Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Natael Almeida Gonçalves – Interno de Medicina – UNEB ITU EM PEDIATRIA A infecção de trato urinário (ITU) constitui uma das infecções bacterianas mais frequentes em pediatria. É, provavelmente, a infecção bacteriana mais prevalente no lactente. No primeiro ano de vida, as ITUs são mais comuns em meninos do que em meninas. Após essa idade, ocorre queda brusca da incidência nos meninos, porém mantendo-se relativamente alta nas meninas até os 6 anos de idade. O aumento da incidência ocorre entre três e cinco anos de idade, havendo outro pico na adolescência, muito provavelmente devido às alterações hormonais (que favorecem a colonização bacteriana) e, em alguns casos, início precoce de atividade sexual. Tende à repetição podendo ocorrer novo episódio em cerca de 40% das pacientes. A recorrência é mais rara no sexo masculino. FISIOPATOGENIA A urina e o trato urinário são normalmente estéreis. O períneo e a zona uretral de neonatos e lactentes estão colonizados por: Escherichia coli, Enterobacteriaceae e Enterococus sp além de que o prepúcio de meninos não circuncidados é um reservatório para várias espécies de Proteus. A causa bacteriana mais comum de ITU é Escherichia coli, sendo responsável por aproximadamente 80% da ITU em crianças. Outros patógenos bacterianos gram-negativos incluem Klebsiella, Proteus, Enterobacter e Citrobacter. Patógenos bacterianos Gram-positivos incluem Staphylococcus saprophyticus, Enterococcus e, raramente, Staphylococcus aureus. Em pacientes com obstrução do trato urinário, bexiga neurogênica e litíase renal, as bactérias mais comumente envolvidas são: Proteus, Pseudomonas, Enterococus, Staphylococcus aureus, Staphylococcus epidermidis e, com menor frequência, a Escherichia coli. Vírus e fungos são causas incomuns de ITU em criança. As ITUs virais geralmente se limitam ao trato urinário inferior. Os fatores de risco para ITU fúngica incluem imunossupressão e uso em longo prazo de antibioticoterapia de amplo espectro e cateter urinário de demora. Obs.: A infecção por um organismo diferente de E. coli está associada a uma maior probabilidade de cicatrizes renais. FATORES DE RISCO Idade (maior em homens com menos de um ano e mulheres com menos de quatro anos) Falta de circuncisão História de ITU em parentes de primeiro grau Obstrução urinária Incontinência urinária e/ou intestinal Constipação intestinal Refluxo vesicoureteral Atividade sexual Cateterismo da bexiga Obs.: Crianças com achado ultrassonográfico renal anormal ou com uma combinação de febre alta (≥39 °C) e um organismo etiológico diferente de E. coli têm um risco maior de desenvolver cicatrizes renais do que crianças sem essas características. Natael Almeida Gonçalves – Interno de Medicina – UNEB CLASSIFICAÇÃO Cistite - é uma inflamação da mucosa da bexiga urinária com sintomas de infecção do trato urinário inferior (disúria, estrangúria, urgência, urina fétida, incontinência, hematúria e dor suprapúbica). Pielonefrite - as bactérias subiram para os rins causando uma inflamação da pelve renal e parênquima com sintomas incluindo febre que pode levar a dano renal ou deterioração de cicatrizes preexistentes. ITU não complicada - é uma infecção em um paciente imunocompetente com morfologia e função normal do trato urinário superior e inferior. ITU complicada - ocorre em recém-nascidos, na maioria dos pacientes com evidência clínica de pielonefrite, e em crianças com obstruções mecânicas ou funcionais conhecidas ou problemas do trato urinário superior ou inferior. ITU recorrentes - dois ou mais episódios de pielonefrite, um episódio de cistite e um de pielonefrite, três ou mais episódios de cistite Bacteriúria assintomática - é a presença de bacteriúria significativa em crianças sem nenhuma sintomatologia relacionada à infecção urinária. A bacteriúria assintomática é caracterizada por três uroculturas consecutivas com bacteriúria significativa em um período de 3 dias a 2 semanas, podendo ser transitória ou persistente. Geralmente, a bacteriúria desaparece em dias ou semanas e dificilmente recidiva. Obs.: As crianças com bacteriúria assintomáticas não devem ser tratadas, pois podem desenvolver ITU sintomática e, muitas vezes, com germes de virulência maior. QUADRO CLÍNICO O quadro clínico da ITU é heterogêneo, varia de acordo com a faixa etária e a localização da infecção, pode variar de febre isolada ou alterações do hábito miccional até pielonefrite aguda, podendo culminar com quadro de urossepse (especialmente em lactentes). Em