adotasse mais uma vez 34 Z,atira Vergtzeíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 35 o sistema de cobrança por bateias. O empenho do governador em cumprir a vontade real provocouum levante, conhecido como Levante do Morro Verme- lho, e a contribuição foi novamente fixada em 30 arro- bas. Adotou-se este procedimento até 1718, quando as Câmaras assumiram o compromisso de pagarem anualmente 25 arrobas e deixarem a cargo da Coroa a cobrança dos direitos sobre a entrada de gado, escravos e qualquer tipo de carga na capitania. Entretanto, na surdina, os funcionários colo- niais proviam a tudo a fim de que, conforme ordens recebidas de Portugal, se instalassem nas Minas as Casas de Fundição; para elas se deveria encaminhar todo o ouro em pó da capitania, sendo então fundido em barras e sofrendo a retirada dos 20%o correspon- dentes ao quinto real. As barras recebiam aí um carimbo, que era a prova de que o proprietário pro- cedera conforme as normas legais, pagando à Coroa o que Ihe era devido. A este processo chamava-se quis tar o ouro . O primeiro grande sinal da insatisfação dos ha- bitantes ante a voracidade do fisco foi o levante ocor- rido em Vila Rica no ano de 1720. Em julho de 1719, Assumar anunciara o funcionamento das Casas de Fundição para daí um ano. Seguiu-se uma série de boatos e manifestações de contrariedade, explodindo revoltas em algumas das principais vilas do território mineiro. O governador contava, pela primeira vez nas Minas, com uma tropa regular recém-criada: os dragões, que eram reinóis provenientes na sua maio- ria do Norte de Portugal. Este corpo de elite foi de grande valia nos primeiros momentos, sufocando os tumultos. Mas, entre 28 e 29 de junho de 1720, ocorreu em Vila Rica um levante de sérias propor- ções, articulado por alguns dos principais senhores de lavras da capitania; entre eles se encontrava Pas- coal da Salva Guimarães, imigrante minhoto que en- riquecera com o comércio e com a mineração no Morro que levava o seu nome (Morro de Pascoal da Silvo). A revolta teve apoio de Manuel Mosqueira da Rosa, antigo ouvidor da Comarca de Vila Rica, e de alguns segmentos mais populares, cujo líder era o tropeiro minhoto Filipe dos Santos. Parece que, sob sua sugestão, chegaram os sediciosos a pensar no assassinato do governador e na independência da capitania. Durante algum tempo, os próprios revol- tosos temeram pelo rumo que poderia tomar o movi- mento, cada vez mais controlado por Filipe dos San- tos e por propósitos mais radicais. Bandos de escra- vos armados, alguns tendo o rosto coberto por más- caras, colocaram em sobressalto a população de Vila Rica durante aqueles dias. Na manhã de 14 de julho, Assumar marchou sobre a vila, ocupando-a sem maiores problemas devido ao concurso de uma co- luna de 1 500 homens armados. A seguir, procedeu à prisão dos cabeças do motim, fazendo-os desfilar pelas ruas de Vila Rica. Filipe dos Santos foi sen- tenciado sumariamente e condenado à morte, o que era ilegal por ser ele homem branco e, como tal, passível de receber julgamento apenas de tribunal devidamente qualificado. Seu corpo, feito em quar- tos, foi exposto à beira das estudas, fincando-se sua 36 Z;aura Vergueíro Uputência e Miséria das Minas Gerais 37 cabeça no pelourinho da vila. Como se não bastasse o castigo exemplar de Filipe dos Santos, Assumar ordenou que o Morro de Pascoal da Salva fosse queimado em noite de vento, fornecendo, assim, um espetáculo terrível para a po- pulação mineradora. Como aconteceria com as festas barrocas das décadas seguintes -- o Triunfo Eucarís- tico, de 1733, e o Áureo Trono Episcopal, de 1748 --, o suplício de Filipe dos Santos e o incêndio do Morro -- a partir de então, conhecido como Morro da Queimada -- constituíram espetáculos visuais cu- jo objetivo era confirmar o poder real e camuflar os conflitos: os culpados haviam sido punidos, os de- mais habitantes se constituindo em súditos fiéis e ordeiros, que, como tais, deveriam retomar o traba- lho, desentranhando da terra o ouro de Sua Majes- tade. Como nas festas barrocas, era o primado do visual. Como ocorreria mais tarde na Inconfit.ência de 1789, tratava-se de um grupo de homens ricos e importantes que procuravam enfrentar o poder me- tropolitano, desafiando-o nos pontos que levavam seus interesses particulares; em ambos os casos, o sacrifício máximo caberia apenas ao elemento de extração humilde que acreditara identificados aos seus os interesses dos poderosos. Se a sedição dos emboabas provocara a separa- ção entre o Rio de Janeiro e a nova capitania de São Paulo e Minas, o levante de Filipe dos Santos serviu para confirmar o que D. Pedro de Almeida jâ vinha dizendo à Corte havia algum tempo: que as Minas eram propensas às revoltas: ''a terra parece que eva- D. Pedra de Almeida à corte: ''a terra evapora tumultos, a agua exala motins. . . 38 .[aura Vergueíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 39 porá tumultos; a agua exala motins; o ouro toca desaforos; destinam liberdades os ares; vomitam inso- lências as nuvens; influem desordens os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião'', observava o feroz Assumar. Como resposta a esse potencial rebelde dos mineiros, que aflorava sob o peso enorme e desesperador do fisco, e com o intuito de organizar melhor o rendimento dos quintos, procedeu-se a no- vo desmembramento: São Paulo passou a constituir uma capitania independente, e D. Lourenço de Al- meida foi designado para substituir D. Pedro de Almeida, Conde de Assumar, no governo da nova capitania das Minas Gerais. 