Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Coleção Tudo é História Série Nossa América / "/~i ~~ 't.' <:t:::> "'~, Escrito pelo historiador Herbert ~'\ ~\. j)., ein, este livro apresenta a' hisiôrui de uma sociedade 'moldada na luta secular entre a cultura dos in.dics ~ idinos e a cultura européia. rios conquistadores. Combinando informação e análise, o autor produz uma siruese brilhante do j'rucesso que começa C07;l a destruição do im.pério inca, passa pela consolidaçãc do dominio . ". espanhol e deságua no .i.rgimentá da Bolívia como nação independente. ill LBN: 85~11-02137-" f,.' R 1'/ ·oo tina .,Jo período pré-incaico (1 independência J ierbert S. Klein tudo é história nossa américa • Sucre ..! • Potosí -, editora brasilien3e 137 Coleção Tudo é História Escravidão Mricana na América Latina e no Caribe Herbert S. Klein Mro-América A escravidão no Novo Mundo Ciro Flamarion Cardoso Estrutura e Dinâmica do Antigo Sistema Colonial Fernando A. Novais A América Pré-Colombiana Ciro Flamarion Cardoso As Independências na América Latina Leon Pomer o Militarismo na América Latina Clóvis Rossi " A Rebelião de Tupac Amaru Katia Gerab e Maria A. Resende • Série Nossa América Chile (1818-1990) Da independência à redemocratiZllfiío Emir Sader ! Uruguai (1500-1990) ! A República Moderada Gerardo Caetano Hargain e José Rilla Manta Herbert Sol Klein BOLÍVIA-- Do período pré-incaico à independência Tradução: k Alberto Alexandre Martins e Maria da Glória P. Kok 'illHBO: 119677 ---SBD- FFLCIf;U& I I editora brasiliense j- Copyright © by Herbert S. Klein, 1991. Título original: History of Colonial Bolivia Copyright © da tradução brasileira: Editora Brasiliense S.A. Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada, reproduz ida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor. ~()5 í~~~ \J l~::t' I;/-ISBN:A35-11-02137-XPrimeira edição, 1991 Preparação de originais: Alice [unqueira Revisão: Carmem T. S. Cosia e Ana Maria M. Barbosa Capa: Qu4tro Design - [uliana Vasconce1l6s e Óscar Farrerons DEDALUS - Acervo - FFLCH-HI Bolivia:905 T912 v.137 11111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111 21200041177 Jp0.Js . Rua da Consolação, 2697 01416 São Paulo SP Fone (011) 881-3066 - Fax 881-9980 Telex: (11) 33271 DBLM BR IMPRESSO NO BRASIL . SUMÁRIO Geografia e Civilizações Pré-Colombianas . o o o •• A Criação de uma Sociedade Colonial .. o •• o • o o A Última Fase do Período Colonial: Crise e Crescimento .. o o o o o •• o o •• o ••• o o •••• A Revolução e a Criação do . Estado Nacional ~. , . , . o o : " • o o' •• , o ••• o ••••• Bolívia em Números . , .... o •••••• o o ••• o , o o o o Indicações para Leitura. o o o o •• o o o o o o ••• o o o o • o Sobre o Autor . o o •• o o o • o o o •• o o o o • o ••• o o o •• o • 7 27 47 58 74 76 81 ,. A evolução histórica da sociedade boliviana não po- de ser compreendida sem o conhecimento do contexto ambiental em que ocorreu, pois, em muitos aspectos, a Bolívia representa um paradoxo no quadro do desenvol- vimento latino-americano. Apesar de sua localização pró- xima ao Equador, a Bolívia tem poucos traços comuns aos trópicos. Desde os primeiros assentamentos humanos até os dias de hoje, a maior parte de sua gente tem vivido a uma altitude de 1 500 a 4 000 metros acima do nível do mar e as culturas mais avançadas nasceram a 3 500 metros ou mais. Embora não seja um ambiente totalmente hostil, os planaltos têm solos mais pobres e climas muito mais secos e frios, enfrentando adversidades que não atin- gem as- planícies. Essa ecologia exigiu a domesticação de plantas e animais próprios aos planaltos e teve um . GEOGRAFIA E CIVILIZAÇOES PRÉ-COLOMBIANAS 8 Herbert S. Klein impacto dramático sobre a psicologia humana, já que as populações do planalto foram forçadas a se adaptar ao limitado suprimento de oxigênio e a níveis de pressão atmosférica inuito desiguais. Foi no altiplano, ou alto platô interandino - que se estende do sul do que"hoje é o Peru à fronteira norte do que hoje é a Argentina -, que a batata e a quina foram domesticadas, e a lhama, a alpaca e a vicunha, os camelídeos americanos, se desenvolveram. Entre os gran- des rebanhos e o intenso plantio de tubérculos, as popu- lações do altiplano foram capazes de produzir víveres e lãs o suficiente para sua própria sobrevivência e gerar excedentes para a troca por peixes, frutas, condimentos, milho e coca, produzidos na costa dó Pacífico e vales tropicais e semitropicais, a leste. O altiplano continha também uma das maiores jazidas de minérios do mundo, especialmente prata e estanho. Os Únicos minerais ou hidrocarbonetos que a Bolívia não possuía eram carvão, bauxita, cromo, platina e pedras preciosas. Essa extraordinária herança mineral, apenas modes- tamente explorada nos tempos pré-colombianos, viria a se tomar, após a conquista européia, a base para a inserção da Bolívia na economia mundial. Também a metalurgia dos povos do planalto constituiu importante item de co- mércio entre eles e as civilizações da costa peruana. Foi na metalurgia e na 'criação de uma singular ecologia que Bolívia 9 B o Li v I A: Topografia e Ecologia ~j~j PARAGUAI .lrwTqqrUicu.Ahi_ [] Cofdilheiradof;Andc. • Va1esC yun,/U • TerfllbalxulrOpkal. 7f1" •• ir 61" 66° 65° 64° 63" 61!' 61° 60" 59" 58'" S,. ~ 14 VAUSEltING.U .r.. TElt.MSlA1XASnOACAJS -I SIIIUalO' c_" É quase desnecessário dizer 'lue as divisões políticas que aparecem no mapa não existiamno período antenor à conquista espanhola, tampoucono período colonial. A rigor, elas só foram consolidadas na década de 1930. (N.E.) 111 Herbert S. Klein 11 as primeiras populações bolivianas revelaram sua maior originalidade. Dada a extraordinária importância dos minerais, das culturas de tubérculos e dos produtos animais na econo- mia andina, os planaltos permaneceram como zona pri- mordial de exploração para os povos da Bolívia anteriores à conquista. Mas as populações do planalto, tolhidas pela escassez de recursos, eram forçadas a interagir com os povos do vale e das planícies do Pacífico, a fim de obter produtos alimentícios complementares. A chamada "in- tegração ecológica vertical" foi o princípio organizador da adaptação humana nos Andes. Colonos do altiplano '1ram encontrados em todos os vales a leste assim como também a oeste, nas costas do Pacífico. Um intenso co- mércio inter-regional foi fundamental para a sobrevivên- cia humana. Durante séculos de expansão, transformações e conquista européia, os povos do planalto mantiveram essa integração ecológica vertical intacta e combateram todas as tentativas de isolar o altiplano de suas fontes de comércio. Bolívia e Peru: um passado comum Os Andes bolivianos tinham muito em comum com toda a região andina, da qual formavam o setor sul. Nos planaltos central e sul do que é hoje o Peru, uma geografia parecida criou padrões similares de integração. Uma his- Bolívia tória cultural comum, que remontava à chegada do ho- mem aos Andes, contribuía também para dar unidade à região. As populações do planalto e as da costa do Pa- cífico subsistiam com base na caça e na coleta e se or- ganizavam em assentamentos seminômades. A partir do fim do último período glacial (cerca de 8000 a.C), ini- ciou-se a domesticação de plantas e animais, mas a agri- cultura e o pastoreio só se tomaram as formas predomi- nantes de subsistência depois de 6 000 anos. Em tomo de 2500 a.c., nos planaltos da região ve- rificou-se a sedentarização em aldeias agrícolas. Assen- tamentos permanentes, aumento da densidade populacio- nal e uma organização social mais complexa, com múl- tiplas comunidades submetidas ao mesmo governo, tor- naram-se a norma. Nos mil anos seguintes, tanto a costa quanto os planaltos experimentaram o ritmo progressivo da vida agrícola. Grandes assentamentos urbanos também se estabeleceram nesse período. Embora exista um debate considerável entre os arqueólogos sobre a razão pela qual os camponeses dispuseram-se a sacrificar parte de seus excedentespara criar "cidades", admite-se que a religião tenha dado o primeiro grande impulso, já que a maioria dos primeiros assentamentos urbanos possuíam sítios re- ligiosos e não eram fortificados. Há também os que acre- ditam que em alguns vales próximos à costa do Pacífico, de solo muito seco, os camponeses possam ter sido le- vados a criar centros urbanos e governos complexos pela 12 Herbert S. Klein Bolívia 13 Por volta de 800 a.C., o desenvolvimento da cultura chavín acarretou transformações em toda a área andina .. Essa cultura representou a primeira organização abran-' gendo múltiplos estados. Marcou um período de amplo emprego de ouro e produtos têxteis, assim corno de de- senvolvimento de técnicas avançadas. de cerâmica e ur- banização. Importantes centros cerimoniais foram cons- truídos ao longo da costa e nos planaltos e quase todos os vales e platôs tomaram-se permanentemente povoados. Os povos dos planaltos do Sul concentravam seus esforços na metalurgia, incluindo ligas refinadas. Embora a cultura chavín não tenha chegado tão ao sul, a ponto necessidade de aproveitar 'suprimentos de água para a irrigação. A cerâmica começou a ser empregada tardiamente (por volta de 1 800 a.C). a uso da cerâmica, ao lado do desenvolvimento da tecnologia do metal, são indicações da existência de estados maiores e de populações mais densas. Em anos recentes, nos planaltos peruanos foram encontradas. peças de cobre da cultura wankarini, da re- gião próxima a Oruro, que datam de 1200 a I 000 a.Ci; trabalhos em cerâmica desse mesmo período foram descobertos em todos os principais sítios da costa e dos planaltos. A cultura Chavín de alcançar o Lago Titicaca, uma cultura posterior e con- tígua, conhecida como paracas, influenciou de fato a costa sul do lago e as áreas de planalto circunvizinhas. Por volta de 100 a.C., o estilo chavín desapareceu da área andina, sendo substituído pelos vigorosos estilos locais, circunscritos a um determinado vale ou a uma área de drenagem. Na costa, floresceram as culturas moche e naz- ca. Nos planaltos, a