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Gestalt-terapia Apostila inicial Patrícia Albuquerque Lima – Ticha CRP 10.906 A Gestalt Terapia é uma abordagem psicológica que teve seu início oficial na década de 50 do século passado, nos Estados Unidos. Foi criada por Frederick Salomon Perls - mais conhecido como Fritz Perls - sua esposa Laura Perls e alguns colaboradores (vale destacar o nome do intelectual americano Paul Goodman). Perls era judeu alemão, tendo partido da Europa Ocidental por ocasião da invasão nazista, indo viver na África do Sul onde residiu por mais de dez anos. Enquanto viveu na Europa freqüentou instituições de psicanálise e ligou-se a profissionais vinculados à Escola do Gestaltismo. Perls e Laura partiram para a África do Sul com a incumbência de criar uma Sociedade de Psicanálise naquele país, convite este feito por Ernest Jones. Durante o período no qual exerceram a prática do ensino e da clínica psicanalítica em Johannesburgo, Fritz e Laura começaram a repensar alguns aspectos da teoria da psicanálise, o que gerou um artigo sobre as resistências orais, artigo este que Perls levou para ser apresentado em um Congresso Internacional de Psicanálise em 1936 em Praga. Este artigo foi duramente criticado pela comunidade psicanalítica da época, o que deixou Perls bastante desiludido pessoalmente com nomes importantes desta escola, principalmente com o próprio Freud. Voltando à África do Sul ele e Laura desenvolveram este artigo o que implicou no lançamento do livro “Ego, Hunger and Aggression” (1942) que propunha novos arcabouços teóricos para a prática psicoterápica que seriam adotados posteriormente para a criação da Gestalt Terapia. O paralelismo psicofísico vigente na teoria psicanalítica da época era criticado nesta obra, sendo o holismo apresentado como uma nova perspectiva teórica para o estudo do ser humano. Os conhecimentos advindos do Gestaltismo são resgatados para apoiar uma visão de todo, integrado (whole), na qual o homem deve ser compreendido como uma estrutura contextualizada, opondo-se ao reducionismo presente no pensamento médico da época. O conceito de organismo proposto pelo neurologista Kurt Goldstein é adotado, conceito este que trata do homem como um ser integrado entre mente e corpo e o contato com o seu meio externo. A teoria de campo de Kurt Lewin é valorizada pois, traz em si, também uma visão estruturante e contextualizadora do fenômeno humano. Durante o período em que Perls fez sua formação didática em psicanálise na Europa foi cliente do psicanalita Wilhelm Reich, que vinha pensando as bases de uma nova perspectiva de análise do caráter. Perls impregna-se desta noção de caráter na qual há uma coerência entre os encouraçamentos que se 1 expressam no corpo físico e as coerções que foram vividas na vida social deste indivíduo. Traz do seu passado uma influência marcante de sua passagem pela escola teatral do expressionismo alemão que valorizava a leitura corporal como um veículo de acesso da expressão total do ser. Seus conhecimentos sobre a Filosofia Oriental, principalmente de Zen Budismo, também contribuíram para esta visão integrativa do mundo que é apresentado neste livro de 1942. Do desenvolvimento destas idéias iniciais, já nos Estados Unidos, surge a proposta da criação de uma nova escola psicológica, a Gestalt Terapia. O primeiro livro de Gestalt Terapia é lançado em 1952. Esta abordagem se propunha a abandonar o enfoque histórico-arqueológico da Psicanálise para centrar- se no método fenomenológico, que valorizava o fenômeno como aquilo que acontece no momento presente. A Gestalt Terapia deixa de lado a visão médica causalista de doença, a qual a psicanálise se subordinava em busca de previsibilidade diagnóstica e possibilidade de determinação de comportamentos. A Gestalt Terapia encarava o “adoecimento” como uma tentativa saudável do ser em busca de um equilíbrio, sempre dinâmico, necessário para que haja um contato adequado com o meio. A doença é então um caminho para a saúde, ela tem uma função e uma sabedoria em si mesma. A Gestalt Terapia surgiu como uma busca de estudar o fenômeno humano dentro de uma ótica não linear, não determinista, não causalista, não mecanicista e, principalmente não paralelista e sim unicista. Abaixo passaremos a apresentar as principais influências filosóficas e teóricas que se fizeram presentes na criação desta abordagem. 2 Bases Filosóficas Humanismo Movimento filosófico que tem suas sementes nos séculos XIII/XIV, tendo historicamente tido seu esplendor no pensamento dos séculos XV/XVI. Na realidade, já no pensamento grego e romano exaltava-se os valores humanos da beleza, virtude, força, etc. O que consideramos modernamente como filosofia humanista moderna diz respeito a uma corrente de pensamento que privilegia a subjetividade do homem como ponto de partida para a construção de toda a realidade (Descartes, Kant e Hegel). Uma doutrina só pode ser qualificada como humanista se reconhece o homem como um ser superior a todos os outros, sendo o objetivo e a meta de todas as atividades e de todas as instituições. Fenomenologia Franz Brentano (1838-1917) Filósofo, profundo conhecedor do pensamento aristotélico, propunha-se a reintegrar as tradições metafísicas ao pensamento filosófico Moderno. Opunha-se ao pensamento dialético de Hegel, por seu caráter mecanicista. Defendia como significativo o modo essencial das ações humanas. Redefiniu o conceito de intencionalidade do fato psicológico, mostrando que todo fenômeno psíquico é referente a algo. Acreditava ser possível chegar à essência das coisas através da intuição. Edmund Husserl (1859-1938) Matemático de formação, aluno de Brentano, pretendia fundamentar cientificamente a filosofia. Acreditava que a filosofia poderia se tornar uma ciência universal. Parte de uma oposição às teorias 3 científicas vigentes (racionalismo) colocando a subjetividade em primeiro plano como veículo para o estudo dos fenômenos. Sistematiza a noção de intencionalidade como o principal postulado da Fenomenologia. A sua busca era chegar a um modo puro e não-empírico de examinar a realidade tal como ela se dá na experiência. É pela intuição das essências que emerge a verdade. É através desta possibilidade, de se apreender as significações universais pela experiência contingente, que pode se desenvolver a Psicologia. Ou seja, considerando que as experiências individuais não são nem física (psicologismo), nem socialmente determinadas (sociologismo). Pela redução fenomenológica tenta-se explicitar a fonte pura de todas as significações que constituem o mundo e que constituem o eu particular. O mundo nada mais é