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• Brasil História — v o l . 1 — C o l ô n i a — A. Mendes Jr. I R. Maranhão e L. Ron cari torgs.) • Da C o l ô n i a a o Império — U m Brasil para Inglês ver e Latifundiário n e n h u m Botar Defeito — Lilia Moritz Schwarcz/ Migue/ Paiva • A Igreja d o s P o b r e s na A m é r i c a Latina — Fund. SP/PUC • P r e c o n c e i t o Racial n o Brasil C o l ô n i a — M. Luiza T. Carneiro • A Q u e s t ã o da E d u c a ç ã o Indígena — Comissão Pró-lndio C o l e ç S o P r i m e i r o s Passos • O q u e são C o m u n i d a d e s Eclesiais d e Base — Frei Betto • 0 q u e é Igreja — Paulo Evaristo, Cardeal Arns • 0 q u e é Religião — Rubem Alves C o l a ç ã o T u d o é História • A A f r o - A m é r i c a — A E s c r a v i d ã o n o N o v o M u n d o — C. Flamarion Cardoso • A A m é r i c a P r ó - C o l o m b i a n a — C. Flamarion Cardoso » M e r c a n t i l i s m o e T r a n s i ç ã o — Francisco Falcon C o l e ç ã o P r i m e i r o s V ô o s • O A n t i g o S i s t e m a Colonial — J. R. Amaral Lapa Eduardo Hoornaert A IGREJA NO BRASIL-COLÔNIA (1550-1800) 1? edição 1982 2? edição 1984 Copyright © Eduardo Hoornaert Capa: 123 (antigo 27) Artistas Gráficos Caricaturas: Emílio Damiani Revisão Seminário Cm&Mlfa ÊibMecü José E. Andrade D a t a -¿CuO^S^L João Bosco Medeiros editora brasiliense s.a. 01223 - r. general jardim, 160 são paulo — brasil ÍNDICE Introdução: "uma"leitura, não "a"leitura . . . . 7 Como estava organizada a Igreja que entrou no Brasil? Quais eram seus quadros? 10 Os cinco ciclos da evangelização do Brasil 28 Como funcionou o catolicismo no Brasil colo- nial? Quais os mecanismos deste funciona- mento? 66 Conclusão: afinal, que tipo de Igreja herdamos do passado? 86 Indicações para leitura 89 Jt. ; : J SEMINARIO CONCORDE* INTRODUÇÃO: "UMA" LEITURA, NÃO "A" LEITURA A Igreja Católica não pertence à história antiga do Brasil. Sua entrada nesta terra é relativamente recente e deve ser entendida dentro de um grande movimento de expansão mundial a partir de um centro europeu, chamado movimento colonial. Usa- mos aqui as palavras "Igreja colonial" por conve- niência, pois na realidade o "colonial" não é apenas um período da história do Brasil: é uma estrutura econômica, social, política, ideológica. Depois de ter sido colônia de Portugal, o Brasil continuou sendo "colônia" de outras potências estrangeiras, até hoje. Existem dois discursos que condicionam o es- tudo da história da Igreja no Brasil. Eles são irredu- tíveis, pois provêm de dois "lugares" na sociedade que estão em permanente conflito desde a entrada dos europeus aqui e, por conseguinte, desde o esta- belecimento da Igreja cristã nesta terra. O primeiro discurso provém do lugar do Estado colonizador. Ele pode ser exemplificado aqui nas palavras de Dom João III, rei de Portugal entre 1521 e 1557, ao pri- meiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa: "A principal causa que me levou a povoar o Brasil foi que a gente do Brasil se convertesse à nossa santa fé católica" (cit. Hoornaert, 1977, 24). Segundo este discurso, o estabelecimento europeu no Brasil foi um benefício sobretudo espiritual, pois significou a con- versão dos índios, a expansão da Igreja, a catequese de povos nunca dantes evangelizados. O segundo discurso provém do lugar dos que foram vítimas das novas relações de trabalho impos- tas pelos europeus ao chegarem aqui. Basicamente são os indígenas, os africanos importados e seus.des- cendentes que ocuparam este "lugar". Um índio ve- nerável, chamado Momboré-uaçú, falou em nome deles aos colonizadores franceses do Maranhão, em 1612, segundo nos relata o cronista Claude d'Abbe- villè: "Os portugueses mandaram vir os padres. E estes ergueram cruzes e principiaram a instruir os nossos e a batizá-los. Mais tarde afirmaram que nem eles nem os padres podiam viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem" (Abbeville, ed. 1978, 115). Este discurso relaciona evangelização com es- cravidão e a partir deste relacionamento faz uma leitura da história da Igreja no Brasil. Não podemos aqui, nestas palavras preliminares, aprofundar o te- ma, mas queremos lembrar que não existe uma lei- tura da história da Igreja que seja objetiva e aceita por todos, mas que toda leitura da história é relativa . , a posições concretas dentro de uma determinada so- ciedade. Nestas páginas procuraremos "ler" a his- tória da Igreja no Brasil a partir do lugar dos indí- genas, dos africanos e de seus descendentes mestiços e mulatos. Vamos dividir este pequeno estudo em três par- tes: numa primeira parte temos que nos perguntar como estava organizada a Igreja que entrou no Brasil com os colonizadores. Quais eram seus quadros? Estas perguntas são importantes para que enten- damos as alianças da Igreja com os poderes da* épo- ca, de um lado, e com o povo, de outro lado. A organização da Igreja deixou margem pará articu- lações populares? Esta parte trata, pois, da organi- zação da Igreja. Numa segunda parte focalizamos a evangelização. A história econômica e militar do Brasil revela o caráter cíclico da ocupação do territó- rio. A cana-de-açúcar, o gado, o ouro, a caça aos índios formaram respectivamente ciclos, assim como a de- fesa da Amazônia diante dos concorrentes espanhóis, holandeses, franceses, ingleses. A mesma lei cíclica se verifica nos movimentos missionários e temos que ver por quê. Uma terceira e última parte trata da vida dentro da cristandade formada pela aliança en- tre hierarquia eclesiástica e Estado colonizador. A nossa tarefa é a dek estudar como funcionou este catolicismo em relação à sociedade global e seus problemas, quais eram os mecanismos da formação de uma sociedade marcada pelo simbolismo católico. COMO ESTAVA ORGANIZADA A IGREJA QUE ENTROU NO BRASIL? QUAIS ERAM SEUS QUADROS? A partir do século XVI o território brasileiro foi aos poucos englobado nos quadros organizatórios da Igreja católica. Tratava-se de integrar o imenso terri- tório da forma mais eficiente possível, dadas as con- dições da época. Pois o esforço organizatório fa- zia parte de um movimento mais complexo, de di- mensões econômicas, sociais e políticas, que par- tia da Europa: a expansão do sistema mundial capi- talista. Para compreender como se articulou esta inte- gração do Brasil é importante estudar os quadros da organização da Igreja na época. Eles mantinham estreita aliança com o Estado português expansio- nista, embora permitindo em alguns casos uma rela- tiva liberdade diante dele. Aliança com o Estado Á organização da Igreja no Brasil entre 1550- 1800 era em grande parte controlada pelo Padroado, uma prerrogativa da Coroa portuguesa baseada no fato de o rei ser grão-mestre de três tradicionais ordens militares e religiosas de Portugal: a de Cristo (a mais importante), a de São Tiago da Espada e a de São Bento, a partir de 1551. A Ordem de Cristo era herdeira da dos Templários e gozava de grande in- fluência. O direito de padroado foi cedido pelo papa ao rei português com a incumbência de promover a ^organização da Igreja nas terras "descobertas", de sorte que foi por intermédio deste Padroado que a expansão do catolicismo no Brasil foi financiada. O Estado português ainda dispunha de outros meca- nismos para controlar a Igreja, como a "Mesa da Consciência e Ordens", que procedia às nomeações eclesiásticas, e o Conselho Ultramarino, que dava pareceres em questões de direito colonial. Contudo, o- mecanismo mais importante foi o Padroado. Com a predominância do Padroado régio, a influência de Roma sobre o Brasil foi mínima, especialmente a do Concílio de Trento, que praticamente só foi aplicado no Brasil no século XIX (Azzi, 1977,168). . A organização das dioceses e paróquias foi mui- to lenta e sua influência sobre o catolicismo vivido no Brasil bastante reduzida. Entre 1551 e 1676 o Brasil só tinha uma diocese, a de Salvador da Bahia. Nos anos de 1676 e 1677foram criadas mais três dioceses: Pernambuco, Rio de Janeiro e São Luís do Mara- nhão, a última diretamente dependente de Lisboa. Na primeira parte do século XVIII foram criadas mais três dioceses: Pará (1719), Mariana (1745) e São Paulo (1745), acompanhando sucessivas aber- turas de espaços brasileiros para o sistema colonial. Este número de sete dioceses manteve-se até a Inde- pendência (1822). As dioceses, prelazias e paróquias ficaram vacantes por grandes lapsos de tempo, pois a ^ Coroa portuguesa só mostrava interesse na função episcopal e sacerdotal à medida que estas esta- vam ao seu serviço. Poucos bispos realizavam a visita pastoral, recomendada pelo Concílio de Trento, so- bretudo por causa das distâncias e das dificuldades de viagem. A vivência real da religião católica foi desta forma pouco afetada pela estrutura eclesiás- tica. Todavia, temos que assinalar o Sínodo dioce- sano realizado em Salvador da Bahia, em 1707, e as "Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia", que constituem a única legislação eclesiástica elabo- rada no Brasil durante o primeiro período colonial (Azzi, 1977,177). O clero secular atendia às necessidades da assim chamada "sacramentalização" ou administração dos sacramentos obrigatórios, como sejam: o batismo, o casamento, a confissão anual no tempo pascal, a missa de defuntos. Estes sacramentos eram adminis- trados à população em geral, não a grupos que livre- mente os aceitavam: eram considerados obrigatórios. Uma parte do clero secular tomava conta de cape- lanias das confrarias nas vilas; outra cuidava das 1 " " ~ j4 Eduardo Hoornaert A Igreja no Brasil-Colônia (1550-1800) 15 i ! i 1 j 1 1 1 l í paróquias nas vilas e no interior do país. As paró- quias foram organizadas, sobretudo a partir da legis- lação pombalina (1755), onde antigamente existiam aldeamentos de indígenas, arraiais de bandeirantes, engenhos ou fazendas. 