cultura waru se desenvolveu próxima a Cuzco, e um grande centro apareceu na pequena aldeia de Tiahuanaco, ao sul do Lago Titicaca. Essas culturas assistiram à domesticação final de todas as plantas e ani- mais conhecidos e ao pleno desenvolvimento da tecno- logia peruana. Nos planaltos do que hoje é a Bolívia, foi descoberto o bronze, liga feita de cobre e estanho; con- tudo, por não ter sido empregado na guerra ou na agri- cultura, ao contrário do que ocorreu na Eurásia, teve pou- co impacto tecnológico. Tiahuanaco a crescimento de uma importante civilização em Tiahuanaco, a partir do ano 100 d.C., representou um . grande desenvolvimento na história boliviana. Tiahuana- co foi uma avançada colônia agrícola, que produziu tam- bém objetos de cerâmica e metal. No entanto, foi só após 600 a.C, que sua influência começou a se propagar, Sua cultura e estilos artísticos típicos dominaram as regiões ". ~-g- I I. 11 14 Herbert S. Klein 15 andinas e a costa peruana desde aproximadamente o sé- culo VII até o século XIII. Dos grandes impérios andinos pré-colombianos o que se localizou mais ao sul foi tam- bém um dos poucos situados em terras de planalto. Pen- sou-se inicialmente que o império Tiahuanaco se estabe- lecera por meio da força. Mas todas as principais cidades Tiahuanaco descobertas áté hoje eram povoamentos não fortificados, com arquitetura de estilo religioso. A civilização que nasceu em Tiahuanaco promoveu a intensificação da agricultura e uma grande expansão do cultivo em terraços nos planaltos. Com o colapso de Tiahuanaco após 1 200 d.e. e a ruína simultânea do im- pério waru, surgiram múltiplos estados e impérios regio- nais. Entre os mais significativos desses novos estados estava o de Chimu, cravado ao norte da costa peruana, com um grande centro urbano em Chan-Chan. Nos pla- naltos, em torno do Lago Titicaca, os grupos mais im- portantes foram a federação Chanka, situada ao norte de Cuzco, e os reinos de língua aymara, localizados às mar- gens do Lago Titicaca e na parte sul do altiplano. Os Aymara o desenvolvimento dos reinos aymaras assinalou propriamente o início da história boliviana. Eles domi- naram os planaltos centrais desde o fim do século XII até a chegada dos espanhóis no século XVI. Os reinos aymaras representaram um avanço importante com re- I _.J " Bolívia ~ ~ lação ao período precedente de Tiahuanaco. A concen- tração de povoados nas margens do lago em comunida- des abertas, a comunhão de estilos na cerâmica e na de- coração e a prática da 'agricultura de terraços foram subs- tituídos por cidades fortificadas (ou pucara) construídas nos cumes atrás do Lago Titicaca, pela intensificação da criação de camelídeos e pelos chulpas, ou casas de culto e sepultamentos, sinais do aparecimento de uma nova religião. Os agressivos povos de língua aymara levaram a inclinação peruana para a organização dual ao extremo. Existiram pelo menos sete grandes "nações" de povos de língua aymara, cada uma delas dividida em dois reinos separados. Assim, Lupaca e CoIla, as maiores dessas na- ções, tiveram ambas um governo urcusuyu e outro uma- suyu, cada um com seu próprio "rei" e controlando ter- ritórios diferentes. A parte urcusuyu concentrava-se em. centros fortificados nos topos das montanhas a oeste e sudoeste do Lago Titicaca, com suas colônias agrupadas ao longo da costa do Pacífico. Já a parte umasuyu ficava nos planaltos do Leste e tinham a maioria de suas co- lônias nos vales próximos (na região chamada montafta). Os estados mais poderosos eram aqueles agrupados em torno do lago, que pode ser considerado como o centro vital dos povos aymaras. Os Colla e os Lupaca centro- lavam a maior parte das margens do Titicaca, e, junta- .mente com os Canas, sediados ao norte, eram conside- rados os mais importantes dos reinos aymaras. Tais reinos 16 Herbert S. Klein q MiIJ'" ""I i i i o km ISO Os Reinos Aymaras NO FINAL DO SI1CULO XV B INicIO 00 XVI Bolívia organizavam-se por meio de uma complexa estrutura de classes e corporações. Havia os ayllus, ou grupos de pa- rentesco, cada qual dividido em uma metade superior (hanansaya) e uma metade inferior (urinsaya). A nobreza estava associada aos ayllus hanansaya e o povo aos ayllus urinsaya. Para todos os índios era vital ser membro de um ayllu, pois desse vínculo dependia seu acesso à terra. Os Aymara, entretanto, tinham também chefes regionais, ou kurakas, que possuíam terras independentemente dos ayllus ese valiam de mão-de-obra livre dos ayllus que governavam. No âmbito do ayllu, os kurakas eram ser- vidos por assistentes, conhecidos como jilakatas. Assim, entre os reis, os nobres da região e os anciãos locais, havia um grupo de indivíduos com acesso à pro- priedade privada e com direitos hereditários sobre a terra e a mão-de-obra, independente da estrutura do ayllu. Não se sabe se esses direitos eram, em última instância, depen- dentes de um favor real ou se eram de fato pessoais, o que indicaria a existência de uma estrutura de classe in- cipiente. Também havia artesãos e trabalhadores especiais quê muito provavelmente não pertenciam a nenhum ayllu e dependiam diretamente da nobreza. Eram conhecidos nos tempos incaicos como yanaconas e devem ter sido servos ou escravos. Os ayllus e kurakas também tinham colonos traba- lhando para eles em diferentes zonas ecológicas. Deno- minados mitimaq, nos tempos incaicos, esses colonos do planalto uniam a economia inter-regional e multiecoló- 17 • 11I 18 FP. I . ~ 19Herbert S. Klein gica. Em lugares distantes, muitos colonos coexistiam com as populações locais não-aymaras, A integração vertical de sistemas microecológicos - baseada na produção de diferentes cultivos e organi- zada numa economia sem mercado por meio de elabo- rados sistemas de parentesco, troca e obrigações de tra- balho - foi fundamental para a manutenção de uma so- ciedade economicamente poderosa e dinâmica no altipla- no. Tão extensa era essa integração que até mesmo asprósperas colônias de mineração de ouro e prata eram mantidas por gente do planalto em Carabaya e em outros vales do Leste, tornando os Aymara os primeiros produ- tores de ouro dos Andes, assim como os melhores cria- dores de animais. Tal era a riqueza desses reinos que, apesar do domínio incae posteriormente espanhol, ainda eram consideradas províncias extraordinariamente opu- lentas nos séculos XVI e XVII. Contudo, os Aymara não estavam sozinhos no alti- plano. Juntamente com os povos de língua aymara coe- xistiu um grande número de povos de língua uru e puqui- na, conhecidos genericamente como Uru. Embora vives- sem entre os Aymara e se agrupassem como estes em ayllus duais, os Uru não tinham acesso às terras e ao gado. Não tinham organizações políticas sólidas e traba- lhavam basicamente como pescadores ou trabalhadores para os Aymara. A língua puquina dos Uru representava uma, das três maiores línguas do altiplano, ao lado do quechua e do aymara, no Peru pré-colombiano. No Peru BoUvia da conquista espanhola, os Uru eram um povo pobre vi- vendo em pequenos agrupamentos em meio aos reinos do planalto, embora ainda mantivessem colônias dispersas ao longo da costa do Pacífico e dos vales do Leste. A deferência cultural prestada pelos Aymara em relação aos Uru parece indicar que estes precederam os Aymara e que eram remanescentes de uma civilização mais antiga e mais avançada. Guerreiros, economicamente poderosos e ocupando a maior parte do altiplano e das regiões a leste e oeste, os Aymara, no final do século XIV, predominavam na Bolívia e numa parte importante do Sul do Peru. Mas não eram expansionistas. No final do século XV, passa- ram a rivalizar com uma nação de língua quechua, cujo império emergia na região de Cuzco, ao norte do lago. Em meados do século, os expansionistas Quechua, que vieram a ser conhecidos pelo nome de seus govemantes como Incas, haviam se espalhado pelos planaltos do Norte e avançam para o Sul em direção ao distrito do Lago Titicaca. Em torno de 1460, puderam estender sua in- fluência sobre os reinos aymaras, que foram incapazes de se unir contra eles. O. império inca A chegada dos Incas, na segunda metade do século XV, trouxe pouca alteração na organização social, eco- nômica e política dos reinos. Mantendo os govemantes ~ 20 Herbert S. Klein 21 tradicionais e se limitando a extrair excedentes mediante pagamentos de tributos, os Incas pouco fizeram para per- turbar a estrutura da vida aymara. A região compreendida pelos reinos aymaras foi organizada em uma província conhecida como Kollasuyo (uma das quatro do império). No entanto, a integração não foi pacífica e, em 1470, ocorreu uma grande revolta contra o domínio inca. Os derrotados Aymara perderam toda a independência e fo- ram. obrigados a aceitar as colônias mitimaq de língua quechua em todas as suas áreas, especialmente no vale de Cochabamba, Essa revolta e as guerras a ela relacio- nadas determinaram a composição lingüística da Bolívia até os dias de hoje. Entre os Aymara, os Lupaca e os Colla mantiveram a maior autonomia, mas mesmo eles, à medida que as estradas, silos, fortalezas, novos centros urbanos e colô- nias militares se difundiram por todos os planaltos e vales bolivianos, passaram a integrar cada vez mais estreita- mente o império inca. Como os três outros setores desse império, Kollasuyo foi obrigado a pagar tributos, a enviar seus objetos sagrados para Cuzco e permitir que seus nobres fossem educados pelos governantesdaquela cida- de. O fato de os Aymara de Kollasuyo terem mantido suas línguas e muito de suas estruturas sociais, econô- micas e até mesmo políticas deve-se a sua prosperidade e poder nos tempos pré-incaicos. Até mesmo a conquista espanhola, com seu propósito deliberado de incrementar a " quechuanização", não pôde eliminar a cultura aymara. Bolívia No momento em que haviam dominado inteiramente os reinos aymaras, os Incas já tinham elaborado por completo os esquemas básicos de sua organização impe- rial. Contudo, os princípios desse sistema econômico, so- cial e político altamente estruturado ainda estavam sendo implantados quando, oitenta anos depois, os espanhóis puseram fim a essa experiência. O desmantelamento pre- coce do Estado inca, quando mal começara a amadurecer, tornou extremamente difícil a análise da natureza exata da sociedade incaica do final do século XV e início do século XVI. Tal como oficialmente relatado aos espanhóis, o Estado inca era uma organização autoritária e benevo- lente, baseada em princípios racionais de igualdade e jus- tiça. Proibindo a propriedade privada, o Estado distribuía bens e serviços por meio de impostos que chegavam a até dois terços da produção do campesinato andino. Os camponeses, por sua vez, eram organizados hierarquica- mente em grupos de dez, cem e assim por diante. O império era dividido administrativamente em quatro re- giões basicamente homogêneas e dirigido por uma bu- rocracia estatal dependente dos Incas. Essa burocracia estatal associava-se aos chefes do Estado por meio de grupos clânicos. Uma religião estatal que enfatizava as virtudes cívicas e inteiramente sincrética em relação a todas as religiões precedentes era o instrumento que ga- rantia o consenso. 