do que um objeto intencional para o sujeito transcendental. Para Husserl a Psicologia não é filosofia, nem pode ocupar o seu lugar. A consciência, enquanto objeto de estudo para o psicólogo é uma coisa entre todas as coisas do mundo. O psicólogo é sempre levado a fazer da consciência um objeto de constatação. A fenomenologia é que permite, através da redução fenomenológica, chegar-se à intuição eidéitica. A autonomia da psicologia se manifesta na sua tarefa de investigar os fatos e as relações de fato; mas a significação última destes fatos e destas relações só pode ser fornecida por eidética fenomenológica, na qual distingui-se o sentido ou a essência da perceção, da imagem e da consciência. Intencionalidade – é o que liga a consciência (do sujeito) ao mundo. É através da intencionalidade que o sujeito se relaciona com o objeto, tornando-os inseparáveis. A intencionalidade é a característica fundamental da consciência, pois toda a consciência é consciência de alguma coisa (implicação). Consciência– É o que confere significado para o mundo. Ela não cria os fatos, nem é criada por eles, mas é através da consciência que os fatos ganham significado. O fenômeno se objetiva, ganha um sentido, a partir da subjetividade da consciência. A consciência, para a Fenomenologia, é sempre consciência de algo – sendo seu traço essencial a intencionalidade. Noema – É o conjunto de características de que são investidos os objetos, a partir da experiência, pela consciência (aspecto objetivo). Noesis – É o aspecto subjetivo da experiência vivida advindo pela busca de compreensão do objeto. Essência – É o que torna possível os fenômenos, pois é o que os constitui. As essências podem ser captadas pela intuição. 4 Martin Heidegger (1889-1976) Filósofo alemão, aluno e assistente de Husserl. Propôs-se a elaborar uma teoria do Ser, acreditando que a tarefa principal do filósofo deveria ser buscar o sentido do ser ( não considerando-o como um ser em particular). Refere-se ao Dasein (da – aí; sein – presença) como o ser singular, concreto – é o ser aí. O Dasein é o homem, o indivíduo, em sua existência cotidiana. Heidegger defendia que o ser que existe é o homem, os objetos apenas estão. Só para o homem tem sentido algo como o existir. O homem autêntico é aquele que reconhece a radical dualidade entre o humano e o não-humano. A inautenticidade se dá neste não reconhecimento. Para Heidegger a experiência mais inquietante é a consciência da morte, característica do humano. O Dasein refugia-se em uma existência inautêntica quando evita defrontar-se com esta experiência fundamental. Assumindo sua morte o Dasein alcança sua autenticidade. A angústia ante o nada conduz o homem à existência autêntica. Heidegger aplicou o método fenomenológico partindo do homem de fato, centrando suas preocupações com as condições emocionais da angústia como um sinal da verdadeira situação do homem-no-mundo. Por sua preocupação com a questão da existência humana Heidegger partiu da concepção fenomenológica para abrir portas para uma visão existencialista do Dasein (o pensamento existencial-fenomenológico). Εξιστενχιαλισµο Movimento filosófico bastante discutido nas décadas de quarenta e cinqüenta do século passado. Podemos considerar como existencialista toda doutrina filosófica que centra sua reflexão sobre a existência humana considerada em seu aspecto particular, individual e concreto, mas o existencialismo, enquanto movimento filosófico em si, é bastante recente. Podemos indicar seu nascimento como sendo na França e seu “pai” o pensador dinamarquês Sören Kierkegaard. Sören Kierkegaard (1813-1855) Profundo estudioso da religião luterana, tendo sido criado de modo rigoroso dentro de seus preceitos. Foi um veemente opositor das idéias de Hegel, criticando a visão deste autor de que a realidade pudesse ser explicada tal qual o funcionamento de um sistema. Defendia que a realidade só poderia ser entendida através da subjetividade. Todo conhecimento deve ligar-se à existência, à 5 subjetividade. O homem é a categoria central da existência. Para Kierdegaard, ao homem apenas resta a liberdade de escolher e decidir pelo que deverá fazer e ser. O sentimento religioso é o que dota a ética humana de sentido. Jean- Paul Sartre (1905-1980) Foi um dos principais filósofos do existencialismo, tendo sido duramente criticado e atacado por diversos autores que tanto o contestavam filosoficamente, quanto o criticavam pessoalmente. A sua principal obra, que o projetou internacionalmente, foi “O Ser e o Nada” (1943), lançada no auge da Segunda Guerra Mundial. Sartre foi quem sistematizou o princípio de que a existência precede a essência como sendo o princípio básico unificador de todas as correntes existencialistas. Para ele, portanto, o homem primeiramente existe, vive no mundo, e só posteriormente defini-se. O homem é o único ser livre, sendo responsável por tudo aquilo que escolhe e faz. Para o existencialismo a liberdade é a capacidade do indivíduo de decidir sobre sua vida, sendo que por mais livre que o homem seja, vive limitado pela sociedade através de suas regras. Para Sartre a subjetividade é o ponto de partida de toda doutrina filosófica. É a subjetividade que impede o homem de se tornar objeto, fazendo prevalecer sua condição de sujeito. Pelo existencialismo a angústia é condição da existência em liberdade do homem. O indivíduo se angustia por que tem que escolher sua vida, seu destino, por si próprio. 6 Influências Teóricas Teoria de Campo As propostas de Kurt Lewin surgiram com o intuito de prover à Psicologia de um campo conceitual adequado a ser aplicado em todas as áreas de investigação que não só aos fatos explicados em campos específicos como a psicologia da infância, a psicopatologia e a psicologia animal (etologia). Lewin acreditava que apenas as pesquisas experimentais nas áreas das percepções e sensações, estivessem se desenvolvendo da forma ideal. O campo de estudos experimentais, relativo aos desejos e necessidades estava, naquela época (década de 30 do Séc. XX) ainda bastante estagnado. Diante desta realidade, Lewin se propõe a criar uma teoria empírica dos problemas humanos que utilizava a topologia (ramo da ciência matemática) para adequar à psicologia ao campo científico experimental. Pela topologia não se considerava apenas o problema do tempo, já presente no pensamento científico daquela época, mas também inseria a questão do espaço na pauta das discussões. Lewin fez uso de conceitos matemáticos e físicos, tais como os conceitos de vetores, campos de força etc., para explicar os fenômenos humanos. O sistema conceitual capaz de dar conta dos diferentes campos da psicologia de modo empírico deveria, de acordo com Lewin, ser rico e flexível o suficiente para ser justo com as enormes diferenças existentes entre os diversos eventos e realidades consideradas no campo de aplicações da psicologia. Partindo das propostas da Psicologia da Gestalt de se considerar os fenômenos como TODOS (wholes), Lewin defendia que as investigações experimentais sobre os desejos, as necessidades, ações e emoções não poderiam ser conduzidas sem se levar em consideração às características individuais da pessoa e o meio ambiente que a circundava. A psicologia só se desenvolveria cientificamente quando fosse capaz de tratar das emoções, dos pensamentos, dos valores e dos relacionamentos sociais de forma não isolacionista e compreendendo-os como interligados e como expressões de uma situação concreta que dizia respeito a uma determinada pessoa em uma determinada condição. 