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Bibiana Terra Nariel Diotto Roana Funke Goularte (Organizadoras) Editora Ilustração Cruz Alta – Brasil 2021 DIÁLOGOS DE GÊNERO PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS Responsável pela catalogação: Fernanda Ribeiro Paz - CRB 10/ 1720 2021 Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora Ilustração Todos os direitos desta edição reservados pela Editora Ilustração Rua Coronel Martins 194, Bairro São Miguel, Cruz Alta, CEP 98025-057 E-mail: eilustracao@gmail.com www.editorailustracao.com.br Copyright © Editora Ilustração Editor-Chefe: Fábio César Junges Revisão: Os autores CATALOGAÇÃO NA FONTE D536 Diálogos de gênero : perspectivas contemporâneas / organizadoras: Bibiana Terra, Nariel Diotto, Roana Funke Goularte. - Cruz Alta : Ilustração, 2021. 331 p. ; 21 cm ISBN 978-65-88362-89-1 DOI 10.46550/978-65-88362-89-1 1. Mulheres - Direito. 2. Feminismo. 3. Desigualdade de gênero. 4. Direitos humanos. I. Terra, Bibiana (org.). II. Diotto, Nariel (org.). III. Goularte, Roana Funke (org.). CDU: 396.2 Conselho Editorial Drª. Adriana Maria Andreis UFFS, Chapecó, SC, Brasil Drª. Adriana Mattar Maamari UFSCAR, São Carlos, SP, Brasil Drª. Berenice Beatriz Rossner Wbatuba URI, Santo Ângelo, RS, Brasil Dr. Clemente Herrero Fabregat UAM, Madri, Espanha Dr. Daniel Vindas Sánches UNA, San Jose, Costa Rica Drª. Denise Tatiane Girardon dos Santos FEMA, Santa Rosa, RS, Brasil Dr. Domingos Benedetti Rodrigues SETREM, Três de Maio, RS, Brasil Dr. Edemar Rotta UFFS, Cerro Largo, RS, Brasil Dr. Edivaldo José Bortoleto UNOCHAPECÓ, Chapecó, SC, Brasil Drª. Elizabeth Fontoura Dorneles UNICRUZ, Cruz Alta, RS, Brasil Dr. Evaldo Becker UFS, São Cristóvão, SE, Brasil Dr. Glaucio Bezerra Brandão UFRN, Natal, RN, Brasil Dr. Gonzalo Salerno UNCA, Catamarca, Argentina Dr. Héctor V. Castanheda Midence USAC, Guatemala Dr. José Pedro Boufleuer UNIJUÍ, Ijuí, RS, Brasil Drª. Keiciane C. Drehmer-Marques UFSM, Santa Maria, RS, Brasil Dr. Luiz Augusto Passos UFMT, Cuiabá, MT, Brasil Drª. Maria Cristina Leandro Ferreira UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil Drª. Neusa Maria John Scheid URI, Santo Ângelo, RS, Brasil Drª. Odete Maria de Oliveira UNOCHAPECÓ, Chapecó, SC, Brasil Drª. Rosângela Angelin URI, Santo Ângelo, RS, Brasil Drª. Salete Oro Boff IMED, Passo Fundo, RS, Brasil Dr. Tiago Anderson Brutti UNICRUZ, Cruz Alta, RS, Brasil Este livro foi avaliado e aprovado por pareceristas ad hoc. SUMÁRIO Prefácio .....................................................................................13 Estela Cristina Vieira de Siqueira Apresentação .............................................................................19 Bibiana Terra Nariel Diotto Roana Funke Goularte Capítulo 1 Compreensões sobre questões de gênero na Educação Infantil: práticas docentes .......................................................................25 Adriane Bonatti Estéfani Barbosa de Oliveira Medeiros Roberta Casarin Peruzzolo Willian Edson Tomasi Capítulo 2 Gênero e saúde no Ensino Médio: os desafios da pesquisa em tempos de pandemia ..................................................................45 Náthaly Zanoni Luza Eliane Cadoná Capítulo 3 Psicologia e gênero: reflexões sobre saúde mental e masculinidades ..........................................................................59 Adriane Bonatti Náthaly Zanoni Luza Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte Capítulo 4 Por uma epistemologia feminista no ensino do Direito ..............81 Nariel Diotto Tiago Anderson Brutti Elizabeth Fontoura Dorneles Capítulo 5 O conflito quanto ao uso de vestiários por transgêneros e transexuais e a colisão de direitos fundamentais .......................101 Júlia da Silva Mendes Capítulo 6 A contribuição do Lobby do Batom para o texto constitucional de 1988 ...................................................................................119 Letícia Maria de Maia Resende Capítulo 7 Igualdade vs liberdade: uma análise da evolução dos direitos das mulheres no Brasil após a promulgação da Constituição Federal de 1988 ...................................................................................137 Bianca Tito Bibiana Terra Wendell Antônio R. de Andrade Capítulo 8 Do tanque ao palanque: a resistência feminina e suas conquistas político-sociais .........................................................................157 Carin Otília Kaefer Lisbôa Maria Brendler Nosvitz Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas Capítulo 9 A inserção da mulher no cenário político a partir da óptica do feminismo negro ....................................................................177 Fabrício da Silva Aquino Isadora Nogueira Lopes Raquel Buzatti Souto Capítulo 10 Assédio sexual e as desigualdades patriarcais de gênero no ambiente de trabalho ...............................................................195 Júlia da Silva Mendes Capítulo 11 A proteção ao trabalho da mulher ............................................213 Isadora Marques Simões Mariana Lopes Diegues Capítulo 12 O trabalho do cuidado e as diversas formas de ser mulher: uma análise do trabalho doméstico a partir de um olhar interseccional...........................................................................227 Thamiris Cristina Rebelato Capítulo 13 Direitos Humanos, gênero e raça: uma análise da convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW) ...............................................................................245 Bibiana Terra Bianca Tito Roana Funke Goularte Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte Capítulo 14 Tecnologia e violência de gênero: tecendo espaço de prevenção na internet ....................................................................................265 Isadora Nogueira Lopes Raquel Buzatti Souto SOBRE OS AUTORES ..........................................................281 Prefácio Como podemos garantir que esse padrão histórico se rompa? Enquanto defensoras e ativistas dos direitos das mulheres de nosso tempo, devemos começar a fundir esse duplo legado a fim de criar um continuum único, que represente de modo sólido as aspirações de todas as mulheres da nossa sociedade. Devemos começar a criar um movimento de mulheres revolucionário e multirracial, que aborde com seriedade as principais questões que afetam as mulheres pobres e trabalhadoras. (Mulheres Cultura e Política1 - Angela Davis) O terreno das desigualdades de gênero é árido e percorre inúmeras camadas das sociedades, sobretudo para países em desenvolvimento. Compreende-se que as questões que envolvem o tema não se limitam apenas às designações dicotômicas do sexo biológico, mas ao próprio ser mulher - um reflexo de milênios de opressão, seja de gênero ou, ainda, opressão colonial, fundada na ideia de dominação. A legislação internacional alça a igualdade entre mulheres e homens a status de prioridade, enquanto direito humano fundamental à própria existência de uma sociedade harmônica, sem discriminação e voltada ao desenvolvimento, tendo entrado no sistema internacional através da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao afirmar que todos os seres humanos nascem iguais2, sem discriminações de qualquer sorte, inclusive de sexo. Muito se construiu desde então, quanto à necessidade de se garantir mecanismos de igualdade entre os gêneros, para além da mera designação anatômica. Nas últimas décadas, menos meninas foram submetidas ao casamento infantil, mais meninas foram à escola. Mais mulheres tiveram seus direitos reprodutivos 1 DAVIS, Angela. Mulheres, Cultura e Política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017. 2 OHCHR. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https:// www.ohchr.org/en/udhr/documents/udhr_translations/por.pdf Acesso em: 05 jul. 2021. 