1709, sob o impacto do conflito emboaba, e 1720, quando os levantes de mineiros refletiram a insatisfação ante o fisco, cor- respondem, assim, a dois momentos diferentes da centralização do poder. Após a tragédia de Filipe dos Santos, os minei- ros haviam concordado em pagar anualmente 37 ar- robas de ouro. Mas durou pouco este acerto: em 1725 o novo govemador conseguiu finalmente colocar em funcionamento as Casas de Fundição. A vontade e os interesses dos habitantes das Minas nada contavam, o rendimento dos quintos e a quantidade de metal que ingressava no Reino norteando a política aditada pela Metrópole em face da mais rica porção de seu Império ultramarino. Entretanto; como o contra- bando viessejá havia algum tempo aumentando con- sideravelmente, o rei e o Conselho Ultramarino deci- diram alterar o sistema de cobranças ainda uma vez, optando pela capitação e esperando que, assim, ter- minassem os extravios. Mas o que ocorreu foi o pro- testo indignado de todas as Câmaras Municipais da capitania. O Regimento da Capitação determinava que to- do escravo tivesse seu nome no Livro de Registro, sob pena de ser confiscado a seu senhor; o indivíduo que eventualmente acusasse irregularidades nesta maté- ria receberia, como recompensa, uma quantia equi- valente à metade do valor do escravo -- medida que, obviamente, incentivava a dilação. Pelo sistema da capitação, o indivíduo cujo escravo extraía ouro pa- gava a mesma quantia que aquele cujo escravo nada encontrava. Todos deveriam pagar, excetuando-se apenas os doentes incuráveis, que, no entanto, deve- riam ter o nome registrado no livro de matrícula. As Câmaras tentaram negociar a substituição deste ter- rível imposto por um sistema de cotas fixas, che- gando a oferecer à Coroa a contribuição de 100 arro- bas anuais. De nada adiantaram essas negociações, e a capitação começou a vigorar em 1735. Após mais de vinte anos de protestos generali- zados por parte da população, este tributo foi nova- mente substituído pelas Casas de Fundição, que vi- goraram até o final do período. Em cada cabeça de comarca se estabeleceu uma Casa; pelo novo sistema, a capitania pagava anualmente cerca de 1 500 quilos de ouro. Havendo excesso sobre as 100 arrobas, este serviria para cobrir uma eventual falta no ano se- guinte; caso se registrasse então um novo excesso, o anterior ficava automaticamente pertencendo ao rei. Até 1762, o quinto foi pago normalmente, havendo 40 Zaura Verguefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 41 excedente; mas a partir de 1763, a arrecadação não atingiu mais a cota fixada de 100 arrobas. O fato de desejar a Coroa completar a todo custo a cota prefi- xada fez com que criassea derrama, mecanismo pelo qual a população devia cobrir a diferença que faltava para completar as 100 arrobas. A insatisfação gerada por este procedimento teve sérias conseqüências, contando de forma decisiva na articulação da Incon- fidência Mineira de 1789. Os sistemas de arrecadação de ouro e diamantes foram as formas extremas da manifestação do fisco nas Minas; mas houve outras, igualmente onerosas para a população: os dízimos, o subsídio voluntário, o subsídio literário, os direitos de entradas e passa- gens. Essa pesada rede fiscal onerava a população, gerando pobreza e desclassificação social. São incontáveis as queixas: de pequenos mine- radores que não conseguiam arcar com o peso dos impostos; de negras farras que caíam no meretrício para poderem pagar a capitação; das Câmaras, que insistiam na situação de penúria extrema da capi- tania, aludindo ao caso dramático do cego mendi- cante que era obrigado a pagar a capitação do es- cravo que o ajudava a subsistir. Consta que o fisco voraz cobrava a capitação até de escravos doentes e dos que andavam fugidos pelos matos, sem fazer caso do fato de não estarem eles minerando ouro. Mas foi no Distrito Diamantino que o fisco mos- trou a sua face mais cruel, sucedendo-se os casos de arbitrariedades e de violências. O território diaman- tífera foi demarcado por volta de 1734, e a adminis- ..i 0 8 $ 8 E =q l 42 .Z,azzra Verguefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 43 tração respondia diretamente a Lisboa, subordi- nando-se ao governo da capitania apenas no tocante à organização militar. Em solo diamantino suce- diam-se os abusos, e as relações sociais atingiram níveis inéditos de desagregação: imperava o pânico, e o habito de delatar era estimulado pelas autoridades. que assim acreditavam impedir o contrabando de pedras. A extração de diamantes era negócio exclu- sivo da Coroa, que por períodos determinados o ar- rendava a contratadores. O mais famoso deles foi o desembargador João Fernandes de Oliveira, célebre não apenas pela enorme quantidade de diamantes que extraiu para si e para o rei, mas sobretudo pelo romance que manteve com Francisca da Salva, mu- lata que alforriou e com quem teve treze filhos. Ape- nas os escravos do Contrato podiam minorar diaman- tes, e todo aquele que fosse encontrado à cata das preciosas gemas era severamente punido, a mais co- mum das penas sendo o banimento para fora da capitania. Havia também a pena de morte civil, igualmente terrível. O Contrato vigorou até 1771, quando a mineração de diamantes passou a ser reali- zada pela Real Extração, de caráter oficial. O impedimento que tinham os habitantes de minerarem diamantes num lugar em que a vida era totalmente voltada para a extração dessas pedras fez com que boa parte da população ficasse sem em- prego. Como observou Joaquim Felício dos Santos nas .4/emórlai do Z)isrri/o .D/amanfflzo , ''era o paupe- rismo, que se procurava por todos os meios estabe- lecer no solo mais rico do Brasil''. Famílias inteiras se viram afetadas pelo banimento, perseguidas pelos temíveis dragões da Extração que vasculhavam cada palmo do Distrito Diamantino à cata de infratores. O fantasma do contrabando assombrava os funcioná- rios da Intendência dos Diamantes, que contra ele travavam luta sem trégua. Mas, apesar do cerco cerrado que Ihe moviam as autoridades, os contra- bandistas nunca deixaram de atuar, a sua ação clan- destina constituindo a única possibilidade que ti- nham para garantir a subsistência. Para melhor explorar o rico quinhão da Colónia que Ihe fornecia ouro e diamantes, que Ihe pagava as importações e o fausto, cuidou Portugal de fundar vilas e cidades, de impedir as desordens e os levantes, de reprimir e lançar mão da violência sempre que julgasse preciso. Essas medidas drásticas não pude- ram impedir a ocorrência de levantes sérios, não enriqueceram a