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28 - opulencia e miseria das minas gerais - Laura Vergueiro

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Laura Vergueiro
OPULÊNCIA E MISÉRIA
DAS MINAS GERAIS
1981
(:lopyrzk#f(ê) Laura Vergueiro
Clama :
123 (antigo 27)
Artistas Gráficos
CaHcaturas :
Emílio Damiani
Revisão \
José E. Andrade
ÍNDICE
.4 vilão edénlca
O primeiro momento da mineração nas Minas
Gerais
A organização da capitania
A formação social
Minas Gerais, a síntese da Co16nia
Indicações para leitura
7
14
27
44
75
80
editora brasiliense s.a.
01223 -- r. general jardim, 160
são paulo -- brasil
A VISÃO EDÊNICA
Ao lado da ilha das Sete Cidades e de tantas
outras que povoaram o imaginário feudal, figurava a
misteriosa ilha Brasil, de posição variável, situada
em algum lugar do Atlântico. Uma vez descoberta a
costa ocidental da América, a Terra de Santa Cruz e,
logo a seguir, a Terra do Brasil -- como ficou-se
chamando -- continuou sendo o lugar de eleição de
mitos e sonhos, com sua natureza exuberante a que
estavam tão pouco afeitos os europeus, as índias nuas
em que os portugueses escorregavam assim que pu-
nham os pés na terra, os pássaros coloridos e ca-
ncros. Os filósofos da Igreja logo aventaram a possi-
bilidade de se achar nessas novas paragens o Paraíso
Terrestre, enquanto outros indivíduos começavam a
atribuir características depreciativas à nova terra: a
América era um continente inferior porque não tinha
na sua fauna os grandes mamíferos europeus, dentre
os quais se destacava o leão; a natureza dera a esta
8 Z,azzra Vergueü'o Opulência e Miséria das Minas Gerais 9
porção do mundo um solo pútrido e úmido, e fora
pródiga justamente nas espécies animais que eram
consideradas como inferiores: os répteis e os insetos.
O homem americano também era inferior, espécie de
criança grande, sem nenhuma maturidade e, pior do
que tudo, imberbe -- sinal característico de sua pou-
ca virilidade.
A América foi, pois, o lugar privilegiado das
mais diversas proleções do imaginário feudal, que
nela edificou mitos edênicos e mitos depreciativos.
Dentre os primeiros, desde cedo tomou vulto o mito
do Eldorado: as terras, montes e montanhas de
ouro puro, que se encontravam perdidos no coração
da nova terra e que fariam a felicidade de quem os
encontrasse.
Na América Espanhola, a atividade agrícola que
desde os primeiros tempos se desenvolveu em Cuba
foi logo ofuscada pelo brilho do ouro; não se encon-
traram nessa ilha grandes quantidades do metal pre-
cioso, mas o imaginário do conquistador continuou
sendo constantemente alimentado por relatos fantás-
ticos que os índios faziam de riquezas incalculáveis,
situadas ora mais para o Sul, ora para Leste, ora em
direção ao Norte, depois de uma montanha redonda,
ora rumo ao Sul, assim que se atravessasse um rio.
Os tesouros astecas da América Central e, depois, os
tesouros incas da região andina acusavam a existên-
cia de prata e de ouro; mas foi com a descoberta das
minas do Potosi(1545) que os espanhóis encontra-
ram o seu Eldorado, inundando de prata o Velho
Continente e acendendo mais uma vez a cobiça dos
europeus.
Nessa época, a Europa debatia-se na crise de
desagregação do sistema feudal, em que tivera papel
importante a intensificação das atividades mercantis.
Mais do que nunca, escasseava metal nobre amoe-
dável, as minas da Europa Central não dando conta
da demanda. Assim sendo, os portugueses procu-
raram seguir os passos dos espanhóis desde que tive-
ram notícia de seus primeiros sucessos na busca de
metal precioso. Quatro anos após a descoberta do
Potosi, instalava-se na Bahia o governo geral e se
intensificavam as buscas de ouro e prata, Francisco
Bruza de Espinosa entrando pelo sertão baiano já em
1554. De vários pontos começaram a partir essas
''entradas'' -- denominação dada aos empreendi-
mentos realizados sob o patrocínio da Coroa portu-
guesa ou aos que, tendo sido idealizados por parti-
culares, receberam apoio oficial significativo --: da
Bahia, do Espírito Santo, do Ceará, de Sergipe, de
Pernambuco. Foi, entretanto, a atividade dos mame-
lucos de São Paulo que constituiu o capítulo mais
significativo da história da busca dos metais precio-
sos na Colónia; as empresas de Brás Cubas -- de
roteiro incerto, ocorridas em 1560 -- e de Luas Mar-
tins -- que, em 1561, inaugurou a mineração no
Jaraguá -- representaram, ao que tudo indica, os
primeiros ensaios paulistas no tocante à mineração
do ouro de lavagem .
Naturais de uma região segregada do litoral e
situada à margem da atividade económica domi-
nante na Colónia seiscentista -- a plantação de cana-
'n 10
Lavra Vergueiro
Opulência e Miséria das Minas Gerais
11
ros de jornada foram dispersando-se, e o velho Fer-
não Dias chegou a executar um filho bastardo que
conspirara contra ele. Consta que vendeu toda a
prata de sua casa e os demais objetos de,valor para
poder continuar a busca. Por fim, em 1681,.julgou
ter encontrado as pedras preciosas, morrendo logo
em seguida de febres, ou ''carneiradas''. Tratava-se,
porém, de turmalinas, e a viagem de Fernão Dias
não apresentou maior interesse económico. Sua im-
portância deveu-se ao fato de ter desvendado boa
parte do sertão das Gerais, abrindo caminhos e plan-
tando roças que seriam de grande serventia para
bandeiras futuras.
Tanto na bandeira de Fernão Dias como na de
Antonio Pares de Campos (1716) e na de Bartolomeu
Bueno da Sirva, o Moço (1722), o elemento edênico
apresenta varias implicações. Fernão Dias descobriu
o sertão das Minas Gerais enquanto perseguia o so-
nho das esmeraldas: a lendária Serra de Sabarabuçu
que muitos, antes e depois dele, cultivaram; como
tantos outros, estava impregnado do imaginário de
sua época, onde as montanhas resplandecentes de
esmeraldas tinham papel de destaque. Mas, uma vez
tocadas, as pedras preciosas se metamorfosearam em
turmalinas sem valor: o ''verde engano'' de que fala
Carlos Drummond de Andrade no poema Garfo ]Wz-
n, era! ':
:E as esmeraldas,
Minas, que matavam
de esperança e febre
12 .Z,atira Verpueiro
Opulência e Miséria das Minas Gerais 13
e nunca se achavam
e quando se achavam
eram verde engano?''
+
+
constituíram peças importantes da chamada acumu-
lação primitiva de capital, verificada nos centros he-
gemânicos. Produzindo açúcar, algodão, tabaco, ou-
ro e prata, representaram importante fonte de lucro
para o comércio europeu A mitificação da América
foi um dos aspectos do arcabouço ideológico que
revestiu a colonização moderna das novas terras; a
sua depreciação foi um outro lado da moeda, ser-
vindo aos europeus como comprovante de sua supe-
rioridade e como justificativa dos atos arbitrários e
cruéis que viessem a cometer em terras americanas.
Mas este aspecto não nos interessa no momento.
Antõnio Pares de Campos -- precursor da ban-
deira de Pascoal Moreira Cabral que, em 1718, des-
cobriu as minas do Cuiabâ, em Mato Grosso --
teria entrado para o sertão em menino, na compa-
nhia do pai, o bandeirante Manual Campos Bicudo.
Naquela ocasião, vislumbrara nos confins da bacia
Platina uma serra em cujos penhascos a natureza
desenhara símbolos parecidos com os da Paixão de
Cristo: a Serra dos Martírios, onde se dizia existirem
riquezas fabulosas. Com a bandeira de Campos Bi-
cudo seguia então a de Bartolomeu Bueno da Salva, o
velho Anhangüera, que também levava consigo o
filho, de nome igual ao seu. Junto com o pequeno
Antonio Pares de Campos, o menino viu a serra, e
como o companheiro, voltaria à sua procura muitos
anos depois. Buscando um objeto comum -- uma
das muitas serras lendárias que povoavam a imagi-
nação dos colonos americanos --, deram com coisas
diferentes: Pares de Campos foi ter às imediações de
Cuiabá, enquanto Bartolomeu Bueno, o Moço, des-
cobria as riquíssimas minas de Golas.
A visão edênica recobrou frequentemente o carâ-
ter mais profundo da colonização americana: criar
riqueza, através da agricultura ou da mineração de
metais preciosos, para fomentar o desenvolvimento
das metrópoles, permitindo-lhes superar a crise do
feudalismo. De fato, enquanto duraram, as colónias
l
Opulência e Miséria das Minas Gerais 15
cou o descoberto ao concunhado, Bartolomeu Bueno
da Silveira, sertanistaveterano que encabeçará mui-
tas expedições de preação. Bartolomeu Bueno não
perdeu tempo, organizando uma bandeira e desco-
brindo ouro em ltaverava.
A notícia do achado logo se espalhou, chegando
a Lisboa através da correspondência dos governantes
coloniais com a Corte. O rei, D. Pedra ll de Por-
tugal, determinou que o governador da capitania do
Rio de Janeiro -- à qual estava subordinada a região
das Minas Gerais -- fosse a São Paulo verificar a
veracidade das informações e, no caso de procede-
rem, estabelecer os meios adequados à exploração
das novas minas.