recém-nascidos, apresenta-se geralmente como um quadro séptico, com manifestações inespecíficas como insuficiente ganho de peso, anorexia, vômitos, dificuldade de sucção, irritabilidade, hipoatividade, convulsões, pele acinzentada e hipotermia. Pode apresentar-se com um quadro menos agudo, predominando a recusa alimentar, vômitos ocasionais, palidez cutânea e icterícia. Obs.: A febre pode ser a única manifestação de ITU em bebês e crianças <2 anos de idade. Nos lactentes, a febre é a principal manifestação, muitas vezes o único sinal de ITU. Pode ocorrer hiporexia, vômitos, dor abdominal e ganho pondero estatural insatisfatório. Raramente há sinais ou sintomas ligados ao trato urinário, como polaciúria, gotejamento urinário, disúria, urina com odor fétido, dor abdominal ou lombar. Nos pré-escolares e escolares, a febre é também um sinal frequente associado aos sinais e sintomas relacionados ao trato urinário. Os quadros com maior acometimento do estado geral, adinamia, calafrios, dor abdominal e nos flancos sugerem pielonefrite aguda. Sintomas como enurese, urgência, polaciúria, disúria, incontinência e/ou retenção urinária com urina fétida e turva podem corresponder a um quadro de cistite. Nos adolescentes, a sintomatologia mais comum compreende disúria, polaciúria e dor à micção, podendo ocorrer também urgência miccional, hematúria e febre. Natael Almeida Gonçalves – Interno de Medicina – UNEB DIAGNÓSTICO O diagnóstico da ITU tem como base achados clínicos e laboratoriais, incluindo histórico clínico detalhado e exame físico. Na anamnese, além dos sintomas específicos de ITU, é importante perguntar sobre os hábitos intestinais (constipação e escapes fecais), as características do fluxo de urina e os sintomas gerais associados (febre, vômitos, diarreia, baixo ganho de peso). O exame físico deve incluir: medição de temperatura, pressão arterial e parâmetros de crescimento; exame abdominal para sensibilidade ou massa; avaliação da sensibilidade suprapúbica e costovertebral; exame da genitália externa; avaliação da parte inferior das costas para sinais de mielomeningocele oculta; e uma busca por outras fontes de febre. Avaliação Laboratorial A avaliação laboratorial da criança com suspeita de ITU inclui fita reagente de urina e análise microscópica e cultura de urina. A adequada coleta de urina é essencial para se evitar resultados falso-positivos e deve ser feita após limpeza da genitália com água e sabão, sendo contraindicados os antissépticos. Nos pacientes com controle miccional, o jato médio é o modo ideal de coleta de urina para ambos os sexos. Naqueles sem controle miccional, a urina pode ser coletada de três maneiras: saco coletor punção suprapúbica (PSP) cateterismo vesical Obs.: O exame de urina não substitui a urocultura no diagnóstico de ITU, mas pode apresentar alterações permitindo iniciar precocemente o tratamento. O diagnóstico de ITU requer confirmação laboratorial de bacteriúria e piúria significativas. Para o diagnóstico de ITU em crianças, piúria é definida por um dos seguintes: Esterase leucocitária positiva (≥1 +) na análise da fita reagente ≥5 leucócitos/campo de grande aumento (400x) com microscopia padronizada ou automatizada ≥10 leucócitos/mm³ em um hemocitômetro com urinálise aprimorada Obs.: A presença de cilindrospiocitários sugere fortemente um processo pielonefrítico. Obs.: Outras condições podem apresentar piúria ou leucocitúria sem significar ITU: desidratação grave, inflamação de estruturas contíguas (como na apendicite), injúria química do trato urinário e glomerulonefrites. O diagnóstico de ITU é confirmado pela bacteriúria significativa, que é a presença na urina de um número igual ou superior a 100.000 UFC de uma única bactéria. Achado inferior a 10.000 UFC é considerado negativo, e entre 10.000 e 100.000 UFC, um exame duvidoso, devendo ser repetido. O número de UFC/ mL considerado significativo é variável de acordo com o método de coleta adotado. Fonte: Tratado de pediatria: Sociedade Brasileira de Pediatria. 