0 pároco visitava regular- mente as diversas capelas do imenso território paro- quial, a cavalo ou carregado de rede nos ombros de escravos, para sacramentalizar o povo. A pregação era comumente reservada aos missionários do clero regular, sendo que os párocos cuidavam da "deso- briga" ou administração dos sacramentos. 0 clero secular era dividido em alto clero (bispo e outros dignitários), que era pago pela "folha eclesiástica" do Padroado régio, e baixo clero (párocos e cape- lães), que vivia mais próximo do povo e compar- tilhava suas privações. A literatura acerca do clero secular no Brasil dos três primeiros séculos é muito deficiente. Existem lacunas no nosso conhecimento da vida do clero, da observância do celibato, do seu envolvimento na política partidária e nas lutas do povo, de sua formação e situação financeira (Azzi, 1977, 183-210). Sendo mestiço, recaía sobre o clero secular o preconceito racial e cultural, o que difi- cultou a conservação da memória acerca dele. A literatura acerca do clero religioso, europeu ou pelo menos de formação europeizante, é muito mais abundante do que aquela que trata do clero secular ou "nativo". As ordens clássicas de clero regular ficaram responsáveis pela abertura de suces- sivas fronteiras para a evangelização. Elas eram fi- nanciadas pelo Padroado régio, mas procuravam li- vrar-se da dependência que este financiamento criava através da constituição de patrimônios próprios em terras, casas, engenhos, fazendas e escravos, a partir de doações, heranças e promessas dos fiéis. Os patri- mônios religiosos ocupavam importantes espaços tanto nas vilas — nas quais o "patrimônio dos san- tos" constituía normalmente o núcleo primordial do povoamento — como no interior, onde as terras "dos santos" constituíam — entre outras coisas — um meio de acesso por parte dos escravos a uma pequena parcela de terra para residência ou cultivo de subsis- tência. A riqueza das ordens religiosas no Brasil manifestava-se na grandiosidade dos templos, con- ventos e mosteiros, no luxo das igrejas barrocas rica- mente ornamentadas a ouro, no número impressio- nante de escravos (Fragoso, 1980, 201) ^ç^ t fÉm relação à atuação dos religiosos no Bra- sil colonial é preciso dizer algo sobre um quadro organizatório muito importante na formação do Brasil: os aldeamentos, também chamados missões, aldeias, reduções. A importância do assunto depre- ende-se do fato de que a experiência dos aldea- mentos, que não se limitou ao Sul do país (as famo- sas reduções do Paraguai, e os Sete Povos do Rio Grande do Sul) nem à Região Amazônica, mas se estendeu também por numerosas áreas do litoral (com exceção das faixas litorâneas entre Bahia e São Paulo e entre Paraná e Uruguai) e mesmo no interior (com exceção de Minas Gerais), foi talvez a expe- riência mais válida que partiu da instituição ecle- siástica, até hoje. i 1 Desde Dom João III (1521-1557) o Império por- tuguês começou a se organizar também no nível mis- sionário. Dentro dos quadros gerais do Padroado criou-se em Lisboa a "Mesa da Consciência e Or- dens", uma espécie de tribunal missionário que deci- dia em assuntos de organização tipicamente mis- sionária. Desta "Mesa" partiu a licença para os pri- meiros aldeamentos no Brasil, durante o governo do terceiro governador-geral, Mem de Sá: no dia 30 de julho, de 1556 firmou-se acordo, na Bahia, entre o governador e os jesuítas em relação às aldeias orga- nizadas por estes, passando as aldeias a constituírem territórios livres e intocáveis. A base jurídica era a antiga legislação acerca dos asilos, do direito de asi- lo. Contudo, a legislação relativa ao direito de asilo no Brasil sempre sofreu de uma fundamental fra- queza, pois não se aplicava aos escravos. Daí se compreende a luta dos padres jesuítas contra a escra- vização dos indígenas confiados aos seus cuidados. Ê por causa desta legislação verdadeiramente discri- minatória que os quilombos nunca foram conside- rados asilos de direito e por conseguinte não conse- guiram, em numerosos casos, escapar à repressão . policial. Entre 1556 e 1561 foram organizados no Recôncavo Baiano onze aldeamentos, origem dos municípios atuais, como é o caso de inúmeros muni- cípios deste país. O movimento tomou logo muito impulso e marcou a história da Igreja nos séculos XVII e XVIII, e nele não só atuavam os jesuítas, mas também os franciscanos, os capuchinhos, os carme- litas, os mercedários (no Pará), com exceção dos beneditinos, que não trabalharam neste campo, só mantiveram suas fazendas e mosteiros. O aldeamento originava-se num "descimento" ou "redução" de indígenas do interior da terra para a zona litorânea, ou para a confluência dos rios, no caso da Amazônia. Este descimento sempre era pra- ticado manu militari, sendo o missionário acompa- nhado pela tropa (ou vice-versa, depende do ponto de vista). Os indígenas "brabos" eram deslocados para as aldeias "de índios mansos", ou "índios da cruz": a cruz no meio de uma praça aberta marcou a exis- tência de um aldeamento e continua até hoje mar- cando o centro de numerosas cidades, municípios, lugarejos. Este descimento quase sempre resultou num fra- casso, em termos demográficos: os índios morriam em quantidade, contaminados pelas doenças dos brancos. Foi o contágio que dizimou os índios do Brasil e podemos provar que a história dos indígenas do Brasil após 1500 é a de sua progressiva elimi- nação. O indígena não podia conviver com o projeto capitalista, tinha que desaparecer, pois era irredu- tível aos intentos do capitalismo: foi eliminado pelas doenças, pela fome, pelas guerras denominadas "jus- tas", pelas torturas, pelos regimes de trabalho, como o famoso regime de "repartição, em vigor na Ama- zônia no século XVIII. Esta impressionante sucessão de calamidades e desgraças fez pensarem os missionários na possibi- lidade de distanciar mais os aldeamentos das vilas e das fazendas, de "paraguaizar" os aldeamentos no sentido de aproveitar a experiência das reduções do Paraguai, amplamente comentadano interior da Companhia de Jesus. A partir de várias experiências no Nordeste, como a de Luís Figueira na serra do Ibiapaba (Ceará), Jacob Roland no rio São Fran- cisco, Martinho de Nantes no mesmo rio São Fran- cisco, os missionários tentaram separar aldeamentos e povoamentos coloniais, o que lhes impôs um gran- de esforço de adaptação aos costumes indígenas. Exatamente este esforço foi aos poucos criando uma mentalidade nova entre os missionários, mentalidade que percebemos bem na correspondência dos jesuítas que atuavam na região amazônica na primeira parte do século XVIII. Um dos casos mais célebres de um aldeamento "livre", afastado dos centros coloniais, é o de Nossa Senhora da Assunção na serra do Ibiapaba (Ceará, hoje município de Viçosa, fundado por Luís Figueira e companheiros, que chegou a ser o maior aldea- mento do Brasil, contando em 1700 com quatro mil habitantes e em 1757, dois anos antes da expulsão dos jesuítas, com mais de dez mil pessoas. A força deste aldeamento estava na sua milícia, sendo que capitães e cabos eram indígenas sob a "adminis- tração temporal" dos padres jesuítas. A partir deste fato compreende-se toda a discussão interminável que houve no estado do Maranhão na segunda parte do século XVII e primeira parte do século XVIII acerca desta "administração temporal": as autori- dades coloniais perceberam que o poder real militar estava nas mãos dos jesuítas, pois elas mesmas não dispunham de um poder de tropas que pudesse ser comparado com o dos indígenas treinados pelos padres: "Dividimos os índios todos em companhias, no- meando-lhes por capitães e cabos a alguns mais be- neméritos... mandando-os com seus principais pas- sar mostra em algumas ocasiões para os ter exerci- tados e prontos não só para a defesa contra os ta- puias, mas também para socorrerem e ajudarem os brancos, se o pedir a necessidade" (cit. HCJB II, 548). Esta força militar que os aldeamentos iam ad- quirindo aos poucos inquietou as autoridades e as fez temer a força dos jesuítas, que na realidade era a força dos indígenas organizados. Os jesuítas, com o tempo, foram compreendendo que tinham que se aliar aos indígenas: a "Soberana Virgem Senhora Nossa da Assunção", protetora do aldeamento do Ibiapaba, tinha um significado diferente das nume- rosas invocações marianas a partir da empresa colo- nial: ela era deveras libertadora. Estas experiências com os aldeamentos deram origem ao tema missionário da "liberdade dos ín- dios", muito combatido na época. Os missionários concordaram em reduzir os indígenas da sua vida ancestral à "santa fé", mas não concordaram em deixá-los serem escravizados. Isso se chocou frontal- mente com os interesses dos moradores, que necessi- tavam de mão-de-obra local para poder sobreviver na colônia. Assim os aldeamentos eram freqüentemente assaltados por grupos de guerrilheiros mamelucos, uma espécie de "grileiros" da época, que receberam na historiografia oficial o nome de "bandeirantes". Mas os aldeamentos estavam sujeitos a certos condicionamentos que lhes tiravam em grande parte a face ideal: eles não podiam deixar de ser, global- mente, instrumentos de dominação, mesmo nas me- lhores condições e sob as melhores intenções. Já o tipo de pedagogia cristã exercida nos aldeamentos mostra isso: que houve antes doutrinação do que verdadeira pedagogia da fé. Tratava-se de impor uma doutrina, ou pelo menos a obediência a uma doutrina, o espírito de obediência e de submis- são. Os jesuítas apegaram-se à educação das cri- anças, muitas vezes contra a vontade dos pais, fa- zendo pressão sobre elas por meios nem sempre ho- nestos. Esta doutrinação teve como resultado desfa- zer os laços existentes entre os indígenas, destriba- lizar e descaraterizar os indígenas e produzir o "ín- dio genérico, pretérito, massificado, descaracteri- zado". Realmente, o "índio" é produto do aldea- mento. A sorte dos aldeamentos no Brasil e no Mara- nhão precipitou-se após o Alvará régio de 7 de