Unido ao entusiasmo que normalmente desperta
o descobrimento de minas de metais preciosos, o
interesse oficial pelo ouro das Gerais estimulou os
habitantes de São Paulo, que se lançaram à procura
de novos ribeirões auríferos nos sertões recém-des-
vendados. Toda esta primeira fase mineradora carac-
terizou-se pela exploração do ozzro de p/ácer, ou seja,
pela mineração aluvional. Levas sucessivas de pau-
listas se concentraram ao longo dos ribeirões: Miguel
Garcia e seus companheiros no Gualaxo do Sul
(1694); Manuel Garcia, o Velho, no Tripuí (1695-96),
enquanto, na mesma época, Belchior da Cunha Bar-
regão e Bento Leite da Silvo começavam a catar ouro
no ltacolomi, e Salvador Mendonça Furtado desco-
bria o primeiro ouro no Ribeirão do Carmo. Mas foi
a partir de 1698, quando o taubateano Antonio Dias
de Oliveira encontrou as formidáveis minas de Ouro
+
O PRIMEIRO MOMENTO
DA MINERAÇÃO
NAS MINAS GERAIS +
Reza uma tradição que alguns dos companhei-
ros de Fernão Dias, desertando da bandeira e en-
trando pelos matos e serranias das Gerais, acabaram
encontrando ouro. Entretanto, é a Antonio Rodri-
gues Arzão, paulista também, que parece caber,
mais do que aos outros, a descoberta do primeiro
ouro das Gerais. Em 1693 andava ele apresando
índios para os lados do sertão da Casa da Casca
quando deparou com um ribeiro que Ihe pareceu
contar cascalho aurífero. Experiente, como tantos
outros paulistas, em virtude da atividade mineradora
que desenvolvera nas minas de Curitiba e Parana-
guâl Arzão extraiu do regato três oitavas de ouro,
sendo obrigado a interromper o trabalho devido aos
ataques dos índios da região. Seguiu para a capitania
do Espírito Santo, e, ao voltar a São Paulo, comuni-
16 l,aura Vergtzefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 17
Preto, que começou a acorrer às Minas uma quanti-
dade maior de pessoas. A importância de Ouro Preto
foi confirmada no ano seguinte por novo alvéolo aurí-
fero, rico como os anteriores, descoberto pelo padre
João de Faria Fialho -- daí o nome que recebeu:
ribeiro do Padre Faria; seguiram-se Ribeirão Bueno,
Arraial dos Paulistas, Passa Dez, todos na mesma
região .
Este primeiro momento das Minas de Ouro foi
marcado por um sem-número de tumultos, de crimes,
de convulsões de toda a sorte, contando entre elas as
crises generalizadas de fome e de carestia de alimen-
tos. Não só da capitania vizinha de São Paulo vieram
os aventureiros em busca de riqueza fácil: nos portos
de Santos e do Rio de Janeiro muitos navios foram
abandonados pela tripulação, a quem os trabalhos
nos regatos auríferos pareciam muito mais promisso-
res do que as longas travessias marítimas, o medo
dos vagalhões, o escorbuto. Desesperados, os coman-
dantes recorriam às autoridades locais, que por sua
vez escreviam ao rei dando queixa da situação. O
mesmo acontecia com os soldados das guarnições,
que, desprezando o soldo garantido e a ração diária
de farinha, deixavam as praças à mercê das incursões
dos piratas estrangeiros e iam tentar a sorte nas
Minas. A deserção dos soldados de infantaria da
guarnição do Rio tomou tais proporções que o reí,
reconhecendo a impossibilidade de conter as fugas,
ordenou que os fugitivos que acaso fossem captu-
rados tivessem a pena das galés, devendo trabalhar à
força na construção de fortificações e trazer calceta e
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18 Z,aura Verguefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 19
grilhões nos pés. Já os soldados que se destacassem
no cumprimento dos deveres teriam licença a cada
três meses para irem às Minas negociar, conti-
nuando, assim, ''mais gostosamente'' a servirem seu
Da Bahia também acorreram muitos indivíduos
atrás do ouro, e uma das medidas desde logo toma-
das pelas autoridades foi o fechamento e o bloqueio
dos caminhos que iam desta capitania às Minas,
procurando, assim, impedir que por essas vias saísse
ouro contrabandeado.
Da própria Metrópole vieram aventureiros, e as
estatísticas mostram que cerca de 10 mil indivíduos
deixaram anualmente Portugal com destino à Coló-
nia durante os sessenta primeiros anos do século
XVIII. Tratou-se, pois, de um verdadeiro rus#, para
alguns -- como Caio Prado Jr. -- superior ao ocor-
rido com a descoberta das minas californianas do
século XIX.
Os que assim se moviam atraídos pela visão
tentadora do Eldorado encontravam uma realidade
bastante diferente da que lhes coloria os sonhos. Os
aglomerados mineradores formaram-se rapidamen-
te, devido ao afluxo repentino de grandes levas hu-
manas. Sendo assim, não havia roças de alimentos
que bastassem para atender à substância daquela
quantidade de gente, e ainda não se passara o tempo
necessário à formação de um complexo abastecedor
da região que se ia devassando. Nos anos de 1697-98
e de 1700-1 ocorreram crises de fome que chegaram a
atingir proporções catastróficas, os mineiros mor-
rem
renda à míngua ''com uma espiga de milho na mão,
sem terem outro sustento'', como disse o jesuíta An-
tonil. Em decorrência da terrível escassez de gêneros,
os poucos que conseguiam entrar na zona minera-
dora alcançavam preços fantásticos, as Minas pas-
sando a ser, por quase todo o século XVlll, o centro
de inflação da Colónia. Os gatinhos chegaram a ser
vendidos muito caro devido à enorme quantidade de
ratos existente nos arraiais auríferos; há documentos
que aludem ao fato de terem então muitos índios se
alimentado de bichos de taquara, que deviam ser
atirados vivos à água fervendo, pois, uma vez mortos,
eram ''veneno refinado''
A fome provocou o abandono de inúmeros ar-
raiais, como o de Ribeirão do Carmo e o da Serra de
Ouro Preto. Após terem acorrido às Minas com tanto
entusiasmo, os moradores desertavam, dando ori-
gem, na sua fuga desordenada, a novos arraiais. A
partir de então, as lavras auríferas passaram a ter
roçam de mantimentos, procurando-se não mais des-
cuidar das plantações e da criação de animais domés-
ticos, necessários à vida; simultaneamente, tentou-se
encarar o problema do abastecimento das Minas de
modo racional, uma das principais medidas adota-
das sendo a construção do Caminho Novo, levada a
cabo pelo filho de Fernão Dias, Garcia Rodrigues
Foram três os principais centros que articula-
ram o comércio abastecedor das Minas durante todo
o século XVlll: São Paulo, Rio de Janeiro e Salva-
dor. São Paulo fornecia milho, trigo, marmelada,
Pais
+
20 Zazzra Vergueiro Opulência e Miséria das Minas Gerais 21
frutas em geral, servindo ainda como entreposto do
gado -- bois, cavalos, muares -- que vinha dos cam-
pos e coxilhas do sul da Colónia e da região platina.
No Rio de Janeiro desembarcavam escravos africanos
e artigos europeus, sobretudo produtos de luxo: velu-
dos, pelúcias, vidros, louças. De Salvador vinham
escravos provenientes da Ãfrica e também das re-
giões açucareiras do Nordeste, que, conhecendo des-
de a segunda metade do século XVlll um período de
estagnação, revendiam sua força de trabalho para o
centro mais dinâmico da Colónia; a Bahia enviava
ainda às Minas o gado que criava nos currais do Rio
São Francisco e as mercadorias provenientes da Eu-
ropa, tais como tecidos, ferramentas, sal, ferro. To-
do esse transporte era feito em lombo de burro e de
cavalo -- daí a necessidade desses animais; os cami-
nhos eram precários, e muita mercadoria se perdia
no percurso. Dizem alguns estudiosos da arquitetura
mineira que o largo emprego da pedra sabão, de
ocorrência local, deveu-se ao fato de se quebrarem na
viagempelos montes mineiros as pedras nós que
vinham do Reino destinadas às construções. A mesma
sorte tinham os órgãos, motivo pelo qual os numero-
sos músicos da capitania acabaram construindo ou
supervisionando a construção de seus próprios ins-
trumentos musicais.
Já nos primeiros anos do século XVlll existiam
nas Minas três núcleos mineradores principais: Rio
das Mortes, gravitando em torno do Arraial Novo
(depois São João del Rei); a região de Ouro Preto e
Ribeirão do Carmo, dominada pelos arraiais do mes-
mo nome (anos depois, Vila Rica e Mariana); Rio
das Velhas, que o Arraial do Sabarâ encabeçava.
Nestes três núcleos viviam indivíduos das mais varia-
das proveniências, e que logo se definiram em dois
grupos principais: o dos paulistas, formado pelos
descobridores dos primeiros ribeirões auríferos e por
seus descendentes; o dos ''emboabas'', que agrupava
os portugueses do Reino e os colonos vindos de re-
giões outras que São Paulo, sobretudo da Bahia. Os
paulistas, primeiros habitantes das Minas, julgavam-
se detentores de vantagens e de direitos especiais,
considerando a zona mineradora como propriedade
sua; hostilizavam abertamente os que chegavam, co-
mo demonstra o nome que usavam para designa-los:
''emboabas'', palavra que para alguns significava
''forasteiro'', e que para outros queria dizer ''aves de
pés cobertos'', numa alusão clara às botas usadas
pelos portugueses, e em oposição aos pés descalços
dos mamelucos paulistas. Era grande a hostilidade
que mutuamente se votavam essas duas facções, tor-
nando tensa a vida quotidiana nos arraiais minera-
dores, longe das autoridades e da justiça.
A história do confronto entre os dois grupos é
ainda hoje obscura, havendo certa confusão em torno
dos incidentes. Entretanto, tudo indica ter sido um
dos motivos da rivalidade o fato de alguns forasteiros
começarem a tirar grandes lucros do comércio de
abastecimento das Minas, passando, em decorrência
disso, a gozar de influência crescente na região. A
principal figura desse comércio era Manuel Nunes
Viana, reinol que viera para a Bahia ainda menino e
22
'T
Zebra yerguefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 23
funcionário com atribuições de governante.
A maior parte das Minas estava então sob con-
trole dos emboabas, os paulistas se achando confi-
nados à região do rio das Mortes. Um destacamento
sob o comando de Bento do Amaral Coutinho --
irmão de Francisco do Amaram Gurgel -- dirigiu-se
para lá a fim de desalojar os paulistas de seu último
reduto; não houve um choque significativo, os mora-
dores se retirando para São Paulo e Parati sem ofere-
cerem luta. Uma tropa composta na sua grande
maioria por índios foi então cercada por Bento do
Amaral, que, após prometer clemência caso entre-
gassem suas armas, massacrou todos os indivíduos
do corpo: é este o episódio que passou à História
como o encontro do Capão da Traição.
A esta altura, o governador do Rio de Janeiro,
D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre,
decidiu intervir no conflito, partindo para as Minas.
Primeiramente, deteve-se algum tempo no Arraial
Novo, no Rio das Mortes, saindo-se bem nas tenta-
tivas de conciliação que empreendeu junto a paulis-
tas e emboabas. Entretanto, seguindo viagem, foi
barrado na altura de Congonhas do Campo por uma
tropa sob comando de Nunes Viana, com quem se
desentendeu, tendo de se retirar, humilhado, para o
Rio de Janeiro. Os paulistas, por sua vez, retroce-
diam até São Paulo e juravam vingança pelo episódio
do Capão da Traição. ' '
A Coroa, pelo que podia depreender através da
correspondência administrativa, desconfiava que D.