14 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte assegurados,menos mulheres tiveram suas vozes tomadas diante de abusos. No entanto, ainda, há consideráveis discrepâncias salariais, de oportunidades. Inúmeros países falham em criar e/ou implementar legislações de combate e repressão à violência doméstica. Milhões de meninas são submetidas anualmente à Mutilação Genital Feminina. E, segundo dados o Unicef3, enquanto permanecemos subrepresentadas politicamente, em todas as esferas, 1 a cada 5 meninas e mulheres entre 15 a 49 anos reportaram ter sofrido algum tipo de violência física ou sexual ao longo dos 12 meses que antecederam a pesquisa, de 2017. As Nações Unidas tomaram para si, na Agenda 2030, a obrigação de se fazer cumprir, como Objetivo do Desenvolvimento Sustentável, até o fim da presente década, a igualdade de gênero e o empoderamento de todas as meninas e mulheres. Uma meta ambiciosa, considerando-se que as desigualdades sofridas por se nascer mulher na atualidade são asseveradas por um contexto global que ainda luta para romper com uma lógica colonial e eurocêntrica contra a qual a própria ONU falha em criar mecanismos para superá-la. As circunstâncias que oprimem mulheres em países em desenvolvimento são distintas daquelas que oprimem mulheres em países desenvolvidos. Kimberlé Crenshaw4, ao desenvolver a concepção de interseccionalidades, brinda a literatura feminista com elementos para compreender como as identidades políticas e sociais de uma mulher interferem diretamente na forma como a opressão do patriarcado operará sobre ela: se é cis, trans, branca, negra, LGBTQI+, em uma coleção de particularidades de classe, origem e raça que nos confrontam diariamente com as limitações do próprio 3 UNICEF. A Familiar Face: Violence in the lives of Children and Adolescents. Division of Data, Research and Policy, November 2017. Disponível em: https:// www.unicef.org/bulgaria/media/1511/file/BGR-violence-in-the-lives-of-children- and-adolescents-en.pdf 4 CRENSHAW, Kimberle. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stan. L. Rev., v. 43, p. 1241, 1990. 15 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas Feminismo e das teorias que o cercam. É necessário, mais do que em qualquer outro momento na história, repensar o feminismo sob a perspectiva da justiça social, que nasce no seio da interseccionalidade, compreendendo as desigualdades raciais, de orientação sexual ou a luta de classes. Um feminismo que não esconda, não inviabilize e não cale vozes lançadas pelo capitalismo à violência, à segregação, ao encarceramento e à morte. Porque o liberalismo também é fruto do patriarcado5. E esse patriarcado branco e ocidental afeta, inclusive em sociedades onde o patriarcado, como o conhecemos, não possui tanta influência assim, como na sociedade yorubá pré-colonial6, uma percepção que somente foi possível a partir do advento do feminismo decolonial, de María Lugones7, trazendo todas as outras perspectivas esquecidas por um capitalismo eurocêntrico, de onde surge, sim, o patriarcado, e que se reflete em teorias de um feminismo liberal, que ignora corpos racializados. E ainda assim, seguimos, mais questionadoras e constantemente questionadas, em um mundo cuja reformulação é palavra de ordem - o que é trazido à luz por inúmeras crises, como a atual pandemia da década de 20 e a crise democrática que assola o mundo Ocidental. Se Beauvoir nos disse que basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam 5 “Homens privilegiados foram os geradores do liberalismo e de sua ontologia individualista de pessoas. Não pode ser considerado, de maneira séria, uma coincidência que os homens, que muitas vezes são mais livres para funcionar de forma autônoma (isto é, relativamente intocados pelas necessidades das famílias, crianças e comunidade), também sejam os principais criadores e administradores de instituições contemporâneas que incentivam uma ênfase em individualismo, produtividade e competição extremos entre pessoas, em vez de uma ênfase na comunidade, no cuidado e na conexão entre as pessoas - uma ênfase que é comum - na verdade, geralmente necessária - em vidas caracteristicamente femininas.” (tradução nossa) In: CALLAHAN, Joan C.; ROBERTS, Dorothy E. A feminist social justice approach to reproduction-assisting technologies: A case study on the limits of liberal theory. Ky. LJ, v. 84, p. 1197, 1995. p.1206. 6 HOLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. p.20. 7 LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, v. 22, p. 935-952, 2014. 16 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte questionados, talvez esteja posto à atual geração um dos momentos ímpares na história da humanidade na qual, poucas vezes antes, a discussão sobre gênero tenha sido tão relevante. Na presente obra, de uma condução ímpar na literatura temática sobre Feminismo no Brasil, a saúde, a democracia e as múltiplas identidades de gênero são centrais aos 14 textos que aqui se seguem, trazidos brilhantemente por essas pesquisadoras e pesquisadores da nova geração do Direito Brasileiro. Enfrentar questões como: a participação de mulheres na academia, a importância da educação sexual, refletir a toxicidade da opressão do masculino também sobre os homens, o reconhecimento de identidades não-binárias de gênero, bem como mulheres trans, travestis e intersex no feminismo, e o feminismo negro, conversam, na mesma obra, com a abordagem filosófica da reconstrução do ser mulher na sociedade, sua participação nos processos políticos - como a Constituinte de 1987-88, sua voz na representatividade democrática, sua inclusão no mercado de trabalho, sua relação com as novas tecnologias e o quanto já se avançou legislativa e politicamente, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Ser mulher não é um conceito estável8, mas que se modifica historicamente, e o convite de prefaciar a presente obra se faz uma honra e um desafio: como mulher cis e branca, recorro à literatura para não cometer incorreções, tanto quanto minha parca percepção de mundo permite, até porque nem mesmo a representação mulher subsiste ao questionamento da representatividade, em todas as camadas que o tornar-se mulher9, política, social e identitariamente, enseja. 8 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2018. 9 “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilizac ̧ão que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro” In: BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009. p.307. 17 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas O feminismo não pode e não deve ter pretensão de universalidade, mas sim uma visão individualizada, sempre que possível, pois há inúmeras trajetórias invisibilizadas por uma narrativa única, e é esse um dos principais desafios da nova geração de feministas. Com a solenidade que o dever de prefácio me encerra, mas com o carinho de uma amiga que dá as boas-vindas à essa obra, introduzo vocês aos textos que se seguem, ciente de todas as interfaces dos múltiplos feminismos nos apresentam nas próximas páginas. Espero que contribua com a sua visão de mundo tanto quanto contribuiu com a minha. Para Marielle Franco e a próxima geração de Marielles. Estela Cristina Vieira de Siqueira Apresentação A ideia de organizar este livro, “Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas”, se deu a partir da vontade de fomentar e influenciar pesquisadoras e pesquisadores que escrevem e discutem gênero, feminismo, direitos das mulheres, sexualidadese teoria feminista, entre outras temáticas que envolvem os diálogos de gênero. No entanto, essa publicação não se apresenta apenas da vontade de fomentar esse debate, mas, também, da percepção de que esta é uma discussão fundamental para a academia brasileira contemporânea. Desse modo, o critério que nos orientou na seleção dos textos que compõem os capítulos deste livro foi o de mostrar os mais diferentes diálogos de gênero em variadas áreas do conhecimento. Assim, nesta obra podem ser identificados desde textos que discutem os direitos das trabalhadoras brasileiras, os seus direitos políticos e garantias constitucionais, até aqueles que apresentam abordagens acerca de educação e gênero, saúde e gênero, reflexões sobre saúde mental e masculinidades, tecnologia e gênero, os direitos de pessoas transgêneros e questões que envolvem intersecções de raça e classe, para além da opressão de gênero. Nesse sentido, a presente obra é composta por quatorze capítulos, escritos por homens e mulheres de diferentes regiões do Brasil e oriundos de variadas áreas do conhecimento, que se propõem a contribuir, cientificamente, para os diálogos de gênero e perspectivas contemporâneas no país. O primeiro capítulo da obra tem como título Compreensões sobre questões de gênero na Educação Infantil: Práticas docentes e foi escrito por Adriane Bonatti, Estéfani Barbosa de Oliveira Medeiros, Roberta Casarin Peruzzolo e Willian Edson Tomasi. O texto traz reflexões feitas por meio da análise bibliográfica do Portal da Capes por artigos publicados nos últimos 10 anos que falem sobre questões de gênero dentro da Educação Infantil e como se 20 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte dão as práticas docentes diante do tema. A pertinência do assunto é vista diante dos resultados: a escola não se identifica enquanto corresponsável pelo processo de ensino-aprendizagem e práticas docentes são pouco exploradas acerca da temática. Na sequência, o segundo capítulo, de autoria de Náthaly Zanoni Luza e Eliane Cadoná tem como título Gênero e saúde no ensino médio: os desafios da pesquisa em tempos de pandemia e os seus escritos fazem parte de uma pesquisa maior cujo objetivo consistiu em investigar sentidos de Identidade de Gênero, Orientação Sexual e Saúde exercitados por professores e professoras