julho de 1755, pelo qual o "poder temporal" dos missio- nários foi abolido e passou a ser exercido pelas auto- ridades coloniais. Os colonos fizeram sua entrada nas aldeias indígenas, descaraterizando-as e inician- do o famoso processo de miscigenação que foi "a solução encontrada pela colonização para o proble- ma indígena", como diz Caio Prado Júnior. Os jesuí- tas, os mais ardorosos defensores da "liberdade dos índios", foram expulsos e começou uma nova fase na história dos aldeamentos, caracterizada pela mistura entre a incrível resistência e tenacidade de alguns missionários que continuaram a aldear índios e a acompanhá-los e a lei inexorável do capitalismo que se apoderava de fronteiras sempre mais recuadas do território brasileiro. A vida religiosa feminina realizava-se em "reco- lhimentos" ou conventos financiados pelo Padroado. A divisão da sociedade entre livres e escravos foi transferida para estes Conventos: no convento do & Desterro, em Salvador da Bahia (1764), cada reli- giosa branca "de véu preto" era servida por duas ou mais "freiras de véu branco", que eram pretas e escravas (Soeiro, 1974). (Veja também Hoornaert, 1977,373.) Os leigos conseguiram importantes organizações dentro da Igreja no Brasil, pelas confrarias, irman- dades ou ordens terceiras, herdadas do passado por- tuguês, que floresceram nas vilas brasileiras e espe- cialmente em Minas Gerais. As irmandades, repre- sentavam a verdade racial, social e ideológica da sociedade: havia irmandades de pretos (Rosário, São Benedito, Santa Ifigênia), de pardos (Conceição, Amparo, Livramento, Patrocínio), de brancos (San- tíssimo Sacramento, São Francisco, Nossa Senhora do Carmo, Santa Casa de Misericórdia). Havia irman- dades de proprietários, comerciantes, militares, tra- balhadores, escravos. As irmandades revelavam a sua "verdade" por ocasião das festas, procissões e pro- messas (Azzi, 1977, 234). Não se pode duvidar do ca- ráter eminentemente leigo da tradição católica no Brasil. A relativa liberdade Áo lado destas formas de organização eclesiás- tica mais ou menos controladas pelo Padroado régio havia importantes organizações religiosas populares que escapavam relativamente ao controle do sistema. Enumeramos aqui algumas destas organizações que eram dotadas de grande criatividade: As beatas eram mulheres pobres que optaram pela virgindade fora dos quadros institucionais de recolhimentos ou conventos e organizavam em parte a vida religiosa do povo pobre, sem presença clerical. A opção pela virgindade podia significar no Brasil machista da época uma opção pela liberdade e uma possibilidade de organização do importante patri- mônio cultural religioso guardado pelos pobres e de preservação do potencial de resistência ao sistema que este patrimônio significava (Hauck, 1980, 112 e Fragoso, 1980, 220). Este patrimônio religioso pode encontrar-se em numerosos livros devocionais que começavam a circular no Brasil durante o século XIX (exemplo: Couto, 1867). ' Os eremitas também conseguiram catalisar a vida religiosa popular e criar organizações de identi- ficação e resistência em torno dos santuários onde viviam provocando grande afluência popular por ocasião das romarias e festas (Azzi, 1977, 240-241). Outra forma de organização religiosa popular, pouco estudada, era a dos quilombos ou redutos de pretos fugidos dos engenhos ou fazendas. A religião praticada nos quilombos era católica e, paradoxal- mente, estes quilombos constituíram meios de evan- gelização em vastas áreas do Brasil. Esta afirmação é baseada em observações repe- tidas por parte de viajantes do século XIX que pene- traram nos sertões da Bahia, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, como Pohl, Saint-Hilaire, Avé-Lalle- mant. Em 1820, Pohl encontra um quilombo numa região mineira e escreve: "Tinham também um sa- cerdote que devia celebrar os serviços religiosos." Saint-Hilaire fala do caso de um negro fugitivo que levou aos indígenas de Mato Grosso, em"lugares nunca tocados pelas missões católicas, os rudimentos do catolicismo". Estamos pois diante de uma forma original de expansão do catolicismo, forma muito negligenciada pelos estudos acerca da expansão das religiões, mas muito freqüente e importante. A religião católica nos quilombos muda de signi- ficado: não significa mais a ideologia da expansão do sistema colonial capitalista, mas sim a resistência e tenacidade de um povo que conseguiu fugir dos enge- nhos e dos arraiais. O catolicismo nos quilombos é alternativo do catolicismo nos engenhos e merece toda a atenção por parte de quem quiser lutar pela libertação dos oprimidos. Este catolicismo tem que ser considerado como uma das correntes do catoli- cismo no Brasil, mesmo hoje, pois representa uma forma importante de anúncio da mensagem aos po- bres em vastas áreas do interior, onde os sacerdotes dificilmente penetravam. A imagem clássica da evan- gelização é a de uma obra de gente de raça branca e de classe privilegiada. O catolicismo nos quilombos, mantido livremente pelos negros, vem apresentar-nos uma imagem menos usual da evangelização. Uma questão relacionada com isso é a seguinte: por que os quilombolas não praticaram o culto afri- cano? Por que eles preferiram o catolicismo? Parece que podemos aduzir as seguintes razões: em primeiro lugar, o catolicismo representava uma tradição reli- giosa já consolidada. Muitos negros já não tiveram mais um contacto vivo com a religião africana. Os santos católicos já lhes eram mais familiares que os orixás africanos. No mucambo do "macaco", em Palmares (o mais famoso dos quilombos da história do Brasil), após a derrota de Zumbi (1695), foi des- coberta uma capela com as três imagens do Menino Jesus, Nossa Senhora da Conceição e São Brás, con- servadas em bom estado, que tinham sido manifes- tadamente objeto de veneração por parte dos quilom- bolas. Em segundo lugar, o catolicismo fazia união entre negros de diversas proveniências africanas. Nos quilombos encontraram-se misturados fugitivos das mais diversas nações africanas. Nenhuma religião africana podia constituir um eló de união religiosa entre eles, só o catolicismo era capaz disso. Por isso não era permitida a existência de lideranças reli- giosas de origem africana nos quilombos, sendo que regularmente sacerdotes católicos de passagem fo- ram "raptados" para fazerem a desobriga e execu- tarem as orações e as missas (Hoornaert, 1974, 133-134). Os cultos clandestinos de origem africana ou indígena constituíram núcleos de preservação de an- tigas organizações religiosas anteriores à coloniza- ção. Estes cultos eram praticados à noite e tolerados pelos senhores escravocratas. Eles não eram formal- mente cristãos, contudo colocam problemas de fundo diante da consciência cristã (Hoornaert, 1977, 395). Sem exagerar, podemos afirmar que estas orga- nizações religiosas já salvaram milhões de pessoas do desespero e da morte física ou moral, pois foram elas, e unicamente elas, que foram capazes de dar sentido — para os vencidos e oprimidos — à nova situação criada a partir das invasões européias do século XVI. As sucessivas ondas de invasões que se seguiram ao famoso "descobrimento" por Pedro Al- vares Cabral atingiram populações sempre mais re- cuadas dentro do território brasileiro e introduziram uma nova população, a africana, que — dentro dos intentos dos invasores — tinha que servir como mão- de-obra escrava. Os invasores imaginaram com relativa faci- lidade um sentido que fosse legitimar suas ações: este sentido era invariavelmente o do progresso, seja o do "Reino de Deus por Portugal" (idéia de Antônio Vieira, SJ, certamente compartilhada pelos missio- nários em geral); seja o da civilização contra a bar- bárie, segundo a mentalidade iluminista, liberal e burguesa que animava os intelectuais do século XIX; seja ainda e sobretudo hoje o da tecnologia e da salvação pela tecnologia pregada pelos mestres atuais positivistas ou simplesmente pragmáticos. Para as vítimas das invasões era muito mais difícil reencontrar o sentido da vida e do mundo após as violências da guerra, das escravização e da humi- lhação trazidas pelos europeus. Tudo parecia desmo- ronar e só a morte parecia uma saída digna diante da situação. Os indígenas trazidos à força aos pés do padre nos aldeamentos não conseguiram dar sentido a esta nova situação. Eles certamente teriam endos- sado as palavras dos sábios e sacerdotes astecas diante dos franciscanos em Tenochtitlan (México) em 1524: "Somos gente vulgar, Somos perdedores, somos mortais Deixem-nos pois já morrer Deixem-nos já perecer , Visto que nossos deuses também morreram." Quando os deuses morrem, o sentido da vida desaparece: resta o suicídio, a morte, o desapare- cimento total. Os africanos trazidos no bojo dos na- vios negreiros encontravam-se diante de uma situação ainda mais desesperada, já que foram despojados de tudo a não ser da vida física. , t No fundo deste desespero tremulava a chama da articulação religiosa: os deuses não tinham morrido, eles também migravam para o exílio (Roger Bastide), eles acompanhavam seus fiéis: apesar de tudo o Bra- sil ficou sendo a terra de Tupã, a terra de Oxalá, a terra dos Mestres da Jurema e dos babalorixás. "Deus conosco": eis o sentido da religião popular. O escravo africano, desnudo, vendido como merca- doria, trouxe consigo seus deuses e com eles o sentido de sua vida. A relação entre religião e sobrevivência é por demais clara para quem estuda a História do Brasil. O que aos olhos dos dominadores parecia ser sincretismo, ignorância e superstição, tinha aos olhos dos dominados um sentido tático (ou, por assim dizer, "artístico"): a ignorância era uma tática de esconde- rijo, o sincretismo um mecanismo de sobrevivência, a superstição uma artimanha de tenacidade e resis- tência. Tudo servia para preservar um sentido da vida e uma interpretação do mundo que desse um pouco de espaço aos pobres