Fernando estivesse sendo parcial em relação aos pau-
X
24 Z,aura Vergzzeíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 25
listas. De qualquer forma, era época de trocar de
governante no Rio, sendo designado para esse cargo
Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, que,
tendo já ocupado o mesmo posto nas capitanias do
Norte, possuía uma vasta experiência de negócios
coloniais. Assim que chegou ao Rio, em junho de
1709, o novo governador partiu para as Minas sem se
fazer anunciar, atingindo o Rio das Velhas em pou-
cos dias. Manuel Nunes se encontrava ausente do
arraial de Caeté, onde vivia, motivo pelo qual Albu-
querque Ihe enviou uma mensagem ordenando que
deixasse imediatamente Minas. Talvez por jâ se en-
contrar enfraquecido, em desentendimentos com o
grupo baiano que até então o apoiara, o grande
potentado aquiesceu, retirando-se para suas fazen-
das de gado do São Francisco, onde passou a viver.
Albuquerque dirigiu-se a sequer para outros arraiais
auríferos, sendo recebido em todos eles como gover-
nador legal da região. Restava entender-se com os
paulistas, que, segundo boatos, faziam preparativos
em São Paulo a fim de marcharem sobre as Minas.
buscando vingança para a humilhação sofrida no ano
anterior. No caminho de volta para o Rio, quando
passava por Guaratinguetâ, o governador encontrou
o destacamento paulista, comandado por Amador
Bueno da Veiga. Segundo algumas fontes, o contato
foi extremamente tenso, os chefes paulistas falando
tupi entre si e aventando a possibilidade de liquidar o
representante do poder real; este tudo compreendia
por ter aprendido a língua geral no Maranhão. Im-
permeáveis às tentativas conciliadoras do governan-
te, os paulistas se negaram a recuar, continuando
caminho enquanto Albuquerque, doente e desgos-
toso, ganhava o Rio de Janeiro. Conseguiu, entre-
tanto, fazer chegar às Minas um aviso notificando o
avanço dos paulistas; assim, quando estes chegaram
ao Rio das Mortes, esperava-os um destacamento
emboaba. Houve uma série de pequenos choques
sem maior importância, e os paulistas recuaram após
alguns dias, não havendo explicações plausíveis para
esse fato. Foi este o último episódio do conflito.
A chamada guerra dos emboabas oferece inte-
resse pelos diferentes níveis de confronto que apre-
sentava. Num plano mais geral, tem-se a oposição
entre os paulistas -- mineiros e desbravadores da
região -- e os emboabas -- como tais entendendo-se
toda a sorte de aventureiros que chegaram às Minas
após terem os habitantes de São Paulo nela estabele-
cido suas lavras. Mas hâ também o desentendimento
entre a Coroa -- que na pessoa de Bomba Gato opõe-
se ao monopólio de géneros levado a cabo por Frei
Francisco de Menezes e Francisco do Amaral -- e os
habitantes das Minas, que desejavam ver assegurado
o abastecimento de seus arraiais, sem se incomo-
darem muito com o modo pelo qual ele era levado a
cabo. Por outro lado, hâ o conflito entre os elementos
emboabas ligados ao contrabando de gêneros e a
Coroa, que estabelecera postos em pontos estraté-
gicos -- tais como desfiladeiros e passagens de rios
-- onde deveriam ser cobradas taxas sobre toda a
mercadoria que entrasse nas Minas. Por fim, hâ a
oposição entre os paulistas e a Coroa, já que aqueles
26
l,atira Vergueíro
não atenderam aos apelos de Albuquerque e, num
ato que colocava em risco. a legitimidade do poder
metropolitano sobre a Colónia, marcharam para o
Rio das Mortes a fim de tirarem a desforra do inci-
dente do Capão da Traição.
A ORGANIZAÇÃO DA CAPITANIA
Toda essa gama de dissensões era apreendida
pelo olhar metropolitano no seu nível mais abran-
gente: tratava-se de uma sedição que pusera em che-
que o domínio da Coroa sobre a Colónia, desrespei-
tando os representantes oficiais, procurando soluções
alternativas de mando, enfim, pondo em risco a inte-
gridade e a subordinação daquela que já surgia como
a mais promissora região económica do Império Co-
lonial Português. Urgia, pois, integrar as Minas ao
aparelho administrativo colonial, subordinando-as
mais diretamente ao centro de decisão metropoli-
tano. A criação de um núcleo local de poder surgiu
de imediato como a solução mais adequada, a pre-
sença de um governante nos arraiais auríferos ser-
vindo de elemento neutralizador dos conflitos que
emergissem. Por outro lado, o controle sobre a ri-
queza que se extraía do solo e que fluía irregular-
mente para as outras capitanias e para o exterior sob
28 Z.azz ra VerEzzeira
Opulência e Miséria das Minas Gerais 29
a forma de contrabando, requeria a montagem de
um aparelho fiscal competente, cuja função era car-
rear recursos para a Metrópole. Governo e fisco só
poderiam atuar satisfatoriamente se fixados em nú-
cleos urbanos -- base indispensável à atuação da
burocracia que compunha estes aparelhos de poder.
Foi assim que, decidindo desmembrar a capitania do
Rio de Janeiro e criar uma capitania separada e
autónoma que englobasse a região de São Paulo e a
das Minas recém-descobertas, o rei investiu Antonio
de Albuquerque de plenos poderes para fundar vilas,
atribuição que trazia implícita a ''normalização'' da
tumultuada população mineira.
Ainda no final do século XVll, Artur de Sâ e
Menezes, governador da capitania do Rio de Janeiro
-- que, como vimos, abrangia também a região pau-
lista e as Minas que vinham de ser descobertas --,
iniciara uma política normalizadora que buscava po-
liciar a população e diminuir a incidência de crimes,
então muito freqüentes. Essa iniciativa não teve con-
tinuidade, e os arraiais que se haviam formado cres-
ceram ao léu, esparramando-se ao acaso pelo fundo
dos vales e pelas encostas das montanhas, relacio-
nando-se estreitamente com a atividade mineradora.
Foi assim que o momento inicial da mineração se
caracterizou por ajuntamentos situados nas bordas
dos ribeiros, jâ que nessa primeira época se explo-
rava o ouro de aluvião. Correspondem a uma fase pos-
terior os aglomerados humanos que se fixaram nas
encostas das montanhas, acompanhando os traba-
lhos de prospecção; o ouro dos regatos havia sido
abandonado pelos barrancos laterais e pelos veios
subterrâneos, os mineiros, nesta fase, passando a
esburacar a terra: eram as grupiaras e galerias, con-
forme as chamavam.
Da fase inicial são o arraial dos Camargos, Ca-
choeira, São Bartolomeu, Casa Branca, Rio das Pe-
dras. A nomeação de Antonio de Albuquerque e a
sua transferência para as Minas provocou a criação
das primeiras vilas das Minas, fixadas nos locais em
que se encontravam os arraiais auríferos mais ricos e
populosos.
Albuquerque, que fora designado governador
do Rio de Janeiro por carta datada de 9 de novembro
de 1709, passou, no ano seguinte, a dirigir a nova
capitania de São Paulo e Minas do Ouro. A carta
régia que o nomeou denotava duas preocupações
principais: a necessidade de normalizar a população
mineira, ordenando-a em núcleos urbanos a serem
fundados; a adição de uma política que premiasse
com vantagens e honrarias os súditos fiéis e devo-
tados ao serviço real.
As vilas fundadas pelo governador correspon-
diam à reunião dos arraiais auríferos mais significa-
tivos: Vila Rica, por exemplo, nasceu da fusão dos
arraiais de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto,
Padre Faria e Antonio Dias, situados em três vales
contíguos. A primeira delas, criada a 8 de abril de
1711, foi a Vila do Ribeirão de Nossa Senhora do
Carmo (mais tarde, Mariana, elevada à categoria de
cidade e sede de bispado em 1745); no mês de julho
seguiu-se a fundação de VUa Rica de Albuquerque
30 Zaura Verguefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 31
-- logo a seguir rebatizada de Vila Rica de Nossa
Senhora do Pilar, pois, segundo alguns, a atribuição
de seu nome a um núcleo urbano colonial parecera
ao rei atrevimento da parte do administrador -- e de
Vila Rica de Nossa Senhora da Conceição do Sabarâ.
O ímpeto urbanizados iniciado por Antonio de
Albuquerque teve prosseguimento no governo de seu
sucessor, D. Brás Baltasar da Silveira, que em 1713
criou São João del Rei e, no ano seguinte, Vila Nova
da Rainha (Caeté) e Vila do Príncipe (Serro); 1715
foi o ano em que se criou Nossa Senhora da Piedade
do Pitangui(Pitangui), assim como as três primeiras
comarcas da capitania: Vila Rica, Rio das Velhas e
Rio das Mortes; anos depois, seria criada a quarta
comarca, Minas Novas. Em 1718, já sob o governo de
D. Pedro de Almeida, conde de Assumar, fundou-se
São José del Rei (Tiradentes).
O objetivo máximo da criação das vilas fora
ordenar melhor a população, evitando o surgimento
de novos conflitos e, caso voltassem a ocorrer, possi-
bilitando a aplicação de medidas punitivas mais efi-
cientes. Mas a mesma população que, sob os olhos
vigilantes dos administradores coloniais, fora jun-
tada nos núcleos urbanos com o objetivo de possibi-
litar um controle maior, começou, através do conví-
vio mais íntimo, a tomar consciência de vários pro-
blemas específicos à situação colonial. Um deles, que
logo assumiu graves proporções, foi o caráter extor.
sivo do aparelho fiscal.
A voracidade do fisco achava-se presente em
toda a parte. O Regimento das Terras, que remon-
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32 Loura Vergueiro Opulência e Miséria das Minas Gerais
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33
tava ao século anterior, distribuía as datas minerais
da seguinte forma: a primeira de todas cabia ao
descobridor do ribeiro, que tinha o direito de esco-
lher o local que Ihe aprouvesse; a segunda era desti-
nada à Fazenda Real, sendo vendida pelo maior
preço em hasta pública; a terceira também era dada
ao descobridor, que deveria explora-la e nela efetuar
trabalhos de mineração; distribuíam-se as demais
entre os pretendentes, conforme o número de escra-
vos que cada um possuísse. Assim, ganhava maiores
datas quem tinha mais escravos: os que tivessem 12
ou mais negros receberiam uma data de 30 braças em
quadra (ou seja, o equivalente a 66 m:); no caso de
lhes pertencerem menos de 12 escravos, os mineiros
recebiam terra mineral na proporção de 2 braças e
meia (5,5 m: ) por escravo.