do Ensino Médio de uma cidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, a fim de evidenciar e problematizar os possíveis desdobramentos desses nos processos de subjetivação dos/as estudantes. O terceiro capítulo que compõe a obra é intulado de Psicologia e gênero: reflexões sobre saúde mental e masculinidades e tem como autoras Adriane Bonatti e Náthaly Zanoni Luza. O texto apresenta uma análise de práticas discursivas sobre as masculinidades, principalmente de dois importantes materiais: “Seja homem: a masculinidade desmascarada” e “Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação”, duas obras recentes que abordam os modos de subjetivação por intermédio dos dispositivos de gênero na contemporaneidade. Por uma epistemologia no ensino do direito é o quarto capítulo e tem como seus autores Nariel Diotto, Tiago Anderson Brutti e Elizabeth Fontoura Dorneles. O estudo tem como objetivo analisar a necessidade de inserção de uma epistemologia feminista no ensino do Direito de forma a contribuir para a formação de profissionais aptos a reconstruir os papéis da mulher na sociedade contemporânea. O estudo é qualitativo e exploratório, com base em pesquisa bibliográfica. Os principais resultados indicam que as epistemologias feministas podem ressignificar o Direito, sendo uma ferramenta de emancipação e não de subjugação das mulheres. Na sequência, a autora Julia da Silva Mendes assina o quinto capítulo, que tem como título O conflito quanto ao uso de vestiários 21 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas por transgêneros e transexuais e a colisão de direitos fundamentais. O texto aborda que as novas identidades sexuais estabelecem uma inovação na conjuntura social e cultural, desconstruindo comportamentos até então padronizados e hegemônicos. Neste contexto foram analisados os comportamentos sociais, em razão do modelo binário de gênero, e o posicionamento da jurisprudência a respeito da colisão de direitos fundamentais existente quanto ao uso de vestiários por transgêneros e transexuais. A contribuição do lobby do batom para o texto constitucional de 1988, de autoria de Letícia Maria de Maia Resende constitui o sexto capítulo da obra e traz um ensaio expositivo acerca da participação das mulheres no processo constituinte de 1987-88 que elaborou a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no dia 5 de outubro de 1988. O foco do trabalho consiste na análise do Lobby do Batom, que contribuiu de maneira substancial aos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Ademais, foram abordadas as demandas das mulheres e as conquistas consolidadas no texto constitucional vigente. A seguir, o sétimo capítulo é assinado pelos autores Bibiana Terra, Bianca Tito e Wendell Antônio R. de Andrade e tem como título Igualdade x Liberdade: Uma análise da evolução dos direitos das mulheres no Brasil após a promulgação da Constituição Federal de 1988. O texto teve como objetivo geral analisar o papel das mulheres na sociedade brasileira a partir das evoluções normativas ocorridas a partir da Constituição Federal de 1988 e do papel da representatividade política feminina. O artigo foi desenvolvido a partir de revisão da legislação vigente no Brasil, de forma com que sua relevância acadêmica consiste na análise da evolução normativa a partir de 1988. Maria Eduarda Bendler Nosvitz e Carin Otilia Kaefer Lisboa são as autoras do oitavo capítulo que compõe a obra e que tem como título Do tanque ao palanque: a resistência feminina e suas conquistas político-sociais. O texto refere-se à resistência feminina e suas conquistas político-sociais. Trata-se de uma pesquisa exploratória, onde utilizou-se como recurso metodológico a revisão 22 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte de literatura e pesquisa documental sobre a violência contra as mulheres. Buscou-se informações legais quanto aos direitos da mulher, assim como dados estatísticos sobre a violência de gênero e/ou sexo, consultando os principalmente sites governamentais. A inserção da mulher no cenário político a partir da óptica do feminismo negro é o nono capítulo que constitui a obra e é de autoria de Fabrício Aquino da Silva, Isadora Nogueira Lopes e Raquel Buzzati Souto. O seu texto aborda a tríade do feminismo negro em seu primeiro momento, conceituando gênero, classe e raça. Logo após, no segundo momento da pesquisa, foram realizadas ponderações em relação à inserção da mulher negra ao campo político, por intermédio de exemplos práticos da política brasileira. Na sequência, o texto Assédio sexual e as desigualdades patriarcais de gênero no ambiente de trabalho compõe o décimo capítulo que compõe a obra e é de autoria de Julia Mendes Silva. Este artigo tem por objetivo inicial tratar do assédio sexual da mulher, com enfoque específico no ambiente de trabalho, fazendo uma investigação sobre a desigualdade de gênero a partir de uma abordagem histórica da visão androcêntrica do mundo nas relações empregatícias e a íntima conexão que possui com os casos envolvendo assédio sexual. As autoras Isadora Marques Simões e Mariana Lopes Diegues assinam o décimo primeiro capítulo que compõe a obra e que tem como título A proteção do trabalho da mulher. O seu texto versa sobre a contextualização da inserção da mão de obra feminina no mercado de trabalho, analisando historicamente a desigualdade de gênero que nos acompanha até os dias atuais. O trabalho busca apontar as leis protetoras aos direitos trabalhistas das mulheres e como eles foram alcançados, além de pontuar como o feminismo influenciou na lutadas mulheres por direitos iguais. O trabalho do cuidado e as diversas formas de ser mulher: uma análise do trabalho doméstico a partir de um olhar interseccional compõe o décimo segundo capítulo do livro e é de autoria de 23 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas Thamiris Cristina Rebelato. O presente artigo tem como objetivo geral investigar o trabalho invisível ao sistema capitalista realizado pela mulher: o trabalho do cuidado, bem como sua naturalização e justificativa de atribuição baseada em sistema de opressão de gênero. O texto buscou também esclarecer as diversas opressões sociais sofridas pelas mulheres em âmbito laboral e a necessidade de validação de múltiplas realidades para a efetivação de direitos. O décimo terceiro capítulo da obra é de autoria de Bibiana Terra, Bianca Tito e Roana Funke Goularte e tem como título Direitos humanos, gênero e raça: uma análise da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher. O texto tem como objetivo geral abordar sobre a necessidade de uma análise interseccional de gênero e raça sobre os direitos humanos das mulheres. Para tanto, aponta que a interseccionalidade pode ser compreendida como uma ferramenta teórica e metodológica utilizada para demonstrar a inseparabilidade estrutural entre as opressões de gênero e raça. A partir desse conceito e tecendo comentários acerca da CEDAW, esse trabalho compreende que a interseccionalidade pode contribuir para o acesso das mulheres aos seus direitos. O décimo quarto texto tem como título Tecnologia e violência de gênero: tecendo espaço de prevenção na internet e compõe o último capítulo da obra, que é assinado pelas autoras Isadora Nogueira Lopes e Raquel Buzzati Souto. A pesquisa faz uma contextualização histórica a respeito da tecnologia, logo, em seu segundo momento, as autoras abordam alguns movimentos de relevância que foram difundidos por intermédio da internet. Por fim, seu terceiro momento se dedica a ponderar acerca de medidas adotas durante a pandemia para a prevenção da violência doméstica. Apresentados, brevemente, um resumo de cada capítulo que compõe a presente obra, agradecemos e parabenizamos todas as autoras e autores que, aqui, publicam suas pesquisas e, com isso, contribuem para o fomento e o estímulo das reflexões e diálogos de gênero em perspectivas contemporâneas. Debater essas temáticas nunca é fácil, mas é fundamental para que possamos avançar e 24 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte conquistar não apenas um ambiente acadêmico mais igualitário e mais plural, mas também para uma sociedade que considere as questões de gênero. Bibiana Terra Nariel Diotto Roana Funke Goularte Capítulo 1 Compreensões sobre questões de gênero na Educação Infantil: práticas docentes Adriane Bonatti Estéfani Barbosa de Oliveira Medeiros Roberta Casarin Peruzzolo Willian Edson Tomasi Considerações iniciais O presente trabalho surgiu do anseio de seus escritores em compreender, debater e problematizar as práticas pedagógicas de docentes da Educação Básica – especificamente da Educação Infantil1, no que tange às temáticas referentes a gênero e sexualidade. Para tanto, buscou-se entender o que os documentos legais, quais sejam, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) preveem sobre tais temáticas e, por outro lado, recorreu-se a pesquisa bibliográfica para que através dos estudos existentes, fosse lançada a compreensão de “O que dizem os documentos?” e “Quais são as práticas vivenciadas pelos docentes?”