22 Herbert S. Klein A conquista rápida dos mais variados tipos de povos indígenas por parte dos Incas criou uma sociedade rela- tivamente heterogênea. Uma rede de estradas foi cons- truída e um amplo sistema de silos foi posto em ação, de modo que os Incas pudessem estocar excedentes de qualquer área para usá-los em toda o império durante períodos de emergência, como também manter artesãos não-agrfcolas e um exército profissional. Mas havia im- portantes elementos de propriedade privada dentro desse vasto sistema em que a mercado. não existia. Nobres que haviam se rendido pacificamente aos Incas mantiveram as suas terras e os seus trabalhadores, assim coma alguns nobres incas eram capazes de obter terras privadas e o serviço de yanaconas. Estados preexistentes também mantiveram muitas formas pré-incaicas de governo. Fi- nalmente, os povos conquistados tenderam a manter as religiões locais inalteradas e continuaram a falar suas lín- guas. No casa das Aymara, o sistema de integração entre colonos da planalto. e povos dependentes, que vigorava no período. anterior à conquista, foi deixada em grande parte intacto. Os Incas .não desafiaram seriamente as ve- lhas estruturas palíticas e sociais quando essas não. sig- nificavam uma ameaça a seu próprio controle. O império. inca constituiu uma força poderosa e coe- sa e, provavelmente, à mais sofisticada estrutura estatal e econômica elaborada pelas povos da América antes do século. XVI. Os Incas executaram alguns das mais sur- preendentes projetos de engenharia e agricultura da con- Bolivia tinente. Do Equador à fronteira sul da Bolívia, foram construídas estradas para homens e animais que ligavam todas as partes do império. a Cuzco. Milhares de hectares de novas terras agrícolas foram criadas através de um complexo sistema de cultivo em terraços nas íngremes encostas dos Andes, e vastas redes de silos foram cons- truídas para estocar quantidades enormes de víveres não- perecíveis para toda a população. O império. funcionava como o principal distribuidor de bens e serviços, propor- cionando à população. níveis de prosperidade e bem-estar provavelmente maiores que os verificados desde a con- "'; quista espanhola até a presente. Os Incas realizaram grandes esforços para mitigar condições onerosas de trabalho, recrutando mão-de-obra cuidadosamente selecionada por breves períodos de tem- po.e assegurando. sustenta e compensação para as famílias das trabalhadores, Assim, as camponeses eram convo- cados para as mitas, ou trabalho obrigatória, nas minas, em projetas de engenharia, nos exércitos ou para serviços pessoais durante períodos muita curtas e eram plena e efetivamente recompensados par esses trabalhas. Tão. eficiente era essa organização. incaica que de- monstrou ser um poder militar que ninguém era capaz deenfrentar. Podia mobilizar um grande número de tro- pas, alimentá-Ias e supri-Ias par longos períodos, sem ser afetada pelos ciclos agrícolas. Os Incas estavam aptas a exaurir seus oponentes por serem numerosas, bem equi- pados e persistentes. No período de menos de cem anos 23 24 Herbert S. Klein em que o império existiu, ele varreu tudo o que estava à sua frente, dominando com facilidade tanto as so- ciedades costeiras como as de planalto. No fim, poucos estados puderam resistir à Pax lncaica e muitas socie- dades agregaram-se voluntariamente ao novo e poderoso império. ,; Mas houve limites para a expansão inca, e estes foram definidos mais por sua organização social e eco- nômica que por sua atividade militar. Apesar do emprego maciço de colonos e exércitos, os Incas mostraram-se incapazes de subjugar culturas que não estivessem ba- seadas primordialmente na agricultura campone~a. Isso foi especialmente evidente na região de Kollasuyo. Fora do planalto, outra barreira importante à dominação incaica foi estabelecida na região chamada montaiia e nas pla- nícies das terras baixas (a área do Grande Chaco e a região sul do Pacífico, no que é hoje o Chile). Embora existissem nesses territórios algumas aldeias agrícolas e mesmo estados constituídos por diversas aldeias, a forma de organização social predominante caracterizava-se pela presença de caçadores e coletores seminômades, e essa gente provou ser extremamente difícil de organizar em aldeias de camponeses sedentários. Embora se empenhas- sem em conquistar essa região, os Incas não obtiveram sucesso. Tão poderosa era essa fronteira "cultural" que bloqueava o acesso às bacias dos rios Amazonas e Pil- comayo ao nordeste e sudoeste, que até mesmo os con- quistadores espanhóis foram incapazes de transpô-Ia. Bolívia Apesar de o potencial para expansão não estar to- . talmente bloqueado, o império inca tinha encontrado os seus limites naturais à época da conquista espanhola. Li- mites que seriam os mesmos da expansão espanhola du- rante a maior parte do período colonial, pois as avançadas e complexas organizações de Estado na área andina de- penderam sempre, em última instância, da existência de um campesinato estável que se pudesse tributar. Onde o campesinato existiu, os Incas e seus sucessores puderam construir poderosas organizações de Estado sustentadas pela produção de excedentes. Com abundantes recursos da terra disponíveis, o trabalho foi sempre o fator crucial, de cuja estabilidade e produtividade dependia a existência das classes não-produtoras de alimentos. Na base da cultura andina estavam os camponeses agrupados em sistemas de parentesco extremamente coe- sos, conhecidos genericamente como ayllus, que organi- zavam o trabalho e distribuíam a terra entre os seus mem- bros. Embora existissem algumas classes fora da estrutura dos ayllus, a esmagadora maioria do povo, dos nobres e soberanos pertencia a um deles. Ao contrário das comu- nidades camponesas indígenas contemporâneas, ou das comunidades livres organizadas pelos espanhóis, o ayllu pré-colombiano não se definia pela ocupação de um único território. Embora mantendo uma área residencial central, possuíam membros em todas as diversas zonas ecológi- cas. Desse modo, ainda que a propriedade permanecesse vinculada ao ayllu, seus membros podiam se apossar de 25 26 Herbert S. Klein - terras numa extensão extremamente vasta e em regiões dispersas entre a costa e os planaltos e vales do Leste. Esse modelo contrastava agudamente com os padrões de aldeia agrupadas dos camponeses do Mediterrâneo, que era o traço característico da cultura espanhola. Era tarn- bém diferente da fechada comunidade de estilo corpora- tivo que iria emergir como forma dominante da organi- zação camponesa no período posterior à conquista. Em resumo, nas primeiras décadas do século XVI floresceram, nos planaltos andinos do Sul, uma sociedade e uma organização estatal altamente desenvolvidas e fir- memente ancoradas num complexo e denso sistema de aldeias agrícolas. Algo como três milhões de índios esta- vam sob o controle inca, sendo perto de um terço deles na província sulina de Kollasuyo. Uma multiplicidade de sociedades falando numerosas línguas agrupava-se num . vasto sistema de trocas não mercantil, que envolvia uma contínua transferência de produtos entre sistemas ecológi- cos radicalmente diferentes. Os planaltos andinos do Sul eram também uma das zonas minerais mais ricas do mun- do e abrigavam uma das sociedades camponesas mais densamente povoadas daquele tempo. Dado esse poten- cial, era inevitável que a região se tornasse um dos centros mais importantes da colonização espanhola nas Américas. Os planaltos bolivianos, uma vez integrados ao império ultramarino em expansão, se tomariam urna fonte de no- vos alimentos e de minérios que teriam profundo impacto sobre a .economia mundial.