7 O novo sistema conceitual proposto por Lewin propunha-se a: 1) Criar uma representação apropriada para os processos psicológicos que fosse logicamente consistente e, ao mesmo tempo, adaptável às propriedades especiais da “vida psicológica espacial”. 2) Incluir tanto as características do meio ambiente quanto as características particulares da pessoa para um estudo empírico. 3) Surgir a partir de um método advindo de sucessivas tentativas de aproximação com os fatos. Ser, portanto, operacional para contribuir no campo de estudos que relacionam os conceitos com os fatos observados. Lewin destacava que, a partir da transição paradigmática que ocorrera no pensamento de Aristóteles para o pensamento de Galileu, não seria mais possível buscar a causa para um evento na natureza de um objeto isolado, mas sim no relacionamento entre o objeto e suas cercanias. Um evento é, portanto, o resultado da interação entre vários fatores. Isto significava para a Psicologia que, era necessário encontrar um novo método para se representar a pessoa e o meio ambiente em termos comuns, vistos como as partes de uma mesmasituação. Neste sentido, Lewin propõe a expressão “Vida espacial” para indicar a totalidade dos fatos que determinam o comportamento do indivíduo em um determinado momento, entendendo que neste campo uma força é considerada como o resultado da interação de vários fatores. Lewin criou o princípio da contemporaneidade para explicar a relação entre o evento e as condições dinâmicas que o produziram. Wundt tratava das causas finais (teleológicas) para considerar que um fato passado pudesse ser a causa única de um evento no presente. Pelo princípio da contemporaneidade nem os fatos passados e nem os fatos futuros poderiam ser considerados causadores do evento presente, mas apenas a situação presente pode influenciar os eventos no agora. Sem dúvida, não podemos desconsiderar que a estrutura emocional de uma pessoa e suas características psicológicas são, em determinados aspectos, dependentes de sua história pregressa. Do ponto de vista da causalidade sistemática, fatos passados não podem influenciar os eventos no presente. Os fatos passados possuem apenas um papel enquanto um elo histórico causal cujas influências se fazem presente no AGORA. Todas as representações da vida espacial psicológica se baseiam na concepção fundamental de que só se pode estudar uma pessoa em particular em seu meio ambiente particular. As fronteiras entre a 8 pessoa e o meio só podem ser visualizadas em uma posição relativa, de interdependência, implicando no uso de categorias espaciais. Holismo Conceito filosófico criado por Jan Smuts, eminente estadista inglês que exerceu o cargo de Primeiro Ministro na África do Sul. A palavra holismo é uma derivação da palavra grega Holos (completo, inteiro, todo), e este conceito é apresentado inicialmente no livro de Smuts “Holism and Evolution”, editado em 1926. Pelo conceito de holismo o homem é visto como um ser integrado contrapondo-se a cisão entre mente e corpo, evidente nas escolas tradicionais de psicologia e psiquiatria. A medicina psicossomática surgiu como uma tentativa de apontar para a estreita relação entre a atividade mental e a atividade física (paralelismo psicofísico). No entanto, ainda adotava uma visão causal na qual a doença é vista como um distúrbio físico causado pelo fato psíquico. Nas ciências biológicas o holismo surge como uma possibilidade conceitual de se reunir corpo e mente, tratando do indivíduo como um ser unificado. Desde o século XVII o indivíduo vinha sendo encarado como um sujeito esfacelado, partindo da visão cartesiana de corpo e mente. O conceito de holismo foi assimilado por Fritz Perls para a elaboração do campo conceitual da Gestalt Terapia a partir do contato direto que este teve com Jan Smuts na África do Sul. Teoria Organísmica Um dos principais autores da teoria organísmica, Kurt Goldstein, foi professor de Fritz Perls em 1926, tendo criado as bases para o pensamento organísmico a partir de seu conhecimento dos estudos de percepção realizados pelos pesquisadores da Psicologia da Gestalt. Goldstein foi um eminente neuropsiquiatra alemão, tendo exercido posições de destaque como médico, cientista e professor. Foi diretor do Instituto de Neurologia da Universidade de Frankfurt e foi diretor do Hospital Militar para Soldados com Lesões Cerebrais. Em 1930 transferiu-se para a Universidade de Berlim onde atuou como professor de Neurologia e Psiquiatra. Em 1933 foi para Amsterdã onde lançou seu mais 9 importante livro onde expunha a teoria organísmica. Mudou-se para os Estados Unidos em 1935, indo trabalhar no Instituto Psiquiátrico de Nova York. Goldstein foi extremamente influenciado pela sua prática em neurologia desenvolvendo a teoria organísmica a partir do contato com pacientes lesionados cerebralmente, em grande maioria vítimas de acidentes ocorridos durante a I Guerra Mundial. Goldstein começou a perceber que as lesões cerebrais geravam mudanças comportamentais mais vastas do que as que poderiam ser explicadas como decorrentes das funções da área afetada. Parecia que o indivíduo como um todo tivesse que se reorganizar em função das limitações impostas pelas lesões sofridas. Perls trabalhou como assistente de Kurt Goldstein no Instituto para vítimas de lesão cerebral que o neurologista dirigia, influência fundamental no seu desenvolvimento profissional. A teoria organísmica era um sistema teórico integrativo que creditava a relação entre figura e fundo percebida no gestaltismo, como um princípio primário organizativo do organismo de modo geral. A teoria organísmica de Goldstein ampliou as bases do gestaltismo, tomando por objeto não mais apenas a percepção mas o organismo como um todo, considerando