. Para a realização da pesquisa bibliográfica, utilizou-se os descritores “Educação Infantil AND Gênero”, nas plataformas de busca: SCIELO que apresentou 01 resultado; BVS não apresentou nenhum resultado; PUBMED, apresentou 01 resultado, no entanto, não estava relacionado a proposta do trabalho; LILACS, apresentou 33 resultados e, por fim, a outra plataforma recorrida foi o Portal da CAPES que apresentou 1.535 resultados. Utilizou-se 1 Entende-se como Educação Infantil a primeira etapa da educação básica Brasileira, correspondendo à faixa etária dos 0 aos 5 anos e 11 meses, segundo a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) 26 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte como filtro os últimos 10 anos (2011-2021) em todas as plataformas de buscas. Nesta etapa, foram selecionados os trabalhos mais congruentes com a temática, em que três autores selecionaram dois trabalhos para análise enquanto um deles estudou os documentos legais. Os trabalhos encontrados nas plataformas de buscas foram analisados através da Análise de Conteúdo de Bardin (2004). Para tanto, elencou-se tais categorias: O cuidado generificado: a quem cabe ensinar na Educação Infantil?; Práticas narrativas e comportamentais versus criança assexuada; O (des)preparo e (des) amparo técnico do/a Docente: enfrentando desafios. Neste trabalho parte-se da perspectiva de que a escola tem um papel muito além da mera transmissão de conhecimento, haja visto que os estudantes não frequentam a escola apenas para aprender e decorar conteúdos. A escola é um espaço, sobretudo, de trocas, de socialização, de formação do humano, de desenvolvimento de capacidades individuais e coletivas. Contudo, há algumas ressalvas a essa instituição cujo potencial é formar cidadãos. A primeira delas é “Como é decidido qual é o ideal de ser humano que será formado?” e, “Quais estratégias serão adotadas para formar o ser humano ideal?”. É sabido que cada momento histórico e cultural dita normas, regras, ideais e ideologias. Como consequência, a escola não se configura como um espaço neutro, ao contrário, ela é permeada por sentidos e significados, onde também se produzem e se reproduzem exclusões vivenciadas em outras esferas da vida do estudante como na família e na sociedade. A partir destas reflexões, faz-se pertinente questionar: como formar indivíduos abertos para as diversidades, respeitando-as e considerando-as necessárias e pertinentes, para o combate à discriminação, a violência e as desigualdades? (BRASIL, 2018; SIBILIA, 2012). Através da preocupação com estas indagações, recorreu- se à BNCC, para entender se ela prevê práticas pedagógicas e obrigatoriedades aliadas às temáticas referentes a gênero e sexualidade na educação infantil. Este documento assume um caráter normativo que define um conjunto orgânico e progressivo das aprendizagens consideradas essenciais, que todos os estudantes precisam e devem 27 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas desenvolver ao longo das etapas da Educação Básica. O objetivo da BNCC é, então, assegurar os direitos de aprendizagem e de desenvolvimento dos estudantes, para que possam ter acesso a uma formação humana integral, à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva. Assim, no decorrer da Educação Infantil, os estudantes devem desenvolver dez competências gerais2. Serão mencionadas a seguir as que mais possuem consonância com a temática proposta. 8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas; 9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo- se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza; 10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. (BRASIL, 2018, p. 10). À luz destas competências, é possível perceber a preocupação em formar cidadãos que estejam abertos à diversidade, que tenham empatia, que respeitemo outro, os direitos humanos, que acolham e valorizem as diversidades – dos indivíduos e de grupos sociais, bem como, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, rompendo preconceitos de qualquer natureza. A educação infantil, é a primeira etapa da educação básica, e, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBN (1996), é nela em que o estudante tem o primeiro contanto com um convívio social mais amplo, ou seja, deixa de fazer parte apenas do bojo familiar. Nesta perspectiva, a escola se apresenta como um espaço que propicia a convivência com as diferenças, além de oportunizar um espaço coletivo em que a criança pode vivenciar a sua infância, 2 Para o documento competência é entendida como a mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que conduzirão o estudante a resolução das demandas da vida cotidiana. 28 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte construir conhecimento, produzir cultura, aprender regras sociais, conviver e interagir com os outros (BRASIL, 1996; BRASIL, 2018; BATISTA, NAKAYAMA, 2019). Além de realizar a análise da BNCC, optou-se por compreender também, o que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação aborda sobre as mesmas temáticas. Além disso, posterior à leitura minuciosa, foram selecionados os princípios que mais conversam com o tema deste estudo. Pontua-se que no Art. 3º, do Título II, que dispõe dos “Princípios e fins da educação nacional”, há um deles que pode estar relacionado à temática da diversidade, qual seja: “respeito à liberdade e apreço à tolerância”. Entretanto, assim como na BNCC, compreende-se que estes princípios são abrangentes e não direcionam, ou deixam claro, de quais temáticas se fala quando se referem à diversidade, portanto, não há menção de gênero ou sexualidade nestes documentos. Desta maneira, as próximas páginas deste trabalho se propõem a compreender como se dá as vivências dos docentes diante de tais temáticas. Vale destacar ainda que os movimentos de reflexão deste capítulo surgiram a partir da participação dos/as autores/ as, enquanto bolsista, no Grupo de Pesquisa em Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - Campus Frederico Westphalen (URI/FW). O grupo estuda, em conjunto com o Programa de Pós Graduação em Educação, os discursos de gênero presentes na mídia e nos documentos oficiais da educação brasileira. O cuidado generificado: a quem cabe ensinar na Educação Infantil? Embora as discussões atreladas a temática proposta pelo trabalho traga, através dos estudos de gênero, a diferenciação dos espaços ocupados por homens e mulheres, meninos e meninas, e entendam essas características como construções sociais, são poucos os artigos que discutem a ausência dos homens na docência infantil, sendo dos artigos analisados, um tema pouco abordado (SILVA et 29 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas al., 2015; CIRIBELLI; RASERA, 2019; BATISTA; NAKAYAMA, 2021; CÓLIS; SOUZA, 2020; PEREIRA; OLIVEIRA, 2021). Quando propõe-se elaborar um diálogo entre infância e os estudos de gênero, há o objetivo de traçar novos meios de desnaturalizar as relações dicotômicas entre o masculino e o feminino que se retratam na sociedade, na cidade e nas instituições. Deste modo, entende-se que gênero não é uma categoria fixa, natural e imutável, logo, a polarização binária que comumente se apresenta nas discussões atreladas às relações de gênero, seja no ambiente educacional ou não, é histórica e socialmente construída, e assim sendo, passível de análise (ANJOS; OLIVEIRA; GOBBI, 2019). Entende-se por desnaturalizar, colocar em pauta e problematizar as discussões acerca das vivências em sociedade, uma vez que as relações de gênero são entendidas como componentes constitutivos das relações sociais baseadas em diferenças percebidas entre os sexos, como uma maneira de dar significação às relações de poder. Tais concepções criam regras e maneiras de ser deste a tenra idade, estando relacionadas às formas de se expressar, brincar e usar (ANJOS; OLIVEIRA; GOBBI, 2019). Pensa-se a escola e a Educação Infantil como ambientes que refletem as premissas relacionais de gênero que perpassam os demais âmbitos sociais, desta forma, de acordo com Leão (2012) a escola é uma instância de normatização que disciplina os corpos, sendo capaz de propagar concepções de estereótipos sexistas e padrões de comportamentos cristalizados para homens e mulheres. Sendo assim, esta etapa da educação faz parte de um sistema simbólico, com papel determinante na produção e representação dos gêneros, portanto, é de suma importância que se pense como são estabelecidas as dinâmicas entre os corpos no contexto da educação (GIACHINI; LEÃO, 2016). Isso também é evidenciado e perpetuado na Educação