e oprimidos. Os pobres não pediam muito: só um limitado espaço para res- pirar e simplesmente continuar a existir. Bastava um gesto, um rito, um pequeno sinal para preservar a esperança. Este sentido das organizações religiosas popu- lares no decorrer da História do Brasil não foi reco- nhecido pela Igreja, que estava comprometida com os intentos dos Estados colonizadores e com os avan- ços do capitalismo triunfante. A Igreja julgava que só a instituição hierárquica era válida, e não conseguia perceber que esta estava pervertida pela sua aliança com o poder colonizador. OS CINCO CICLOS DA EVANGELIZAÇÃO DO BRASIL (/— A evangelização do Brasil nos primeiros três j séculos operou-se em cinco movimentos ou ciclos: o / litorâneo, o sertanejo, o maranhense, o mineiro e o paulista. Concorreram para ela quatro ordens reli- giosas dependentes do Padroado Real (Lisboa): os jesuítas, franciscanos, carmelitas e beneditinos, além de duas ordens que dependiam da De Propaganda ! Fide (Roma): os capuchinhos e oratorianos. Isso em termos muito gerais. Vejamos agora como se articu- laram os movimentos missionários. O ciclo litorâneo Foi no reinado de Dom João III de Portugal (1521-1557) que o Estado português começou a se interessar pelo Brasil como lugar de produção de cana-de-açúcar. Esta produção só se tornou possível na zona litorânea, úmida e tropical. Desta forma nasceu o ciclo econômico da cana-de-açúcar, que se concentrou no Nordeste, entre Natal e Salvador, com centros menores em Vitória do Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Vicente e Santos, no Sul, e São Luís do Maranhão, no Norte. O ciclo do açúcar foi o mais importante da História do Brasil e pode-se dizer que o engenho de açúcar "formou" o Brasil em muitas de suas características básicas. Contudo, para produzir o açúcar era necessário implantar na região novas relações de trabalho que podem resumir-se no escra- vismo colonial (Gorender, 1978). O indígena recusou esta nova relação de trabalhoe assim se tornou impe- rioso importar mão-de-obra da Africa. Daí o caráter negro do ciclo litorâneo. As cidades históricas do litoral brasileiro como Recife, Olinda, Salvador, Rio de Janeiro e São Luís foram as cidades por onde os negros entraram no país. A economia exportadora de açúcar foi baseada numa aliança entre militarismo e religião. O modo pelo qual o Estado português con- seguiu articular esta aliança constitui o grande su- cesso da empresa européia no Brasil nos três primei- ros séculos da colonização. A "religião do açúcar" era vivida através da capela, dos oratórios domés- ticos, da devoção aos santos, finalmente dos ritos do catolicismo tradicional português que passaram a difundir a ideologia do capitalismo agrário implan- tado no país. As práticas desta religião eram ligadas à família patriarcal do engenho e dispensavam em grande parte a presença de sacerdotes. Desta forma 30 Eduardo Hoornaert A Igreja no Brasil-Colonia (1550-1800) 31 1 1 1 ' I 1 i ' 1 j , 1 1 1 l| l 1, ' temos que relativizar bastante a influência dos movi- mentos missionários emanados das ordens religiosas, na formação da mentalidade católica no Brasil. A atividade missionária concentrava-se sobretudo, an- tes de Pombal (1755), na redução dos índios, de seus modos de vida e de trabalho aos modos novos de vida e de trabalho impostos pelo Estado português. 0 movimento missionário mais vigoroso do ciclo litorâneo foi o movimento jesuítico, pioneiro nas Américas. Os jesuítas chegaram em 1549 a Salvador da Bahia e só em 1576 ao México, em 1586 a Tacumán, na Argentina. As experiências de Manuel da Nóbrega (1517-1570) e José de Anchieta (1534- 1597) no litoral brasileiro precederam as de Mateus Ricci (1550-1610) em Macau, na China e Roberto de Nóbili (1577-1656) em Goa, na índia. A Companhia de Jesus tinha poucos anos de vida quando Nóbrega e seus companheiros saíram da Europa. Francisco Xa- vier viajou em lé40, Nóbrega e seus companheiros via- jaram jáem 1549.0 crescimento da província jesuítica no Brasil foi rápido, e o número de brasileiros ia aumentando até a violenta expulsão em 1759: 1549: 6 jesuítas, todos estrangeiros 1574: 110 jesuítas, 14% brasileiros 1610: 165 jesuítas, 17% brasileiros 1654: 170 jesuítas, 34% brasileiros 1698: 304 jesuítas, 37% brasileiros 1732: 362 jesuítas, 45% brasileiros 1757: 474jesuítas, 44% brasileiros (Hoornaert, 1977, 46) j Os jesuítas organizaram a missão através de uma articulação entre os colégios — que ficavam na faixa litorânea — e as aldeias ou aldeamentos que ficavam no interior. Os colégios formavam missio- nários para as aldeias, pelo menos num primeiro momento. No final do século XVI, quando já ficou claro que os aldeamentos resultaram na morte da população indígena, os colégios começaram a fun- cionar como sustentáculo da população branca das vilas litorâneas e de seus escravos negros. O sistema] de aldeamentos iniciou-se em 1553 no Recôncavo Baiano (região em torno de Salvador da Bahia) por f iniciativa do terceiro governador-geral, Mem de Sá, e j provocou de imediato uma enorme diminuição dal; população indígena, testemunhada pelos cronistas \ jesuítas (MB, passim), terminando na sua completa j eliminação do litoral atingido pela cana-de-açúcar. A |; tentativa missionária no sentido de preservar a vida i indígena na região fracassou, essencialmente por 1 causa das novas relações de trabalho impostas pelos] brancos aos indígenas. Analisando este fracasso, os'' jesuítas tentaram organizar ulteriormente — sobre- tudo nos ciclos sertanejo e maranhense — as missões em outros termos, procurando afastar os aldeamen- tos dos centros de colonização, para assim evitar o escravismo colonial, como explicamos alhures nestas páginas. Diante dos africanos a ação jesuítica em par- ticular e missionária em geral nunca foi conce- bida em termos de missão: o africano escravo era julgado de direito pertencer à família patriarcal L encabeçada pelo senhor branco. Nunca houve missão específica dirigida aos negros. A catequese deles foi desde o início realizada em português, isso em con- traste com a catequese indígena feita na "língua geral", uma língua catequética criada pelos jesuítas a partir da língua tupi. Os próprios jesuítas viviam do trabalho dos negros, tanto nos colégios como nos aldeamentos, e entre eles aqueles que ousaram contes- tar esta situação, como Gonçalo Leite (1546-1603) ou Miguel Garcia (1550-1614), foram repatriados (HCJB, II, 227, 229). Ao lado dos jesuítas atuaram os franciscanos. Estes agiram através de um sistema tripartido: con- ventos litorâneos, fazendas, aldeamentos no inte- rior. Os jesuítas também mantinham fazendas, co- mo aliás todos os que dependiam do Padroado: era uma forma de conquistar uma relativa indepen- dência diante do Estado português (Hoornaert, 1977, 36, 37). A ordem franciscana irradiou-se pelo litoral . a partir de Olinda (1585), concentrando-se sobretudo na faixa entre Paraíba e Alagoas, com conventos também em Salvador, Espírito Santo, Rio de Ja- neiro etc. (Willeke, 1974). A atuação franciscana era menos dinâmica do que a dos jesuítas e sobretudo menos contestadora, mas voltada para a "assistência religiosa" dos moradores e de seus escravos na vilas de Olinda, Igaraçu, Itamaracá, Goiana, Salvador, Rio de Janeiro, São Vicente, Santos. Os franciscanos só abordaram raramente o tema da "liberdade dos índios", tão caro aos jesuítas, mas, pelo contrário, animaram freqüentemente as "guerras justas" con- tra os indígenas (por exemplo, em 1560 contra os Caetés) e aceitaram às vezes a administração de aldeamentos que o poder colonizador retirara dos jesuítas, como aconteceu em 1585 na Paraíba (Hoor- naert, 1977, 61). Na segunda metade do século XVIII, em 1767, a ordem franciscana no Brasil ultra- passou o número de mil frades (Willeke, 1974). De- pois desta data ela foi caindo em número e impor- tância, como aliás todas as ordens religiosas no Brasil. Os carmelitas, que entraram no Brasil em 1580, também atuaram através do sistema tripartido: con- vento, fazenda, aldeamento. As fazendas dos car- melitas eram grandes, possuindo escravos em quan- tidade. A irradiação da ordem partiu de Olinda (1583), abrangendo sucessivamente Pernambuco, Paraíba, Maranhão, Pará e Amazonas, no Norte, onde os carmelitas administravam uma rede impor- tante de aldeamentos na primeira parte do século XVIII (Prat, 1940), e no Sul: Bahia, Rio de Janeiro, Santos, Santa Catarina, São Paulo e Minas Gerais. Os beneditinos chegaram em 1581 à Bahia, don- de partiram para o Rio de Janeiro (1586), Olinda (1592), Paraíba (1596) e São Paulo (1598). No Sul tiveram rápida expansão: São Vicente (1643), Santos e Sorocaba (1660), Jundiaí (1668). No Norte a ocu- pação holandesa (1630-1654) foi-lhes desastrosa. Na metade do século XVIII havia cerca de duzentos monges beneditinos no Brasil. O número vai decli- nando depois. A ordem beneditina administrou pou- cos aldeamentos, atuou sobretudo nos mosteiros e nas fazendas. Para sobreviver, ela se apoiava em grande número de escravos negros que eram chama- dos "dos santos" (Luna, 1947). Da atuação missionária de jesuítas, francis- ^;anos, carmelitas e beneditinos, junto aos indígenas I litorâneos, poucos vestígios ficaram. Restaram ape- ! nas alguns minúsculos agrupamentos indígenas que \ sobrevivem até hoje, sobretudo no Nordeste. Uma multidão, que ninguém sabe avaliar atualmente, de- 1 sapareceu por doença, fome, morte violenta, fuga para o interior. Sobre o sangue e a morte dos indí- ) genas brasileiros começou a florescer a cultura colo- \ nial da cana-de-açúcar, baseada no trabalho negro, \ já desde o final do século XVI. O ciclo sertanejo A produção da cana-de-açúcar necessitava de dois sustentáculos: alimentação nos engenhos e es- cravos como mão-de-obra. Assim nasceu o ciclo ser- tanejo, ao longo do rio São Francisco e afluentes, com a demanda de carne de gado como respaldoalimentício de uma cultura