Metrópole e contribuíram enorme- mente para lançar grande parte da população mine- radora na mais negra miséria. Opulência e Miséria das Minas Gerais 45 vilegiados os elementos que possuíssem maior nú- , mero de escravos. Como já se viu, o critério de con- b' cessão de datas se assentava na quantidade de cativos possuídos, as maiores extensões indo para as mãos dos grandes senhores. Para estes, o luxo e a ostentação não eram puramente sintoma de irracionalidade, consistindo em sinal distintivo do sfafzzs social e em instrumento de dominação necessário, que permitia consolidar o mando. Sfafzzs e mando eram de impor- tância capital justamente por serem poucos nas Mi- nas os privilegiados que detinham tais elementos de proeminência: mais da metade das lavras estavam concentradas nas mãos de menos de 1/3 dos proprie- tários de negros, os demais senhores possuindo uma quantidade média de escravos que, para algumas/ regiões, não era superior a 3. Dados como este servi- ram de embasamento a análises que ressaltaram o caráter mais equitativo da riqueza na formação so- cial mineira. Wilson Cano foi quem, recentemente, contestou a associação que de ordinário se faz entre a capaci- dade dinamizadora da economia mineira e sua alta produtividade. Se essa capacidade se manifestou, gerando efeitos produtivos na economia do Sul e desenvolvendo a urbanização, o aparelho burocrático e o militar, o ouro não engendrou segmentos produ- tivos /n /oco, pois muito se gastava na importação de géneros de subsistência e quase nada se produzia dentro das Minas, não ocorrendo também a retenção do excedente produzido. A compulsoriedade do tra- balho tornava desnecessário o aperfeiçoamento téc- A FORMAÇÃO SOCIAL As Minas Gerais foram tradicionalmente consi- deradas pela historiografia como a região em que, na Colónia, a riqueza se distribuiu de maneira mais igual e harmoniosa, originando uma sociedade de- mocrática e de anseios igualitários. A diversificação das atividades era tomada como uma das provas dessa tese, apontando-se também o papel dinami- zador do núcleo mineiro, que articulou e conferiu sentido económico significativo a regiões situadas nos confins da Colónia. Ora, se os fatos históricos são incontestáveis -- realmente, houve maior diversifi- cação profissional, e as Minas de fato funcionaram como elemento articulador --, o mesmo não acon- tece com as inferências feitas com base neles. A estrutura económica da Colónia se caracte- rizou, em suas linhas gerais, por ser simultanea- mente escravista e mercantil. Mostrando sua face escravista, a formação social das Minas tornava pri- 46 Zazzra Vergueíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 47 naco e a aquisição de máquinas, os investimentos verificando-se maciçamente na compra de escravos. As relações entre os gastos com mão-de-obra e a produção de ouro seriam as seguintes: manumissões, concedidas sobretudo na segunda me- \ tade do século XVlll, um índice da poupança dos escravos -- espelho de uma sociedade mais igualitária -- e da bondade dos senhores. Na realidade, não se / tratava disso, e sim da saída encontrada pelos manei- \ ros a fim de conservarem parte de seu antigo patrt, mõnio. A análise da formação social das Minas surge agora sob novo ângulo: uma economia de baixos níveis de renda distribuídos de maneira menos desi- gual do que na região açucareira, originando, pelos seu baixo poder de concentração, uma estrutura se-l cial mais aberta. Daí o número de pequenos em-l preendedores e o mercado maior constituído pelos avultado contingente de homens livres -- homens esses, entretanto, de baixo poder aquisitivo e pe-l quena dimensão económica. A constituição demo-l prática da formação social mineira poderia assim se reduzir numa expressão: um maior número de pes- soas dividiam a pobreza. ------' As Minas do século XVlll foram uma capitania pobre. Constituíram exceção alguns senhores opu- lentos de lavras, que, jâ no século XIX, ofuscariam a esposa do então governador, a Viscondessa de Con- deixa, presenteando-lhe um prato de canjica aurí- fera. ,àpesacMua$g.nêggxistirem estude!!oblç.AS. camadas sociais nas Minas, iiãÕ:Õê.IÕãieçe an.focado 'ãíãnêãíãue amaioria das grandes fortunas devia iiiãl'opulência mais.ao comércio'ãoí'que'à atividade mineradora. A grandeza lendária de Pascoal da Salva Guimarães, de Manuel Nunes Viana, de Francisco total de ouro produzido gastos quantificáveis com mão. de-obra saldo e gastos não quantifi- cados 644, 1 t/ouro 331,2 t/ouro 312,9 t/ouro Apesar da quantidade de ouro extraído das Mi- nas ter correspondido a cerca de 70%o da produção do Brasil no século XVlll, os mecanismos do Sistema Colonial -- o fisco, a tributação sobre escravos, o sistema monetário implantado, as importações em regime de exclusivo de comércio -- fizeram com que a maior parte dessa riqueza se esvaísse. Deduzindo- se da quantia de ouro extraído da terra os gastos com a compra e manutenção da escravaria, e toda uma gama de gastos não quantificáveis, o saldo se apre- sentava negativo. Dado o baixo nível de renda, pou- cos foram, nestas condições, os que fizeram fortuna. Quando, no final do período minerador, o ouro escasseou, os senhores de lavras se viram impossibi- litados de arcar com os custos de manutenção da mão-de-obr41..glçsmo--por.quç er4.. muito pequena a pêrce14..dg escravaria.yoltadapara as.dividades sublistêncj4:Daí o recurso tão freqüente às alforrias, que isentavam o senhor da responsabilidade de man- ter seus escravos. Muitos autores viram nas inúmeras Zatira Verpue/ro l Opuiêlzcía e ]Wüéría das .B41lzas Gerais 49 do 4:mala 9urgel fglg.construída no comércio de géneros paraas.Minas, no monopólio--dcl-gado de ---éQElgS.dgii2QççimentQ de.carne para os-açougues. Q çggiercio de muares.:g.cavalares, que articulava os = grande mineração. Tratava-se eã geral de elemen;o; que arrematavam o contrato das entradas e dos dízimos por tempo determinado. Num primeiro momento, era a Junta da Fazenda de Minas que chamou Casa do Real Contrato das Entradas, fican- do depois conhecido como Casa dos Contos. O contratador dos diamantes do Distrito Dia- mantino apresentava uma relação ainda mais estreita com a administração colonial. O primeiro contrato teve lugar em 1739; entretanto o mais célebre dos contratadores foi João Fernandes de Oliveira, que conseguiu para a Coroa quantidades fantásticas de gemas preciosas. Cena!4 que .ytÍlizava.noJrabalho das.lavras--um número de escravosLmuitíssimo supe- rior ao estjpl114dQ..pelas--termos- du contrato, obri- gããão:os a minerarem em locais perigosos e não se importando com as mortes que isso ocasionava. Após ter arrematado dois contratos sucessivos, João Fer- nandes foi chamado à Corte devido às irregulari- dades que ocorriam no arraial do Tijuco durante a sua gestão. Parece que atuava em cumplicidade com grandes..