Infantil através dos/as docentes, como a proporção de homens ocupando cargos de professores, sendo esta uma porcentagem 30 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte extremamente baixa. De acordo com a última Sinopse Estatística da Educação Básica, publicada em 2020, no Rio Grande do Sul, apenas 5,8% dos docentes da Educação Infantil se identificam como homens (INEP, 2020). Antigamente, a relação de gênero na educação escolar brasileira era diferente, com apenas homens atuando como docentes. Porém, devido aos acontecimentos sociais dos séculos XIX e XX, como a Revolução Industrial, as mulheres passaram a ter papel ativo na sociedade e fora da família, ocupando alguns lugares anteriormente preenchidos por homens, sendo a Educação Básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio) quase totalmente constituída por mulheres, por um processo de feminização do magistério (GONÇALVES; FARIA, 2015). A legitimidade do feminino no padrão heteronormativo, falocêntrico e compulsório é conferida a partir de referências que dependem exclusivamente da relação da mulher com o outro e dos papéis atribuídos socialmente nesta relação: esposa e mãe. Dessa maneira, as profissões adequadas para seu universo de características naturalizadas, estariam ligadas às qualidades do cuidado emocional e físico, como por exemplo, enfermeira, professora primária, cozinheira e bordadeira. Desse modo, a diferenciação binária (homem-mulher) e as atribuições essencializadas das características atribuídas aos seres humanos (masculino-feminino) ligam-se diretamente às atuações e disputas de poder. (SOARES, 2015, p. 242). Contudo, diferente do processo de feminização do magistério no Ensino Fundamental e Médio, a Educação Infantil traçou um caminho diferente, tendo surgido como um ambiente de ocupação feminina, atendendo a demanda da nova classe trabalhadora que estava à disposição no mercado de trabalho, inicialmente, com caráter assistencialista, suprindo o cuidado que não foi exercido pelas mães, sendo a inserção de homens nesta etapa da educação consideravelmente nova (XAVIER; ALMEIDA, 2016). Segundo a pesquisa de Gonçalves e Penha (2015), que consistiu em entrevistas semiestruturadas com quatro homens, dois 31 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas acadêmicos e dois egressos3 do curso Pedagogia com idades entre 19 e 53 anos, a atuação masculina na Educação Infantil ainda é polêmica. Na pesquisa, surge a ideia estereotipada que homens não estariam aptos para trabalhar com bebês, especialmente por nesta etapa do desenvolvimento as ações educativas estarem atreladas à higiene da criança, como trocar e dar banho, tarefas que ainda são culturalmente atreladas às mulheres, entretanto, vale ressaltar que nesta etapa o higienizar está atrelado a uma lógica de cuidado e educação. Outro dado importante trazido pela pesquisa, mostra que nenhum dos entrevistados teve interesse inicial na referida graduação, mas buscavam outras áreas da licenciatura. Outra pesquisa realizada por Ferreira e Oliveira (2016) com três docentes homens da Educação Infantil corrobora com os dados já citados.Inicialmente, nenhum deles tinha como objetivo trabalhar na Educação Infantil, sendo esta uma atividade exercida pela “necessidade de trabalho” e “o que apareceu”. Novamente, a ideia de cuidar e educar na Educação Infantil aparece atrelado a figura da mulher, porém, de acordo com a pesquisa, é perceptível que caminha-se em direção à superação desses estereótipos de gênero. Vale ressaltar que, em contrapartida, a LDB e o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) (BRASIL, 1998) não corroboram com estes pensamentos e se baseiam em construções histórico-sociais dos papéis dos homens e das mulheres e de que o homem não tem aptidão para ensinar na Educação Infantil, visto que em suas diretrizes não mencionam nada sobre o gênero do/a docente, mas sim, sobre a formação profissional necessária para atuar dentro destes contextos, como formação superior ou magistério e um profissional polivalente, capaz de refletir suas práticas, ensinar e aprender com seus alunos. 3 Inicialmente, as autoras pretendiam fazer a coleta de dados com professores homens que estivessem atuando na Educação Infantil, contudo, no município da pesquisa, não havia a presença de tais profissionais. 32 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte Práticas discursivas e comportamentos versus criança assexuada Como categoria de análise percebeu-se que, dos oito artigos analisados, todos apresentam as narrativas destinadas às crianças e evocadas pelos/as docentes que, por diversas vezes, traziam consigo a desigualdade de gênero e, por consequência, o machismo, reproduzindo padrões de discurso normativo referente a cultura de gênero presente em seu cotidiano. Essa reprodução é fruto das vivências pessoais e da falta de suporte técnico observada dentro do ambiente escolar da Educação Infantil sofrida pelos/as docentes (SCHINDHELM, EVANGELISTA, 2013 SILVA et al., 2015; SCHINDHELM; HORA, 2016; SILVA, 2017; CIRIBELLI; RASERA, 2019; BATISTA; NAKAYAMA, 2021; CÓLIS; SOUZA, 2020; PEREIRA; OLIVEIRA, 2021). Estas narrativas condizem com o que é imposto socialmente como característico de masculinidade e feminilidade, ou seja, determinados comportamentos e falas são esperados em determinado gênero. Vale ressaltar que gênero, segundo Bourdieu (2002), de acordo com a teoria feminista, seria uma construção histórica, social, educacional e cultural de papeis, identidades, características e valores atribuídos a mulheres e homens. Nesse sentido, se apresenta também como um princípio de divisão social, em que homem e mulher encontram-se em pólos opostos como, por exemplo, a destinação da palavra forte para o homem e fraco para a mulher. Fazendo surgir uma simbologia divisória entre masculinidade e feminilidade, ambas atreladas ao poder que desempenham. As relações de poder dizem sobre identidade e diferença, elas demarcam fronteiras, classificam e, consequentemente, por uma hierarquia, advêm noções de valor. Todo esse encadeamento, de acordo com Silva (2004), culmina em processos de normatização que irão selecionar uma determinada identidade padrão à qual todas as outras serão hierarquizadas e avaliadas. A simbologia e os processos de normatização aparecem dentro das práticas dos/as docentes da Educação Infantil, ora através 33 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas de frases que induzem o pensamento da polaridade, em que meninos são vistos como mais agressivos e enérgicos e as meninas como mais gentis e calmas, ora através de comportamentos repressivos como, por exemplo, um olhar de reprovação quando uma menina grita ou quando um menino expressa o desejo de brincar de boneca ou a separação dos banheiros por cores: rosa, para meninas, e azul, para os meninos. Esses discursos e comportamentos, que por si só já trazem uma informação, mesmo que sem a utilização de palavras, colaboram para que as polarizações continuem a aparecer e, portanto, fixam a simbologia entre a masculinidade e a feminilidade indo contra a educação não sexista proposta pelo RCNEI (BRASIL, 1998) e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) (BRASIL, 2009). Ciribelli e Rasera (2019) comentam que é preciso pensar em como as narrativas de gênero devem aparecem em ambiente escolar pela compreensão de que as crianças criam sentidos referentes ao dualismo de gênero quando há, em seus relacionamentos com pais, docentes e demais familiares, a legitimação de marcadores de gênero. Além disso, a identidade, segundo Silva (2004), é instável, fragmentada, inacabada, por vezes, contraditória e está ligada às estruturas narrativas, discursivas e aos sistemas de representação. Logo, a escola, além de democratizar o conhecimento, retém uma parte da responsabilidade de possibilitar a experiência de formação do sujeito em todos os sentidos, incluindo as questões de gênero. Ademais, em todos os artigos analisados, as crianças foram vistas como seres assexuados, sem desejos e quaisquer demonstrações de sua sexualidade devem ser controladas e, mais uma vez, postas dentro do que é considerado politicamente aceitável. Assim, enquanto o gênero é compreendido como as diferenças construídas socialmente entre o que é considerado masculino e feminino, a sexualidade é vista como as diversas maneiras de experienciar prazeres e desejos através de um conjunto de identidades, comportamentos, crenças e relações construídas e modeladas pela história, isto significa que, não estão somente relacionadas a ideia do indivíduo, mas precisam ser entendidas dentro de um contexto 34 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte cultural e social (WEEKS, 2000; LOURO, 2007; LOURO, 2008). Ademais, para Foucault (1977) a sexualidade é vista como uma construção social relacionada ao poder e à regulação. A sexualidade, independentemente da idade, sempre foi e é vista com alguns preconceitos e tabus que acabam por dificultar pais e educadores de lidar de forma assertiva com as manifestações dela, principalmente durante a infância. É importante salientar que, antes mesmo de nascermos, a sexualidade já está presente em nosso viver. Para a autora Silva (2019, p. 17): Antes mesmo de nascermos, a sexualidade está presente. Ela se inicia no exercício da maternidade, aliás muito antes, quando surge o desejo de ter um filho, quando o embrião foi fecundado numa relação sexual [...]