de exportação e com a caça aos índios para fornecimento de mão-de-obra em períodos de recesso econômico. Em períodos de prosperidade a mão-de-obra era africana, exigindo um investimento maior eni dinheiro. Acrescentou-se a isso, como em todos os ciclos da História do Brasil,] a eterna corrida atrás do ouro. Naqueles tempos ô caminho para o interior fazia-se por rios navegáveis, e daí proveio a importância do rio São Francisco que é absolutamente central no Brasil dos séculos XVII e XVIII, com as ramificações deste caminho para o Norte, sobretudo no curso do rio Parnaíba e pelo Su- doeste no curso do rio Paranaíba. Daí resultaram os atuais estados do Piauí no Norte, e Goiás e Mato Grosso no Sudoeste. As entradas partiam seja de Pernambuco, seja da Bahia. ^ Nas missões redutivas de índios que acompa- nharam estas entradas atuaram quatro ordens reli- giosas: capuchinhos e oratorianos, jesuítas e fran- ciscanos. Os capuchinhos eram franceses, mais precisa- mente bretões, antes de 1698, italianos depois. Desde 1646 existem capuchinhos atuando no interior de Pernambuco, estabelecendo aos poucos "hospícios" em Olinda, em 1649, Recife (1656) e Rio de Janeiro (1653), para sustentar o trabalho com os índios. Foi sobretudo no sertão do rio São Francisco que os capuchinhos atuaram, até que houve rompimento das relações diplomáticas entre Portugal e França, com consecutiva retirada dos missionários bretões. Estes foram substituídos pelos italianos a partir de 1705, que foram, por sua vez, expulsos do Brasil por decreto de 25 de agosto de 1831. Os capuchinhos eram "missionários apostólicos", isto é, dependiam da congregação romana De Propaganda Fide (fun- dada em 1622 para combater o Padroado Real da Espanha e de Portugal), em oposição aos "missio- nários reais", cujo sustento proveio do Padroado Real estabelecido em Lisboa. As missões capuchi- nhas foram marcadas pela popularidade. Sobretudo os italianos usaram o método das missões ambu- lantes recomendadas pelo Concílio de Trento, de grande aceitação por parte do povo. Famosos missio- nários do período bretão foram Martinho e Bernardo de Nantes; do período italiano: Apolônio de Todi, Clemente de Adorno, Carlos José de Spesia, Anibal de Gênova (Nembro, 1958). Martinho de Nantes teve problemas com os grandes fazendeiros escravocratas da região, pois se opunha à escravização dos indí- genas (Studart, 1902). Os oratorianos que atuaram no interior de Per- nambuco a partir do ano de 1669 eram padres secu- lares portugueses que assumiram quatro aldeias que antes do período holandês (1630-1654) tinham sido confiadas a jesuítas ou franciscanos. O movimento missionário oratoriano é breve: a partir de 1700 os oratorianos ocupam-se principalmente em dar assis- tência religiosa aos moradores e seus escravos em Pernambuco, pois os índios vão desaparecendo tam- bém no sertão (Rubert, 1972). Os franciscanos também atuaram nos sertões do rio São Francisco. Em 1652 a ordem recebeu por parte do rei novas missões situadas entre a Bahia e a Paraíba, mantendo-as até meados do século XIX com população sempre mais reduzida. O período sertanejo das missões franciscanas pode ser enqua- drado nos anos 1679-1863 (Willeke, 1974). Finalmente também os jesuítas atuaram nos ser- toes; aliás, foram os primeiros a entrar neles, pois pelos anos de 1650 já existia um Colégio frente a Penedo, no baixo curso do rio São Francisco. Eles tiveram nas missões sertanejas excelentes missioná- rios como Jacob Roland, José Coelho, João de Bar- ros, Antônio de Oliveira, Luís Vicêncio Mamiani, que estudaram a possibilidade de fundar aldeias em lugares afastados das vilas, fazendas e engenhos (HCJB, VIII e IX). A proximidade entre centro colo- nizador e aldeamento tinha provocado a eliminação das populações indígenas ha faixa litorânea. No ser- tão os indígenas ficaram mais preservados por causa da imensidão da terra. O ciclo sertanejo jesuítico chegou praticamente ao seu fim com a legislação pombalina (1755) e consecutiva expulsão dos jesuítas (1759), transformação de aldeamentos em paró- quias, de missionários em párocos, substituição da "língua geral" (tupi) pela língua portuguesa. Após Pombal o ciclo missionário sertanejo perde sua razão de ser. O ciclo maranhense Este ciclo abrange a missão em toda a região amazônica. Ê denominado maranhense porque — na época — Portugal governava dois Estados distintos na América: o Brasil e o Maranhão. Esta situação ficou até a Independência. Para que o Estado portu- guês pudesse assegurar o comércio exclusivo entre ambas as colônias americanas e a metrópole, era importante controlar dois caminhos fluviais que de- sembocam no Oceano Atlântico: no Sul o Rio da Prata com os rios Uruguai, Paraguai e afluentes, e no Norte o rio Amazonas com afluentes. Articulou-se uma disputa entre a Espanha e Portugal acerca des- tes caminhos estratégicos, a qual foi decidida (pelos anos 1750) a favor de Portugal em relação à Amazô- nia. Desta forma a Amazônia ficou marcada pelo militarismo: os missionários na região funcionavam praticamente como capelães militares, pelo menos no início. A cidade de São Luís do Maranhão foi con- quistada sobre os franceses em 1615, por uma expe- dição na qual iam dois carmelitas como capelães militares. Logo depois os militares estabeleceram um forte em Belém (1616) e assim entraram aos poucos na vasta região fluvial, estabelecendo fortes no Gu- rupá, Pauxis (atual Óbidos), Tapajós (atual Santa- rém), São José do Rio Negro (atual Manaus), além de outros nas cabeceiras dos rios Negro, Branco, Soli- mões, Madeira. Os missionários acompanhavam as expedições militares e se preocupavam em "aldear" as numerosas populações indígenas de maneira — se possível — pacífica. A origem da maioria dos atuais municípios da Amazônia deve ser procurada nesses aldeamentos que se situavam normalmente nas con- fluências de rios ou em lugares onde havia abundân- cia de "drogas do sertão" (salsa, cravo, canela, ca- cau, anil, borracha, tipos de óleo, castanhas) a serem coletadas pelos indígenas. Três ordens religiosas dominavam nas missões amazonenses: os carmelitas (desde 1615), os francis- canos (desde 1617) e os jesuítas (desde 1638). A atuação dinâmica, também aqui, foi a dos jesuítas. Ela provocou desde o início desentendimento entre os missionários e os moradores portugueses que neces- sitavam de indígenas como escravos, pois o Estado maranhense era mais pobre do que o brasileiro e não podia comprar com facilidade escravos africanos. Os jesuítas conseguiram com o tempo leis bastante libe- rais que deram aos missionários amplos poderes para administrar os aldeamentos e desta forma controlar a economia da região, já que ela era baseada na coleta dos produtos naturais ou "drogas do sertão". As "drogas do sertão" eram obtidas não propriamente por trabalho escravo, mas por um sistema de tra- balho típico, chamado "de repartição", amplamente comentado pelo cronista jesuíta João Daniel (ed. 1976, pàssim). Houve diversas crises entre moradores e jesuítas e neste contexto de perseguições contra os jesuítas no Maranhão destacou-se a figura de Antô- nio Vieira, sem dúvida o jesuíta mais famÕlscTda HlstórítTdo Brasil e do Maranhão^De seus longos 89 anos de vida, passou 52 na América, sendo ele por- tuguês: 27 na Bahia (entre a idade de 6 a 33 anos), nove anos no Maranhão (entre 1652. e 1661, o período propriamente missionário de sua vida) e finalmente ainda 16 anos na Bahia, dos seus 73 anos até a data da sua mor te / / Muitos conhecem Vieira apenas como literato ou orador, outros como diplomata. Contudo, ele foi verdadeiramente missionário e mesmo teólogo da missão, pois intuiu em profundidade ps problemas que se colocaram na América diante da consciência cristã. O período "maranhense" de Vieira merece pois a atenção de todos quantos querem entender a ideologia missionária do catolicismo da época. Gomo Vieira entendea sua missão no Maranhão? Podemos dizer que ele entende que Portugal tem uma missão toda especial dada por Deus em relação à América-^o princípio unificador de toda a teologia de Vieira, inclusive em relação aos indígenas que ele encontra na vasta bacia amazônica, é o princípio messiânico tão típico de Portugal da época: o Reino de Deus por Portugal (Hoornaert, 1981, 64). O reino de Portugal é pois identificado com o reino de Deus em marcha. Daj por que o rei português é diferente de outros reis:/'Todos os reis são de Deus, mas os outros reis são de Deus feitos pelos homens: o rei de Portugal é de Deus e feito por Deus e por isso mais propriamente seu." Daí por que o povo português na sua totalidade é um povo missionário: "Os outros homens por instituição divina têm só obrigação de ser católicos: o português tem obrigação de ser cató- lico e de ser apostólico. Os outros cristãos têm obri- gação de crer a fé: o português tem obrigação de a crer e mais de a propagar." A História de Portugal é por si mesma história sagrada, uma espécie de repe- tição da História de IsraeL do povo eleito. Deus age nela de maneira contínuay Portugal é o "seminário" da fé a ser propagada por Africa, Ãsia//América. As caravelas protuguesas são de Deus e nelas vão juntos missionários e soldados, o que não constitui nenhum problema, pois "não só são apóstolos os missionários senão também os soldados e capitães, porque todos vão buscar gentios e trazê-los ao lume da fé e ao grêmio da Igreja". Neste contexto a separação entre Igreja e Estado não "tem sentido, pois poderia enfraquecer a obra missionária^ieira nunca criti- cou o Estado português colonizador como tal, e se limitava a criticar os abusos/mantendo vivo o seu entusiasmo messiânico acerca dos reis de Portugal, embora estes não correspondessem a tão ardentes expressões de adesão messiânica. Este messianismo teológico, centrado no rei de Portugal, é a chave interpretativa dos demais discursos de Vieira, por exemplo em relação aos indígenas. Para ele