todas as suas funções e ações no mundo. O conceito de organismo de Goldstein integrava os aspectos físicos, emocionais e sociais de um indivíduo, defendendo a premissa de que o corpo e a mente não podem ser diferenciados e que na verdade somos um todo, que inclui, inclusive, as relações que estabelecemos com o meio que nos rodeia. Goldstein acreditava que o organismo regulava-se por um processo semelhante à homeostase, em busca de auto-realiza-se e atualizar-se. Pela formação médica de Goldstein entende-se o modo como conceitos biológicos são transpostos para o estudo dos processos psicológicos. No entanto, sua tentativa de trazer uma visão sistêmica para o estudo do ser humano foi fundamental para o intuito de romper com o modelo paralelista da psicanálise, que dominava o universo da Psicologia em sua época. Os principais postulados da teoria organísmica, conforme enunciados de Goldstein, são: - O estado natural do organismo é de organização, estando a pessoa normalmente integrada. A desorganização é patológica e se dá, em grande parte, por dificuldades impostas pelo meio ambiente. Este princípio organizativo é inerente ao funcionamento sistêmico, onde a compreensão de um distúrbio só é possível quando se estuda o mesmo como um todo integrado, e nunca pela análise das partes separadas do organismo. - Existe um impulso de auto-realização no homem que o motiva a lutar através dos recursos que lhe estão disponíveis pela mobilização de suas potencialidades. Goldstein não via o homem como um sistema fechado, estudando-o sempre em relação com o meio externo. O meio desequilibra o 10 funcionamento do organismo quando não lhe permite satisfazer-se, sendo a patologia um estado de cristalização deste desequilíbrio. Uma forte ansiedade pode gerar desintegração neste sistema. - O fluxo contínuo de tarefas que o organismo precisa executar para se manter atualizado é que gera a formação de figuras e a inversão entre figura/fundo. Goldstein fazia uma distinção entre figuras naturais e não naturais. As figuras não naturais são as que surgem a partir de experiências traumáticas vividas pelo organismo resultando em um comportamento mecânico e rígido. - Existe uma reserva de energia circulante no organismo e em estado de equilíbrio esta se distribui de forma uniforme. A pessoa normal busca equilibrar este fluxo energético sempre que ele é alterado, havendo um nível ótimo de tensão o qual o organismo procura sempre voltar. Este nível ótimo, homeostático, é um estado holístico ideal que raramente é conseguido, mas sempre procurado como um parâmetro. Toda necessidade surge como um estado deficitário ao qual o organismo deve buscar o seu equilíbrio. A busca de satisfação destas necessidades é o que podemos chamar de princípio de auto-realização. Este princípio é orgânico e universal. As potencialidades individuais são inatas mas variam de indivíduo para indivíduo. Além disto, os ambientes se apresentam como meios culturais diversos, trazendo aspectos peculiares para o desenvolvimento decada indivíduo em particular. Existe uma interação constante entre o organismo e o meio ambiente. Goldstein defendia que o organismo possui uma essência que se modela pelas influências ambientais. - Goldstein entendia os sintomas como tentativas de adaptação que o organismo estabelece diante das exigências do meio e que são coerentes com seu funcionamento global. Pacientes com lesões cerebrais tendem a desenvolver comportamentos compensatórios que, de forma repetitiva, buscam sanar as deficiências ocasionadas pela lesão. Estes comportamentos, apesar de esteriotipados, são adaptativos. Para compreendermos o significado de um sintoma temos sempre que estudá-lo levando em consideração a maneira como o indivíduo funciona de forma mais ampla. Goldstein se utilizava de testes quantitativos e do método qualitativo para o estudo exaustivo de cada paciente individualmente. 11 Conceitos centrais na abordagem gestáltica Aqui-agora – é um conceito advindo de duas fontes diversas de pensamento – a fenomenologia e uma visão de mundo baseada na filosofia oriental. Fenomenologicamente, falar de aqui-agora é se referir ao fenômeno que emerge no momento presente de uma determinada situação. Este fenômeno pode estar referido a acontecimentos passados, expectativas futuras mas, ele ocorre no momento atual do aqui- agora. A Gestalt terapia adota este conceito do aqui-agora fenomenológico e com isso, liberta-se dos modelos de psicodiagnósticos nosográficos através dos quais a sintomatologia apresentada pelo cliente possibilitaria enquadrá-lo dentro de um rótulo pré-determinado, um determinado quadro psicopatológico. O modelo diagnóstico adotado seria, conforme vários autores atuais, o de diagnóstico dialógico processual. Isto significa que as avaliações vão sendo feitas e refeitas pelo profissional e seu assistido (cliente, empresa, grupo) a cada momento. Não existe um diagnóstico fixo nem a possibilidade de se utilizar técnicas previamente definidas para cada caso estudado. É na relação dialógica que se estabelece que vão emergindo as peculiaridades de cada momento e a relação profissional vai sendo pautada pelo que vai ocorrendo. Esta visão é, em muitos aspectos, bastante próxima de determinadas particularidades da filosofia oriental. Considerando o zen budismo e sua afinidade com os conceitos de fluxo, de transformação e de não determinação dos acontecimentos seria, a busca da iluminação se dá no exercício das ações do cotidiano através de um processo de auto- conscientização que ocorre no aqui-agora da situação vivida. A experiência de cada momento é o que leva o homem ao aperfeiçoamento e ao equilíbrio físico e mental. Awareness – este termo é usado na teoria da gestalt-terapia normalmente sem que seja traduzido pela dificuldade de encontrar uma palavra adequada para expressá-lo. Talvez a melhor tradução seja o dar- se conta, o estar consciente da situação. A awareness é um estado de total conscientização do ser onde as emoções, os pensamentos e as sensações que ocorrem no contato com o meio são plenamente identificados de forma uníssona possibilitando uma vivência de integração. A saúde mental equivaleria 12 a um estado de awareness fluida pela qual as transformações vão sendo acompanhadas e atualizadas pela pessoa. Auto-regulação – é através deste mecanismo que a awareness pode ir sendo alcançada pelo processo de surgimento das necessidades e resolução dos conflitos que ocorrem entre o homem e o meio. É um processo bastante semelhante a homeostase estudada pela Biologia que fala de um mecanismo de equilibração espontâneo que visa uma busca de bem estar e de bom funcionamento do sistema sempre que ocorre um desequilíbrio inerente ao contato sistema interno/sistema externo. Contato – é o processo pelo qual o ser se apercebe dos acontecimentos que ocorrem no meio e das mudanças que se dão no seu próprio “organismo” ( conceito emprestado da teoria organísmica de Kurt Goldstein). Só através de um permanente contato consigo mesmo e com o contexto é que o homem pode estabelecer quais sãos suas prioridades, planejar ações e mobilizar o meio a fim de satisfazê-las. No entanto, nem todo contato é, em si, saudável. Muitas vezes pela auto-regulação organísmica a evitação do contato surge como o mecanismo adequado para interromper um processo que pudesse ser danoso e prejudicial ao pleno funcionamento do organismo. Busca de contato e retraimento impõe-se como possibilidades de ajuste entre o homem e o seu meio que emergem na fronteira de intercâmbio que transforma a realidade do homem em um estar permanentemente no e com o contexto. 