çoBgabandistas,.fechando também os olhos para as atividades clandestinas dos garimpeiros que. em troca, informavam-no sobre as lavras mais ricas. Destituído de seu cargo, João Fernandes não mais voltou a Minas, e ao morrer deixou uma das maiores fortunas do Império Colonial Português. Os grandes fazendeiros enriquecidos na explo- ração das propriedades fundiárias foram mais co- muns na região do Rio São Francisco, para os lados de Minas Novas do Arassuaí .e de Januâria. A distân- cia existente entre essas paragens e os núcleos urba- nos das Minas, onde funcionavam o aparelho admi- nistrativo, fiscal e judiciário, propiciou a maior inde- pendência dos potentados do sertão, rodeados por 50 Z,atira VerEuelro opulência e Miséria das Minas Gerais 51 bandos de capangas recrutados entre a população livre miserável, fazendo justiça com as próprias mãos, desafiando os emissários do poder central. Ficou lendária a figura de D. Mana da Cruz, ma- triarca sertaneja que se envolveu em levantes contra a capitação, e que gozava de enorme prestígio nos confins do rio São Francisco. Compunham ainda a camada dominante os al- tos funcionários da administração das Minas. Os governadores pertenciam quase sempre a famílias nobres de Portugal, e, apesar do nascimento, rara- mente possuíam fortuna. Se as Minas foram no sé- !ulo XV.lll a porção mais importante do Império Português, é natural que a escolha de seus gover- nantes se fizesse com certo cuidado. D. Pedra de Almeida, o terrível Assumar ( 1717-1724), terminou a carreira como vice-rei da Índia, notabilizando-se co- mo excelente administrador; o conde das Galvêas. governador das Minas de 1732 a 1735, fora escolhido anteriormente por D. João V como representante de seu governo no Vaticano, e assim que deixou a admi- nistração da capitania de Minas tornou-se vice-rei do Brasil; Gomes Freire de Andrade (1736-1763) foi um dos maiores governantes coloniais, lançando as bases da transferência da capital para o Rio de Janeiro; D. José Luas de Menezes, conde de Valadares, foi no- meado governador das Minas antes de ter comple- tado 24 anos de idade, sendo homem de confiança do Os cuidados que cercaram a escolha dos gover- nadores das Minas não impediu que, muitas vezes, rei estes se entregassem a negociatas e a desmandos. D. Lourenço de Almeida (1721-1732) deixou passar bastante tempo entre o instante em que tomou co- nhecimento da descoberta dos diamantes no Serro do Frio e a ocasião em que comunicou oficialmente o achado ao rei, pelo que recebeu séria admoestação. Corre que, nesse meio tempo, conseguiu ganhar bas- tante dinheiro no negócio ilícito das pedras. Ma- ninho de Mendonça, ilustrado português autor dos Apontamentos para a Educação de um Menino No- bre, exerceu com grande sacrifício -- segundo afirma em sua correspondência -- o cargo de governador interino das Minas de 1736 a 1737; diz-se que tam- bém este governante, sempre queixoso da saúde e do clima, aproveitou a estadia na região mineradora para ganhar algum dinheiro de forma ilícita. O vis- conde de Barbacena, que governava as Minas quan- do foi descoberta a Inconfidência Mineira, achava-se envolvido na conspiração e perdera dinheiro em ne- gociatas, ao que parece associado a João Rodrigues de Macedo. Do conde de Valadares conta Joaquim Felício dos Santos que conseguiu arrancar valiosos presentes do contratador João Fernandes; este, te- mendo que viessem à tona as irregularidades ocor- ridas em seu contrato, cedeu-lhe ainda soma consi- derável para com ela pagar dívidas no Reino. Ainda no que se refere à camada dominante, foi peculiar às Minas o maior peso do Estado, sempre presente e atento à arrecadação dos quintos e ao contrabando de ouro e gemas. Os grandes poten- tados, que nos outros pontos da Colónia tiveram 52 Z;aura Vergueíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 53 papel de destaque, foram, aqui, menos atuantes e significativos. O primeiro momento da história mi- neira conheceu. figuras como Manuel Nunes Viana, Domingos Rodrigues do Prado, Pascoal da Salva, Bento e Francisco do Amaral; mas, uma vez insta- lados os aparelhos de poder, seu raio de ação tornou- se mais restrito, confinando-se aos sertões onde só raramente chegavam os homens do governo. Durante todo o século XVlll, o prestígio e a influência dos grandes senhores de lavras ou de terras só foram tolerados até o ponto em que puderam ser absorvidos pelo Poder Central. No entanto, apesar de um poder maior se sobrepor à ação dos potentados mineiros, estes nunca receberam a pena máxima quando inten- taram atos de rebeldia: em 1709, Manuel Nunes foi deixado em paz nas suas fazendas de gado do São Francisco; em 1720, Pascoal da Silvo, Mosqueira e outros revoltosos foram presos, mas o suplício coube apenas ao modesto tropeiro Filipe dos Santos; neste mesmo ano, l)omingos Rodrigues do Prado, prin- cipal articulador do levante do Pitangui, foi quei- mado em efígie'P -- o que, para a época, era de extrema gravidade --, mas continuou suas tropelias pelos sertões; em 1789, que constitui o caso extremo, todos os membros da oligarquia que participaram da Inconfidência foram julgados e receberam duras pu- nições -- o degredo sendo, então, uma das penas máximas imputadas aos homens de certa condição social; mas apenas o alferes Salva Xavier foi