. A partir do momento em que descobrem que estão esperando um bebê, inicia-se, no imaginário materno e paterno, a constituição deste sujeito. Posterior a isso, a autora comenta que a imaginação toma forma, imagina-se um menino ou uma menina, qual a cor dos olhos, entre outras idealizações. Essas idealizações vão de encontro com as marcas culturais relacionadas a sexualidade, na construção de gênero e preconcepções já podem ser vistas. As idealizações também dão espaço a sexualidade, no sentido de que esta segue sendo construída a partir das primeiras experiências afetivas do/a bebê, seja com mãe, pai e/ou cuidador/a. Isso traz a reflexão de que geralmente a criança é vista sob os olhos e o mundo dos adultos, onde demonstrar sua sexualidade não é permitido e, caso ela apareça, estará envolvida num estado de reprovação, por parte dos adultos. Porém, a visão de mundo de uma criança é diferente da de um adulto; sob sua perspectiva não há preconceitos, reprovações ou censuras referentes à sua existência. Para Delgado e Müller (2005), as crianças dão significados ao mundo de uma forma específica à realidade infantil, ou seja, a partir de uma lógica própria que é diferente daquela dos adultos. Ainda, de acordo com Ribeiro (2006), as brincadeiras sexuais são formas lúdicas adotadas pelas crianças para lidar com seus corpos e com os dos outros, nas quais há representações de sexualidade 35 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas influenciadas por concepções de gênero (CIRIBELLI; RASERA, 2019). Para Silva (2019), a forma como a criança compreendeo mundo se dá por meio das fantasias, uma forma não tão elaborada ou amadurecida de pensamento. As fantasias são concretizadas por intermédio das brincadeiras e jogos. Ao brincar elas vivenciam seus conflitos, expressam sentimentos, desejos e vivem na fantasia diferentes papéis, incluindo aqui os identificatórios de gênero. Além disso, ao contrário do que muitos adultos pensam, o brincar e a curiosidade sexual são indicativos de um desenvolvimento infantil sadio e criativo Ademais, a forma como as crianças costumam lidar com algo relacionado à diversidade de orientação sexual, gênero ou identidade, foi conferida por Ciribelli e Rasera (2019) através de dois movimentos: testagem e exploração. No movimento de testagem havia a investigação e testagem referente à diversidade que os observadores, e também autores do artigo, apresentavam, partindo de um estranhamento até chegar a uma conclusão particular. Já no movimento de exploração, as crianças procuravam entender a diferença entre a diversidade de forma exploratória, pesquisando, mas sem hipóteses claras. Assim, quando as crianças percebiam algo dentro do âmbito da diversidade e diferença sexual como um dos observadores usando piercing, por exemplo, elas buscavam entender esses elementos das duas formas citadas anteriormente, logo, a partir de determinado receio e cautela – testagem, ou a partir de espontaneidade e tranquilidade – exploração. Em suma, identidade e gênero são conceitos importantes quando conversamos sobre a sexualidade e a educação infantil. A partir desses conceitos, a sexualidade deixa de ser pensada como algo apenas biológico e passa a ser associada aos processos sociais de construção da identidade a partir de normas culturais de gênero. Assim, os conceitos de identidade e de diferença não podem ser vistos de forma separada, pois são mutuamente determinados e resultados da linguagem (SILVA, 2004). 36 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte Desta maneira, é necessário que haja uma visão pluralista, um ambiente acolhedor e estimulante com espaço para a imaginação das crianças e elaboração de suas fantasias. Aos/às docentes, indica- se compreender a forma como a criança percebe o mundo, aceitar que há sexualidade naquele ser e, principalmente, entender sobre as questões de gênero, para que elas possam ser trabalhadas em sala de aula e, a partir daí, possibilitar o exercício de uma sexualidade de forma saudável e não censurável como foi observado nos artigos analisados. O (des)preparo e (des)amparo técnico do/a docente: enfrentando desafios Na presente categoria de análise, percebeu-se que em seis dos oito artigos analisados, estiveram presentes aspectos relacionados às diferentes dificuldades/empecilhos dos/as docentes em trabalhar as temáticas relacionadas à sexualidade e gênero (BATISTA; NAKAYAMA, 2019; CIRIBELLI; RASERA, 2019; CAVALEIRO, 2006; PEREIRA; OLIVEIRA, 2016; SCHINDHELM; EVANGELISTA, 2013; SCHINDHELM; HORA, 2016). Nesta tópica, propõe-se a discussão de aspectos que envolvem o (des)preparo e o (des)amparo de docentes na Educação Infantil, bem como alternativas de intervenções que possibilitem o trabalho com crianças acerca das temáticas relacionadas ao gênero e sexualidade. Neste contexto, faz-se pertinente retomar o conceito de gênero. Pereira e Oliveira (2016) consideram que a referida palavra remete às diferentes formas as quais as pessoas vivem e convivem socialmente os sexos feminino e masculino. Afirmam que estes modos são aprendidos nos espaços sociais por meio da cultura, sejam eles espaços institucionais ou não. Faz-se importante retomar que a instituição escolar atua como um dos ambientes mais importantes nessas aprendizagens, já que, conforme Batista e Nakayama (2019), a Educação Infantil marca 37 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas o primeiro convívio social mais amplo das crianças, viabilizando a convivência com diferenças que, muitas vezes, não são conhecidas na família. Na escola, as crianças têm um espaço próprio e coletivo de educação para viver a infância, construir conhecimento e produzir cultura. Assim, é preciso que sejam respeitadas como sujeitos históricos e de direitos em todas as dimensões, oportunizando a elas a possibilidade de aprender a conviver com valores e regras estabelecidas, interagindo e participando de construções sociais. Desta forma, é imprescindível discutir a temática acerca do preparo/aporte tanto teórico quanto vivencial de docentes para trabalhar questões de gênero com as crianças no âmbito escolar. Batista e Nayakama (2019) afirmam que é necessário atentar às práticas dos/as docentes que, muitas vezes, passam despercebidas, e que expressam e reproduzem concepções preconceituosas. Considerando que o ambiente escolar é um importante espaço de desconstrução de comportamentos estereotipados, é de suma importância que questões de gênero sejam trabalhadas, com o intuito de promover práticas educativas que não sejam de cunho discriminatório desde a primeira infância. Segundo Schindhelm e Hora (2016), as crianças vivenciam experiências e também fazem perguntas acerca das temáticas de gênero e sexualidades que, muitas vezes, deixam grande parte da equipe escolar em situações constrangedoras. Nestes momentos, os/ as docentes podem entrar em conflito com o seu desconhecimento, com a sua cultura, com os seus medos sobre sexualidades ao serem confrontados pelas crianças em suas curiosidades e lógicas tão peculiares. Infere-se que esses são temas que comumente aparecem nos currículos como situações/problemas que precisam ser discutidas e pensadas, considerando as demandas da comunidade escolar como um todo. Conforme os mesmos autores, uma das omissões nos currículos da Educação Infantil refere-se às questões de gênero e sexualidades, uma temática que é ainda considerada um tabu em diversos ambientes. Não é a escola o único espaço em que esses problemas se apresentam; é onde eles se reproduzem como 38 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte circunstâncias acerca daquilo que acontece na vida dos sujeitos sociais. Sendo assim, os/as docentes, muitas vezes, sentem-se desprovidos e pouco informados acerca dos saberes e experiências que possibilitem prepará-los para melhor conviver com as temáticas das sexualidades no contexto escolar. Ciribeli e Rasera (2019) e Cavaleiro (2006), afirmam que a escola é compreendida enquanto uma instituição social que tem papel fundamental no processo de construção de questões relacionadas ao gênero e à sexualidade, visto que é um importante local de convivência no qual as crianças desenvolvem-se socialmente. Contudo, apesar dos avanços nas discussões teóricas