13 A Abordagem Gestáltica (texto baseado no livro A Abordagem Gestáltica – A testemunha ocular da terapia. Perls, F. Rio de Janeiro: Zahar, 1977) Premissas Básicas da Abordagem Gestáltica: 1 – “ A organização de fatos, percepções, comportamentos ou fenômenos, e não os aspectos individuais de que são compostos, é que os define e lhes dá um significado específico e singular.” (p.18) - O interesse é que organiza a situação de modo significativo. A medida em que os interesses variam, muda a percepção do espaço físico, das pessoas e objetos e, até a percepção de si próprio. Primeiro e segundo planos são intercambiáveis e não permanecem estáticos. 2 – Todos os comportamentos são governados por um princípio homeostático (adaptativo). O processo homeostático é aquele pelo qual o organismo mantém seu equilíbrio através de satisfação de necessidades, que são também intercambiáveis. O equilíbrio homeostático é uma forma de equilíbrio dinâmico e, quando o processo não funciona, o organismo adoece. Este processo é auto-regulativo através do qual o organismo interage com o meio. As necessidades fisiológicas surgem quando o equilíbrio é alterado. O correlato psicológico do processo homeostático surge como uma necessidade de contato. No entanto, no processo de auto-regulação organísmica, os processos psíquicos não podem ser divorciados dos processos fisiológicos. O conceito psicanalítico da neurose como resultado da repressão de instintos é falho. Na realidade, não podemos reprimir os instintos, mas só seus sintomas e sinais. No organismo existem múltiplas necessidades que podem se originar simultaneamente. Uma escala de valores é que permitirá que o organismo aja de um modo saudável, dando prioridades ao que é fundamental em cada momento. “A necessidade dominante do organismo, em qualquer momento, se torna a figura de primeiro plano e as outras necessidades recuam, pelo menos temporariamente, para o segundo plano... Para que o indivíduo satisfaça suas necessidades, feche a gestalt, passe para outro assunto, deve ser capaz de manipular a si 14 próprio e ao seu meio, pois mesmo as necessidades puramente fisiológicas só podem ser satisfeitas mediante a interação do organismo com o meio.” (p.23,24) 3 – O homem é capaz de funcionar em dois níveis qualitativamente diferentes, o nível do pensar e o nível do agir. O maior desenvolvimento da complexidade do cérebro humano lhe dotou da habilidade de aprender e manipular símbolos e abstrações. Esta habilidade lhe possibilita planeja simbolicamente o que poderá fazer fisicamente (função mental). A mente humana possui outras funções, além da do pensamento. A atenção, a capacidade de conscientização e a vontade são atividades mentais humanas que dizem respeito à íntima relação entre pensamento e ação. Pela atividade da fantasia reproduz-se a realidade em uma escala reduzida, através da utilização de símbolos. A atividade da simbolização reproduz, inicialmente, a realidade, podendo se distanciar desta posteriormente. Pela atividade simbólica (fantasia, imaginação) podemos antecipar acontecimentos, funcionando como uma economia de tempo, energiae trabalho para o indivíduo. As atividades mentais exigem menos dispêndio de energia corporal do que as atividades físicas. “A energia que o homem economiza pensando nos problemas em lugar de atuar em toda a situação pode agora ser investida em enriquecimento da sua vida.”(p.29) Os aspectos físicos e os aspectos mentais do comportamento não são entidades independentes que possuem existências separadas. O ser humano é um todo e o seu comportamento se manifesta, tanto a nível explícito da atividade física, quanto ao nível implícito da atividade mental. Ambas as atividades física e mental são manifestações do ser do homem. A neurose é que leva o homem a não se perceber enquanto um ser total. Só a experiência integrada da sua atividade física e mental que poderá levar o homem ao sentido de totalidade natural. Opondo-se a concepção do paralelismo psicofísico, nos utilizamos do conceito de campo unificado como um conceito holístico para o estudo do ser humano. O homem não é apenas o que diz e pensa, mas também o que faz. 4 – O homem não é um ser auto-suficiente, só pode existir inserido em um campo. A relação que se estabelece entre o homem e o meio é mutuamente determinante. “O estudo do modo que o ser humano funciona no seu meio é o estudo do que ocorre na fronteira de contato entre o indivíduo e o seu meio.... Se, por alguma alteração no processo homeostático, o indivíduo for incapaz de manipular seu meio a fim de atingi-las, comportar-se-á de modo desorganizado e ineficaz.” (p. 31,33) O conflito neurótico surge quando o indivíduo perde a habilidade de organizar seu comportamento de acordo com uma hierarquia indispensável de necessidades e, com isso, perde a capacidade de se concentrar em qualquer 15 atividade. Para a Gestalt Terapia, um ponto cego surge quando um indivíduo perde totalmente o contato com alguns assuntos que dizem respeito ao seu relacionamento com o meio, aniquilando-os diante da sua incapacidade de lidar com estes. Nem todo contato é saudável, nem toda fuga é doentia, como apontava Perls. O contato e a fuga são as possibilidades que temos para lidar como as situações que se apresentam pela relação com o meio. Quando há uma solução para esta necessidade que surgiu a partir do contato entre o homem o meio externo, dizemos que houve um “fechamento de gestalt”. Quando está solução não foi viável falamos que surgiu uma “gestalt inacabada”. “Este contato com o meio e a fuga dele, esta aceitação e rejeição do meio, são as funções mais importantes da personalidade global, são os aspectos positivos e negativos