•- A CRIAÇÃO DE UMA SOCIEDADE COLONIAL Invasão, ocupação territorial e consolidação do domínio espanhol" A conquista espanhola do Peru seguiu o modelo pre- cedente da conquista do México. A tecnologia militar '" o domínio espanhol na América organizou-se em unidadespolítico-administrativas denominadas vice-reinos. O primeiro deles, o Vice-Reino da Nova Espanha, cuja capital era a cidade do México, foi criado em 1535e abrangia América Central, Antilhas e parte considerável do Sul dos Estados Unidos. Em 1543 foi criado o Vice-Reino do Peru, tendo Lima como capital. O Vice-Reino do Peru estendia sua jurisdição a todo o território sul-americano submetido ao domínio espanhol, incluindo o Alto Peru, nome que então se dava à região que iria constituir a maior parte da base territorial do Estado boliviano, três séculos mais tarde. Dele também fazia parte o Panamá. No século XVIII foram criados mais dois vice-reinos..O de Nova Granada em 1717 (suprimido em 1724 e constituído defini tivamente em 1739), compreendendo Colômbia, Equador, Venezuela e Panamá, e o do Prata, com capital em Buenos . Aires, em 1776.As autoridades do Vice-Reino do Prata foram submetidas as províncias do nordeste argentino e o Alto Peru. (N.E.) 28 Herbert S. Klein superior possibilitou que várias centenas de espanhóis sobrepujassem exércitos indígenas de milhares de ho- mens. Os espanhóis souberam explorar de maneira eficaz o fato de que a conquista inca era recente, como também souberam tirar proveito da guerra interna entre os irmãos Huascar e Atahualpa. Eles convenceram os incas de que eram uma mera força mercenária que iria embora assim que saciasse seu apetite por ouro e prata. Nos estados previamente independentes conquistados pelos Incas, eles se autoproclamaram libertadores e para a facção do per- dedor Huascar prometeram justiça. Empregando suas próprias forças e vastos contin- gentes de tropas indígenas aliadas, os espanhóis isolaram Atahualpa e seus exércitos profissionais, sediados em Quito, do resto do Peru. Assim que as tropas de Quito foram desbaratadas e Atahualpa assassinado, os espanhóis transformaram os incas da facção de Huascar em títeres. Quando esses líderes fantoches se rebelavam, os es- panhóis contavam com o apoio 'de seus próprios servos indígenas yanaconas e das forças de oposição ao impé- rio incaico que os auxiliaram a superar as últimas rebe- liões incas. Foi no contexto dessa intrincada teia de alianças e rebeliões que grupos do altiplano ao sul do Lago Titicaca entraram para a história da conquista espanhola. A revolta do títere Manco Inca, em abril de 1537, obrigou os Ay- mara a escolher um dos lados. No cerco deCuzco, os Lupaca enviaram tropas para os rebeldes. Os Colla, en- tretanto, permaneceram ao lado dos espanhóis e foram Bolívia atacados por um combinado de forças incas e lupacas. Vindo em defesa dos Colla, Francisco Pizarro, em 1538, destruiu o exército inca-lupaca, Assim, somente seis anos após a entrada dos espanhóis, a região sul do Lago Ti- ticaca foi enfim pacificada. No fim de 1538 os dois irmãos de Pizarro, Hernando e Gonzalo, adeIitraram o altiplano sulino - que iriam chamar de Charcas, ouAlto Peru - e fundaram dois povoados. O primeiro e mais decisivo foi a vila de Chu- quisaca (atual Sucre), num vale densamente povoado na margem sul do altiplano, e o segundo foi um pequeno campo de mineração em Porco, nos planaltos a leste da cidade. .Embora Charcas fosse uma área atraente por suas minas e índios, osespanhóis estavam ocupados demais com lutas entre si e pelo oontrole sobre O· Baixo Peru para empreender uma exploração sistemática. Tal estado de indiferença se alterou em 1545, quando os mineiros de Porco descobriram o Cerro Rico, os maiores depósitos de prata do continente, nas imediações do que mais tarde seria a cidade de Potosí. Em 1548, autoridades de Lima garantiram a passagem pela estrada Chuquisaca-Potosf- Cuzco com a criação da cidade de La Paz ,no coração das terras aymaras. La Paz tomou-se um ativo centro comercial e um importante mercado para os produtos agrí- colas. Em 1537, exploradores espanhóis do Rio da Prata conseguiram cruzar o Chaco. Nos primeiros anos da dé- 29 30 Herbert S. Klein cada seguinte estabeleceram acampamentos na região de Chuquitos e Mojos, nos contrafortes dos Andes, e fun- daram Santa Cruz de Ia Sierra em 1561. Portanto, por volta de 1560, os limites exteriores da fronteira de Char- cas já estavam inteiramente definidos. A leste e ao sul de Santa Cruz situava-se uma região fronteiriça dominada por índios hostis serninômades. Os Chiriguano, Toba e outros grupos indígenas do Chaco e das planícies adap- taram seus hábitos de guerra àqueles dos espanhóis. A região baixa do Gran Chaco era uma fronteira tão violenta que foram necessárias fortificações permanentes e a ação de missionários para defendê-Ias das tribos locais que, mesmo em fins do período colonial, ainda se mantinham livres do jugo espanhol. Dentro do território povoado de Charcas o eixo fun- damental era norte-sul. Como o centro de mineração em Potosí se tomasse a razão primordial da presença espa- nhola na região, o suprimento de animais e equipamentos para aquelas minas passou a dominar as economias das vilas desde o Nordeste da Argentina até a região Sul do Peru. Chuquisaca tornou-se o quartel-general administra- tivo de Potosí, e La Paz um posto importante na estrada para Arequipae Lima. O território de Charcas era também abundante em mão-de-obra indígena. As regiões de Cuzco e La Paz. eram as áreas mais densamente povoadas por índios cam- poneses. Deixando as terras em mãos dos camponeses índios, os espanhóis tentavam dar continuidade às formas Bolívia de domínio inca baseadas no governo indireto. Os ayllus \,*~• foram mantidos, e a nobreza local - os kurakas, ou caciques, como os espanhóis às vezes os chamavam - foi confirmada em seus direitos. Em troca, os bens e serviços que anteriormente eram devidos ao governo inca passaram para as mãos dos espanhóis. As comunidades foram divididas em distritos, e esses, por sua vez, em encomiendas ou concessões. Aquele que recebia a con- cessão, o assim chamado encomendero, era autorizado a recolher impostos sobre o trabalho. Em contra partida, era obrigado a pagar pela instrução religiosa e também a aculturar os índios em moldes espanhóis. Essas con- cessões constituíam a maior fonte de riqueza individual no Peru do século XVI e eram dadas somente a uma pequena parcela dos conquistadores. A concessão de tais encomiendas geraram uma casta espanhola local, nobre em tudo, exceto nos nomes, que se tomou a autoridade govemante em suas regiões. Na área de Charcas havia, por volta de 1650, cerca de 82 dessas encomiendas, 21 das quais contavam com mais de 1 000 índios cada. Se o número total de enco- menderos do Alto Peru era pequeno comparado aos 292 da região de Arequipa e Cuzco, nessa última apenas qua- torze encomiendas possuíam mais de I 000 índios. Os encomenderos de Charcas eram mais ricos, possuindo 800 índios' em média, enquanto na região Norte a média 31 ·32 Herbert S. Klein era de 400. Esses números se referem ao período áureo dos encomenderos. Na segunda metade do século, a maio- ria já pertencia a uma segunda geração e a Coroa havia começado a eliminá-los, A organização da vida rural de Charcas seguiu mo- delos coloniais muito bem estabelecidos. Porém, a criação' de uma força de trabalho mineradora era algo novo. Os espanhóis tentaram de tudo, da escravatura ao trabalho assalariado, e finalmente chegaram a um imposto - a mita - nos moldes da corvéia, * que era aplicado alter- nadamente sobre um grande número de aldeias indígenas. Esse sistema foi estabelecido pelo vice-rei Francisco To- ledo, que inspecionou o Alto Peru no período de 1572 a 1576. Reorganizando a sociedade colonial: as reformas de Toledo As reformas de Toledo assinalaram uma importante virada na organização social e econômica da colonização espanhola no Alto Peru. Os espanhóis tinham tentado preservar tanto quanto possível o governo e as,populações existentes, de modo a obter os mais amplos benefícios * Trabalho gratuito que no tempo do feudalismo o servo era obrigado a executar para seu senhor ou para o Estado. (N.E.) Bolivia com os menores custos. Mas as doenças européias que trouxeram dizimaram os índios das planícies e reduziram drasticamente as populações do planalto. Em torno de 1570 ficou claro que uma reforma se fazia necessária. Como resposta a essa crise demográfica, Toledo decidiu reducir os índios em aldeias permanentes e tentou agrupar os ayllus remanescentes em núcleos adensados. O modelo que empregou foi o da comunidade agrícola mediterrânea. No planalto as comunidades eram formadas por muitos ayllus, os quais possuíam colônias em diversas regiões ecológicas. Toledo obrigou esses ayllus do planalto a se separarem de suas colônias e agruparem-se em. aldeias maiores com terras demarcadas e contíguas, de modo a serem administrados e tributados com mais facilidade. Assim, fica claro que o modelo de communidad in- digena (ou comunidade indígena rural) data do tempo de Toledo. Todavia, apesar da rápida criação de numerosas reducciones, a consolidação das reformas empreendidas por ele levou um século ou mais. Em cinco distritos esco- lhidos entre os muitos que constituíam o Alto Peru naque- . le tempo, 900 comunidades envolvendo mais de 129000 índios foram "reduzidas" a apenas 44 povoados. Enquanto antes. dessa "congregação" as aldeias contavam em média 142 pessoas, as novas comunidades continham aproxi- madamente 2 900 pessoas cada. Muitas das reducciones foram abandonadas e muitas-das comunidades dos vales e planícies nunca foram realmente separadas de seus ayl- 33 34 35Herbert S. Klein lus do planalto. Mas osistema que Toledo criou tomou-se, ainda assim, deminante nos Andes. Em outras empreitadas, o vice-rei teve sucesso mais imediato. Rompeu a cadeia de poder dos encomenderos e limitou a maioria das concessões de encomiendas a três gerações, retomando assim para a Coroa C) controle direto sobre as populações indígenas. Converteu o im- posto devido pelos índios num imposto. direto em-moeda, substituindo formas anteriores de pagamento em produ- tos. Essa iniciativa padronizou a estrutura dos impostos, vinculando o tributo à qualidade da terra. Isso obrigou os indígenas a ingressarem na economia espanhola, pois só era possível obter moeda para o pa- gamento dos impostos através da comercialização de pro- dutos ou da venda da força de trabalho em troca de salário. Desse modo, trigo e tecidos foram I produzidos e, junto com produtos tradicionais, postos à' venda nos centros urbanos da colônia. A demanda de fazendeiros, comer- ciantes e artesãos espanhóis por trabalhadores passou a ser suprida por índios das comunidades livres. Embora os mercados tradicionais para a troca de bens continuas- sem a prosperar, uma grande parte da população indígena foi forçada a- entrar no mercado espanhol: Toledo reorganizou também a extração-da-prata. De 1545 até os primeiros anos de 15'60; Pótosf havia' pro- duzido urria quantidade sempre' orescente de prata, tor- nando-se a mais rica fonte desse minério no mundo. Esse Bolívia crescimento se baseouna .extração de depósitos de su- perfície, contendo minério que podia ser facilmente re- finado pelos processos de fundição pré-colornbianos. Po- rém, à medida que os depósitos' de superfície se esgota- vam e a mineração em túneis e galerias se desenvolvia, a pureza do minério decaiu, os custos da refinação au- mentaram e a produção diminuiu, Toledo introduziu então o amalgama de mercúrio para extrair prata de minério com baixo teor do metal. O controle indígena sobre o refino acabou e mais de 6 000· índios que fundiam minério em fornalhas a céu aberto foram substituídos por poucas centenas de grandes usinas de refino movidas a água e controladas por espanhóis. Toledo organizou também a mina de mercúrio da Coroa, em Huancavelica, no Baixo Peru, que se tomou a maior fornecedora das minas do planalto. Com a criação de um posto de cunhagem da Coroa em Potosí, conhecido como Casa de Moneda, ele ordenou que toda prata extraída e refinada na cidade fosse con- vertida em barras e lingotes. Assim, a Coroa garantiu o quinto real sobre o total da produção, além de obter re- cursos cobrando taxas de cunhagem. O estabelecimento simultâneo do monopólio do mercúrio assegurou tanto seu suprimento quanto o controle da Coroa sobre a pro- dução. Outra iniciativa importante de Toledo foi a elabo- ração'do estatuto bésícd da mlríetação. t\ criação de regras r: I" ~ .