os indígenas são, por ordem divina, beneficiários de um direito anterior a qualquer outro "direito humano", como o direito à liberdade, à mo- radia, ao casamento, à terra: é o direito à salvação. Este direito é tão sublime que ultrapassa todos os outros: "Portugal está obrigado, não só por caridade mas também por justiça, a procurar efetivamente a conversão dos pagãos, pois estes, por incapacidade ou por ignorância invencível, não têm esta obriga- ção. 7/ O texto é importante, pois indica que este direito soberano e absolutamente primordial não aflora à consciência dos indígenas por "ignorância invencível", quer dizer, ps indígenas são incapazes de procurar por si só o que é mais importante na vida: a salvação. Eles vivem mergulhados na igno- rância, embora não tenham culpa disso; trata-se de Uma ignorância que não pode ser superada ou "ven- cida". À terminologia toda vem da Escolástica, uma escola teológica que dominava o pensamento cristão na Idade Média e até no século XVII, como estes textosUémonstr am. O tema da "ignorância invencível" dos pagãos, muito discutido em Vieira, distancia a sua reflexão teológica das intuições fundamentais do grande teó- logo hispânico Bartolomé de las Casas, dominicano quinhentista, para o qual "Cristo está sendo flage- lado na pessoa dos índios" ("Yo dejo en las índias a Jesucristo azotándolo y afligiéndolo y abofeteándolo y crucificándolo") (Historia de las Indias, III, cap. 138). Os indígenas são, para las Casas, potencial- mente membros do Corpo Místico de Cristo, de for- ma que haja espaços de salvação fora dos quadros da cristandade. Esta intuição de las Casas é absolu- tamente revolucionária para a época e de maneira nenhuma compartilhada por Vieira. Ê uma intuição mística, certamente nascida na meditação do rosto sofrido dos indígenas escravizados e humilhados por trabalhos forçados. Ela leva las Casas a assumir po- sições políticas sempre mais afastadas dos projetos coloniais da época, o que não é de nenhuma forma o caso de Veira, profundamente envolvido pelo entu- siasmo do "Reino de Deus por Portugal"//vieira não enxerga o indígena senão dentro dos quadros men- tais do eurocentrismo da época e não consegue com- preender o'mundo americano como uma revelação autêntica de Deus fora dos quadros elaborados na Europa e na teologia da cristandade ocidental. Se Vieira defende os indígenas, é a partir de uma funda- mental "negatividade", isto é, ele fica sensibilizado pela sua falta de liberdade, de saúde, de bem-estar, pelo seu sofrimento, sua probreza. Mas ele não con- segue atribuir ao indígena em si uma certa positi- vidade: fora do sistema cristão, o índio não tem nenhum valor. Vieira vive tão imbuído e convencido de sua própria ideologia missionária que não enxerga nada fora dela, só ignorância, negatividade, abusos, pecado|[/ Decididamente, a distância entre as intui- ções teológicas de las.Casas e Vieira é muito grande, embora as formulações sejam um tanto flutuantes em ambos. Temos que reconhecer que o Brasil não teve um "Bartolome de las Casas". / / Os famosos sermões de Vieira proferidos no Ma- ranhão diante dos moradores e que algumas vezes foram interpretados como a defesa de uma liberdade absoluta dos índios (o famoso tema da "liberdade dos índios") devem ser compreendidos dentro do quadro total da teologia do jesuíta, na qual o direito à salvação é primário e inquestionável, enquanto os outros, como o direito à liberdade, por exemplo, são apenas secundários e devem ser ordenados segundo o primeiro. Desta forma Vieira sempre defendeu os "descimentos" militares que caçavam índios no inte- rior dos rios amazonenses e na realidade dizimavam as populações indígenas de maneira drástica: o en- volvimento ideológico impediu-lhe um olhar mais sereno do que se estava passando na realidade^ Mesmo assim, os moradores revoltavam-se con- tra Vieira e seus compãhTieíros.pois estes represen- tavam a ideologia do Estado português expansio- nista, enquanto os moradores, inclusive os religiosos de outras ordens, tinham interesses que se distan- ciavam bastante dos interesses da Coroa portuguesa • os moradores queriam "fazer" fumo ou açúcar no Maranhão para poder subsistir em condições bas- tante adversas, e para tal precisavam de "mão-de- obra" indígena. A vida no Maranhão sempre foi dura para os moradores, eles não tiveram condições de comprar negros na Africa como seus colegas per- nambucanos ou baianos, tiveram que apelar para o escravismo colonial indígena tão ardorosamente combatido pelos jesuítas, que optaram pela expe- riência dos aldeamentos afastados dos centros, das vilas e das guarnições militares. A questão funda- mental era, pois, a dos aldeamentos, como veremos, tratando do episódio da expulsão dos jesuítas em 1759. O Estado periférico maranhense, representado pelos moradores articulados em torno das Câmaras Municipais, seja de São Luís do Maranhão, seja de Santa Maria de Belém do Pará, nada mais era do que umâ fronteira, sempre móvel, do sistema mundial capitalista em expansão sobre os vastos espaços ama- zonenses. Foi com este sistema que os jesuítas entra- ram em choque, aó defender a liberdade, mesmo secundária e condicionada, dos indígenas. Os jesuítas, embora integrados na política do Estado português colonizador por uma aliança que não deixava de ser condicional, distanciavam-se bas- tante dos interesses dos demais moradores locais, não tanto por amor aos grupos indígenas em si, mas antes por amor a uma determinada "idéia" de mis- são. Eis a razão dos conflitos entre eles e moradores, e também da expulsão de Vieira em 1661. O período maranhense de Antônio Vieira deve ser interpretado a partir da alternativa criada pelos aldeamentos. O aldeamento, pelo decorrer do tempo, constituiu-se em força organizada, em poder político. Este, sim, tinha condições de tornar-se "um Estado dentro do Estado" ou mesmo um "Estado contra o Estado", e nãoos jesuítas como grupo de religiosos. Os jesuítas foram importantes porque acreditavam na força la- tente da organização de indígenas no bojo de um sistema colonial: o verdadeiramente importante na- quela época, como hoje, era a praxis missionária sensibilizada pela força de resistência dos oprimidos e vencidos e que é capaz de sustar o avanço do capitalismo na América. Entre 1667 e 1678 o clima era particularmente agitado em Belém do Pará, seguindo-se um período de relativa calma, até o momento em que o Estado português, sob o dinâmico Dom José I (1750-1777), articulou uma política maranhense de grandes di- mensões. Esta política é conhecida sob o nome de "legislação pombalina". Ela se chocou inevitavel- mente com o poderio político, econômico e moral dos missionários na região e resultou na expulsão de 155 jesuítas do Maranhão (1759). No atual estado dos estudos acerca desta questão è difícil proferir um juízo definitivo acerca desta expulsão, pois havia de- certo a questão da "liberdade dos índios" da qual os jesuítas eram grandes defensores (Antônio Vieira, João Filipe Bettendorff, Pedro de Pedrosa no final do século XVII, muitos outros no século XVIII: HCJB, VIII e XI). De outro lado as missões tornaram-se muito ricas pelo controle que exerciam sobre o co- mércio de exportação. Numerosos documentos exis- tentes tanto em Roma como em Lisboa ainda preci- sam ser analisados antes de se pretender dizer algo de definitivo sobre esta importante questão, pois a expulsão dos jesuítas do Maranhão está no início de toda uma política antijesuítica por parte dos Estados europeus colonizadores. A interpretação da expulsão dos jesuítas por americanistas europeus, como Magnus Mõrner, Ri- chard Konetzke, Charles Boxer, Pierre Chaunu, não consegue convencer-nos. Estes autores apresen- tam comumente três tipos de explicação da ação drástica de Dom José I, expulsando em 1759 os jesuí- tas do Maranhão e do Brasil (115 jesuítas saíram do Maranhão, 119 de Pernambuco, 133 de Salvador da Bahia, 107 do Rio de Janeiro), e das ações concate- nadas que seguiram a ação de Portugal: expulsão das colônias espanholas em 1767, das reduções do Para- guai em 1768, dissolução da Companhia de Jesus (que na época tinha 22000 membros) pelo breve "Dominus ac Redemptor" do papa Clemente XIV em 1773. As explicações são as seguintes: Os jesuítas, por sua organização interna, não podiam articular-se dentro da estrutura estatal rega- lista de um absolutismo ilustrado. A estrutura cen- tralizadora em torno de Roma, própria dos jesuítas, não combinava com os novos Estados nacionais e com o regalismo neles vigente. Os Estados, comba- tendo a Companhia de Jesus, estavam ao mesmo tempo combatendo Roma e o clericalismo em geral (Prien, 1978, 348). Os jesuítas eram defensores de um dogmatismo filosófico escolástico que mal combinava com os avanços das ciências positivas baseadas na análise de dados experimentados. O ensino deles era antiquado para a época, não fomentava os estudos das novas ciências modernas. Nas colônias, os jesuítas mantinham uma espé- cie de teocracia que não coadunava com os avanços da modernidade e concentraram as riquezas colo- niais nas suas mãos, prejudicando os moradores locais e os administradores das colônias. Estes argumentos não deixam de ter razão, mas ' só em parte, pois deixam de lado o que nos parece primordial nesta questão, pelo menos em relação ao Maranhão e ao Brasil: a estratégia dos aldeamentos. Os aldeamentos concatenados por todo o interior da América, da Califórnia até o Paraguai, represen- tavam uma grande concentração de população orga- nizada e mesmo armada. Esta população não falava português, no caso da América portuguesa, mas uma "língua geral" de procedência tupi. Ela era admi- nistrada por missionários e as terras onde morava lhe eram próprias, cedidas pelos reis de Espanha ou Portugal por documentos válidos. Os aldeamentos eram, pois, do ponto de vista de uma geopolítica colonialista, eventuais "focos" de resistência