dos processos psicológicos pelos quais vivemos. São opostos dialéticos, parte da mesma coisa, a personalidade total.” (p.36) 16 . Mecanismos neuróticos Para a Gestalt Terapia, os mecanismos neuróticos surgem como tentativas de evitação de contato, tentativa esta que buscava ser adaptativa à situação apresentada no passado mas, que pela repetição e cristalização, vai se tornando disfuncional no presente. A meta da psicoterapia seria fornecer a este indivíduo a possibilidade de poder se apoiar em seus próprios suportes para buscar alternativas criativas de lidar com as situações ansiogênicas. Este é um trabalho inicialmente de revitalização da auto-estima da pessoa e, principalmente, de descoberta e valorização dos seus próprios potenciais. Os mecanismos neuróticos não são, em si, nem bons nem maus. O mau uso dos mesmos é que os torna nocivos como repetições rígidas dos mesmos padrões de funcionamento diante das circunstâncias do meio. Vale destacar que aqui fica evidente a importante contribuição da noção de caráter conforme desenvolvida pelo psicanalista Wilhelm Reich, que foi pessoalmente analista de Perls no momento em que repensava este conceito. Este conceito de caráter valoriza não só os aspectos psicológicos, mas também os aspectos físicos (tensões, formas de adoecimento, posturas corporais) e o modo básico de relacionamento que o indivíduo desenvolve no contato com os outros e com o meio externo. Perls enumerou inicialmente cinco mecanismos neuróticos básicos. Outros autores posteriormente reformulam estas noções iniciais e citam outros mecanismos neuróticos. É importante ter em mente que estes mecanismos surgem como interrupções de um ciclo básico que surge a partir da percepção de uma sensação que deflagrará um processo de reconhecimento de uma necessidade pelo funcionamento da awareness do indivíduo que, busca através de uma ação no meio, satisfazer esta necessidade pelo contato que se estabelece entre o ser e o contexto. Como nem sempre esta satisfação é possível a frustração é um dado inevitável, sendo importante para o pleno funcionamento deste ciclo de contato a possibilidade de lidar com a frustração de modo a buscar outras soluções para a satisfação desta necessidade que surgiu como figura pregnante. O excesso de processos frustrantes no ciclo de contato do indivíduo com o meio é que leva ao aparecimento de uma forma de sofrimento físico e/ou mental. A 17 frustração em si é inevitável, sendo saudável para o indivíduo ter “jogo de cintura” o suficiente para transcender esta situação frustrante. O excesso de frustrações ou a rigidez do indivíduo na busca de novas possibilidades de ação no meio é que levam ao mau funcionamento deste ciclo e, portanto, ao surgimento de processos de adoecimento. Perls e Laura, observando o desenvolvimento de seus filhos nos primeiros anos de vida, refletiram sobre a importância da alimentação como, talvez o primeiro mecanismo pelo qual o ser entra em contato com o mundo - assimilando objetos externos, transformando o alimento em parte de si mesmo e rejeitando aquilo que não lhe interessa. Esta reflexão sobre a importância do modelo da alimentação como padrão básico para as posteriores formas de contato com o meio, fica evidente também na forma como Perls descreveu sua teoria sobre a neurose e a formação dos mecanismos neuróticos. A seguir citaremos os principais mecanismos neuróticos destacando algumas de suas características: Introjeção - Pensando na alimentação enquanto uma metáfora para o processo de contato do ser humano com o meio ambiente faz parte deste processo a discriminação daquilo que deve ser assimilado para o bem estar do indivíduo e aquilo que deve ser eliminado por ser desnecessário ou pernicioso para este mesmo indivíduo. O alimento é processado pela mastigação e partes dele são então assimiladas, digeridas e passam a fazer parte do organismo do próprio indivíduo. A introjeção ocorre como algo que é engolido, sem ser devidamente destruído e descriminado, ficando como um objeto estranho dentro do organismo deste indivíduo. Fazendo paralelos para tudo àquilo que assimilamos do meio; incluindo aqui regras, leis, dogmas e o que é aprendido de modo mais amplo, um introjeto é algo que é assumido como parte deste indivíduo antes mesmo de ser discriminado se seria necessário para o bom funcionamento do mesmo. A introjeção se transforma em um mecanismo neurótico pernicioso a partir do momento que este indivíduo passa a assumir como verdade coisas “engolidas e mal digeridas” e passa a funcionar como um mero repetidor de regras e padrões sociais impostos. Este sujeito assume uma postura diante da vida de “engolidor de sapos” e já não consegue distingüir entre aquilo que acredita e aquilo que lhe impôs como verdade. No entanto, nem toda a introjeção é prejudicial em si. Faz parte do processo educacional o aprendizado de convenções sociais e de regras básicas que devem ser rapidamente aprendidas quando se entra em contato com os dados de um novo meio social. Alguns aprendizados não precisam de uma elaboração mais profunda e são simplesmente engolidos da forma mais rápida, não tendo que necessariamente fazerparte do código mais amplo de valores e crenças deste sujeito. Por exemplo, 18 podemos pensar em alguns assuntos que precisamos “decorar” por situações da vida – uma prova, um concurso – mas que são informações passageiras das quais não pretendemos nos apoderar de modo mais amplo. A introjeção é indício de funcionamento neurótico quando o indivíduo não mais se dá conta de que apenas repete o que engole, não tendo idéias próprias e assumindo como verdades regras que não lhe servem de fato. É interessante observar que estas pessoas usam, com freqüência expressões do tipo: “Devemos, é necessário, é verdade que..., As coisas são assim...., etc. Estas pessoas podem desenvolver um processo digestivo ruim, tendo tendência a reter alimentos (prisão de ventre, indigestões) e tendo dificuldade de vomitar e colocar para fora o que lhe faz mal. Projeção – é o mecanismo oposto à introjeção. Enquanto na introjeção conteúdos são engolidos sem serem devidamente processados, na projeção conteúdos são projetados no meio externo, como uma tela de cinema, assumindo que faz parte do outro algo que na realidade é nosso. Assim como a introjeção, a projeção tem seu aspecto útil e válido. Relações onde a empatia prevalece são relações que partiram de uma projeção. Muitas vezes precisamos nos colocar no lugar do outro para termos acesso a algo que não conhecemos, funcionando como um ensaio, um faz de conta. O aspecto negativo aparece quando perdemos a noção de que estamos ensaiando algo e passamos