-"'<_.'-'.-"'-". ~"" Herbert S. Kiein I: I, I II I jI) I l 36 legais foi especialmente importante em Potosí, dada a natureza complexa da posse das minas. Diversamente de outras áreas mineradoras do Novo Mundo, a concentração de veios de prata numa única montanha de minério em Potosí resultou numa quantidade exagerada de minas construídas umas sobre as outras. Em 1585, havia apro- ximadamente 612 minas de proprietários diferentes na montanha de Cerro Bico, cada uma com entrada e galeria próprias. Finalmente, Toledo resolveu o problema do forne- cimento de mão-de-obra para os donos das minas. Cons- truir e manter adequadamente uma mina de galeria cus- tava tanto quanto erguer uma catedral. O enorme volume de água necessário para impulsionar as fundições requeria a construção de numerosas represas e lagos artificiais. Com os salários pagos à mão-de-obra livre nos anos de 1570 era evidente que não sobrava capital suficiente. To- ledo empregou o mita para obter trabalho obrigatório nas minas. Dezesseis distritos que se estendiam entre Potosí e Cuzco foram designados como área de suprimento de mita. Um sétimo dos adultos de sexo masculino era obri- gado a servir um ano nas minas. Isso proporcionava uma mão-de-obra anual de .13 500 homens, que trabalhavam em rodízio (nenhuma "turma" podia trabalhar mala do que um em cada seis anos). Os mineiros eram obrigados a pagar aos mitayos um pequeno salário, insuficiente para I! a.subsistência. As comunidades indígenas providencia- 1 vam a comida para os trabalhadores, arcavam com seu 11I Bolívia 37 .... - .-J I 1 transporte e mantinham suas famílias. A maior parte da coca e da comida consumidas nas minas era paga pelos próprios trabalhadores. Através desse sistema, a Coroa forneceu força de trabalho barata e abundante (no final do século XVI, por volta de 60% da mão-de-obra das minas eram compostos por mitayos), o que estimulou enormemente a produção. Toledo patrocinou igualmente o surgimento de no- vos povoados, sendo Cochabamba, fundada em 1571, o mais importante. Situada no coração de uma extensa série de vales, Cochabamba tornou-se uma cidade central para o controle dos índios quechua dos vales. Com sua fun- dação, a região ao redor tomou-se a maior produtora de milho e trigo do Alto.Peru. Outras cidades fundadas por Toledo foram Tarija, em 1574, e Tomina, em 1575. Essa última para proteger a fronteira leste contra os Chiriguanos. Com todas essas transformações, o Alto Peru tor- nou-se um dosmais prósperos centros do novo império espanhol na América. A Coroa reconheceu sua impor- tância econômica estabelecendo um governo autônomo para a região, ainda que sob o controle de Lima. Em 1558, uma Audiencia independente, ou seja, um tribunal real, foi instalado em Chuquisaca. A Audtencia de Char- cas foi uma das poucas que teve tanto poder judicial quanto executivo. Seu presidente tomou-se a mais im- portante autoridade na região. Os colonos espanhóis também passaram a ter grande I 111 autonomia para instalar seus próprios governos munici- ' ; pais. Com sua jurisdição se estendendo até as mais afas- tadas áreas rurais, os municipios concediam títulos de posse e controlavam os mercados locais e os poderes de justiça e polícia. Nas áreas rurais, onde se concentravam mais de 90% de população, dos quais apenas 10% conheciam outra língua além da nativa, se desenvolveu um complexo sis- , tema de governo indireto. Nas comunidades indígenas os originarios (índios do sexo masculino, com idade entre dezesseis e cinqüenta anos e acesso direto à terra) elegiam autoridades locais dentre os ayllus que formavam a co- munidade. Os anciãos ou jilakatas eram encarregados da distribuição de terras, da justiça e da coleta de todos os impostos. Esse governo da comunidade também sus- tentava a igreja local. As comunidades deram prosseguimento a práticas anteriores à conquista, selecionando os anciãos mais ex- perientes e bem-sucedidos para representá-Ias. Sendo os membros mais velhos e responsáveis da comunidade, tais homens tendiam a ser extremamente conservadores. Mas uma vez que se convenciam de que os impostos cobrados iam além dos limites aceitáveis, se mostravam os mais terríveis inimigos dos espanhóis, já que eram capazes de convocar a comunidade inteira em seu apoio. As rebe- liões indígenas nunca foram casos individuais, mas sem- pre esforços coletivos de comunidades unidas sob a li- derança dos jilakatas. Os governos das comunidades também serviam co- mo meio de redistribuir internamente os recursos. Um elaborado sistema de "empobrecimento ritual" entrava em ação para diminuir desníveis de riqueza. Esse sistema consistia na eleição dos membros mais abastados para cargos da hierarquia civil e religiosa que obrigavam o ocupante a dispender recursos em favor da comunidade. Em contrapartida, os que se submetiam a esse "empo- brecimento ritual" angariavam honra e poder. Assim, o equilíbrio comunitário era mantido contra o assalto vio- lento da economia de mercado. Durante a maior parte do período colonial, a nobreza indígena local desempenhou o mesmo papel que exercia sob os lncas. Os kurakas controlavam várias aldeias e tinham direito de possuir propriedades e usufruir do tra- . balho da comunidade. Em troca, eles protegiam a religião e os costumes locais e representavam a comunidade pe- rante as autoridades espanholas. Essa era uma posição conflituosa que indúzia ora à exploração dos índios,ora à defesa dos seus direitos. Ao longo dos três séculos de domínio colonial, os kurakas seriam reduzidos pelos im- postos espanhóis ao status de camponeses. Autoridades reais controlavam esse sistema de go- verno indireto nomeando supervisores chamados corre- gidores de indios, .os quais supervisionavam a coleta de impostos e defendiam os interesses espanhóis. Os corre- gidores se remuneravam através da venda forçada de produtos importados aos camponeses índios. 39 40 Herbert S. Klein A instituição que coroava o sistema de controle in- direto era a Igreja católica. O clero regular e· secular se mudou para as áreas indígenas com o intuito de evange- lizar as populações. Em 1552 estabeleceu-se o primeiro bispado em Chuquisaca, que em 1609 foi elevado à con- dição de arquidiocese. Por volta de 1580, foram impressos catecismos nas línguas quechua e aymara. Em 1582, o bispado reconheceu a aparição da Virgem em Copaca- bana, centro religioso dos Ayamara, às margens do Lago Titicaca. Criou-se assim o primeiro símbolo formal do. cristianismo no Alto Peru: a Nossa Senhora de Copaca- bana. A instituição de formas exteriores do cristianismo não implicou o desaparecimento das religiões pré-colorn- bianas. A religião do Estadoinca foi destruída, mas as crenças locais pouco se alteraram. Na cura de doentes, em atividades associadas ao plantio e às colheitas e nos eventos relacionados à família e aos ayllus, as crenças e costumes religiosos anteriores à conquista continuaram a predominar, freqüentemente praticados pelos próprios sacristãos das igrejas católicas. Embora o clero mais ze- loso tentasse destruir as religiões indígenas, a escassez de sacerdotes cristãos no Alto Peru e os cuidados com a preservação do governo indireto garantiram a continui- dade das crenças locais, exceto quando elas desafiaram a legitimidade do cristianismo. Boltvia Os primeiros cem anos de domínio espanhol: uma síntese A Espanha formulou para o Alto Peru um sistema social, econômico e político essencialmente dual. Deveria haver uma elite branca, de língua espanhola, orientada para os valores europeus, dividida em classes, e uma mas- sa autogovernada, mas explorável, de índios camponeses, também diferenciada em nobres e camponeses. Os con- quistadores, no entanto, iriam erodir esse modelo simples e criar um complexo amálgama de novas classes, castas e grupos. Em razão das epidemias, a população original de um milhão de índios havia caído pela metade no final do século XVI. Os 10 000 espanhóis que alcançaram a região de Charcas eram predominantemente homens e, portanto, livres de quaisquer restrições de tipo familiar. Eles trouxeram consigo uni número equivalente de escra- vos negros. O resultado foi a criação de novos grupos raciais, os mulatos e mestiços (conhecidos como cholos). As comunidades indígenas sofreram um processo acentuado de estratificação. A base da ordem colonial era o índio originario do sexo masculino, chefe de família, entre 16 e 50 anos, que tinha acesso direto à terra em seu ayllu. Ele pagava imposto e estava sujeito ao trabalho obrigatório nas minas. Mas o colapso demo gráfico causou 41 42 Herbert S. Klein uma diminuição da classe dos originarias, sem que por isso a exploração tenha se reduzido. Comunidades foram abandonadas, e