conde- nado à morte. Isto prova que, mesmo quando a autonomia das camadas dominantesé cerceada pela ação dos apa- relhos de poder, a sua posição privilegiada as poupa dos maiores sacrifícios; estes, como em toda parte, são reservados aos integrantes das camadas menos favorecidas. A camada intermédia abrangia, nas Minas, in- divíduos entregues a uma gama variada de atividades profissionais. Creio ser possível arriscar a hipótese de que poucos viviam com certo conforto e despreocu- pação, a grande maioria sendo constituída pelos que tinham de lutar diariamente pela subsistência, numa capitania inteiramente voltada para a faina aurífera e para a mineração de diamantes. Nos primeiros tempos, a quase totalidade da população se entregou a este tipo de trabalho, e só por volta dos anos 20 do século XVlll é que começa- ram a se tornar significativas as outras atividades. Nas Devassas Eclesiásticas, riquíssima fonte docu- mental conservada na Arquidiocese de Mariana, os roceiros, os donos de pequenas vendas, os modestos mascates -- ''viajantes dos caminhos'', como então se dizia --, os pequenos artesãos aparecem com certa freqüênciajá na primeira visitação feita pela Diocese do Rio de Janeiro à nova capitania mineira, em 1721. Pode-se imaginar a dificuldade com que os humildes comerciantes de tenda aberta enfrentavam os pode- rosos açambarcadores de gêneros, o mesmo aconte- (+) Queimava-se alguém em efígie quando, uma vez tendo sido conde- nado à pena máxima, o indivídüãüchava-se fugido. 54 Zaura Vergzzeiro Opulência e Miséria das Minas Gerais 55 cendo com o pequeno tripeiro, tão insignificante em face dos poderosos indivíduos que articulavam o co- mércio do gado até as longínquas regiões do sul da Colâni:!,.Q.g\lg.çgDpljça1la:êlnda Diailê:.!ligação dos elementos da camadaintermédia é que tudo indica ter sido a incapacidade por eles apresentada .de.dar .êõiitaãl'tIaS-ãtiVíãadês'Mnêiadoras -- dominadas pe- los que possuíam mais recursos e maior número de escravos -- Q. motivo pelo qual se dedicaram a outras atividades. Apesar disso, muitos foram os mineiros de pe- queno porte, os que tinham dois, três, cinco escravos no máximo, e que passavam seus dias em busca de algum regato pródigo ou de um veio abundante que lhes garantisse os dias futuros. Esses faiscadores se multiplicaram com a decadência do ouro, e isso, creio poder afirma-lo, deveu-se tanto à multiplicação do número de alforrias quanto ao abandono das atividades mineradoras por parte de vários dos gran- des senhores de lavras. Assim, quando muito pouco restava do ouro aluvional, quando -- segundo afir- mou Eschwege -- os trabalhos apressados e mal dirigidos, voltados apenas para o lucro rápido, ha- viam inutilizado, pelo soterramento, quantidade considerável de jazidas, aí então entrou em cena a pequena empresa, a faiscagem que se arrastou por mais de um século, a figura do mineiro pobre sendo parte integrante da paisagem das Minas. Os pequenos roceiros entregavam-se às ativi- dades de subsistência, plantando modestas roças de milho, de arroz, de feijão, de mandioca. As árvores frutíferas também se achavam presentes, assim como as hortaliças. A unidade produtora era exígua, e esses pequenos agricultores disputavam cada palmo de terra, brigando com o vizinho que, por astúcia ou por acaso, invadira uns poucos metros da sua posse com uma cerca. Muitas dessas brigas acabaram em facada, conforme ficou documentado nos códices re- ferentes a devassas e querelas Nos últimos anDE.dQ século-X5illl,começaram a súíÊit núcleos de criação de vacas leiteiras. e o fabrico do queijo de Minas ocupou famílias inteiras. A criação de porcos tam- bém :deve destaque, revelando, mais uma vez, a po- breza do mineiro: sua criação não requeria grandes espaços e era compatível inclusive com os aglome- rados urbanos, onde, frequentemente, o suíno vivia no quintal das casas. A documentação mostra que as atjyldades arte- sanais mais comuns foram as dos carapinas (carpin- teilQSJ..-a1141ête$usapaleÍros. e..pintores:. A prova de que viviam pobremente é que, quando chamados pelos visitadores das devassas eclesiásticas e acusa- dos de pequenas infrações, frequentemente não po- diam pagar a taxa imposta nestes casos, alegando pobreza e falta de meios. Esses ofícios mecânicos eram organizados, os artífices devendo fazer um exa- me, de tempos em tempos, para poderem exercer suas atividades. Excetuando-se os altos dignitários da Igreja, que eram pouquíssimos -- a figura proeminente sen- do o bispo, que residia na única cidade da capitania, Mariana --, os integrantes do clero também compu- 56 Z;aura Vergzzeíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 57 nham a camada intermediária, e consistiam basica- mente em padres seculares. A Coroa via com descon- fiança o clero secular; julgava-o mais apto a fazer o contrabando devido ao fato de possuírem as ordens religiosas casas em diversos pontos do Brasil e do exterior, ficando assim facilitados os contatos e as remessas de ouro e diamantes para fora das Minas Gerais. De fato, muitos desses padres foram contraven- tores notórios. Gozando de grande ascendência sobre os seus rebanhos, os padres mineiros assumiram com freqüência os propósitos normalizadores que a Me- trópole adotava com relação à Colónia, procurando disciplinar a inquieta população mineira, neutrali- zando seus conflitos. Entretanto, representantes de Deus e do rei, nem sempre levavam vida exemplar. Tem-se notícia de padres que descompunham suas ovelhas no sermão, vociferando e, do púlpito, apon- tando com o dedo os que julgavam haver cometido atos indignos. Outros jogavam cartas e dados, che- gando a ganhar os cavalos dos parceiros. Vulneráveis aos encantos do belo sexo, não era raro trazerem dentro de casa uma ''tia'', ''irmã'', ''prima'' ou ''co- madre'' para, diziam, auxilia-los nos afazeres do- mésticos, aliviando um pouco a sua solidão... Isso sem falar nos que, mais francos, passeavam a prole pelas ruas nos dias de festa ou nos domingos. Havia ainda os belicosos, sempre envolvidos em arruaças, fugindo a pé ou a cavalo de algum marido ciumento, lançando impropérios com o trabuco atravessado e o terçado preso à cinta. O surto artístico ocorrido nas Minas, intenso sobretudo na segunda metade do século, quando jâ escasseava o metal precioso, fez com que construto- res, entalhadores, pintores e músicos se tomassem figuras familiares aos habitantes da capitania, inte- grando a camada intermédia da população. ,Mluitos dos construtores vinham do Reino, como o sargento- mol=lensenheirãllosé'Fernandes(píiiiãÃlpi)im.::.guq cç)nta, entre suas obras, com a planta da Casa da Câmara e Cadeia de.Vila Rica, anualmente Museu da 'íiiconfidência -- e Manual Franci$co Lisboa, pai de Alejj4djphQ.