Logo ficou patente que este sistema de distri-
buição privilegiava os indivíduos de maiores posses,
ficando os homens livres pobres à mercê de ativi-
dades esporádicas, a maior parte das vezes possuindo
lavras de extensão insignificante, ou não possuindo
lavra própria. Os burocratas coloniais sentiram de
imediato que a situação era de desigualdade fla-
grante, e procuraram atenuar o contraste entre as
possibilidades dos ricos e as dos pobres. No quinto
capitulo do Regimento, constava que se devia agir de
modo a que ''todos, assim ricos, como pobres, fi-
quem acomodados, e extraiam ouro''. Entre outros,
o Ouvidor Geral da Comarca do Rio das Mortes --
que era a personagem judiciária de maior importân-
cia da região -- notou, muitos anos depois, que
acontecia exatamente o contrário, os ricos fazendo
''seleiros de terras minerais, em prejuízo dos Reais
Quintos''. E aí residia a questão: não era a pobreza
dos pequenos mineradores que doía para a Metró-
pole, mas o fato de ser impossível aos homens pobres
pagar os pesados tributos que deveriam seguir para o
Reino e engordar a receita da Coroa portuguesa.
O problema dos impostos e os protestos que con-
tra os seus diferentes métodos de cobrança levanta-
ram as diversas camadas da população constituem um
dos capítulos mais dolorosos da história das Minas.
O estreito vínculo existente entre o ímpeto urbani-
zador e o estabelecimento do fisco é comprovado pelo
fato de tér sido Antonio de Albuquerque o primeiro
fundador de vilas e o primeiro administrador a lan-
çar impostos sobre o ouro. Determinou ele que o
quinto da produção aurífera -- que, pela lei, cabia à
Coroa -- fosse cobrado por batera, o que significava
que cada escravo que trabalhasse nas Minas deveria
pagar uma determinada quantia ao Fisco, perfa-
zendo, desta forma, a quantia correspondente ao
quinto. Esta prática suscitou um sem-número de
protestos, pois pagavam igualmente os que achavam
ouro e os que não o encontravam. Albuquerque ado-
tou então novo sistema, segundo o qual o quinto era
extraído quando o ouro deixava a capitania.
O sucessor de Albuquerque procurou fixar em
30 arrobas a contribuição anual da população das
Minas, fazendo com que esta cota fixa correspon-
desse ao quinto; mas o rei não concordou com o novo
método, determinando que se adotasse mais uma vez
34 Z,atira Vergtzeíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 35
o sistema de cobrança por bateias. O empenho do
governador em cumprir a vontade real provocouum
levante, conhecido como Levante do Morro Verme-
lho, e a contribuição foi novamente fixada em 30 arro-
bas. Adotou-se este procedimento até 1718, quando
as Câmaras assumiram o compromisso de pagarem
anualmente 25 arrobas e deixarem a cargo da Coroa
a cobrança dos direitos sobre a entrada de gado,
escravos e qualquer tipo de carga na capitania.
Entretanto, na surdina, os funcionários colo-
niais proviam a tudo a fim de que, conforme ordens
recebidas de Portugal, se instalassem nas Minas as
Casas de Fundição; para elas se deveria encaminhar
todo o ouro em pó da capitania, sendo então fundido
em barras e sofrendo a retirada dos 20%o correspon-
dentes ao quinto real. As barras recebiam aí um
carimbo, que era a prova de que o proprietário pro-
cedera conforme as normas legais, pagando à Coroa
o que Ihe era devido. A este processo chamava-se
quis tar o ouro .
O primeiro grande sinal da insatisfação dos ha-
bitantes ante a voracidade do fisco foi o levante ocor-
rido em Vila Rica no ano de 1720. Em julho de 1719,
Assumar anunciara o funcionamento das Casas de
Fundição para daí um ano. Seguiu-se uma série de
boatos e manifestações de contrariedade, explodindo
revoltas em algumas das principais vilas do território
mineiro. O governador contava, pela primeira vez
nas Minas, com uma tropa regular recém-criada: os
dragões, que eram reinóis provenientes na sua maio-
ria do Norte de Portugal. Este corpo de elite foi de
grande valia nos primeiros momentos, sufocando os
tumultos. Mas, entre 28 e 29 de junho de 1720,
ocorreu em Vila Rica um levante de sérias propor-
ções, articulado por alguns dos principais senhores
de lavras da capitania; entre eles se encontrava Pas-
coal da Salva Guimarães, imigrante minhoto que en-
riquecera com o comércio e com a mineração no
Morro que levava o seu nome (Morro de Pascoal da
Silvo). A revolta teve apoio de Manuel Mosqueira da
Rosa, antigo ouvidor da Comarca de Vila Rica, e de
alguns segmentos mais populares, cujo líder era o
tropeiro minhoto Filipe dos Santos. Parece que, sob
sua sugestão, chegaram os sediciosos a pensar no
assassinato do governador e na independência da
capitania. Durante algum tempo, os próprios revol-
tosos temeram pelo rumo que poderia tomar o movi-
mento, cada vez mais controlado por Filipe dos San-
tos e por propósitos mais radicais. Bandos de escra-
vos armados, alguns tendo o rosto coberto por más-
caras, colocaram em sobressalto a população de Vila
Rica durante aqueles dias. Na manhã de 14 de julho,
Assumar marchou sobre a vila, ocupando-a sem
maiores problemas devido ao concurso de uma co-
luna de 1 500 homens armados. A seguir, procedeu à
prisão dos cabeças do motim, fazendo-os desfilar
pelas ruas de Vila Rica. Filipe dos Santos foi sen-
tenciado sumariamente e condenado à morte, o
que era ilegal por ser ele homem branco e, como tal,
passível de receber julgamento apenas de tribunal
devidamente qualificado. Seu corpo, feito em quar-
tos, foi exposto à beira das estudas, fincando-se sua
36 Z;aura Vergueíro Uputência e Miséria das Minas Gerais 37
cabeça no pelourinho da vila.
Como se não bastasse o castigo exemplar de
Filipe dos Santos, Assumar ordenou que o Morro de
Pascoal da Salva fosse queimado em noite de vento,
fornecendo, assim, um espetáculo terrível para a po-
pulação mineradora. Como aconteceria com as festas
barrocas das décadas seguintes -- o Triunfo Eucarís-
tico, de 1733, e o Áureo Trono Episcopal, de 1748
--, o suplício de Filipe dos Santos e o incêndio do
Morro -- a partir de então, conhecido como Morro
da Queimada -- constituíram espetáculos visuais cu-
jo objetivo era confirmar o poder real e camuflar os
conflitos: os culpados haviam sido punidos, os de-
mais habitantes se constituindo em súditos fiéis e
ordeiros, que, como tais, deveriam retomar o traba-
lho, desentranhando da terra o ouro de Sua Majes-
tade. Como nas festas barrocas, era o primado do
visual. Como ocorreria mais tarde na Inconfit.ência
de 1789, tratava-se de um grupo de homens ricos e
importantes que procuravam enfrentar o poder me-
tropolitano, desafiando-o nos pontos que levavam
seus interesses particulares; em ambos os casos, o
sacrifício máximo caberia apenas ao elemento de
extração humilde que acreditara identificados aos
seus os interesses dos poderosos.
Se a sedição dos emboabas provocara a separa-
ção entre o Rio de Janeiro e a nova capitania de São
Paulo e Minas, o levante de Filipe dos Santos serviu
para confirmar o que D. Pedro de Almeida jâ vinha
dizendo à Corte havia algum tempo: que as Minas
eram propensas às revoltas: ''a terra parece que eva-
D. Pedra de Almeida à corte: ''a terra evapora tumultos, a
agua exala motins. . .
38 .[aura Vergueíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 39
porá tumultos; a agua exala motins; o ouro toca
desaforos; destinam liberdades os ares; vomitam inso-
lências as nuvens; influem desordens os astros; o
clima é tumba da paz e berço da rebelião'', observava
o feroz Assumar. Como resposta a esse potencial
rebelde dos mineiros, que aflorava sob o peso enorme
e desesperador do fisco, e com o intuito de organizar
melhor o rendimento dos quintos, procedeu-se a no-
vo desmembramento: São Paulo passou a constituir
uma capitania independente, e D. Lourenço de Al-
meida foi designado para substituir D. Pedro de
Almeida, Conde de Assumar, no governo da nova
capitania das Minas Gerais. 1709, sob o impacto do
conflito emboaba, e 1720, quando os levantes de
mineiros refletiram a insatisfação ante o fisco, cor-
respondem, assim, a dois momentos diferentes da
centralização do poder.
Após a tragédia de Filipe dos Santos, os minei-
ros haviam concordado em pagar anualmente 37 ar-
robas de ouro. Mas durou pouco este acerto: em 1725
o novo govemador conseguiu finalmente colocar em
funcionamento as Casas de Fundição. A vontade e os
interesses dos habitantes das Minas nada contavam,
o rendimento dos quintos e a quantidade de metal
que ingressava no Reino norteando a política aditada
pela Metrópole em face da mais rica porção de seu
Império ultramarino. Entretanto; como o contra-
bando viessejá havia algum tempo aumentando con-
sideravelmente, o rei e o Conselho Ultramarino deci-
diram alterar o sistema de cobranças ainda uma vez,
optando pela capitação e esperando que, assim, ter-
minassem os extravios. Mas o que ocorreu foi o pro-
testo indignado de todas as Câmaras Municipais da
capitania.
O Regimento da Capitação determinava que to-
do escravo tivesse seu nome no Livro de Registro, sob
pena de ser confiscado a seu senhor; o indivíduo que
eventualmente acusasse irregularidades nesta maté-
ria receberia, como recompensa, uma quantia equi-
valente à metade do valor do escravo -- medida que,
obviamente, incentivava a dilação. Pelo sistema da
capitação, o indivíduo cujo escravo extraía ouro pa-
gava a mesma quantia que aquele cujo escravo nada
encontrava. Todos deveriam pagar, excetuando-se
apenas os doentes incuráveis, que, no entanto, deve-
riam ter o nome registrado no livro de matrícula. As
Câmaras tentaram negociar a substituição deste ter-
rível imposto por um sistema de cotas fixas, che-
gando a oferecer à Coroa a contribuição de 100 arro-
bas anuais. De nada adiantaram essas negociações, e
a capitação começou a vigorar em 1735.
Após mais de vinte anos de protestos generali-
zados por parte da população, este tributo foi nova-
mente substituído pelas Casas de Fundição, que vi-
goraram até o final do período. Em cada cabeça de
comarca se estabeleceu uma Casa; pelo novo sistema,
a capitania pagava anualmente cerca de 1 500 quilos
de ouro. Havendo excesso sobre as 100 arrobas, este
serviria para cobrir uma eventual falta no ano se-
guinte; caso se registrasse então um novo excesso, o
anterior ficava automaticamente pertencendo ao rei.
Até 1762, o quinto foi pago normalmente, havendo
40 Zaura Verguefro Opulência e Miséria das Minas Gerais 41
excedente; mas a partir de 1763, a arrecadação não
atingiu mais a cota fixada de 100 arrobas. O fato de
desejar a Coroa completar a todo custo a cota prefi-
xada fez com que criassea derrama, mecanismo pelo
qual a população devia cobrir a diferença que faltava
para completar as 100 arrobas. A insatisfação gerada
por este procedimento teve sérias conseqüências,
contando de forma decisiva na articulação da Incon-
fidência Mineira de 1789.