os índios buscavam escapar à condição de originaria. Alguns tornaram-se trabalhadores sem terra em outras comunidades e passaram a ser conhecidos como [orasteros ou agregados, enquanto outros se empregaram como peões (ou yanaconasy em propriedades de espa- nhóis. Ao mudarem de status, eles se desinvestiam de todas as obrigações de impostos e de mita. Até o século XVIII,nemforasteros nem yanaconas tiveram de pagar tributos. Expandindo-se ao longo da segunda metade do sé- culo XVI, as haciendas pararam de crescer quando as comunidades livres se estabilizaram na segunda metade do século XVII. Nessa época, encontravam-se haciendas espalhadas por todo o altiplano e vales subpunas, mas elas absorviam apenas cerca de um terço da força de trabalho indígena e muito menos que a metade da terra na Audiencia de Charcas. As comunidades livres, após as reformas de Toledo e as grandes migrações, já não eram os homogêneos ayllus do período pré-colornbíano. Embora ainda fossem controladas por seus membros e garantissem títulos definitivos de posse de terra para to- dos, agora continham cidadãos de segunda classe. Mas as várias categorias sociais não eram fixas e imutáveis. Muitos originarias tornaram-se yanaconas ou forasteros e podiam passar de um status para outro com relativa Bolivia facilidade. Somente a passagem para o status de origi- nario era difícil, e o casamento era a única alternativa para aqueles que não haviam nascido nessa condição, que assegurava o direito à posse individual da terra. Grande número de índios abandonaram por completo as áreas rurais. Muitos mitayos permaneceram nos cam- pos de mineração e acabaram virando mineiros profis- sionais e trabalhadores assalariados - os minganos. Ou- tros mudaram-se para as cidades espanholas e tornaram-se o elemento preponderante da classe trabalhadora urbana. Falando tanto sua língua nativa como o espanhol, esses índios urbanos freqüenternente abandonavam seus costu- mes tradicionais e começavam a se vestir à maneira espa- nhola e consumir alimentos tipicamente europeus, como o pão. Tornaram-se cholos urbanos, embora de linhagem puramente indígena. Assim, a designação de índio, cholo e branco rapidamente perdeu o seu significado biológico, transformando-se numa designação de fundo cultural ou social, determinada por exterioridades como fala, vesti- menta e hábitos alimentares. O primeiro surto de mineração de 1540 a 1550 foi espetacular, mas em nada comparável ao crescimento ma- ciço das explorações de prata do período ]570.-1650. O impacto de Potosí sobre a economia européia e seu co- mércio com a Ásia foi tremendo. Provocou uma revolução nos preços e finalmente forneceu à Europa meios para pagar seu déficit comercial com a Ásia. Localizada numa zona árida e com uma população estimada entre 100 000 43 44 Herbert S. Klein e 150 000 habitantes, Potosí tinha de importar tudo de que necessitava. Desse modo, seu desenvolvimento im- pulsionou a produção desde o norte do que é hoje a Ar- gentina até o sul do que é hoje o Peru. Essa vasta extensão territorial integrou-se ao mercado de Potosí como forne- cedora de suprimentos. Na região do Alto Peru, Cochabamba se concentrava na produção de trigo e milho, e os distritos de La Paz no cultivo de raízes de coca dos vales orientais, conheci- dos como Yungas, e na criação de animais. A mastigação. da folha de coca era importante, mas restrita à elite nos tempos incaicos. Após a conquista, seu uso disseminou-se por todas as classes e seu consumo tomou-se uma ne- cessidade para os mineiros que trabalhavam na extração da prata em altitudes muito elevadas. Os cocales dos vales Yungas empregavam tanto índios aymaras como escravos africanos na produção de coca e tomaram-se a mais rica zona de haciendas de Charcas. Uma segunda grande área de mineração de prata floresceu na região indígena de Uru, norte doLago Poopó, onde o minério foi descoberto em 1595. Na primeira dé- cada do século seguinte, o campo. de mineração, co- nhecido como Oruro, contava 3 000 trabalhadores índios e 400 espanhóis residentes. Sem as provisões reais da força de trabalho mita, os mineiros de Oruro tinham de contar. com o trabalho livre assalariado. Em tomo de 1670, a cidade alcançou seu tamanho máximo: aproximadamen- te 80 000 pessoas. Bolívia Com o povoamento permanente de Oruro, o período básico de assentamento espanhol no planalto e nos prin- cipais vales do Leste chegou ao fim. Embora o século seguinte assistisse ao crescimento e expansão das missões fronteiriças nas planícies do Leste, a área central de Char- cas estava agora inteiramente definida. Esse período ini- cial de expansão urbana criou um grande desenvolvimen- to artístico e cultural. A riqueza emergente em Chuqui- saca, Potosí, Oruro e La Paz levou a urna construção maciça de igrejas e catedrais com o conseqüente flores- cimento das artes plásticas. Os espanhóis trouxeram consigo seus artistas. Ar- quitetos, artistas e artesãos espanhóis, italianos e flamen- gos predominavam, e muitos deles eram sacerdotes. Era nas igrejas que as idéias artísticas mais avançadas da vida colonial se expressavam, já que os europeus dispen- diam enormes fortunas na construção e adornamento de seus templos. Uma igreja de proporções medianas levava décadas para ser concluída e era com freqüência o item mais dispendioso na construção de uma cidade. No início, as influências predominantes eram euro- péias. Enquanto os índios aprendiam os rudimentos de todas as artes plásticas, os europeus forneciam as pri- meiras técnicas e modelos. Nas últimas duas décadas do século XVI, entretanto, o predomínio europeu começou a ser desafiado pelos artistas cholos e indígenas. Seus primeiros esforços concentraram-se na escultura. Esculpir em madeira e pedra era um ofício tradicional entre os 45 46 Herbert S. Klein andinos, e os artistas e trabalhadores índios tornavam-se os responsáveis por todas as construções básicas após a conquista. Logo surgiram pintores indígenas, e no século XVII umnovo estilo (criollo), desenvolvido por artistas e artesã os cholos e indígenas, se revelaria nos adornos das igrejas. O primeiro século de domínio espanhol não foi um período- particularmente fértil para esforços intelectuais de caráter não-artístico. Nesse período, Charcas era ainda, em muitos aspectos, uma rude fronteira de mineração dominada por uma mentalidade de novos-ricos. Assim, suas expressões de "alta cultura" intelectual foram dei- xadas para padres e funcionários do governo. Uma uni- versidade foi fundada em Chuquisaca em 1624 e em 1681' oferecia diplomas em direito civil e canônico. Mas até o fim do período colonial o Alto Peru não possuía uma prensa tipográfica, e os poucos autores eram obrigados a enviar seus Ôriginais para Lima ou Europa para serem publicados. I: , , • A ÚLTIMA FASE DO PERÍODO COLONIAL: CRISE E CRESCIMENTO o declínio da mineração e o , fortalecimento da economia rural De 1650 a 1750, ocorreu uma crise na produção das minas de prata. Porém, já por volta de 1'620, o declínio das oportunidades e a estratificação crescente levaram a conflitos urbanos que vieram a ser conhecidos corno "guerras civis". Os mais importantes desses conflitos aconteceram em'Potosí. Em razãodo controle do governo e da economia local, entraram em 'choque os bascos (vas- congadosi 'e todos os outros espanhóis; apelidados gene- ricamente de vicuiias em função de suas vestimentas. Em torno da-segunda metade do 'século XVII, houve uma queda acentuada do tamanho das populações urbanas 48 Herbert S. Klein e da força de trabalho mineira. O número anual de mitayos caiu para 2000 em 1690. Cerca de 100000 espanhóis emigraram dos centros mineradores. Tanto Oruro como Potosí perderam mais da metade de suas respectivas po- pulações. Potosí passou a ter apenas 30 000 habitantes e Oruro 20000 em meados do século XVIII. Na verdade, todas as cidades, com exceção de La Paz, diminuíram ou mantiveram-se estagnadas em termos populacionais . durante o período de depressão. A redução nas exportações de prata gerou uma con- tração nos mercados das zonas rurais. A queda nas ex- portações de Cochabamba para Potosí, por exemplo, pro- vocou o declínio das haciendas locais e o surgimento de pequenas propriedades agrícolas. Em todas as regiões o crescimento das haciendas diminuiu ehouve uma retração geral que avançou até quase fins do século XVIII. Em contraste, as comunidades livres tomaram-se mais fortes durante a chamada "crise do século XVII". Com cinqüenta anos de atraso em relação aos índios de outros lugares da América, as populações indígenas dos Andes finalmente se adaptaram às doenças européias, até então epidêmicas. A população indígena aumentou ao mesmo tempo em que o ritmo de crescimento das ha- ciendas declinava e as pressões de mercado e do trabalho obrigatório diminuíam. As comunidades passaram a reter uma percentagem maior de sua produção. Isso estimulou mercados de troca locais e promoveu o tradicional co- Bolívia mércio inter-regional, A coexistência de mercados de tro- ca locais e o mercado espanhol perdurou, mas com a ênfase deslocando-se de algum modo em favor dos pri- meiros. Em igual período, a cidade de La Paz, cuja área rural abrigava cerca de 200 000 índios, destacou-se como um dos principais centros administrativos e comerciais. .Em meados do século XVITI, La Paz, com seus 40000 habitantes, tomou-se a cidade mais populosa do Alto Peru, em virtude do crescimento dos mercados indígenas re- gionais. A expansão rural explica o extraordinário desenvol- vimento das artes e das construções que ocorre na região nos próximos 150 anos. Artistas itinerantes indígenas e cholos tinham criado dois importantes estilos regionais, conhecidos como escolas de Cuzco e de Colla. Esta última floresceu depois de 1650 e seu centro primordial foi no coração dos povoados aymaras no distrito do Lago. Igre- jas com alto grau de realização artística foram erguidas nessas pequenas aldeias camponesas, especialmente na- quelas que formavam as províncias de Chuquitos (tem- porariamente parte do Alto Peru), Pacajas e Omasuyos. O fato de muitos artistas do estilo Colla serem índios e mestiços aponta também para uma crescente especiali- zação do trabalho nessas .