acerca das temáticas de gênero e sexualidade, as escolas ainda parecem ocupar um espaço conservador que visa controlar aquilo que foge da normatização hegemônica da construção da sexualidade. Assim, muitas vezes, o espaço escolar acaba por tornar-se uma ferramenta que impulsiona a normatização da heterossexualidade, além de determinar uma posição dicotômica de gênero. Para Junqueira (2009), a escola é elemento primordial no combate de mecanismos que identificam as normas sociais na heterossexualidade. Ademais, ela representa a possibilidade de convivência, produção e transmissão de conhecimentos e o aprendizado de valores, crenças, representações e práticas relacionados a preconceitos, discriminações e violências de ordem racista, sexista, misógina e homofóbica. Schindhelm e Evangelista (2013) apontam que o conhecimento é uma construção coletiva e um produto cultural. Assim, cabe ao adulto intermediar as relações das crianças considerando os elementos culturais e promovendo trocas e descobertas que possibilitem a integração de diferentes áreas do conhecimento, inclusive àquelas que tangem os temas de gênero e sexualidade. Desta forma, ainda segundo as mesmas autoras, destaca-se a importância das temáticas gêneroe sexualidade serem destacadas no contexto escolar, considerando que a mesma precisa ser refletida 39 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas pelos/as educadores de modo a desmistificar os desconhecimentos e os preconceitos sexuais presentes nas práticas docentes além da necessidade da busca por novas concepções que envolvam aspectos vivenciados sobre gênero e sexualidade, no exercício da profissão, como estratégias que propiciem a melhoria do processo de formação docente, levando em conta a construção de novas possibilidades de discursos como também de práticas educativas. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) considera o “brincar” uma ação que se relaciona com uma das principais formas de aprendizagem para as crianças, principalmente as da Educação Infantil. Por meio do brincar, possibilita-se a ampliação e diversificação de conhecimentos, da imaginação, criatividade, experiências emocionais, corporais, sensoriais, cognitivas, sociais também relacionais. Desta forma, a criança pode expressar-se de forma livre, tendo a oportunidade de conhecer-se e desenvolver- se a fim de que se torne alguém que possa viver em liberdade, considerando e desbravando as diferentes possibilidades de ser no mundo. Considerações finais Percebeu-se através da análise da BNCC que apesar de constar sobre a temática da diversidade, as informações são bastante vagas, tornando dificultoso o direcionamento dos/as docentes para que estes possam trabalhar e aplicar estas questões em sala de aula. Também foi percebido que as mulheres estão em maior número enquanto docentes na Educação Infantil, isso ocorre por, nesta etapa, o educar e o cuidar estarem atrelados e, historicamente, atribuídos à figura feminina. Desta forma, é possível compreender que existe uma visão generificada de quem pode ocupar o espaço da docência, isso corrobora com a necessidade de se pesquisar gênero na Educação Infantil, buscando expandir as amarras de gênero. Verificou-se também que as práticas discursivas e narrativas dos/as docentes modelam o aprendizado infantil com base nas 40 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte vivências e práticas cotidianas no contexto escolar. Ainda, a sexualidade da criança é negada, compreendendo a mesma como um ser assexuado. Por meio de falas e comportamentos, docentes reproduzem práticas e modelos pré-existentes através da cultura e do social, criando normas a serem seguidas, na maioria das vezes impostas aos/às alunos/as. Ademais, destacam-se questões relacionadas ao despreparo técnico dos/as docentes para integrarem as temáticas relacionadas à sexualidade e gênero em suas práticas pedagógicas. Para tanto, entende-se enquanto necessária a expansão de suportes, bem como formação inicial e continuada de docentes para que os mesmos/as possam estar preparados/as para uma educação libertadora e não- opressora. Referências ANJOS, Cleriston Izidro dos; OLIVEIRA, Djenane Martins; GOBBI, Marcia Aparecida. Políticas de educação infantil e relações de gênero: implicações para a formação docente na perspectiva da diversidade e da diferença. Cadernos Cimeac, [S.L.], v. 9, n. 1, p. 34-54, 27 jul. 2019. Universidade Federal do Triangulo Minero. Disponível em: http://dx.doi.org/10.18554/ cimeac.v9i1.3860. Acesso em: 08 mar. 2021. BATISTA, Raquel Aparecida; NAKAYAMA, Bárbara Cristina Moreira Sicardi. Fotonarrativas de Práticas Pedagógicas: Uma análise sobre as percepções de gênero da Educação Infantil. Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 16, n. 3, p.34- 46 jul/set 2019. BOURDIEU, P. A dominação masculina. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. Tradução: Maria Helena Külner. 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Aqui, descreveremos nossas experiências, na condição de pesquisadoras, junto ao sub-projeto intitulado Práticas discursivas e produção de sentidos sobre Gênero e Saúde: com a palavra, professores/ as do Ensino Médio, desenvolvido no período de agosto de 2019 a dezembro de 2020. Nesta parte do estudo, nosso objetivo consistiu em investigar sentidos de Identidade de Gênero, Orientação Sexual e Saúde exercitados por professores e professoras do Ensino Médio de uma cidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, a fim de evidenciar e problematizar os possíveis desdobramentos desses nos processos de subjetivação dos/as estudantes. Para tanto, o método de investigação e coleta de dados escolhido foi a entrevista semiestruturada, que seria realizada de modo presencial com os/as professores/as selecionados a partir dos dados fornecidos pelas escolas. Contudo, em virtude da Pandemia 46 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte de Covid-19 que se estabeleceu em março de 2020, ocasionando medidas de isolamento social, as etapas de coleta e análise dos dados foram inviabilizadas, uma vez que o projeto precisou ser retificado através de emenda para que pudéssemos dar seguimento de maneira remota. Ainda assim, após submissão da emenda que altera o método de coleta dos dados e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), bem como posterior autorização do Comitê de Ética para darmos sequência à pesquisa, o contato com as escolas manteve- se inviável diante das restrições dos protocolos de segurança, que mantiveram tais espaços fechados e os/as educadores/as trabalhando em suas casas. Embora o Comitê de Ética em Pesquisa o qual foi submetida a emenda autorizou a realização das entrevistas de forma on-line, por intermédio do Google Meet, os contatos com as escolas não obtinham sucesso e, quando um diálogo se iniciava, o pedido das mesmas era de deixar, por ora, a organização do espaço e da equipe se reestabelecer de modo presencial para que, então, fosse possível passar a logística de professores/turmas. Tal intermediação, por parte das secretarias e direção das escolas, que nos parecia, em um primeiro momento, tão possível e simples na realidade, juntando- se ao montante de atividades e readaptações no campo da educação nos fez perceber que aquele não era o momento de insistir para que houvesse o fornecimento de dados que, segundo alguns locais, exigiria tempo da parte deles para ser compilado. Em outros casos, os contatos com as escolas não tiveram êxito, mesmo via telefone. Algumas equipes reuniam-se esporadicamente, em dias específicos, e o foco era somente na passagem das atividades remotas aos e às alunas. Diante disso, redirecionamos nosso cronograma das atividades desenvolvidas durante o ano pelo grupo de pesquisa, como a criação de um grupo de leitura sobre Gênero e nos aprofundamos teórica e metodologicamente com os pressupostos da pesquisa Construcionista. . 