Os sistemas de arrecadação de ouro e diamantes
foram as formas extremas da manifestação do fisco
nas Minas; mas houve outras, igualmente onerosas
para a população: os dízimos, o subsídio voluntário,
o subsídio literário, os direitos de entradas e passa-
gens. Essa pesada rede fiscal onerava a população,
gerando pobreza e desclassificação social.
São incontáveis as queixas: de pequenos mine-
radores que não conseguiam arcar com o peso dos
impostos; de negras farras que caíam no meretrício
para poderem pagar a capitação; das Câmaras, que
insistiam na situação de penúria extrema da capi-
tania, aludindo ao caso dramático do cego mendi-
cante que era obrigado a pagar a capitação do es-
cravo que o ajudava a subsistir. Consta que o fisco
voraz cobrava a capitação até de escravos doentes e
dos que andavam fugidos pelos matos, sem fazer
caso do fato de não estarem eles minerando ouro.
Mas foi no Distrito Diamantino que o fisco mos-
trou a sua face mais cruel, sucedendo-se os casos de
arbitrariedades e de violências. O território diaman-
tífera foi demarcado por volta de 1734, e a adminis-
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42 .Z,azzra Verguefro Opulência e Miséria das Minas Gerais
43
tração respondia diretamente a Lisboa, subordi-
nando-se ao governo da capitania apenas no tocante
à organização militar. Em solo diamantino suce-
diam-se os abusos, e as relações sociais atingiram
níveis inéditos de desagregação: imperava o pânico, e
o habito de delatar era estimulado pelas autoridades.
que assim acreditavam impedir o contrabando de
pedras. A extração de diamantes era negócio exclu-
sivo da Coroa, que por períodos determinados o ar-
rendava a contratadores. O mais famoso deles foi o
desembargador João Fernandes de Oliveira, célebre
não apenas pela enorme quantidade de diamantes
que extraiu para si e para o rei, mas sobretudo pelo
romance que manteve com Francisca da Salva, mu-
lata que alforriou e com quem teve treze filhos. Ape-
nas os escravos do Contrato podiam minorar diaman-
tes, e todo aquele que fosse encontrado à cata das
preciosas gemas era severamente punido, a mais co-
mum das penas sendo o banimento para fora da
capitania. Havia também a pena de morte civil,
igualmente terrível. O Contrato vigorou até 1771,
quando a mineração de diamantes passou a ser reali-
zada pela Real Extração, de caráter oficial.
O impedimento que tinham os habitantes de
minerarem diamantes num lugar em que a vida era
totalmente voltada para a extração dessas pedras fez
com que boa parte da população ficasse sem em-
prego. Como observou Joaquim Felício dos Santos
nas .4/emórlai do Z)isrri/o .D/amanfflzo , ''era o paupe-
rismo, que se procurava por todos os meios estabe-
lecer no solo mais rico do Brasil''. Famílias inteiras
se viram afetadas pelo banimento, perseguidas pelos
temíveis dragões da Extração que vasculhavam cada
palmo do Distrito Diamantino à cata de infratores. O
fantasma do contrabando assombrava os funcioná-
rios da Intendência dos Diamantes, que contra ele
travavam luta sem trégua. Mas, apesar do cerco
cerrado que Ihe moviam as autoridades, os contra-
bandistas nunca deixaram de atuar, a sua ação clan-
destina constituindo a única possibilidade que ti-
nham para garantir a subsistência.
Para melhor explorar o rico quinhão da Colónia
que Ihe fornecia ouro e diamantes, que Ihe pagava as
importações e o fausto, cuidou Portugal de fundar
vilas e cidades, de impedir as desordens e os levantes,
de reprimir e lançar mão da violência sempre que
julgasse preciso. Essas medidas drásticas não pude-
ram impedir a ocorrência de levantes sérios, não
enriqueceram a Metrópole e contribuíram enorme-
mente para lançar grande parte da população mine-
radora na mais negra miséria.
Opulência e Miséria das Minas Gerais
45
vilegiados os elementos que possuíssem maior nú- ,
mero de escravos. Como já se viu, o critério de con- b'
cessão de datas se assentava na quantidade de cativos
possuídos, as maiores extensões indo para as mãos
dos grandes senhores. Para estes, o luxo e a ostentação
não eram puramente sintoma de irracionalidade,
consistindo em sinal distintivo do sfafzzs social e em
instrumento de dominação necessário, que permitia
consolidar o mando. Sfafzzs e mando eram de impor-
tância capital justamente por serem poucos nas Mi-
nas os privilegiados que detinham tais elementos de
proeminência: mais da metade das lavras estavam
concentradas nas mãos de menos de 1/3 dos proprie-
tários de negros, os demais senhores possuindo uma
quantidade média de escravos que, para algumas/
regiões, não era superior a 3. Dados como este servi-
ram de embasamento a análises que ressaltaram o
caráter mais equitativo da riqueza na formação so-
cial mineira.
Wilson Cano foi quem, recentemente, contestou
a associação que de ordinário se faz entre a capaci-
dade dinamizadora da economia mineira e sua alta
produtividade. Se essa capacidade se manifestou,
gerando efeitos produtivos na economia do Sul e
desenvolvendo a urbanização, o aparelho burocrático
e o militar, o ouro não engendrou segmentos produ-
tivos /n /oco, pois muito se gastava na importação de
géneros de subsistência e quase nada se produzia
dentro das Minas, não ocorrendo também a retenção
do excedente produzido. A compulsoriedade do tra-
balho tornava desnecessário o aperfeiçoamento téc-
A FORMAÇÃO SOCIAL
As Minas Gerais foram tradicionalmente consi-
deradas pela historiografia como a região em que, na
Colónia, a riqueza se distribuiu de maneira mais
igual e harmoniosa, originando uma sociedade de-
mocrática e de anseios igualitários. A diversificação
das atividades era tomada como uma das provas
dessa tese, apontando-se também o papel dinami-
zador do núcleo mineiro, que articulou e conferiu
sentido económico significativo a regiões situadas nos
confins da Colónia. Ora, se os fatos históricos são
incontestáveis -- realmente, houve maior diversifi-
cação profissional, e as Minas de fato funcionaram
como elemento articulador --, o mesmo não acon-
tece com as inferências feitas com base neles.
A estrutura económica da Colónia se caracte-
rizou, em suas linhas gerais, por ser simultanea-
mente escravista e mercantil. Mostrando sua face
escravista, a formação social das Minas tornava pri-
46 Zazzra Vergueíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 47
naco e a aquisição de máquinas, os investimentos
verificando-se maciçamente na compra de escravos.
As relações entre os gastos com mão-de-obra e a
produção de ouro seriam as seguintes:
manumissões, concedidas sobretudo na segunda me- \
tade do século XVlll, um índice da poupança dos
escravos -- espelho de uma sociedade mais igualitária
-- e da bondade dos senhores. Na realidade, não se /
tratava disso, e sim da saída encontrada pelos manei- \
ros a fim de conservarem parte de seu antigo patrt,
mõnio.
A análise da formação social das Minas surge
agora sob novo ângulo: uma economia de baixos
níveis de renda distribuídos de maneira menos desi-
gual do que na região açucareira, originando, pelos
seu baixo poder de concentração, uma estrutura se-l
cial mais aberta. Daí o número de pequenos em-l
preendedores e o mercado maior constituído pelos
avultado contingente de homens livres -- homens
esses, entretanto, de baixo poder aquisitivo e pe-l
quena dimensão económica. A constituição demo-l
prática da formação social mineira poderia assim se
reduzir numa expressão: um maior número de pes-
soas dividiam a pobreza. ------'
As Minas do século XVlll foram uma capitania
pobre. Constituíram exceção alguns senhores opu-
lentos de lavras, que, jâ no século XIX, ofuscariam a
esposa do então governador, a Viscondessa de Con-
deixa, presenteando-lhe um prato de canjica aurí-
fera. ,àpesacMua$g.nêggxistirem estude!!oblç.AS.
camadas sociais nas Minas, iiãÕ:Õê.IÕãieçe an.focado
'ãíãnêãíãue amaioria das grandes fortunas devia
iiiãl'opulência mais.ao comércio'ãoí'que'à atividade
mineradora. A grandeza lendária de Pascoal da Salva
Guimarães, de Manuel Nunes Viana, de Francisco
total de ouro produzido
gastos quantificáveis com mão.
de-obra
saldo e gastos não quantifi-
cados
644, 1 t/ouro
331,2 t/ouro
312,9 t/ouro
Apesar da quantidade de ouro extraído das Mi-
nas ter correspondido a cerca de 70%o da produção
do Brasil no século XVlll, os mecanismos do Sistema
Colonial -- o fisco, a tributação sobre escravos, o
sistema monetário implantado, as importações em
regime de exclusivo de comércio -- fizeram com que
a maior parte dessa riqueza se esvaísse. Deduzindo-
se da quantia de ouro extraído da terra os gastos com
a compra e manutenção da escravaria, e toda uma
gama de gastos não quantificáveis, o saldo se apre-
sentava negativo. Dado o baixo nível de renda, pou-
cos foram, nestas condições, os que fizeram fortuna.
Quando, no final do período minerador, o ouro
escasseou, os senhores de lavras se viram impossibi-
litados de arcar com os custos de manutenção da
mão-de-obr41..glçsmo--por.quç er4.. muito pequena a
pêrce14..dg escravaria.yoltadapara as.dividades
sublistêncj4:Daí o recurso tão freqüente às alforrias,
que isentavam o senhor da responsabilidade de man-
ter seus escravos. Muitos autores viram nas inúmeras
Zatira Verpue/ro l Opuiêlzcía e ]Wüéría das .B41lzas Gerais 49
do 4:mala 9urgel fglg.construída no comércio de
géneros paraas.Minas, no monopólio--dcl-gado de
---éQElgS.dgii2QççimentQ de.carne para os-açougues. Q
çggiercio de muares.:g.cavalares, que articulava os
=
grande mineração. Tratava-se eã geral de elemen;o;
que arrematavam o contrato das entradas e
dos dízimos por tempo determinado. Num primeiro
momento, era a Junta da Fazenda de Minas que
chamou Casa do Real Contrato das Entradas, fican-
do depois conhecido como Casa dos Contos.