ç.autotJ4planta da jgrçja do Calmo de Vila Rica. Chegavam a gozar de prestígio, como foi o caso deste último, proprietário de casas em Vila Ri- ca, possuidor de uma fazenda em Paraopeba da Boa Morte, perto de São José del Rei, membro da Ordem Terceira do Carmo. Os músicos constituíram também uma comunidade respeitada; mulatos na sua quase totalidade, eram constantemente requisitados para tocarem em festas oficiais e em missas, os seus contra- tos sendo, muitas vezes, anuais. Possuíam certo grau de instrução e se encontravam bastante atualizados no tocante às novidades européias, executando, no cora- ção da América do Sul, peças de Haendel, Haydn, Mozart, Boccherini. Os músicos mineiros eram alta- mente profissionalizados, formando espécies de cor- porações que o Senado da Câmara e as Irmandades protegiam, e que atuavam numa concorrência cor- Cada grupo social possuía sua irmandade: nos primeiros momentos, os ''homens bons'' da terra se dual 58 Zaura Verguelro Opulência e Miséria das Minas Gerais 59 Terceiras do Carmo e de São Francisco, enquanto pardos e pretos criavam suas irmandades próprias: Rosário dos Pretos, Amparo, Mercês. A estratifí- corporaçõesl era, assim, levada para o seio dessas Essas festas foram particularmente brilhantes e luxuosas, delas participando os diversos grupos so- da do ouro abundante, enquanto' o Áureo Trono denota os primeiros sinaisda decadência e do can. faço das .lavras. Segundo um cronista anónimo o HHug\ini ãaa# mesmo país'' que só alguns poderiam, jâ naquela época, arcar com os gastos necessários à subsistência e'à manutenção dos trabalhos auríferos. Mas a come- moração se realizou, servindo, mais uma vez? para camuflar as desigualdades, escamotear os conflitos e conferir a grupos sociais diversos e antagónicos a ilusão de que a todos agasalhava a riqueza das Minas. As peregrinações e romarias também consistiam momento de encontro, quando pessoas das mais di- versas procedências se dirigiam para as capelas e ermidas de sua devoção: assim, o Eremitério do Ca- raça, os santuários de Antonio Pereira, do Senhor Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo. As famílias e os grupos de gente iam cantando pelo caminho, fazendo-se acompanhar por flautas, rabe- cas e instrumentos musicais dos escravos africanos que seguiam nesse cortejo; havia ainda danças e cantos profanos nessas procissões, que geralmente tinham lugar aos sábados e domingos. As vendas e lojas de comestíveis também propi- ciaram o encontro entre as pessoas, sobretudo as de poucas posses. Eram o lugar do lazer e da alegria, onde se cantavam modas, se dançava o batuque, se bebia aguardente, jogavam-se cartas e dados. Nelas, muitas vezes o capitão-do-mato convivia com o es- cravo, os homens livres pobres com os negros forros, as prostitutas declaradas com as negras de tabuleiro, os autores de pequenos crimes com os soldados da milícia paga. Estas tavernas foram o alvo de medidas rigorosas, as autoridades coloniais movendo contra 60 .[azzra Vergzzefro l Opu/ê/zela e Miséria das Minas Gerais 61 elas uma luta sem trégua, como se o prazer consti. tuísse infração grave. Alegavam que osfolguedos de- gringolavam em brigas e até em mortes, sendo co- muns as altercações entre freqüentadores animados pelo álcool. Era nessas lojas que os integrantes da camada intermédia, os indivíduos melhor definidos na escala social encontravam-se com os componentes da franja imprecisa da sociedade, da zona fugidia e obscura que se esgarçava entre a camada dos homens livres, remediados e pobres, e a dos desclassificadas sociais. Estes foram numerosíssimos nag Minas, mais talvez do que em qualquer região da Colónia setecen- tista. Isso porque a riqueza ilusória do ouro trazia atrelada a miséria, a estrutura económica premiando a poucos e castigando a maioria, as drásticas leis metropolitanas servindo para engordar o fisco, vigiar o contrabando e punir com violência as menores infrações. Conforme foi-se desenvolvendo a atividade extrativa, avolumou-se na capitania do ouro uma grande quantidade de gente que não tinha posição definida na escala social, que o sistema criava e deixava sem razão de ser. Sujeitos a ocupações in- certas e intermitentes, esses indivíduos viveram na miséria e na promiscuidade, procurando, muitas ve- zes, fugir dessa situação através do crime da in- fração e da violência. A camada dos homens livres miseráveis era pre- dominantemente mestiça e negra, a ela pertencendo muitos escravos que haviam obtido a alforria, mas que nâo conseguiam manter-se na nova vida. Viviam 62 Zaura Vergzzefl )pulência e Miss;ia das Minas Gerais 63 em choças, os mais afortunados morando em casas que dividiam com outras pessoas, numa promiscui- dade que, frequentemente, tinha consequências fu- nestas: não eram raros os casos de relações incestuo- sas entre paj e filha, irmão e irmã. As uniões entre os sexos se faltam, quase sem exceção, através do con- cubinato. Casar era privilégio de poucos, pois o sa- cramento era caríssimo e a lgrqa impunha uma série de limitações aos cônjuges.'A'organização familiar diferia muito da que se conhece hoje em dia, a maio- ria dos lares sendo encabeçados por mulheres aban- donadas pelo marido ou pelo companheiro, mulheres sozinhas, viúvas, mães solteiras que trabalhavam pa- ra garantirem uma cota mínima de alimentaçãodiária. Nessa zona imprecisa constituída pelo grupo dos homens