a acreditar que os outros são do jeito que pensamos que são, ou que são atitudes do outro, características que na realidade, estamos lhes imputando. O exagero da projeção é a própria paranóia, onde tudo o que é ruim é visto como sendo algo vindo de fora. A projeção aparece freqüentemente em relações filiais, nas quais pais e mães assumem verdades para seus filhos que são suas, assim como: “Acho que estamos cansados, ou estamos nervosos, precisamos nos acalmar, etc.” É compreensível que é muito mais cômodo jogar a responsabilidade no outro por aquilo que não sabemos ou fazemos errado. O projetor acusa sempre o meio externo por tudo o que de errado ocorre. Usa com freqüência frases do tipo: “ As pessoas fazem, Eles pensam que.....,etc”. Estas pessoas tem uma dificuldade enorme de assimilar o meio e podem assumir atitudes inconseqüentes como o famoso - “Eu não tenho nada com isso...” Podem ser pessoas muito reativas, daquelas que se vangloriam por não levar desaforo para casa e por responder a qualquer estímulo como uma acusação. Assumem uma postura de donos da verdade e pensam que sabem tudo o que é bom ou correto para os outros. A prepotência é uma característica do projetor. Podem ter dificuldades na alimentação, não assimilando o alimento devidamente também. É um processo inverso ao da introjeção pois nesta o sujeito retêm, enquanto na projeção o sujeito repele, vomita, elimina sem aproveitar o que lhe seria importante. O projetor é um sujeito que não aprende com a vida e com a experiência dos outros, pois não enxerga o outro como ele é de fato. Joga seus defeitos para os outros 19 responsabilizando-os por tudo o que está errado. Podem assumir uma posição de vítima da sociedade. Estas pessoas precisam, antes de mais nada, se enxergar. Se identificar com seus aspectos bons e também maus. Saber quem são e se aceitar, pois deixarão de jogar para os outros a responsabilidade por suas atitudes sem um propósito. Talvez precisassem se livrar de um excesso de culpa que tentaram lhe impor. Ficaram ensaiando como ser alguém e aprisionaram o mundo como uma mera projeção das suas suposições e verdades. Enquanto na introjeção o sujeito se deixa invadir pelas demandas do mundo, na projeção ele é que invade aos outros e ao meio. Podem ser pessoas do tipo meio “entrão” ou folgadas. Daquelas que saem resolvendo pelos outros pois pensam que sabem tudo o que os outros precisam. Na realidade, estas pessoas nunca sabem o que elas mesmas sentem ou precisam. Jogam para fora a si mesmas esvaziando-se e tornando-se desidentificadas. Confluência - Nos mecanismos neuróticos vistos acima as fronteiras de contato entre o eu e o mundo são estendidas, ora retraindo o limite do eu (introjeção), ora invadindo o limite para com o meio externo (projeção). Neste outro mecanismo, os limites entre o mundo externo e o eu tendem a desaparecer, são anulados. É um mecanismo de fusão pelo qual duas pessoas “embolam-se” tornando- se uma massa disforme onde fica difícil distinguir quem é um e quem é o outro. A confluência é freqüente entre familiares, principalmente casais. Pessoas confluentes sempre falam na primeira pessoa do plural (nós) e usam frases começadas com a gente. Enquanto o introjetor tem dificuldade de se perceber e o projetor não percebe os outros, os confluentes nem se percebem, nem percebem o outro separadamente. É um mecanismo natural em momentos de intensa entrega afetiva, onde as barreiras podem ser momentaneamente rompidas. No orgasmo a confluência é natural. Em momentos transcendentais alcançados pela meditação ou por rituais religiosos de iluminação há uma fusão esperada entre a realidade do sujeito e o contexto. No entanto, a confluência é perniciosa pela prolongação que leva a perda de identidades separadas. Isto pode ocorrer em outros tipos de relações doentias tais como os fanatismos religiosos ou políticos, onde não existe separação entre o que o indivíduo sente ou pensa e os padrões impostos. Vai além da introjeção pois o sujeito passa a viver a vida do outro como sendo a sua própria ( vide os atentados terroristas recentes onde os sujeitos aniquilam suas próprias vidas por uma causa). Todos nós passamos por uma etapa do desenvolvimento psicológico de confluência, como recém-nascidos, onde ainda não discriminamos entre o que é o eu e o que é o fora. Talvez o processo de separação entre o bebê e a mãe tenha sido vivido de um modo por demais doloroso para o confluente que ele busque construir outras relações na vida onde possa experimentar este sentido de fusão novamente. No trabalho terapêutico as etapas são 20 semelhantes as etapas naturais do processo de separação do bebê. Este indivíduo precisa construir uma confiança total no outro para acreditar que não será abandonado ou largado sem defesas no mundo. Em paralelo precisa solidificar seus próprios suportes para acreditar que é viável manter-se sozinho sem maiores riscos de comprometimento. A partir daí construirá um senso de identidade, onde alterna a sua percepção entre o que é seu e o que é o outro (ou o meio). Como todos os outros mecanismos neuróticos a confluência implica sempre em uma perda de discriminação. O confluente precisa tornar- se uma pessoa autônoma e permitir que as pessoas que o rodeiam também o sejam, sem que para isto precise se desintegrar. As fantasias do confluente são desta ordem – fantasias de que será aniquilado com a separação do outro. Retroflexão - na retroflexão o sujeito volta a ação, que seria para ser exercida no meio, para si mesmo. Ele faz consigo mesmo aquilo que, na realidade, gostaria de estar fazendo com alguém. É um mecanismo neurótico socialmente esperado pois, infelizmente, nem sempre podemos agir do modo como gostaríamos. Muitas vezes precisamos conter impulsos que surgem por não serem adequados. Faz parte do processo educacional saudável aprender a refrear ações, vide o exemplo da criança que precisa receber limites ao invés de bater, xingar, agredir aos outros sempre que tem vontade. No entanto, quando o sujeito perde o controle deste mecanismo, ele passa a se auto-agredir constantemente, sem que tenha consciência do que está fazendo consigo mesmo. Este mecanismoé típico de pessoas com tendência a apresentarem quadros psicogênicos, as chamadas “somatizações” de que nos referimos popularmente. Estas pessoas estão de fato adoecendo, causando violências aos seus próprios organismos por uma impossibilidade de expressão do que sentiram em determinadas situações onde o contato com o meio causou-lhes ansiedade. É como se o corpo deste sujeito “explodisse” a partir de tantas contenções que lhe foram impostas (esta explosão é, com freqüência, literal, ocasionando