O contratador dos diamantes do Distrito Dia-
mantino apresentava uma relação ainda mais estreita
com a administração colonial. O primeiro contrato
teve lugar em 1739; entretanto o mais célebre dos
contratadores foi João Fernandes de Oliveira, que
conseguiu para a Coroa quantidades fantásticas de
gemas preciosas. Cena!4 que .ytÍlizava.noJrabalho
das.lavras--um número de escravosLmuitíssimo supe-
rior ao estjpl114dQ..pelas--termos- du contrato, obri-
gããão:os a minerarem em locais perigosos e não se
importando com as mortes que isso ocasionava. Após
ter arrematado dois contratos sucessivos, João Fer-
nandes foi chamado à Corte devido às irregulari-
dades que ocorriam no arraial do Tijuco durante a
sua gestão. Parece que atuava em cumplicidade com
grandes..çoBgabandistas,.fechando também os olhos
para as atividades clandestinas dos garimpeiros que.
em troca, informavam-no sobre as lavras mais ricas.
Destituído de seu cargo, João Fernandes não mais
voltou a Minas, e ao morrer deixou uma das maiores
fortunas do Império Colonial Português.
Os grandes fazendeiros enriquecidos na explo-
ração das propriedades fundiárias foram mais co-
muns na região do Rio São Francisco, para os lados
de Minas Novas do Arassuaí .e de Januâria. A distân-
cia existente entre essas paragens e os núcleos urba-
nos das Minas, onde funcionavam o aparelho admi-
nistrativo, fiscal e judiciário, propiciou a maior inde-
pendência dos potentados do sertão, rodeados por
50 Z,atira VerEuelro opulência e Miséria das Minas Gerais 51
bandos de capangas recrutados entre a população
livre miserável, fazendo justiça com as próprias
mãos, desafiando os emissários do poder central.
Ficou lendária a figura de D. Mana da Cruz, ma-
triarca sertaneja que se envolveu em levantes contra a
capitação, e que gozava de enorme prestígio nos
confins do rio São Francisco.
Compunham ainda a camada dominante os al-
tos funcionários da administração das Minas. Os
governadores pertenciam quase sempre a famílias
nobres de Portugal, e, apesar do nascimento, rara-
mente possuíam fortuna. Se as Minas foram no sé-
!ulo XV.lll a porção mais importante do Império
Português, é natural que a escolha de seus gover-
nantes se fizesse com certo cuidado. D. Pedra de
Almeida, o terrível Assumar ( 1717-1724), terminou a
carreira como vice-rei da Índia, notabilizando-se co-
mo excelente administrador; o conde das Galvêas.
governador das Minas de 1732 a 1735, fora escolhido
anteriormente por D. João V como representante de
seu governo no Vaticano, e assim que deixou a admi-
nistração da capitania de Minas tornou-se vice-rei do
Brasil; Gomes Freire de Andrade (1736-1763) foi um
dos maiores governantes coloniais, lançando as bases
da transferência da capital para o Rio de Janeiro; D.
José Luas de Menezes, conde de Valadares, foi no-
meado governador das Minas antes de ter comple-
tado 24 anos de idade, sendo homem de confiança do
Os cuidados que cercaram a escolha dos gover-
nadores das Minas não impediu que, muitas vezes,
rei
estes se entregassem a negociatas e a desmandos.
D. Lourenço de Almeida (1721-1732) deixou passar
bastante tempo entre o instante em que tomou co-
nhecimento da descoberta dos diamantes no Serro do
Frio e a ocasião em que comunicou oficialmente o
achado ao rei, pelo que recebeu séria admoestação.
Corre que, nesse meio tempo, conseguiu ganhar bas-
tante dinheiro no negócio ilícito das pedras. Ma-
ninho de Mendonça, ilustrado português autor dos
Apontamentos para a Educação de um Menino No-
bre, exerceu com grande sacrifício -- segundo afirma
em sua correspondência -- o cargo de governador
interino das Minas de 1736 a 1737; diz-se que tam-
bém este governante, sempre queixoso da saúde e do
clima, aproveitou a estadia na região mineradora
para ganhar algum dinheiro de forma ilícita. O vis-
conde de Barbacena, que governava as Minas quan-
do foi descoberta a Inconfidência Mineira, achava-se
envolvido na conspiração e perdera dinheiro em ne-
gociatas, ao que parece associado a João Rodrigues
de Macedo. Do conde de Valadares conta Joaquim
Felício dos Santos que conseguiu arrancar valiosos
presentes do contratador João Fernandes; este, te-
mendo que viessem à tona as irregularidades ocor-
ridas em seu contrato, cedeu-lhe ainda soma consi-
derável para com ela pagar dívidas no Reino.
Ainda no que se refere à camada dominante,
foi peculiar às Minas o maior peso do Estado, sempre
presente e atento à arrecadação dos quintos e ao
contrabando de ouro e gemas. Os grandes poten-
tados, que nos outros pontos da Colónia tiveram
52 Z;aura Vergueíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 53
papel de destaque, foram, aqui, menos atuantes e
significativos. O primeiro momento da história mi-
neira conheceu. figuras como Manuel Nunes Viana,
Domingos Rodrigues do Prado, Pascoal da Salva,
Bento e Francisco do Amaral; mas, uma vez insta-
lados os aparelhos de poder, seu raio de ação tornou-
se mais restrito, confinando-se aos sertões onde só
raramente chegavam os homens do governo. Durante
todo o século XVlll, o prestígio e a influência dos
grandes senhores de lavras ou de terras só foram
tolerados até o ponto em que puderam ser absorvidos
pelo Poder Central. No entanto, apesar de um poder
maior se sobrepor à ação dos potentados mineiros,
estes nunca receberam a pena máxima quando inten-
taram atos de rebeldia: em 1709, Manuel Nunes foi
deixado em paz nas suas fazendas de gado do São
Francisco; em 1720, Pascoal da Silvo, Mosqueira e
outros revoltosos foram presos, mas o suplício coube
apenas ao modesto tropeiro Filipe dos Santos; neste
mesmo ano, l)omingos Rodrigues do Prado, prin-
cipal articulador do levante do Pitangui, foi quei-
mado em efígie'P -- o que, para a época, era de
extrema gravidade --, mas continuou suas tropelias
pelos sertões; em 1789, que constitui o caso extremo,
todos os membros da oligarquia que participaram da
Inconfidência foram julgados e receberam duras pu-
nições -- o degredo sendo, então, uma das penas
máximas imputadas aos homens de certa condição
social; mas apenas o alferes Salva Xavier foi conde-
nado à morte.
Isto prova que, mesmo quando a autonomia das
camadas dominantesé cerceada pela ação dos apa-
relhos de poder, a sua posição privilegiada as poupa
dos maiores sacrifícios; estes, como em toda parte,
são reservados aos integrantes das camadas menos
favorecidas.
A camada intermédia abrangia, nas Minas, in-
divíduos entregues a uma gama variada de atividades
profissionais. Creio ser possível arriscar a hipótese de
que poucos viviam com certo conforto e despreocu-
pação, a grande maioria sendo constituída pelos que
tinham de lutar diariamente pela subsistência, numa
capitania inteiramente voltada para a faina aurífera
e para a mineração de diamantes.
Nos primeiros tempos, a quase totalidade da
população se entregou a este tipo de trabalho, e só
por volta dos anos 20 do século XVlll é que começa-
ram a se tornar significativas as outras atividades.
Nas Devassas Eclesiásticas, riquíssima fonte docu-
mental conservada na Arquidiocese de Mariana, os
roceiros, os donos de pequenas vendas, os modestos
mascates -- ''viajantes dos caminhos'', como então
se dizia --, os pequenos artesãos aparecem com certa
freqüênciajá na primeira visitação feita pela Diocese
do Rio de Janeiro à nova capitania mineira, em 1721.
Pode-se imaginar a dificuldade com que os humildes
comerciantes de tenda aberta enfrentavam os pode-
rosos açambarcadores de gêneros, o mesmo aconte-
(+) Queimava-se alguém em efígie quando, uma vez tendo sido conde-
nado à pena máxima, o indivídüãüchava-se fugido.
54 Zaura Vergzzeiro Opulência e Miséria das Minas Gerais 55
cendo com o pequeno tripeiro, tão insignificante em
face dos poderosos indivíduos que articulavam o co-
mércio do gado até as longínquas regiões do sul da
Colâni:!,.Q.g\lg.çgDpljça1la:êlnda Diailê:.!ligação dos
elementos da camadaintermédia é que tudo indica
ter sido a incapacidade por eles apresentada .de.dar
.êõiitaãl'tIaS-ãtiVíãadês'Mnêiadoras -- dominadas pe-
los que possuíam mais recursos e maior número de
escravos -- Q. motivo pelo qual se dedicaram a outras
atividades.
Apesar disso, muitos foram os mineiros de pe-
queno porte, os que tinham dois, três, cinco escravos
no máximo, e que passavam seus dias em busca de
algum regato pródigo ou de um veio abundante que
lhes garantisse os dias futuros. Esses faiscadores se
multiplicaram com a decadência do ouro, e isso,
creio poder afirma-lo, deveu-se tanto à multiplicação
do número de alforrias quanto ao abandono das
atividades mineradoras por parte de vários dos gran-
des senhores de lavras. Assim, quando muito pouco
restava do ouro aluvional, quando -- segundo afir-
mou Eschwege -- os trabalhos apressados e mal
dirigidos, voltados apenas para o lucro rápido, ha-
viam inutilizado, pelo soterramento, quantidade
considerável de jazidas, aí então entrou em cena a
pequena empresa, a faiscagem que se arrastou por
mais de um século, a figura do mineiro pobre sendo
parte integrante da paisagem das Minas.
Os pequenos roceiros entregavam-se às ativi-
dades de subsistência, plantando modestas roças de
milho, de arroz, de feijão, de mandioca. As árvores
frutíferas também se achavam presentes, assim como
as hortaliças. A unidade produtora era exígua, e
esses pequenos agricultores disputavam cada palmo
de terra, brigando com o vizinho que, por astúcia ou
por acaso, invadira uns poucos metros da sua posse
com uma cerca. Muitas dessas brigas acabaram em
facada, conforme ficou documentado nos códices re-
ferentes a devassas e querelas Nos últimos anDE.dQ
século-X5illl,começaram a súíÊit núcleos de criação
de vacas leiteiras. e o fabrico do queijo de Minas
ocupou famílias inteiras. A criação de porcos tam-
bém :deve destaque, revelando, mais uma vez, a po-
breza do mineiro: sua criação não requeria grandes
espaços e era compatível inclusive com os aglome-
rados urbanos, onde, frequentemente, o suíno vivia
no quintal das casas.
A documentação mostra que as atjyldades arte-
sanais mais comuns foram as dos carapinas (carpin-
teilQSJ..-a1141ête$usapaleÍros. e..pintores:. A prova de
que viviam pobremente é que, quando chamados
pelos visitadores das devassas eclesiásticas e acusa-
dos de pequenas infrações, frequentemente não po-
diam pagar a taxa imposta nestes casos, alegando
pobreza e falta de meios. Esses ofícios mecânicos
eram organizados, os artífices devendo fazer um exa-
me, de tempos em tempos, para poderem exercer
suas atividades.