livres pobres, muitos negros forros eram tra- tados como escravos,. sendo reconduzidos novamente ao trabalho compulsório por engano ou, como acon- tecia na maior parte das vezes, por má fé. Então se desesperavam, dirigindo petições e requerimentos às autoridades da capitania, descrevendo as sórdidas condições em que viviam, clamando por uma justiça quetardavae, nãoraro, falhava. ' ''''"' O contrabando de ouro e diamantes era uma forma de infração cometida por ricos e pobres. Os ricos muitas vezes deviam a fortuna ao sucesso alcan- çado nas atividades clandestinas; os pobres nelas viam a possibilidade de saírem da miséria. Havia pequenos contrabandistas que atuavam individual- mente, mas a norma foi integrarem quadrilhas e grandes organizações comandadas por indivíduos poderosos. As afamadas negras de tabuleiros, perse- guidíssimas pela legislação, levavam géneros comes- tíveis e miudezas para serem negociadas nas lavras, receptando as pepitas que os escravos eventualmente conseguissem esconder. As vendas e tavernas tam- bém exerceram a função de pontos de contrabando. Perseguidos e amaldiçoados durante todo o sé- culo XVlll foram os garimpeiros do Distrito Dia- mantino. Como jâ se viu, era proibida a mineração dos diamantes, efetuada apenas pelos escravos do Contrato e jâ no fim do setecentos, pelos da Real Extração. Buscando saída para a situação de misé- ria, escravos fugidos e forros pobres enveredavam pela mineração clandestina, atuando individualmen- te ou em bandos que se tornavam temíveis. O garim- peiro imolado -- o faiscador, como se chamava -- era menos freqüente, sendo mais comuns os grupos orga- nizados sob as ordens de um ''capitão''. Com a prá- tica, esses homens se tornavam peritos, conhecendo lavras escondidas, ricas em pedras preciosíssimas. Assim, a captura dos garimpeiros não tinha apenas o objetivo de impedir a mineração clandestina: visava também lhes arrancar os segredos, para o que a administração diamantina não hesitava em recorrer à tortura. Alguns ''capitães'' fizeram lenda: João Costa e José Basílio, por volta da década de 80 do século XVlll; lsidoro, jâ no primeiro decénio do século XIX. Contra Jogo Costa, o governador D. Rodrigo de Menezes chegou a enviar um exército; a ação guerri- 64 Z;adira Vergzzeíra Opulência e Miséria das Minas Gerais 65 cheira de emboscadas e assaltos rápidos, desenvol- vida pelo grupo deste capitão, desnorteou as tropas oficiais, dando-lhes grandes dores de cabeça. Traído por uma amante, João Costa foi preso e conduzido ao Tijuco, o termo de prisão que então se lavrou infor- mando que era homem branco e contava com 33 anos. José Basílio, cabra, fora desterrado da circuns- crição diamantina por não ter ofício definido; vol- tando algum tempo depois, passou a atuar como garimpeiro; preso, foi condenado a trabalhos força- dos nos serüços de Extração, de onde escapou de for- ma espetacular, retomando em seguida sua antiga ati- vidade. Muitos anos depois voltou a ser preso, rece- bendo a pena de degredo para Angola. O capitão lsidoro foi o mais famoso garimpeiro das Minas, tendo, por algum tempo, fornecido infor- mações sobre jazidas diamantíferas às autoridades locais. Morreu de forma bárbara, em consequência de torturas e ferimentos que Ihe foram inflingidos por ordem do Intendente Câmara, que governava o Distrito Diamantino naquela época. A vida desses homens é largamente tratada nas admiráveis Memó- rias do Distrito Diamantino . Os vadios e desocupados foram. muito comuns nas Minas, constituindo motivo constante de inquie- tação para os governadores. Nos períodos mais difí- ceis, quando o ouro jâ escasseava, multiplicaram-se as queixas contra o peso que representava .para o Estado uma vasta porção de homens livres destituí- dos de trabalho e incapazes de provarem à própria subsistência. Procurou-se então torna-los úteis, em- pregando-os em funções que o escravo não podia preencher e que não ofereciam atrativo ao homem livre melhor situado socialmente. Muitas das expedições sertão adentro, na pro- curade novas regiões ricas em metais preciosos e diamantes, foram possíveis devido aos vadios. As autoridades previam ao seu recrutamento, que se fazia à força ou em troca de comida. Os vadios edificaram os presídios -- construções localizadas em terras remotas para combater o extravio do ouro e impedir o.avanço dos índios bravos -- e cultivaram as roças anexas a eles. Alias, foi freqüente o trabalho de vadios nas obras públicas, contando, entre estas, a construção da Casa da Câmara e Cadeia de Vila Rica. Estiveram presentes também na ordem pri- vada, integrando os corpos de guarda e polícia pes- soal dos potentados mineiros. Um dos casos mais dolorosos de aproveitamento dos vadios diz respeito à formação de corpos mili- tares para a guerra que Portugal e Espanha vinham travando pela posse da colónia do Sacramento. Esta região era alvo de disputas por parte de portugueses e castelhanos desde o início do século; em 1773, come- çaram os governadores de São Paulo e Minas a pen- sar no recrutamento de desocupados, visando a em- prega-los nas atividades bélicas da flunteira sul. O vice-rei do Brasil, marquês de Lavradio, também acreditava que esse tipo de gente, onerosa ao govêmo das capitanias, poderia ser útil como corpo de mi- lícia. Em 1777, o governador de Minas, D. Antonio 6Ó Z,azzra Vergzzefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 67 de Noronha, começou a enviar levas de miseráveis para Martim Lopes Lobo de Saldanha, capitão-geral de São Paulo e articulador dos corpos que chegavam de diferentes pontos com destino à fronteira. De São Paulo e do Sul, onde afinal foram ter os infelizes, levantaram-se protestos e manifestações de perplexi- dade ante aquela massa subumana, alquebrada, aleijada, nua, que os chefes militares não conse- guiam aproveitar, com quem os soldados da linha de frente não queriam dividir sua ração diária de co- mida. Providenciou-se, então, a volta desses farrapos humanos. Mas, num último instante, os melhores deles foram aproveitados para as tropas, para fazer número no