áreas, o que corrobora a idéia de uma economia rural relativamente rica para permitir que tais artistas pudessem se desenvolver. Em tomo da 49 11 11 " 50 Herbert S. Klein segunda metade do século XVIII; quase todo O· Sul da região andina era dominado por um estilo de arte mestiça generalizado com sua ênfase em temas locais e até mesmo motivos pré-colornbianos, expressos especialmente na escultura. Embora a extração e exportação de prata tenham voltado a ascender duradouramente a partir de 1750, ja- mais a produção do minério no final do período colonial atingiu mais que 50% do que era produzido nos últimos anos do século XVI. Por essa razão, o boom da prata verificado na segunda metade do século XVIII foi insu- ficiente para renovar a força de trabalho e as populações urbanas. Além do mais, já no início da crise do século XVII, o México havia assumido a condição de maior produtor de prata da América, e essa tendência perdurou, apesar do modesto reflorescimento das minas do Alto Peru. Embora Potosí e Oruro, mesmo com a produção re- duzida, fossem ainda grandes produtoras de prata, já não eram os centros dominantes da América. Ao contrário do que ocorria no México, as minas peruanas geravam impostos suficientes apenas para manter a burocracia real da região Sul da América do Sul. Depois de 1700, poucas barras de metal precioso saíram do Alto Peru para a Espanha. O boom do século XVIII foi, portanto, um aconte- cimento relativamente frágil e limitado que não sobrevi- 151 I ! I Bolívia veu a uma série de problemas estruturais, políticos e de mercado que surgiriam no início do século XIX. Entre- tanto, mesmo limitada, a mineração representava ainda a indústria mais importante no Alto Peru. Assim, uma luta pelo poder se desenrolou na segunda metade do sé- culo XVIII pelo controle da Audiencia de Charcas, lan- çando a antiga opulência mercantil de Lima e Cuzco con- tra o .poderio crescente dos novos grupos de comerciantes de Buenos Aires. A incorporação ao Vice-Rei no do Prata e as reformas dos Bourbon Em 1776 a Coroa decidiu o conflito entre Lima e Buenos Aires em favor da última. A Audiencia de Charcas passou para o controle direto de Buenos Aires, que se tomou então capital de um vice-reinado novo e inde- pendente. Em 1778 esse controle foi reforçado com a remoção da maior parte das restrições de comércio. A concessão de autonomia e a suspensão de barreiras co- merciais foram determinantes para alterar a direção do comércio de Potosí, deslocando-a do rumo norte para o de Buenos Aires. Desse modo, a reorganização do espaço econômico do Alto Peru teve como conseqüência o de- clínio de Lima. Como parte das reformas gerais dos Bourbon, no âmbito colonial, foram enviados ao novo vice-reino lJ 52 Herbert S. Klein administradores bem treinados. As reformas administra- tivas completaram-se com a criação, em 1784, de quatro lntendencias, cobrindo as regiões de La Paz, Cochabam- ba, Potosí e Chuquisaca. As novas autoridades executa- vam os planos de ação dos Bourbon visando estimular a economia de exportação. Com a qualidade do minério declinando, tomava-se necessário investir capital novo na abertura de galerias mais profundas. A indústria de mineração do Alto Peru era insuficiente para gerar esse capital, e a Coroa forneceu apoio financeiro. Em 1736 reduziu sua parte nos impostos a 10% de toda a produção. Prosseguiu com as convocações para o trabalho obriga- tório, embora em menor escala. Em 1751 ajudou a criar o Banco de San Carlos, para garantir crédito e mercado para a produção local. Por fím.,a Coroa subsidiou os preços do mercúrio e suprimentos europeus após o co- lapso da produção de Huancavelica nos anos de 1770. Enquanto a população de Potosí continuava a decli- nar, indo de um número estimado em 70000 pessoas, em 1750, para algo em tomode 35 000, em 1780, a produção voltou a aumentar vagarosamente. Mas o cres- cimento da economia rural durante o século XVII não foi interrompido por essa nova expansão da atividade mineradora. Perdendo a condição de principal centro mi- nerador da América, Potosí teve sua importância reduzida mesmo nas .regiões circunvizinhas, onde se verificou o I~'I I I 53Bolívia florescimento de um ativo e poderoso setor agrícola. Ain- da que esse setor se limitasse aos mercados andinos re- gionais, sua atividade movimentava o bastante para ga- rantir à Coroa uma renda crescente na forma de impostos comerciais e do imposto indígena. Esse tributo era, no fim do século XVIII, a segunda maior fonte de renda da Coroa na Audiencia de Charcas. A importância desse tributo aumentou em 1734, quando sua ampliação foi estendida a todos os índios do sexo masculino, independentemente de terem ou não di- reito à posse de terra. Isso, por sua vez, alterou a carga da tributação. Embora mais dinheiro fosse recolhido pela Coroa, a extensão do imposto a todos os trabalhadores tendia a tomar mais estável a classe dos forasteros e assim garantia às comunidades indígenas uma maior força de trabalho entre a qual dividir o aumento da carga tri- butária. Além disso, como o trabalho obrigatório nas mi- nas não foi estendido a forasteros e yanaconas e permi- tiu-se que o número total dos recrutados decaísse a uma terça parte, a mita tomou-se muito menos onerosa. Por último, houve pouca expansão das haciendas nos anos imediatamente posteriores à extensão do imposto, o que preservou as atividades agrícolas dos Índios. Embora a reativação das minas tenha aumentado a demanda nos . mercados urbanos, essa demanda extra foi suprida pelas haciendas que antes não comercializavam seus produtos e pela revitalização das melhores propriedades. l.. _M 'J I' I <~J'll~ 1/ 754 Herbert S. KleilcWIívia 55 Porém, apesar do relativo relaxamento da explora- ção, a população camponesa em crescimento manteve-se duramente hostil aos seus senhores. As intermináveis co- branças dos corregidores e hacendados, a imposição de impostos nos moldes da corvéia, com freqüência visando atender interesses particulares de espanhóis, e a severa cobrança de impostos, que forçava todos os índios a ven- der seus produtos nos mercados espanhóis, eram inten- samente ressentidas. Os kurakas viam-se continuamente ameaçados em seus próprios privilégios. Além disso, a Igreja mais culta e letrada do século XVIII era tão con- trária quanto os primeiros sacerdotes às atividades não- cristãs e havia um ataque constante às crenças religiosas indígenas. I,: I" 11 ~ 11, A Grande Rebelião de 1780-1782 É esse conjunto de fatores que ajuda a explicar a maciça rebelião indígena que ocorreu no Alto Peru e na área de Cuzco em 1780. Insurreições na área rural, ou insurreições de criollos e mestizos nas áreas urbanas, que também ocorreram na Grande Rebelião de 1780-1782, não eram novas no Alto Peru. Em geral respostas a causas imediatas locais, essas rebeliões aconteciam nas comu- nidades indígenas devido à taxação abusiva de algum corregidor, a conflitos de terra ou, sobretudo, em razão da interferência dos espanhóis na designação dos kura- kas. Nas áreas urbanas as revoltas também eram comuns, indo desde motins por motivos de subsistência em tempos de crise e sonegação de alimentos, a protestos contra li: impostos locais ou funcionários da Coroa. Vale lembrar que movimentos e conspirações haviam ocorrido em Oru- ro e Cochabamba no decorrer de 1730. Mas todas essas revoltas- tiveram vida curta, eram ligadas a questões de interesses local e expressavam um I desejo de retomo ao passado. Foram, portanto, revoltas de natureza conservadora, que funcionaram como vál- I. vulas de escape previsíveis para protestos localizados, !i mesmo quando envolveram um nível considerável de vio- lência. A rebelião de Túpac Amaru,* que durou de 1780 a 1782, no entanto, afastou-se profunda e decisivamente II da norma. Foi maciça tanto em participação como em extensão. Engajando provavelmente mais de 100000 tro- tl pas rebeldes, a rebelião envolveu atividades relativamente I, bem coordenadas desde os planaltos do Sul do que é Il hoje o Peru, passando por todo o altiplano, até os planaltos I' do Norte do que é atualmente a Argentina. A rebelião, , liderada pelos kurakas, foi o último esforço político da I nobreza indígena para se defender da extinção. Foi tam- bém uma iniciativa dos Quechua e dos Aymara e incluiu até mesmo alguns cholos dos centros urbanos regionais. * Membro da nobreza indígena, Túpac Amaru foi o principal líder darebelião em sua- primeira fase. Depois de submeter ao comando de suas tropas a maior parte da província de Cuzco, foi aprisionado e morto pelas tropas espanholas. <l'tE.) I~ lJJ I- -' I" '~-~I Herbert S. Klein56 Extremamente bem conduzida, ela contou com a parti- cipação de muitas classes e castas. Em última instância, tinha como objetivo a criação de uma região autônoma sob o controle das elites indígenas locais, com a exclusão de todos os espanhóis. Foi, em resumo, um movimento de independência. No Alto Peru a rebelião se revestiu de algumas ca- racterísticas especiais. O líder local Túpac Katari fugia à regra por não ser um kuraka e se posicionar mais ra- dicalmente contra brancos e mestiços que outros líderes. Ele foi capaz de sustentar a rebelião por mais tempo e conseguiu aliar índios e cholos contra a autoridade espa- nhola, em Cochabamba. No final de 1781, entretanto, a rebelião já estava esmagada na maioria das zonas rurais, e todas as cidades capturadas retomavam às mãos dos espanhóis. Os líderes rebeldes foram executados, como de costume, de maneira brutal, e houve um amplo confisco de propriedades. To- dos os kurakas rebeldes foram removidos do cargo e, dali por diante, a maioria das comunidades livres que se destacaram na rebelião passou a ser controlada pelos es- panhóis. A rebelião de Túpac Amaru foi a última tentativa de trazer justiça social e autonomia à região antes do' It século XIX. Rebeliões posteriores e a conquista definitiva de independência iriam partir dos criollos e teriam um caráter nitidamente não-indígena. \ I "J' , "'( j I I • 57 ~Il.