Excetuando-se os altos dignitários da Igreja,
que eram pouquíssimos -- a figura proeminente sen-
do o bispo, que residia na única cidade da capitania,
Mariana --, os integrantes do clero também compu-
56 Z;aura Vergzzeíro Opulência e Miséria das Minas Gerais
57
nham a camada intermediária, e consistiam basica-
mente em padres seculares. A Coroa via com descon-
fiança o clero secular; julgava-o mais apto a fazer o
contrabando devido ao fato de possuírem as ordens
religiosas casas em diversos pontos do Brasil e do
exterior, ficando assim facilitados os contatos e as
remessas de ouro e diamantes para fora das Minas
Gerais.
De fato, muitos desses padres foram contraven-
tores notórios. Gozando de grande ascendência sobre
os seus rebanhos, os padres mineiros assumiram com
freqüência os propósitos normalizadores que a Me-
trópole adotava com relação à Colónia, procurando
disciplinar a inquieta população mineira, neutrali-
zando seus conflitos. Entretanto, representantes de
Deus e do rei, nem sempre levavam vida exemplar.
Tem-se notícia de padres que descompunham suas
ovelhas no sermão, vociferando e, do púlpito, apon-
tando com o dedo os que julgavam haver cometido
atos indignos. Outros jogavam cartas e dados, che-
gando a ganhar os cavalos dos parceiros. Vulneráveis
aos encantos do belo sexo, não era raro trazerem
dentro de casa uma ''tia'', ''irmã'', ''prima'' ou ''co-
madre'' para, diziam, auxilia-los nos afazeres do-
mésticos, aliviando um pouco a sua solidão... Isso
sem falar nos que, mais francos, passeavam a prole
pelas ruas nos dias de festa ou nos domingos. Havia
ainda os belicosos, sempre envolvidos em arruaças,
fugindo a pé ou a cavalo de algum marido ciumento,
lançando impropérios com o trabuco atravessado e o
terçado preso à cinta.
O surto artístico ocorrido nas Minas, intenso
sobretudo na segunda metade do século, quando jâ
escasseava o metal precioso, fez com que construto-
res, entalhadores, pintores e músicos se tomassem
figuras familiares aos habitantes da capitania, inte-
grando a camada intermédia da população. ,Mluitos
dos construtores vinham do Reino, como o sargento-
mol=lensenheirãllosé'Fernandes(píiiiãÃlpi)im.::.guq
cç)nta, entre suas obras, com a planta da Casa da
Câmara e Cadeia de.Vila Rica, anualmente Museu da
'íiiconfidência -- e Manual Franci$co Lisboa, pai de
Alejj4djphQ.ç.autotJ4planta da jgrçja do Calmo de
Vila Rica. Chegavam a gozar de prestígio, como foi o
caso deste último, proprietário de casas em Vila Ri-
ca, possuidor de uma fazenda em Paraopeba da Boa
Morte, perto de São José del Rei, membro da Ordem
Terceira do Carmo. Os músicos constituíram também
uma comunidade respeitada; mulatos na sua quase
totalidade, eram constantemente requisitados para
tocarem em festas oficiais e em missas, os seus contra-
tos sendo, muitas vezes, anuais. Possuíam certo grau
de instrução e se encontravam bastante atualizados no
tocante às novidades européias, executando, no cora-
ção da América do Sul, peças de Haendel, Haydn,
Mozart, Boccherini. Os músicos mineiros eram alta-
mente profissionalizados, formando espécies de cor-
porações que o Senado da Câmara e as Irmandades
protegiam, e que atuavam numa concorrência cor-
Cada grupo social possuía sua irmandade: nos
primeiros momentos, os ''homens bons'' da terra se
dual
58
Zaura Verguelro Opulência e Miséria das Minas Gerais 59
Terceiras do Carmo e de São Francisco, enquanto
pardos e pretos criavam suas irmandades próprias:
Rosário dos Pretos, Amparo, Mercês. A estratifí-
corporaçõesl era, assim, levada para o seio dessas
Essas festas foram particularmente brilhantes e
luxuosas, delas participando os diversos grupos so-
da do ouro abundante, enquanto' o Áureo Trono
denota os primeiros sinaisda decadência e do can.
faço das .lavras. Segundo um cronista anónimo o
HHug\ini ãaa#
mesmo país'' que só alguns poderiam, jâ naquela
época, arcar com os gastos necessários à subsistência
e'à manutenção dos trabalhos auríferos. Mas a come-
moração se realizou, servindo, mais uma vez? para
camuflar as desigualdades, escamotear os conflitos e
conferir a grupos sociais diversos e antagónicos a
ilusão de que a todos agasalhava a riqueza das
Minas.
As peregrinações e romarias também consistiam
momento de encontro, quando pessoas das mais di-
versas procedências se dirigiam para as capelas e
ermidas de sua devoção: assim, o Eremitério do Ca-
raça, os santuários de Antonio Pereira, do Senhor
Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas do Campo.
As famílias e os grupos de gente iam cantando pelo
caminho, fazendo-se acompanhar por flautas, rabe-
cas e instrumentos musicais dos escravos africanos
que seguiam nesse cortejo; havia ainda danças e
cantos profanos nessas procissões, que geralmente
tinham lugar aos sábados e domingos.
As vendas e lojas de comestíveis também propi-
ciaram o encontro entre as pessoas, sobretudo as de
poucas posses. Eram o lugar do lazer e da alegria,
onde se cantavam modas, se dançava o batuque, se
bebia aguardente, jogavam-se cartas e dados. Nelas,
muitas vezes o capitão-do-mato convivia com o es-
cravo, os homens livres pobres com os negros forros,
as prostitutas declaradas com as negras de tabuleiro,
os autores de pequenos crimes com os soldados da
milícia paga. Estas tavernas foram o alvo de medidas
rigorosas, as autoridades coloniais movendo contra
60
.[azzra Vergzzefro l Opu/ê/zela e Miséria das Minas Gerais
61
elas uma luta sem trégua, como se o prazer consti.
tuísse infração grave. Alegavam que osfolguedos de-
gringolavam em brigas e até em mortes, sendo co-
muns as altercações entre freqüentadores animados
pelo álcool.
Era nessas lojas que os integrantes da camada
intermédia, os indivíduos melhor definidos na escala
social encontravam-se com os componentes da franja
imprecisa da sociedade, da zona fugidia e obscura
que se esgarçava entre a camada dos homens livres,
remediados e pobres, e a dos desclassificadas sociais.
Estes foram numerosíssimos nag Minas, mais
talvez do que em qualquer região da Colónia setecen-
tista. Isso porque a riqueza ilusória do ouro trazia
atrelada a miséria, a estrutura económica premiando
a poucos e castigando a maioria, as drásticas leis
metropolitanas servindo para engordar o fisco, vigiar
o contrabando e punir com violência as menores
infrações. Conforme foi-se desenvolvendo a atividade
extrativa, avolumou-se na capitania do ouro uma
grande quantidade de gente que não tinha posição
definida na escala social, que o sistema criava e
deixava sem razão de ser. Sujeitos a ocupações in-
certas e intermitentes, esses indivíduos viveram na
miséria e na promiscuidade, procurando, muitas ve-
zes, fugir dessa situação através do crime da in-
fração e da violência.
A camada dos homens livres miseráveis era pre-
dominantemente mestiça e negra, a ela pertencendo
muitos escravos que haviam obtido a alforria, mas
que nâo conseguiam manter-se na nova vida. Viviam
62
Zaura Vergzzefl )pulência e Miss;ia das Minas Gerais
63
em choças, os mais afortunados morando em casas
que dividiam com outras pessoas, numa promiscui-
dade que, frequentemente, tinha consequências fu-
nestas: não eram raros os casos de relações incestuo-
sas entre paj e filha, irmão e irmã. As uniões entre os
sexos se faltam, quase sem exceção, através do con-
cubinato. Casar era privilégio de poucos, pois o sa-
cramento era caríssimo e a lgrqa impunha uma série
de limitações aos cônjuges.'A'organização familiar
diferia muito da que se conhece hoje em dia, a maio-
ria dos lares sendo encabeçados por mulheres aban-
donadas pelo marido ou pelo companheiro, mulheres
sozinhas, viúvas, mães solteiras que trabalhavam pa-
ra garantirem uma cota mínima de alimentaçãodiária.
Nessa zona imprecisa constituída pelo grupo dos
homens livres pobres, muitos negros forros eram tra-
tados como escravos,. sendo reconduzidos novamente
ao trabalho compulsório por engano ou, como acon-
tecia na maior parte das vezes, por má fé. Então se
desesperavam, dirigindo petições e requerimentos às
autoridades da capitania, descrevendo as sórdidas
condições em que viviam, clamando por uma justiça
quetardavae, nãoraro, falhava. ' ''''"'
O contrabando de ouro e diamantes era uma
forma de infração cometida por ricos e pobres. Os
ricos muitas vezes deviam a fortuna ao sucesso alcan-
çado nas atividades clandestinas; os pobres nelas
viam a possibilidade de saírem da miséria. Havia
pequenos contrabandistas que atuavam individual-
mente, mas a norma foi integrarem quadrilhas e
grandes organizações comandadas por indivíduos
poderosos. As afamadas negras de tabuleiros, perse-
guidíssimas pela legislação, levavam géneros comes-
tíveis e miudezas para serem negociadas nas lavras,
receptando as pepitas que os escravos eventualmente
conseguissem esconder. As vendas e tavernas tam-
bém exerceram a função de pontos de contrabando.
Perseguidos e amaldiçoados durante todo o sé-
culo XVlll foram os garimpeiros do Distrito Dia-
mantino. Como jâ se viu, era proibida a mineração
dos diamantes, efetuada apenas pelos escravos do
Contrato e jâ no fim do setecentos, pelos da Real
Extração. Buscando saída para a situação de misé-
ria, escravos fugidos e forros pobres enveredavam
pela mineração clandestina, atuando individualmen-
te ou em bandos que se tornavam temíveis. O garim-
peiro imolado -- o faiscador, como se chamava -- era
menos freqüente, sendo mais comuns os grupos orga-
nizados sob as ordens de um ''capitão''. Com a prá-
tica, esses homens se tornavam peritos, conhecendo
lavras escondidas, ricas em pedras preciosíssimas.
Assim, a captura dos garimpeiros não tinha apenas o
objetivo de impedir a mineração clandestina: visava
também lhes arrancar os segredos, para o que a
administração diamantina não hesitava em recorrer
à tortura.