arma- da, com excelente sistema de comunicação através . dos missionários. Através dos aldeamentos, o destino | da América podia ter sido diferente, não mais colo- nial. O dinamismo interno dos aldeamentos que se revelou de maneira mais perfeita na experiencia das reduções do Paraguai estava presente nas outras experiências, na Califórnia, no Orinoco (Venezuela), no planalto andino, entre Chiquitos e Mojos da Bolí- via, na vasta área amazônica, no litoral brasileiro. As interpretações correntes acerca da expulsão dos je- suítas repousam finalmente no postulado do colonia- lismo: a América não se compreende senão coloni- zada e integrada no capitalismo como área periférica explorada. Esta visão parece ser participada pelos americanistas citados e por outros, mesmo brasi- leiros, que estudaram o assunto. A questão que resultou na expulsão dos jesuítas não é, pois, basicamente, nem a do ensino ultrapas- sado e autoritário, nem a da relação com Roma, nem a da riqueza: é a do destino da América. Baseado na documentação que nos é acessível acerca da história da Amazônia na segunda parte do século XVII e primeira parte do século XVIII, podemos afirmar que a luta entre religiosos, sobretudo jesuítas, e mora- dores colonistas era o acontecimento em torno do qual todos os demais gravitavam. A abolição da Com- panhia de Jesus no Maranhão e no Pará é conse- qüência de uma longa oposição entre ela e os mora- dores locais por causa da questão da mão-de-obra indígena, não apenas por causa da riqueza jesuítica ou das "drogas do sertão". A questão era a da mão- de-obra, da escravização dos indígenas ou sua utili- zação pelo sistema de "repartição". (Acerca deste sistema, veja o cronista João Daniel.) Foi porque os missionários se afastaram de uma das leis básicas do capitalismo, a lei da divisão do trabalho e da explo- ração pelo trabalho, que eles foram hostilizados. Es- tes acontecimentos, restritos ao Pará e ao Maranhão, são contudo importantes para a história moderna e contemporânea em geral, pois mostram a incompa- tibilidade entre capitalismo e defesa de um direito humano básico: o direito a não ser explorado econo^ micamente por outro. A ciu^s^&AM^Ã^Ê^l~49_gue nunca e por isso é importante analisar as verdadeiras / causas da expulsão dos jesuítas em 1759. Esta expul- são, nos ensina que evangelho e capitalismo não an- dam j i e mãos. dadas, pois defendem teses absolu- tamente irredutíveis. Para o capitalismo, o indígena não é senão mão-de-õbrX real ou potencial. Para o evangelho, ele é pessoa humana com toda a digni- dade.-de filho de Deus. A oposição é irreconciliável^ A experiência da expulsão levou alguns jesuítas a interpretar a história da Igreja de maneira dife- rente. Assim o cronista Matias Rodrigues (1729- 1780), ele mesmo vítima da perseguição de Pombal, foi o primeiro a apresentar a história da Igreja no Brasil como a história dé uma perseguição, numa época em que toda a historiografia católica estava imbuída de profundo triunfalismo. Seus escritos acerca da perseguição no Maranhão e no Pará e acerca da perseguição que sofreu o famoso padre Gabriel Malagrida, ainda não foram publicados (Hoornaert, 1977, 115). Dois intelectuais do século passado esboçaram a mesma interpretação da Histó- 50 / \ Eduardo Hoornaert I DR. MARTINHO J MTrpn \ rla^o Brasil: Cándido-Mendos de Almeida (Introdu- ç¿V%t Direito Civil-eclesiá§iio Brasileiro) e Joaquim Nat^2Íb (p 4èo/iWom$nííJp/Eles demonstraram que a IgrejiKae^'Btoil 'gojprflal viveu numa espécie de ''catividade baoiioñíca''. Atualmente renascem as tentativas de uma historiografia eclesial menos triun- falista. Mas na realidade são os pobres que conser- vam á visão da história como a de uma perseguição, nos tesouros da tradição oral que eles guardam e que são de tão difícil entendimento pelos burgueses. Os carmelitas foram importantes pelas missões do rio Negro e Solimões, na primeira parte do século XVIII (Prat,1940). Alguns aspectos, como o de sua relação com a questão das fronteiras entre o Império português e o castelhano, o de sua implicação na "guerra de Ajuricaba" (1723-1727) e o de sua atitude diante do regime de trabalho de "repartição", por parte dos indígenas, necessitam de ulteriores estu- dos (Wermers, 1965). Aqui só temos oportunidade de apontar um ou dois aspectos do ciclo missionário carmelitano (1693- 1755) na Amazônia, tão importante para compreen- der a história do atual estado do Amazonas e inclu- sive para intuir certas constantes na expansão do capitalismo mundial, pois a Amazônia é exemplo claro de uma região marcada pelos avanços de um tipo de capitalismo particularmente "selvagem". O ciclo missionário carmelitano não começa por impulso missionário "puro", mas é conseqüência de uma política deliberada por parte do Estado colo- nialista português à procura da consolidação de suas fronteiras. As primeiras potências representativas do sistema mundial capitalista, como sejam Portugal e Espanha, tinham na América três áreas-chave, áreas de acesso às zonas produtivas. A primeira área era o Caribe, que significava para a Espanha a porta de entrada para o México e o Peru através do Panamá. Uma segunda zona de acesso era constituída pelo Rio da Prata, que era uma área-chave que Portugal, apesar de repetidos esforços, nunca conseguiu con- trolar: ela franqueava o acesso às minas de Potosi e toda a região sul da América. Uma terceira porta de entrada era a Amazônia. Durante o século XVIII houve muita rivalidade entre as potências européias da época em torno da embocadura da Amazônia: entre a Holanda, a França, a Inglaterra e Portugal. Portugal conseguiu controlar a embocadura a partir do início do século XVIII, mas teve que enfrentar a rivalidade, muito mais perigosa, da Espanha no inte- rior dos vastos espaços abertos pelos rios amazô- nicos. A partir de Quito (Equador), a Espanha pro- curou penetrar no vale amazônico para torná-lo uma via de acesso para toda a região andina. O capita- lismo interessou-se pela Amazônia como área estra- tégica, não em primeiro lugar como área produtiva. As "drogas do sertão" amazônico nunca represen- taram um valor que se possa comparar com o açúcar do Nordeste, o ouro de Minas Gerais, o café. Pode- mos dizer que até recentemente a Amazônia repre- sentava para o sistema mundial capitalista uma área de importância sobretudo geopolítica, não prima- riamente econômica. Dentro desta perspectiva o Estado português procurou firmar suas fronteiras amazônicas primei- ramente pela construção de uma fortaleza, chamada de São José do Rio Negro (atual cidade de Manaus), e depois pelo estabelecimento de mais quatro forta- lezas: uma no rio Madeira, na boca do Guaporé- Mamoré, o forte Príncipe da Beira; outra no alto rio Negro, São José de Maratibanas; uma terceira no alto rio Branco, São Joaquim; uma quarta, São Francisco Xavier de Tabatinga, no alto rio Soli- mões, na boca do Javari. Em três destas quatro forta- lezas os carmelitas estavam presentes: nas do rio Solimões e do rio Negro. A eles foi confiada da tarefa de cuidar das missões ao longo destes imensos rios. O rei português certamente estava recebendo queixas acerca do abandono em que se encontravam os aldeamentos amazônicos e assim decretou uma "nova repartição das missões" (19 de março de 1693), segundo a qual os aldeamentos são "repar- tidos" entre jesuítas, mercedários, franciscanos, carmelitas. Os carmelitas não estavam propriamente engajados na obra das missões e ficavam nos seus conventos de São Luís, Alcântara, Belém e Gurupá, mas tiveram que atender às ordens emanadas da "Mesa da Consciência e Ordens", e se ocupar "no sentido da Igreja e de Sua Majestade". Isso não significa que os religiosos hão estivessem imbuídos de espírito missionário, mas simplesmente que era o Estado português expansionista que estruturava a obra missionária. Não se pode esperar deste tipo de engajamento missionário uma ação contrária aos interesses do Estado. O ciclo missionário carmelitano na Amazônia, que durou 62 anos, até o alvará de 7 de junho de 1755, quando o governo temporal das missões foi tirado das mãos dos religiosos, é caracterizado por duas constantes, que ilustram certas leis do avanço da capitalismo sobre o território americano: a da segurança das fronteiras conflitantes entre Império espanhol e Império lusitano e a da consolidação de um sistema de trabalho que explorasse o indígena a serviço do branco colonizador. A questão da segurança das fronteiras resultou no choque entre religiosos: de um lado os que depen- diam da Espanha através de Quito e do outro lado os que dependiam do Padroado lusitano através de Be- lém ou São Luís. Houve um jesuíta autríaco, que estava a serviço da Coroa espanhola, Samuel Fritz, que tinha estendido sua ação missionária pelo rio Solimões até Tefé, talvez até Coari, evangelizando os índios omaguas. Ele escreveu suas peripécias com os religiosos de dependência portuguesa no seu famoso Diário (1689-1723: os anos 1689-1692 foram publi- cados em português; o resto só existe em espanhol) (Hoornaert, 1980, 323). Desde 1695 Fritz relata a presença de portugueses "em busca de cacau e cati- vos" pelo Solimões: sempre são militares acompa- nhados de missionários carmelitas.