erupções cutâneas, fortes enxaquecas, diarréias e outros quadros que sugerem um extravazamento da energia física contida). Estas pessoas, durante o trabalho terapêutico, começam a perceber o grande medo que tem de explodirem psicologicamente caso comecem a deixar sair o que contiveram durante toda a vida. As fantasias são as de que seriam capazes de matar alguém, espancar, etc. Isto pode até acontecer de fato, caso os impulsos agressivos fiquem permanentemente contidos sem que a pessoa tome consciência de que tipo de violência causou a si mesma (veja os exemplos, também bastante atuais, de matadores em série e de pessoas, aparentemente normais que um belo dia cometem atrocidades inimagináveis). Com certeza, esta repressão exagerada foi gerada a partir de uma demanda inicial excessivamente rígida por parte dos outros. Pode ser conseqüência de um processo educacional 21 severo demais, onde a criança desde cedo aprendeu que não deve manifestar o que sente e se conter. Estas pessoas evidenciam fortes tensões musculares (ombros e pescoços rígidos principalmente) e tem uma profunda dificuldade de fazer contato com as sensações de prazer no seu corpo. Para se conter precisaram aprender a se segurar e a se des-sensibilizar. Muitas vezes percebe-se uma fúria contida no olhar destes sujeitos e uma mandíbula excessivamente presa, endurecida. O trabalho com estes indivíduos é um trabalho de afrouxamento, tanto do corpo físico, quanto dos rígidos padrões de censura. Esta pessoa precisa mostrar aos poucos sua insatisfação, sua discordância e ir liberando vagarosamente esta enorme agressividade aprisionada, até ganhar confiança de que não precisa ter uma atitude de radical violência; que possa ameaçar a integridade física de outras pessoas ou a sua própria, para poder então afrouxar um pouco suas amarras. O resgate do prazer como um processo natural e merecido do organismo é essencial para que o quantum de energia represada não se torne em uma bomba (auto ou hetero explosiva). Deflexão - apesar de não ter sido inicialmente comentado por Perls, este é um mecanismo neurótico que muitos autores da abordagem gestáltica dão destaque. Assim como todos os outros mecanismos neuróticos acima descritos, a deflexão tem a intenção de interromper o contato entre o ser e o seu meio. É um mecanismo que busca esvaziar este contato, escapar dele através de ações mecânicas e impensadas. Também não podemos descrever a deflexão como prejudicial em si, pois, como já afirmamos anteriormente, nem todo contato é saudável ou suportável em determinados momentos. Defletir um pouco faz parte de um mecanismo de auto-proteção. A deflexão permite que uma dose exagerada de ansiedade possa ser um pouco liberada. Uma boa caminhada ou um pouco de exercício físico em situações de extrema tensão não são por si ruins. Acender um cigarro, comer alguma coisa, falar qualquer besteira meio sem sentido, são todas experiências perfeitamente compreensíveis. No entanto, a pessoa que apela para a deflexão exageradamente pode se tornar uma pessoa superficial ou fútil, que nunca mergulha nas suas emoções mais profundas e fica sempre na superfície nos relacionamentos sociais. É típico daquela pessoa que fala demais sem nada a dizer, ou daquela que não para quieta e está sempre fazendo alguma coisa ou então daquela que mergulha em atitudes compulsivas como o alcoolismo, a droga -adicção, a glutonice ou até o sexo em exagero. Outra modalidade de deflexão, bastante presente no momento atual, é o consumo desenfreado de bens materiais. É a cultura do fetiche, já prevista e descrita por Marx, onde o mundo é transformado em enorme depósito de coisas que estão aí para nos satisfazer e nos recompensar pelas vicissitudes do exercício do cotidiano. Todos os nossos contatos com o mundo são efêmeros e provisórios pois uma 22 insatisfação interna imensa nos faz, cada vez mais, buscar mais e mais coisas para nos entupir e nos livrar da angústia. Remetendo-nos ao pensamento existencialista, lidar com a própria angústia é o que dignifica o ser e o possibilita evoluir e ir além dos limites impostos. O deflexor não ousa correr o risco de tentar romper os limites, ele sempre esvazia o contato antes que a necessidade torne-se awareness . Pensando no ciclo do contato proposto (que vai da sensação a satisfação da necessidade) esta pessoa parte da sensação direto para a ação, ela não permite que a awareness aconteça e que o fluxo de equilibração se instaure no organismo. A teoria do self em Gestalt Pensando nos mecanismos neuróticos apresentados acima, estar saudável é saber o que somos e o que não somos a cada momento, é distinguir o eu do resto do campo. Para isto é necessário estar holisticamente integrado e aware, tornando fluido e permanente o processo de auto-regulação organísmica pelo qual a formação e destruição de gestalten é uma constante. Neste processo, o self é nossa essência. O self é o processo em si, pelo qual avaliamos as possibilidades de contato no campo, conduzindo a ação para a busca do fechamento daquela necessidade do organismo que emergiu. Os níveis físico, emocional e cognitivo são manifestações diferentes da atividade do self. A fronteira de contato é o ponto onde a diferenciação ocorre. É na fronteira de contato que o outro e o self se encontram. O self é um sistema que acontece através dos contatos que ocorrem entre o eu e o meio. A principal atividade do self é, portanto, ajustar as demandas do eu as possibilidades existentes no meio para satisfazê-las. O self não é uma instância fixa, mas sim um sistema interacional eu/mundo. No self as funções perceptivas, motoras e cognitivas são integradas visando a harmonia do ser. Na neurose há uma inibição das funções do self exemplificada pelos mecanismos neuróticos relacionados acima. O self é espontâneo, podendo funcionar de modo mais passivo ou mais ativo de acordo com as características de cada situação específica. Perls inicialmente descreveu o ego, o id e a personalidade como funções do self. Hoje em dia é muito rara a descrição do funcionamento do ser usando estas categorias dentre os autores da Gestalt terapia. Privilegia-se a compreensão do self como um processo de estabelecimento de contato, identificação de necessidades e ação no meio de modo uníssono e harmônico. 23 Referências Bibliográficas BUROW, O.; SCHERPP, K. Gestaltpedagogia – um caminho para a escola e a educação. São Paulo: Summus, 1981. FAGAN, J. & M. Gestalt-Terapia – Teoria, Técnicas e Aplicações. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. GINGER, S. & A. Gestalt – Uma Terapia do Contato. 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