ataque ao inimigo, enquanto outros eram desviados para o cultivo das roças de mantimentos que supriam as forças do Sul. A prostituição existiu nas Minas desde os pri- meiros tempos, quando muitas mulheres para lá se dirigiram sob a atração do ouro. Foram freqüentes as que se viram obrigadas a adotar este genêro de vida por causa da dificuldade em conseguirem o suficiente para a subsistência; para outras, que viviam do fa- brico de sabão e doces, o meretrício serviu para completar a receita doméstica. Apesar de casada, muita mulher pobre se prostituiu. Algumas meretri- zes moravam na roça; outras, bêbadas, envolviam-se em crimes de morte e acabavam sendo recolhidas à Casa da Cadeia. Era nos centros urbanos que se concentravam os prostíbulos, então conhecidos como ''casas de al- couce''. Alguns se achavam sob o controle de homens e mulheres que os cediam para encontros escusos, nem sempre servindo de residência às prostitutas que os freqüentavam. Outros eram vendas e estalagens que, como serviço suplementar, forneciam distração aos viajantes que passavam. Muitas vezes, os clientes das casas de alcouce eram bandidos temíveis. Havia os que atuavam isola- damente, invadindo as casas para roubarem objetos e dinheiro, incendiando-as após; outros esfaqueavam os viandantes noturnos que vogavam pelas vielas dos arraiais e das vilas e, uma vez o crime consumado, atiravam a vítima embaixo de uma ponte ou dentro de um carrego. Estes indivíduos muitas vezes come- tiam estupros, aproveitando-se do fato de varias mu- lheres residirem sozinhas, sem marido: nos docu- mentos existe até o caso horrível de uma criança violentada. Mas o banditismo que maior fama alcan- çou nas Minas foi o de grupo, o das famosas quadri- lhas que, nos caminhos tortuosos, nos penhascos, nos desfiladeiros, aguardavam a passagem dos co- merciantes ricos, das tropas que abasteciam as vilas e que levavam o ouro quintado para os portos da Co- lónia. A mais célebre das quadrilhas de bandidos que atuaram nas Minas foi a da Mantiqueira, descoberta no decênio de 80 do século XVIII. Sua zona de operação era o caminho que ia para o Rio de Janeiro; no início, atacou apenas contrabandistas de ouro e diamantes, mas gradativamente começou a roubar e a matar pessoas de destaque na vida da capitania, como o negociante de fazendas Antonio Sanhudo de 68 Zazzra Vergueíro } l l l Opulência e Miséria das Minas Gerais 69 Araújo. O alferes Joaquim José da Salva Xavier, que alguns anos depois se imortalizaria como o Tira- dentes da Inconfidência, teve papel de destaque na prisão dos membros desta quadrilha, integrada por brancos, mestiços e ciganos. Como de resto em toda a Co16nia, os escravos constituíram nas Minas a força de trabalho sobre que se assentava toda a vida económica, que extraía o ouro dos carregos e do seio da terra, perfurando as galerias, lavando o cascalho, permanecendo horas a fio, dias inteiros com as pernas dentro dágua. A tentação de furtar alguma pedra ou pepita era gran- de, e consta que boa parte dos escravos da mineração conseguiram, desta forma, juntar pequenas somas que, às vezes, eram suficientes para a compra da alforria. Mas tudo indica ter este procedimento cons- tituído exceção, a grande maioria dos negros vivendo em condições subumanas, mal-alimentados, enfra- quecidos, brutalizados pelos castigos e sevícias dos feitores, dos donos das lavras, do capitão-do-mato que, quando fugiam, os ia buscar nas brenhas e nos penhascos. Os escravos que trabalharam na mineração vie- ram, durante a primeira metade do século, da costa da Mina: pertenceram, portanto, ao grupo dos suda- neses. Dizia a tradição que estes negros eram hábeis mineradores, e em 1726 o governador do Rio de Janeiro informava o rei de que os negros minas eram ''os de maior reputação para aquele trabalho, di- zendo os mineiros que são os mais fortes e vigorosos, e ... não hâ mineiro que possa viver sem uma negra mina, que só com elas tem fortuna''. Depois de 1750, entretanto, parece ter-se modificado a situa- ção, afluindo para a capitania número maior de an- goleses e cangas, que eram do grupo banto. A.população escrava foi numerosí$sima nas Mi: nas, constiãiíãdo'iho:uivo constante.de preocupação para.a!. autoridades coloniais, que temiam a repe- tição do conflito'de Palmares. Em.1742,..a çonl!!!k. gente escravo representava pouco mais dQ70%o , num tõiãl'di'266 86&habitantes. Ãs vésperas da Inconfi- dência, em 1786, os homensBranco$.eram. em nú- mero de.165664,-enquanto. os.-pardos-chegavam--a 100685 e os escravos.atingiam a cifra de 1-96468 indiaduos..:Mestiços e negros ultrapassavam, pois, a casa dos 80%,--proporção que-continuarialhaltetàda nasprimeirQS anos-dcLséculo XIXi conforme o teste- munho dos viajantes Spix e Martius. Tratava-se, portanto, de uma capitania onde o elemento branco se achava em minoria flagrante. A superioridade numérica dos escravos, os maus tratos e a mâ alimentação que recebiam deram origem a uma grande quantidade de fugas, proliferando os quilombos. A punição dos escravos, quando de cará- ter privado, consistia no espancamento, nas chiba- tadas, no tronco, e em outros requintes de maldade a que os senhores se entregavam com certa frequência. Quando fosse grave a infração -- como era o caso do assassinato dos senhores pelos escravos --, o cativo ficava à mercê da justiça oficial. Poderiam, neste último caso, receber a pena de morte, a sua cabeça sendo exposta publicamente nas praças, conforme T P } 70 Z,atira Vergueíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 71 presenciou o viajante Pohl quando esteve em São João del Rei, jâ nos primeiros anos do século XIX. Abundam na documentação as referências a senho- res que não davam sepultura aos escravos, deixando seus corpos expostos aos bichos e animais de rapina. Em diferentes momentos, ocorreram tentativas de levantes escravos, o seu sucesso sendo impedido pelas brigas entre os próprios cativos: Em 1719, des- cobriu-se o plano de um levante geral, acertado para quinta-feira de endoenças:
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