Alguns ''capitães'' fizeram lenda: João Costa e
José Basílio, por volta da década de 80 do século
XVlll; lsidoro, jâ no primeiro decénio do século
XIX. Contra Jogo Costa, o governador D. Rodrigo de
Menezes chegou a enviar um exército; a ação guerri-
64 Z;adira Vergzzeíra Opulência e Miséria das Minas Gerais
65
cheira de emboscadas e assaltos rápidos, desenvol-
vida pelo grupo deste capitão, desnorteou as tropas
oficiais, dando-lhes grandes dores de cabeça. Traído
por uma amante, João Costa foi preso e conduzido ao
Tijuco, o termo de prisão que então se lavrou infor-
mando que era homem branco e contava com 33
anos.
José Basílio, cabra, fora desterrado da circuns-
crição diamantina por não ter ofício definido; vol-
tando algum tempo depois, passou a atuar como
garimpeiro; preso, foi condenado a trabalhos força-
dos nos serüços de Extração, de onde escapou de for-
ma espetacular, retomando em seguida sua antiga ati-
vidade. Muitos anos depois voltou a ser preso, rece-
bendo a pena de degredo para Angola.
O capitão lsidoro foi o mais famoso garimpeiro
das Minas, tendo, por algum tempo, fornecido infor-
mações sobre jazidas diamantíferas às autoridades
locais. Morreu de forma bárbara, em consequência
de torturas e ferimentos que Ihe foram inflingidos
por ordem do Intendente Câmara, que governava o
Distrito Diamantino naquela época. A vida desses
homens é largamente tratada nas admiráveis Memó-
rias do Distrito Diamantino .
Os vadios e desocupados foram. muito comuns
nas Minas, constituindo motivo constante de inquie-
tação para os governadores. Nos períodos mais difí-
ceis, quando o ouro jâ escasseava, multiplicaram-se
as queixas contra o peso que representava .para o
Estado uma vasta porção de homens livres destituí-
dos de trabalho e incapazes de provarem à própria
subsistência. Procurou-se então torna-los úteis, em-
pregando-os em funções que o escravo não podia
preencher e que não ofereciam atrativo ao homem
livre melhor situado socialmente.
Muitas das expedições sertão adentro, na pro-
curade novas regiões ricas em metais preciosos e
diamantes, foram possíveis devido aos vadios. As
autoridades previam ao seu recrutamento, que se
fazia à força ou em troca de comida. Os vadios
edificaram os presídios -- construções localizadas
em terras remotas para combater o extravio do ouro e
impedir o.avanço dos índios bravos -- e cultivaram
as roças anexas a eles. Alias, foi freqüente o trabalho
de vadios nas obras públicas, contando, entre estas,
a construção da Casa da Câmara e Cadeia de Vila
Rica. Estiveram presentes também na ordem pri-
vada, integrando os corpos de guarda e polícia pes-
soal dos potentados mineiros.
Um dos casos mais dolorosos de aproveitamento
dos vadios diz respeito à formação de corpos mili-
tares para a guerra que Portugal e Espanha vinham
travando pela posse da colónia do Sacramento. Esta
região era alvo de disputas por parte de portugueses e
castelhanos desde o início do século; em 1773, come-
çaram os governadores de São Paulo e Minas a pen-
sar no recrutamento de desocupados, visando a em-
prega-los nas atividades bélicas da flunteira sul. O
vice-rei do Brasil, marquês de Lavradio, também
acreditava que esse tipo de gente, onerosa ao govêmo
das capitanias, poderia ser útil como corpo de mi-
lícia. Em 1777, o governador de Minas, D. Antonio
6Ó Z,azzra Vergzzefro Opulência e Miséria das Minas Gerais
67
de Noronha, começou a enviar levas de miseráveis
para Martim Lopes Lobo de Saldanha, capitão-geral
de São Paulo e articulador dos corpos que chegavam
de diferentes pontos com destino à fronteira. De São
Paulo e do Sul, onde afinal foram ter os infelizes,
levantaram-se protestos e manifestações de perplexi-
dade ante aquela massa subumana, alquebrada,
aleijada, nua, que os chefes militares não conse-
guiam aproveitar, com quem os soldados da linha de
frente não queriam dividir sua ração diária de co-
mida. Providenciou-se, então, a volta desses farrapos
humanos. Mas, num último instante, os melhores
deles foram aproveitados para as tropas, para fazer
número no ataque ao inimigo, enquanto outros eram
desviados para o cultivo das roças de mantimentos
que supriam as forças do Sul.
A prostituição existiu nas Minas desde os pri-
meiros tempos, quando muitas mulheres para lá se
dirigiram sob a atração do ouro. Foram freqüentes as
que se viram obrigadas a adotar este genêro de vida
por causa da dificuldade em conseguirem o suficiente
para a subsistência; para outras, que viviam do fa-
brico de sabão e doces, o meretrício serviu para
completar a receita doméstica. Apesar de casada,
muita mulher pobre se prostituiu. Algumas meretri-
zes moravam na roça; outras, bêbadas, envolviam-se
em crimes de morte e acabavam sendo recolhidas à
Casa da Cadeia.
Era nos centros urbanos que se concentravam os
prostíbulos, então conhecidos como ''casas de al-
couce''. Alguns se achavam sob o controle de homens
e mulheres que os cediam para encontros escusos,
nem sempre servindo de residência às prostitutas que
os freqüentavam. Outros eram vendas e estalagens
que, como serviço suplementar, forneciam distração
aos viajantes que passavam.
Muitas vezes, os clientes das casas de alcouce
eram bandidos temíveis. Havia os que atuavam isola-
damente, invadindo as casas para roubarem objetos
e dinheiro, incendiando-as após; outros esfaqueavam
os viandantes noturnos que vogavam pelas vielas dos
arraiais e das vilas e, uma vez o crime consumado,
atiravam a vítima embaixo de uma ponte ou dentro
de um carrego. Estes indivíduos muitas vezes come-
tiam estupros, aproveitando-se do fato de varias mu-
lheres residirem sozinhas, sem marido: nos docu-
mentos existe até o caso horrível de uma criança
violentada. Mas o banditismo que maior fama alcan-
çou nas Minas foi o de grupo, o das famosas quadri-
lhas que, nos caminhos tortuosos, nos penhascos,
nos desfiladeiros, aguardavam a passagem dos co-
merciantes ricos, das tropas que abasteciam as vilas e
que levavam o ouro quintado para os portos da Co-
lónia.
A mais célebre das quadrilhas de bandidos que
atuaram nas Minas foi a da Mantiqueira, descoberta
no decênio de 80 do século XVIII. Sua zona de
operação era o caminho que ia para o Rio de Janeiro;
no início, atacou apenas contrabandistas de ouro e
diamantes, mas gradativamente começou a roubar e
a matar pessoas de destaque na vida da capitania,
como o negociante de fazendas Antonio Sanhudo de
68 Zazzra Vergueíro
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l
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Opulência e Miséria das Minas Gerais 69
Araújo. O alferes Joaquim José da Salva Xavier, que
alguns anos depois se imortalizaria como o Tira-
dentes da Inconfidência, teve papel de destaque na
prisão dos membros desta quadrilha, integrada por
brancos, mestiços e ciganos.
Como de resto em toda a Co16nia, os escravos
constituíram nas Minas a força de trabalho sobre que
se assentava toda a vida económica, que extraía o
ouro dos carregos e do seio da terra, perfurando as
galerias, lavando o cascalho, permanecendo horas a
fio, dias inteiros com as pernas dentro dágua. A
tentação de furtar alguma pedra ou pepita era gran-
de, e consta que boa parte dos escravos da mineração
conseguiram, desta forma, juntar pequenas somas
que, às vezes, eram suficientes para a compra da
alforria. Mas tudo indica ter este procedimento cons-
tituído exceção, a grande maioria dos negros vivendo
em condições subumanas, mal-alimentados, enfra-
quecidos, brutalizados pelos castigos e sevícias dos
feitores, dos donos das lavras, do capitão-do-mato
que, quando fugiam, os ia buscar nas brenhas e nos
penhascos.
Os escravos que trabalharam na mineração vie-
ram, durante a primeira metade do século, da costa
da Mina: pertenceram, portanto, ao grupo dos suda-
neses. Dizia a tradição que estes negros eram hábeis
mineradores, e em 1726 o governador do Rio de
Janeiro informava o rei de que os negros minas eram
''os de maior reputação para aquele trabalho, di-
zendo os mineiros que são os mais fortes e vigorosos,
e ... não hâ mineiro que possa viver sem uma
negra mina, que só com elas tem fortuna''. Depois de
1750, entretanto, parece ter-se modificado a situa-
ção, afluindo para a capitania número maior de an-
goleses e cangas, que eram do grupo banto.
A.população escrava foi numerosí$sima nas Mi:
nas, constiãiíãdo'iho:uivo constante.de preocupação
para.a!. autoridades coloniais, que temiam a repe-
tição do conflito'de Palmares. Em.1742,..a çonl!!!k.
gente escravo representava pouco mais dQ70%o , num
tõiãl'di'266 86&habitantes. Ãs vésperas da Inconfi-
dência, em 1786, os homensBranco$.eram. em nú-
mero de.165664,-enquanto. os.-pardos-chegavam--a
100685 e os escravos.atingiam a cifra de 1-96468
indiaduos..:Mestiços e negros ultrapassavam, pois, a
casa dos 80%,--proporção que-continuarialhaltetàda
nasprimeirQS anos-dcLséculo XIXi conforme o teste-
munho dos viajantes Spix e Martius.
Tratava-se, portanto, de uma capitania onde o
elemento branco se achava em minoria flagrante. A
superioridade numérica dos escravos, os maus tratos
e a mâ alimentação que recebiam deram origem a
uma grande quantidade de fugas, proliferando os
quilombos. A punição dos escravos, quando de cará-
ter privado, consistia no espancamento, nas chiba-
tadas, no tronco, e em outros requintes de maldade a
que os senhores se entregavam com certa frequência.
Quando fosse grave a infração -- como era o caso do
assassinato dos senhores pelos escravos --, o cativo
ficava à mercê da justiça oficial. Poderiam, neste
último caso, receber a pena de morte, a sua cabeça
sendo exposta publicamente nas praças, conforme
T
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70 Z,atira Vergueíro Opulência e Miséria das Minas Gerais 71
presenciou o viajante Pohl quando esteve em São
João del Rei, jâ nos primeiros anos do século XIX.
Abundam na documentação as referências a senho-
res que não davam sepultura aos escravos, deixando
seus corpos expostos aos bichos e animais de rapina.
Em diferentes momentos, ocorreram tentativas
de levantes escravos, o seu sucesso sendo impedido
pelas brigas entre os próprios cativos: Em 1719, des-
cobriu-se o plano de um levante geral, acertado para
quinta-feira de endoenças:

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