47 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas Ressaltamos que o grupo de leitura tinha como intuito movimentar as problematizações, dentro e fora do espaço acadêmico, sobre Gênero e Sexualidade, à medida que propunha uma discussão, com base nos quatro volumes da História da Sexualidade, escritos por Michel Foucault. Entendemos que a situação instaurada, em função da pandemia, não podia nos impedir de movimentar ações, frutos de estudos consolidados dentro do grupo de pesquisa. Os aprofundamentos teóricos, em especial no que tange às ferramentas teórico-metodológicas também serviram para rebuscar as articulações entre o método e a futura pesquisa a campo. A criatividade como ferramenta de continuidade O ano de 2020, considerado “atípico”, demandou novas formas de organização tanto na esfera individual quanto na coletiva. Na pesquisa, nos deparamos com as limitações de cronogramas e objetivos já definidos, e, ainda, com a demanda de adaptação aos meios tecnológicos que, até então, não eram ferramentas tão necessárias para o andamento da pesquisa. Entretanto, o papel da metodologia científica, conforme Goldenberg (2007) é exatamente o de nos proporcionar reflexões e lançar um novo olhar sobre o mundo, permitindo essa familiarização com o desconhecido. Esse olhar nos exige curiosidade, indagações e, principalmente nesse contexto, criatividade. Em seu livro A arte de Pesquisar, a autora discorre sobre a imprevisibilidade da pesquisa, ainda que nós, pesquisadoras/ es, construamos um cronograma com início, meio e fim. (GOLDENBERG, 2007, p. 13). Nesse sentido, ela exige criatividade, disciplina, organização e um confronto constante com o que é possível, com nossas limitações, até onde conhecemos e até onde conseguimos assumir nosso desconhecimento diante de algumas questões. Anteriormente as ciências se pautavam em um modelo quantitativo de pesquisa, em que a veracidade de um estudo era verificada pela quantidade de entrevistados. Muitos 48 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte pesquisadores, no entanto, questionam a representatividade e o caráter de objetividade de que a pesquisa qualitativa se revestia. É preciso encarar o fato de que, mesmo nas pesquisas quantitativas, a subjetividade do pesquisador está presente. (GOLDENBERG, 2007, p. 17). Nesse sentido, a autora reflete sobre a pesquisa enquanto um lugar de possibilidades no qual podemos nos beneficiar e criar formas de praticá-la. Ao longo da história do fazer científico, a noção de subjetividadee do real papel dos/as pesquisadores/as enquanto seres implicados com seu local e objeto de pesquisa foram sendo desmistificados e afastados das ideias de neutralidade e objetividade herdadas da ciência ortodoxa. Haja vista a necessidade de nos reinventarmos nesse ano – dada a impossibilidade de irmos a campo realizar a coleta de dados e, ainda, a necessidade de aguardarmos a autorização para alterarmos o método de coleta - redirecionamos nossas práticas enquanto grupo de pesquisa e assumimos a necessidade de ter que lidar com o inusitado, com aquilo que desestabiliza e que mostra que realizar uma pesquisa qualitativa implica em conscientizar-se de que, parafraseando Paulo Freire, o caminho metodológico é, sem dúvida, construído e reconstruído em meio ao processo. Fortalecendo a base teórico-metodológica Considerando os objetivos dessa pesquisa, a obra de Foucault é introdutória para qualquer discussão sobre as questões de sexualidade, principalmente porque esse tema foi e é atravessado por conceitos sob os quais o autor se dedicou em seus escritos, como o lugar do simbólico e as relações de poder que formam os jogos institucionais e, ainda, a análise discursiva. Para Foucault, nada há por trás das cortinas, nem sob o chão que pisamos. Há enunciados e relações, que o próprio discurso põe em funcionamento. Analisar o discurso seria dar conta exatamente disso: de relações históricas, de práticas muito concretas, que estão vivas nos discursos. (FISCHER, 2001, p. 198). 49 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas As noções sobre sexualidade sempre estiveram relacionadas à “natureza humana”. Partindo desse princípio, discuti-la sobre os aspectos sociais e políticos, ou, ainda, enquanto algo construído por nós, homens e mulheres, sujeitos sociais, torna-se um desafio na medida em que todas as concepções anteriores estão atreladas aos corpos e à ideia de universalidade produzida e fomentada pelas Ciências durante muito tempo. (LOURO, 2000). As muitas formas de fazer-se mulher ou homem, as várias possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são sempre sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente (e hoje possivelmente de formas mais explícitas do que antes). Elas são também, renovadamente, reguladas, condenadas ou negadas. Na verdade, desde os anos sessenta, o debate sobre as identidades e as práticas sexuais e de gênero vem se tornando cada vez mais acalorado, especialmente provocado pelo movimento feminista, pelos movimentos de gays e de lésbicas e sustentado, também, por todos aqueles e aquelas que se sentem ameaçados por essas manifestações. (LOURO, 2000, p. 4). A discussão sobre sexualidade também envolve compreender os rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos e convenções que se constituem enquanto processos profundamente culturais e estão atrelados à pluralidade. Nesse sentido, nada do que habita esse terreno pode ser considerado exclusivamente natural, principalmente quando falamos sobre corpos e a produção de sentidos que circulam em torno do modo como o entendemos e narramos. Louro (2000) entende que através dos processos culturais é que definimos o que é e o que não é natural. A partir deles, produzimos e transformamos a natureza e a biologia de modo que as tornamos históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros — feminino ou masculino — nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade — das formas de expressar os desejos e prazeres — também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades 50 Bibiana Terra | Nariel Diotto | Roana Funke Goularte de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade. (LOURO, 2000, p. 6). Em sua obra, Foucault (1988) discute a sexualidade enquanto um dispositivo histórico. Isso significa que ela é uma construção/invenção social constituída por diversos discursos sobre o sexo. Esses discursos desempenham o papel de regular, normatizar, produzir saberes e verdades que direcionam nosso olhar, enquanto sociedade, sobre esse fenômeno. Já no primeiro capítulo do primeiro volume, o autor fala sobre termos herdados, enquanto sociedade ocidental, de uma visão vitoriana sobre a sexualidade. Isso significa que, até o início do século XVII “as práticas [sexuais] não procuravam segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva” (FOUCAULT, 1988, p. 8). A partir do século XIX é que passamos a tratá-la como algo que deveria ser contido, regulado e mantido muda. Ao ser socialmente “encerrada”, passou a ser um assunto privado, restrito à família conjugal e à função exclusivamente de reprodução da espécie. Para tanto, cria-se uma ideia de família, de casal legítimo e, necessariamente, procriador, que detém o direito de falar sobre o sexo a partir desse lugar e mantê-lo sobre a hipocrisia do segredo doméstico. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções. O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer — sejam atos ou palavras. (FOUCAULT, 1988, p. 9). A partir dessas práticas discursivas, o sexo foi negado às crianças, ou seja, estas foram proibidas de falar sobre ele e a 51 Diálogos de Gênero: Perspectivas Contemporâneas sociedade passou a negar veemente suas manifestações durante a infância. Essa lógica, segundo o autor, denota a hipocrisia das sociedades burguesas, além de não se sustentar por muito tempo, uma vez que a repressão e o silenciamento por si só não foram capazes de barrar um fenômeno tão amplo. Desses jogos de poder, surgem as sexualidades ilegítimas que, conforme Foucault, precisariam buscar sua (re)inscrição em lugares de tolerância. Como exemplo, cita as relações entre prostituta-cliente e psiquiatra-histérica, que obedecem à ordem da produção e do lucro. Ou seja, bem longe de tudo que é feito, aparentemente, “em nome de Deus e da Família”1. (FOUCAULT, 1988). Diante disso, podemos pensar em como se produziram e se produzem determinadas verdades sobre gêneros e sexualidades, que hoje atravessam tanto as práticas científicas quanto as que estão aquém das academias em relação aos sujeitos e aos lugares que suas existências e corpos ocupam no mundo Ao citar, no parágrafo anterior, uma das frases mais proferidas no Câmara dos Deputados durante o processo de Impeachment da então Presidenta Dilma Rousseff (UOL, 2016), trazemos um fato atual em que a primeira mulher eleita presidenta do país foi destituída de seu poder e sofreu constantes ataques por ser mulher. Durante o processo de votação, muitas narrativas foram proferidas, dentro e fora da Câmara, em relação ao gênero e às construções sociais sobre ser mulher, deixando evidente que esse foi um dos motivos pelos quais afastaram-na de um cargo de poder. Em sua obra, Foucault retoma a constituição da sexualidade no contexto greco-romano e as relações entre o masculino e o feminino em relação ao prazer. O autor busca em várias fontes 1 A expressão refere-se à votação, em 2016, que resultou no Impeachment da ex- presidenta Dilma Rousseff, onde “Deus” e “Família” foram citados repetidas vezes pela maioria dos/as deputados/as justificando seus posicionamentos políticos diante do processo que destituiu a primeira mulher eleita no Brasil do cargo de Presidenta da República.
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