4. ed., 2017. Natael Almeida Gonçalves – Interno de Medicina – UNEB Obs.: Em relação à coleta de urina por saco coletor, os resultados só devem ser valorizados quando a cultura resultar negativa. Obs.: Na urina de jato médio, após assepsia prévia, é considerada positiva a contagem bacteriana maior ou igual a 100.000ufc/ml ou mais de 50.000ufc/ml associada com a análise de urina demonstrando evidência de piúria. TRATAMENTO A abordagem dos quadros de ITU envolve simultaneamente dois aspectos: a erradicação do agente infeccioso (seguida da quimioprofilaxia) e o estudo morfofuncional do trato urinário, pois o correto diagnóstico e o pronto início do tratamento são cruciais na prevenção do dano renal. A dor e a febre são tratadas com analgésicos e antitérmicos em doses usuais. Caso haja disúria intensa, pode-se empregar antiespasmódico. O tratamento inicial com antibióticos é empírico observando-se a idade e o estado geral do paciente. O fármaco deve ter sempre propriedades bactericidas e o tratamento nunca deve ser inferior a sete dias, e preferentemente por 10 dias contínuos. Quando a opção inicial é de tratamento parenteral não há obrigatoriedade em manter-se esta via por 10 dias. Sugere-se reavaliar o paciente em 48 a 72 horas e, havendo melhora, pode-se optar por completar o tratamento por via oral com antibiótico de espectro semelhante ao parenteral e/ou sabidamente sensível ao teste de sensibilidade antimicrobiana. A decisão por internação para utilização da via endovenosa ou tratamento ambulatorial depende da idade da criança e da gravidade da infecção. Tratamento Ambulatorial: Crianças maiores de 3 meses de vida, sem sinais de toxemia, com estado geral preservado, hidratadas e capazes de ingestão oral Tratamento Hospitalar: Crianças com febre alta, toxemiadas, desidratadas e com vômitos persistentes. As indicações usuais para hospitalização e/ou terapia parenteral incluem: Idade <2 meses Urossepsia clínica (por exemplo, aparência tóxica, hipotensão, enchimento capilar deficiente) Paciente imunocomprometido Vômito ou incapacidade de tolerar medicação oral Falta de acompanhamento ambulatorial adequado Falha em responder à terapia ambulatorial O início precoce da terapia antimicrobiana é particularmente importante para crianças que apresentam risco aumentado de cicatrizes renais se a ITU não for tratada imediatamente, incluindo aquelas que apresentam: Febre (especialmente> 39 °C ou > 48 horas) Aparência doente Sensibilidade do ângulo costovertebral Deficiência imunológica conhecida Anormalidade urológica conhecida O agente oral de primeira linha no tratamento de ITU em crianças sem anomalias geniturinárias é uma cefalosporina. Natael Almeida Gonçalves – Interno de Medicina – UNEB As cefalosporinas não são eficazes no tratamento de Enterococcus e não devem ser usadas como monoterapia para pacientes nos quais há suspeita de ITU enterocócica (por exemplo, aqueles com um cateter urinário instalado, instrumentação do trato urinário ou uma anormalidade anatômica). Em tais pacientes, amoxicilina ou ampicilina devem ser adicionadas. A amoxicilina e a ampicilina não são recomendadas rotineiramente para terapia empírica devido à alta taxa de resistência de E. coli. Da mesma forma, amoxicilina-clavulanato e TMP-SMX (trimetoprim- sulfametoxazol) devem ser usados com cautela, especialmente quando há suspeita de pielonefrite, devido às taxas crescentes de resistência a essas drogas em algumas comunidades. Cefalosporinas (por exemplo, cefotaxima, ceftriaxona, cefepima ) e aminoglicosídeos (por exemplo, gentamicina ) são agentes parenterais de primeira linha apropriados para o tratamento empírico de ITU em crianças. Os raros casos de infecções por Pseudomonas sp predominam entre os pacientes portadores de alterações graves do trato urinário ou naqueles em uso de cateterismo vesical limpo. Quando necessário, o tratamento com quinolonas geralmente é eficaz. Outra opção é a utilização de cefalosporinas combinadas inicialmente com um aminoglicosídeo. Obs.: A melhora do estado geral e o desaparecimento da febre em 48 a 72 horas são indicativos de uma boa resposta ao tratamento instituído. Obs.: Não é necessário obter rotineiramente culturas de urina repetidas durante a terapia antimicrobiana para documentar a esterilização da urina, desde que a criança tenha tido a resposta clínica esperada e o uropatógeno seja suscetível ao antibiótico usado para o tratamento. TRATAMENTO PROFILÁTICO A finalidade é prevenir recidivas de ITU, eliminando-se um dos principais fatores associados à gênese das lesões adquiridas do parênquima renal. A profilaxia está indicada nas seguintes situações: durante a investigação do trato urinário após o primeiro episódio de ITU; quando há diagnóstico de anomalias obstrutivas do trato urinário até a realização da correção cirúrgica; na presença de refluxo vesicoureteral (RVU) de graus III a V; Fonte: Sociedade Brasileira de Pediatria. Nº 1, Dezembro de 2016 . Fonte: Sociedade Brasileira de Pediatria. Nº 1, Dezembro de 2016 . Natael Almeida Gonçalves – Interno de Medicina – UNEB ITU febril com PCR positivo