- As anotações do Diário respiram um clima de medo e tensão entre os religiosos, que pertencem à mesma Igreja católica, mas servem a impérios conflitantes. Este episódio mostra com clareza qual era a função real das mis- 54 Eduardo soes e como elas eram "orgânicas" dentro do estabe- lecimento do sistema capitalista na América. Quanto à consolidação do sistema de trabalho houve fatos importantes sobretudo no rio Negro. A partir da segunda parte do século XVII o rio Negro tinha a fama de ser o rio mais povoado do Alto Amazonas: lá moravam os manaus. Foi por este motivo que a fortaleza São José foi fundada na barra ou na boca do rio Negro>A partir desta fortaleza organizaram-se as expedições para fornecer mão-de- obra para "fazer" as "drogas do sertão": anil, bor- racha, sobretudo cacau. Episódio marcante nesta história foi o da guerra de Ajuricaba (1723-1727), da qual estranhamente os documentos carmelitas co- nhecidos não falain nada ou praticamente nada. Esta guerra foi declarada pelo próprio rei Dom João V sob o pretexto de que o líder Ajuricaba tentasse aliança com os holandeses contra os portugueses. A razão ver- dadeira da guerra foi outra: Ajuricaba não aceitava as novas relações de trabalho impostas pelos europeus. O colono europeu não conseguiu encarar o indígena senão como trabalhador a seu serviço. Caso o indí- gena não se acomodasse a trabalhar a serviço do branco, ele era considerado índio brabo, selvagem ignorante e bárbaro. Na prática as relações de tra- balho na Amazônia, antes do ciclo agrário do açúcar, do fumo e do gado, eram baseadas em trabalho compulsório rotativo mediante pagamento prévio. O Regimento das Missões de 1686 estabeleceu que os índios entre treze e cinqüenta anos podiam ser requi- sitados a trabalharem a serviço dos brancos, na co- lheita das "drogas do sertão", durante um semestre mediante o pagamento de salários fixos: doze varas de algodão de pano grosso, equivalentes a duas varas por mês (uma vara media mais ou menos 1,10 m). O trabalho era extremamente extenuante e consistia em remar durante meses sem interrupção: os índios não agüentavam mais do que dois ou três "semestres", morriam de esgotamento, também por falta de ali- mentação adequada: o barco só levava mesmo a farinha (veja João Daniel, II, 57). Contudo, normal- mente a situação ainda era pior, pois não havia ne- nhum controle eficaz do sistema de trabalho imposto aos índios. Ainda no século XIX (em 1866) escreve Tavares Bastos: "Desde tempos imemoriais, servem- se os brancos dos indígenas, que recolhem em suas casas e educam nos hábitos da sociedade... No Soli- mões há mercadantes ou regatõesque, carregando nas canoas machados, missangas, aguardente, e tc , sobem os rios desertos e a troco destes objetos ou à força conseguem trazer índios selvagens aos povoados do litoral, onde os cedem ou vendem a quem os deseja... Dizem que, no Alto Japurá, se compra um índio por um machado: os próprios pais os vendem aos traficantes" (cit. J. Gorender, 1978, 474). Eis a grande miséria do capitalismo: a de se aproveitar de tudo para fazer lucro, a de cobiçar a força de trabalho de seus iguais para enriquecer. O sistema de trabalho compulsório, seja. rotativo ou não, seja semestral ou não, seja organizado ou não, era o mais das vezes mais penoso que as condições nos engenhos de açúcar, nos arraiais de ouro e dia- mante, nas fazendas de café. Os pobres índios mor- riam após pouco tempo de trabalho compulsório e esta morte, conseqüência direta da implantação do capitalismo, é uma das causas primárias — ao lado das doenças e das guerras — do extermínio dos numerosos povos amazônicos. Foi contra este sistema de trabalho que Ajuri- caba (ou a guerra por ele simbolizada) se revoltara: isso se depreende de um documento acerca da guerra existente no arquivo público do Pará (Hoornaert, 1980, 325), que revela que Ajuricaba não aceitava os resgates: ora, os resgates eram exatamente incursões militares à procura de mão-de-obra. O discurso ofi- cial, contudo, procurou deslocar a questão para o tema da "segurança nacional" e insistiu no fato de que Ajuricaba estaria fazendo aliança com os holan- deses, pelo Rio Branco, ameaçando a hegemonia portuguesa na região. O discurso da "segurança na- cional", já naquele tempo, era um discurso de des- vio: foi baseado nele que Dom João V decretou uma "guerra justa" contra os manaus do rio Negro, que resultou na captura de Ajuricaba e dois mil guer- reiros e abriu definitivamente o rio Negro para caça à mão-de-obra indígena. Os carmelitas, querendo ou não, estavam enga- jados neste drama: os missionários tinham que entre- gar uma parte dos indígenas de suas missões para estes trabalhos forçados, de sorte que o cronista João Daniel afirmava: "Nas missões portuguesas o mesmo é fazerem-se cristãos os índios que ficarem obrigados a servirem aos brancos e europeus... Praticados por 58 Eduardo Hoornaert A Igreja no Brasil-Colônia (1550-1800) 59 algum missionário para se aldearem e fazerem cris- tãos é o mesmo obrigarem-se a servir aos mesmos brancos" (João Daniel, II, 167). 0 resultado era que as ordens religiosas, sobretudo a carmelitana, fica- ram sempre mais ricas na Amazônia e ostentaram em Belém do Pará magníficos conventos e grandiosas igrejas, enquanto os índios ficaram sempre mais mi- seráveis. As ordens religiosas ficaram mais ricas do que os moradores, o que provocou em parte as refor- mas pombalinas na região. Resultado triste deste conjunto de elementos (tropas de resgate, sistema de,"repartição" ou tra- balho rotativo compulsório, doenças ou contágios, discriminação cultural) foi o despovoamento do rio Negro e do Solimões atestado já por João Daniel (entre 1759 e 1776) em numerosas páginas do seu Tesouro Descoberto do Máximo Rio Amazonas (I, 296; II, 271, 278, 349). 0 ciclo missionário carmelitano foi concomitante com o violento processo de despovoa- mento dos rios amazônicos além da atual cidade de Manaus e colaborou com este processo. Não foi, pois, um episódio glorioso nem triunfal da expansão do cristianismo na América: antes foi um processo triste de extermínio de povos inteiros que habitavam vastas regiões. Claro que,estas colocações têm que ser mati- zadas pela atuação que certos missionários, especial- mente jesuítas, tiveram na Amazônia, e que é anali- sada alhures nestas páginas, quando se trata da questão da expulsão dos jesuítas. Os franciscanos que atuaram na Amazônia per- < tenciam a três unidades diferentes: a da Piedade, portuguesa, chamada pelo rei em 1693, a da Con- ceição, portuguesa, chamada em 1706, e a de Santo Antônio, portuguesa, chamada em 1617. Também os mercedários, de nacionalidade es- panhola, participaram das missões amazonenses a partir de um imponente convento em Belém. 0 rei gastou grandes somas no estabelecimento destas mis- sões, repartidas da maneira seguinte: jesuítas na margem direita do Amazonas, franciscanos e merce- dários na margem esquerda, carmelitas no alto Ama- zonas, a partir de São José do Rio Negro (atual Manaus). 0 ciclo maranhense foi o movimento mais im- portante da história da Igreja no Brasil nos três primeiros séculos, por diversas razões. Primeira- mente pelo número dos indígenas que foram vítimas do sistema colonial: Antônio Vieira fala em dois milhões de indígenas mortos entre 1615 e 1652, só na região entre São Luís e Gurupá (Hoornaert, 1977, 405), enquanto João Daniel menciona três milhões de indígenas deportados na região do rio Negro (Da- niel, ed. 1976, I, 232). Em segundo lugar: a contes- tação do sistema colonial por parte da missão nunca foi tão forte como no período maranhense, sobretudo na primeira parte do século XVIII. A expulsão dos anos 1759-1760 atingiu 629 jesuítas, 474 do Brasil e 155 do Maranhão. 0 sentido desta expulsão ultra- passa os limitados espaços do Maranhão e mesmo do Brasil e da América Latina, e se erige em fato de im- portância universal. Em terceiro lugar: a experiên- > cia maranhense esboçou um novo modelo de Igreja que vem a se manifestar com mais vigor no século XX, o de uma Igreja não mais aliada ao Estado mas sim ao povo, uma Igreja popular. O ciclo mineiro O ciclo missionário mineiro é diferente de todos os outros, por ser formado por movimentos leigos e não clericais, devido à política desenvolvida pelo Es- tado português em relação às áreas de mineração no Brasil. Os atuais estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul são formados pela corrida do ouro que agitava todo o império colonial português na primeira parte do século XVIII. As vilas mais importantes são: Vila Rica, atualmente Ouro Preto (1695); Vila Real, atualmente Cuiabá (1713); Vila Boa, atualmente Goiás (1725); Tyuco, atualmente Diamantina (1729); Vila Bela, atualmente Mato Grosso (1752). Este ciclo mineiro no Brasil deu gran- de impulso ao centro do sistema capitalista, então já controlado pelo Estado inglês (Boxer). Ele necessi- tava de extrema centralização do escoamento de ouro e diamantes para o Estado português no comércio oficial e de uma luta constante contra o contrabando, o que explica fundamentalmente a proibição da en- trada de religiosos nas Minas (1711) e a retirada dos jesuítas que já estavam estabelecidos em Ribeirão do Carmo, atualmente Mariana (1721). O Estado por- tuguês temia a relativa independência das ordens religiosas. Desta forma o ciclo mineiro é formado pelas "ordens terceiras", expressões leigas calcadas sobre o modelo clerical. O período mineiro caracte- riza-se por igrejas sem conventos. Assim encontra- mos em todas as vilas mineiras as clássicas igrejas de São Francisco, do Carmo, da Conceição, das Mercês. Acrescentam-se as igrejas das ordens terceiras dos pretos, como sejam as do Rosário dos Pretos, de Santa Ifigênia ou São Benedito. Os jesuítas não for- mavam ordens terceiras, o que explica que a influên- cia jesuítica, mais dinâmica e menos tradicionalista, nas regiões mineiras tenha sido mínima. Contudo, o que mais pesou na formação do catolicismo mineiro foi o caráter altamente repressivo da sociedade mi- neira. O prédio mais imponente das vilas mineiras foi o da cadeia conjugada com a Câmara Municipal. Todas as vilas mantinham as cerimônias lúgubres da flagelação de escravos no pelourinho, da execução na forca, da contínua vigilância por parte dos "dragões" ou soldados que impunham o "toque de recolher": todos os habitantes deviam recolher-se a casa a uma determinada hora da noite. Antônio Vieira caracterizou corretamente o ci- clo missionário mineiro ao afirmar que todo portu- guês, ao vir ao Brasil, tinha que ser missionário:
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