\'.•.• Bolívia o Alto Peru ao final do século XIX A vulnerahilidade da economia de Charcas tomou-se evidente nas primeiras décadas do novo século. O começo das guerras napoleônicas e uma disputa entre Espanha e Inglaterra, que em 1796 levou os dois países a se en- frentarem em guerra aberta, provocaram a ruptura das rotas marítimas espanholas para a América. Isso signifi- cou a interrupção das entregas de mercúrio e uma queda no volume da fundição de minério. O súbito colapso das rotas de comércio internacional provocou severa depres- são. nos mercados comerciais e estrangulamento do cré- dito nas colônias. Com os mineiros dispondo de pouco capital para manter seus custosos empreendimentos, a produção começou à declinar rapidamente. Não bastasse a redução de suas exportações, o Alto Peru foi atingido por uma série de epidemias e colheitas fracassadas entre 1803 e 1805, as quais afetaram nega- tivamente as populações rurais e os mercados regionais. Em 1808, ano da invasão da Espanha pelos franceses, a economia do Alto Peru estava num estado de depressão generalizada. Essas condições criaram um clima extre- mamente tenso tanto nas áreas rurais como nos centros urbanos, armando o cenário para as revoltas de 1810 em Chuquisaca e La Paz, que seriam os primeiros movimen- tos de independência a ocorrer na América espanhola. li L•• 1~ ". - -A REVOLUÇAO E A CRIAÇAO DO ESTADO NACIONAL (1809-1825) o contexto internacional. Como acabamos de ver, o século XIX iniciou-se no Alto Peru com uma grave depressão. Ao mesmo tempo, o governo imperial de Madri entrava em colapso. Em fins de 1806, Napoleão invadiu a Espanha e em 1807 Ferdinando VII abdicou. Em maio, a população de Madri revoltou-se contra o governo controlado pelos franceses, que havia substituído o monarca. Grupos populares re-beldes organizaram a Junta Central e exigiram lealdade por parte dos vice-reinos coloniais. Uma situação seme- lhante de divisão no interior do governo espanhol já ocor- rera um século antes, mas naquela época as colônias eram Bolivia passivas, e o destino da Espanha e de seu império foi decidido na Europa. Em 1808, entretanto, o cenário era diferente. Ao conquistarem a independência, o Haiti e os Estados Uni- I dos haviam transformado o pensamento I]a América co- lonial. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha garantiam- ~apõíõ a rebeldes potenciais e Já_nªo sobrevivia nenhuma monarquia européia estável. A Revolução Francesa tinha liberado uma nova ideologja gue atingira todos os países.-- - ~ De repente, um governo republicano passou a ser uma ãIternãti;a viáveC - -- -- . - . As colônias estavam cientes do novo contexto in- II ternacional, ° que "fica claro pela proliferação de conspi- . rações e revoltas nos primeiros anos do século XIX. I Inicialmente, entretanto, a -burocracia real teve pouco trabalho em sufocar esses movimentos, pois as eíítesco-, .loniais negava-lhes apólô: temendo -que pudessem se .1 transformar em sublevações populares. A ~angrenta re: ir yo!uçã~~<:.~~~m ~l~.!!~tal!to _P~~.~_~~§ocied_ag.es escra~ocratas como para aqueles que viviam da explora-~ --- -_.- .•.-. ....., '- _.--' ..... ..,.,- "..... -,~ -- -' ,,- -- . ção da massa inc:!Jgena....._ - ;.. Õ colapso da monarquia espanhola e o conflito de pretensões em tomo do domínio colonial envolvendo a Junta, o novo regime francês sob o comando de Joseph Napoleón em Madri, e mesmo a irmã de Fernando VII, Carlota, esposa de João VI, criavam enormes problemas para as elites coloniais. Uma atmosfera de crise e inde- cisão espalhou-se pelas Américas nos meses de julho, 59 60 Herbert S. Klein agosto e setembro de 1808. Na maioria dos casos, au- diencias, governadores e bispos preferiram adotar uma atitude de esperar para ver o que aconteceria. Alguns convocaram encontros abertos (cabildos abiertos) para sondar a opinião local. A maior parte, provavelmente, era favorável à Junta; UIJS poucos decidiram apoiar os franceses ou Carlota. Em parte alguma as elites criollas e espanholas esta- vam inteiramente satisfeitas com uma solução particular. Tal situação levou a conflitos entre governantes, audien- cias e bispos, e entre essas autoridades reais e os con- selhos municipais. Isso explica os eventos que se desen- rolaram no Alto Peru em 1808 e 1809. A região gerou o primeiro movimento de independência na América espanhola. Em parte devido ao seu isolamento do mar, em-parte porque ainda constituía uma zona de poder eco- nômico independente entre dois vice-reinos conflitantes - o de Lima e o de Buenos Aires -, e também graças à sua tradicional autonomia, o Alto Peru constituiu terreno próprio para que as divergências fermentassem e se de- senvolvessem antes de serem suprimidas. A primeira onda de revoltas pela independência Quando as notícias da crise espanhola chegaram ao Alto Peru em setembro de 1808, desencadeou-se um con- flito entre o arcebispo e o presidente da Audiencia, que 61Bolívia apoiavam a Junta Central, é os juízes, que se negavam a reconhecer a autoridade da Junta. No final de maio de 1809, o presidente da Audiencia, Leon Pizarro, foi preso pelos juízes. O intendente de Potosí, Francisco Paula Sanz, não ofereceu resistência imediata, de modo que os juízes buscaram o apoio das outras cidades. Apesar de algumas manifestações populares, a questão permaneceu confinada ao âmbito da burocracia. Não foi esse o caso da revolta ocorrida em La Paz. Em julho de 1809, os vecinos' da cidade exigiram que fosse realizada uma assembléia municipal para decidir qual regime apoiar. O fato de a elite local reclamar o direito de tomar suas próprias decisões, com inde- pendência em relação à burocracia da Audiencia. refletia o poderio crescente de La Paz. Então a maior e mais próspera cidade do Alto Peru, ela estava relativamente imune às crises econômicas que atingiam os centros mi- neradores do Sul. Descontente com sua falta de autono- mia, La Paz enxergou nos conflitos na Espanha e em Chuquisaca uma oportunidade para esboçar sua própria versão de independência. Liderados pelo vecino Pedro Domingo Murillo, os rebeldes capturaram o governador local e o bispo da ci- dade, instauraram uma Junta Tuitiva, repudiaram o regi- me da Junta espanhola e proclamaram um governo in- * Na América espanhola, chamavam-se vecinos os habitantes comuns das cidades. (N.E.) 62 Herbert S. Klein dependente em nome de Ferdinando VII - um expe- diente utilizado por todos os líderes rebeldes posteriores para legitimar seus movimentos de independência. Essa declaração de autonomia, embora tenha se re- velado' de vida curta, deu início às guerras pela inde- pendência, que duraram de 1809 até 1825. Mas o "grito" dos rebeldes de La Paz ~ão encontrou eco imediato nem entre os índios nem entre as elites dos centros urbanos. O vice-rei de Lima ordenou represálias imediatas e enviou uma tropa de 5 000 soldados a La Paz, sob o comando de Goyeneche, presidente da Audiencia de Cuzco. Para enfrentá-Ia, Murillo foi capaz de arrebanhar apenas 1 000 homens pobremente armados. Tentou negociar com 00- yeneche, mas foi capturado juntamente com a maioria dos rebeldes mais radicais. Em janeiro de 1810, Murillo e oito de seus companheiros conspiradores foram exe- cutados, enquanto mais de cem eram exilados. Ao mesmo tempo, o vice-rei em Buenos Aires nomeou um novo presidente para o Alto Peru, Marshal Nieto, que também chegou com tropas. No começo de dezembro ele tomou Chuquisaca e prendeu os juízes rebeldes. Essas ações puseram um fim abrupto ao mo- vimento de independência do Alto Peru. Mas enquanto a liderança urbana da geração de 1809 era destruída, novos líderes rebeldes surgiram em seis áreas rurais conhecidas como republiquetas. As cidades mantiveram-se sob domínio monarquista, mas os rebeldes controlavam uma parte importante do campo e aliaram- 63Bolívia Mas o movimento pela independência escapara das mãos dos habitantes do Alto Peru. Embora tenham sido os primeiros hispano-americanos a se rebelar, foram os últimos a conquistar a independência. O Alto Peru tor- nou-se campo de batalha para vizinhos mais poderosos ao norte e ao sul. A segunda etapa do movimento de independência foi determinada a milhares de quilômetros do altiplano. Com o estabelecimento, em 1810, de um governo independente em Buenos Aires, que assumiu o domínio do vice-reino, os liberais e os rebeldes do Alto Peru viram ressurgir a esperança na figura dos republi- canos portenhos, tidos como aliados na luta pela inde- pendência. A resposta dos monarquistas, liderados por Paula Sanz e pelo presidente Nieto, foi romper com o vice-reino e submeter-se novamente à autoridade de Lima. Mas o movimento revolucionário começou a se espalhar. Em setembro de 1810 Cochabamba levantou-se em apoio ao regime de Buenos Aires e no mês seguinte um exército argentino, sob o comando de Castelli, ingressou no Alto Peru. Com um tremendo respaldo popular, apoderou-se se às invasões republicanas vindas da Argentina. Até 1816 essas forças de oposição foram apoiadas por todas as classes sociais, incluindo os camponeses. A segunda etapa: as invasões das tropas argentinas 64 Herbert S. Klein da maioria das cidades importantes e em novembro con- quistou Potosí. Paula Sanz e Nieto foram executados. O presidente de Cuzco, Goyeneche, viu-se obrigado a bater em retirada, e em abril de 1811 o exército argentino entrou em Oruro e La Paz. Assim, toda a região do Alto Peru tomou-se uma zona livre e independente. I' Os argentinos, entretanto, não permitiram que se estabelecesse uma república independente, tampouco pro- moveram os interesses do Alto Peru. Uma derrota das tropas de Castelli diante dos monarquistas peruanos em Guaqui, no Lago Titicaca, em junho de 1811, desenca- deou a debandada do exército argentino. Seguiram-se grande derramamento de sangue nos centros urbanos e ataques dos habitantes do Alto Peru ao violento
Compartilhar