nas crianças que apresentem recidivas frequentes da ITU, mesmo com estudo morfofuncional do trato urinário dentro da normalidade; nesses casos, deve ser utilizada por período de 6 a 12 meses, podendo, quando necessário prolongar-se o tempo de uso. Dentre os fármacos, o de melhor eficácia e maior segurança é a nitrofurantoína, apesar da possibilidade de intolerância gástrica, principalmente no início do tratamento. INVESTIGAÇÃO POR IMAGEM A justificativa para exames de imagem em crianças com ITU é identificar anormalidades do trato geniturinário que requerem avaliação ou tratamento adicional (por exemplo, uropatias obstrutivas, refluxo vesicoureteral dilatador [RVU]). Se tais anormalidades forem detectadas, medidas podem ser tomadas para modificar o risco de dano renal subsequente (por exemplo, intervenção cirúrgica ou profilaxia antibiótica para prevenir ITU recorrente). Utilizam-se os exames ultrassonográficos, radiológicos, cintilográficos, urodinâmicos e urológicos. Não há um método único que permita a avaliação do trato urinário de forma completa, devendo-se, portanto, conjugá-los. Ultrassonografia (USG) do Aparelho Urinário e Bexiga Dado o benefício potencialmente grande de detectar malformações corrigíveis para um pequeno número de crianças e o baixo risco de danos, sugere-se USG para as seguintes crianças: Crianças menores de dois anos de idade com uma primeira ITU febril Crianças de qualquer idade com ITUs febris recorrentes Crianças de qualquer idade com ITU com histórico familiar de doença renal ou urológica, crescimento deficiente ou hipertensão Crianças que não respondem conforme o esperado à terapia antimicrobiana apropriada Obs.: Deve ser realizado em toda criança, independentemente de idade e sexo, que tenha diagnóstico de certeza de ITU, com o intuito de confirmar e/ou detectar má formações. Obs.: Mulheres que fazem ultrassonografia pré-natalapós 30 a 32 semanas de gestação - um período em que o trato urinário está totalmente desenvolvido; pode-se optar por não realizar o USG (em crianças de qualquer idade) se a ultrassonografia pré-natal realizada em um centro de confiança for normal e os resultados do estudo estiverem acessíveis. Cintilografia Renal com DMSA A cintilografia renal com ácido dimercaptosuccínico (DMSA) pode ser usada para detectar pielonefrite aguda e cicatriz renal em quadros agudos e crônicos, respectivamente. O DMSA é injetado por via intravenosa e a captação pelo rim é medida duas a quatro horas depois. É o exame padrão ouro na detecção da cicatriz renal e deve ser realizado em todos os lactentes com ITU febril, crianças que apresentaram quadro clínico de pielonefrite (mesmo naquelas crianças com USG normal de rins e vias urinárias) e pacientes com RVU. Deverá ser realizado após quatro a seis meses do episódio inicial de ITU. Fonte: Sociedade Brasileira de Pediatria. Nº 1, Dezembro de 2016 . Natael Almeida Gonçalves – Interno de Medicina – UNEB Uretrocistografia Miccional (UCM) Exame radiológico realizado com administração de contraste iodado intravesical, portanto, sem possibilidade de alergia e ou nefrotoxidade. Nele procura-se observar alterações da coluna, visualização da uretra, alteração da bexiga como, por exemplo, a presença de divertículo e a demonstração de RVU. A princípio, a UCM está reservada àqueles pacientes que apresentam; USG de rins e vias urinárias e/ou cintilografia com DMSA alterada e/ou Quadros repetitivos de infecção urinária associados à disfunção miccional. Obs.: As principais consequências da lesão renal crônica causada pela pielonefrite são a HIPERTENSÃO ARTERIAL e a INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA. Referências: Urinary tract infections in children: Epidemiology and risk factors – UpToDate Urinary tract infections in infants older than one month and young children: Acute management, imaging, and prognosis – UpToDate Documento Científico. Infecção do Trato Urinário. Departamento Científico de Nefrologia. Sociedade Brasileira de Pediatria. Nº 1, Dezembro de 2016 Stein Raimund, Dogan S. Hasan, Hoebeke Piet, Kocvara Radim, Nijman Rien J.M., Radmayr Christian, Tekgul Serdar. Urinary Tract Infections in Children: EAU/ESPU Guidelines. . European Urology 67 (2015) 546– 558. Simões e Silva AC, Oliveira EA. Update on the approach of urinary tract infection in childhood. J Pediatr (Rio J). 2015;91(6 Suppl 1):S2-S10 Tratado de pediatria: Sociedade Brasileira de Pediatria. 4. ed. Barueri, SP: Manole, 2017. Fonte: Tratado de pediatria: Sociedade Brasileira de Pediatria. 4. ed., 2017.
Compartilhar