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Introdução à Ciência do Direito – módulo II Desacordo moral e a função das instituições de direito. 1 Um experimento mental de um mundo sem o direito: a noção de estado de natureza Thomas Hobbes – Leviatã, capítulo XIII: Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria. Condição natural da humanidade, porque não artificial (construída: como a política, a soberania. Fundamento da autoridade política/jurídica não é divino. Mas se encontram em um acordo recíproco, um pacto entre indivíduos IGUAIS (aproximação à fila do MacCormick). “A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele.” “Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.” Por mais fraca que uma pessoa seja, não há anda que impeça ela de botar a vida do outro em risco. Os homens são iguais na capacidade de matar. “Quanto às faculdades do espírito [... pondo de lado as faculdades não nativas, como a ciência ...], encontro entre os homens uma igualdade ainda maior do que a igualdade de força. Porque a prudência nada mais é do que experiência, que um tempo igual igualmente, oferece a todos os homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam. O que talvez possa tornar inaceitável essa igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase todos os homens supõem possuir em maior grau do que o vulgo; quer dizer, em maior grau do que todos menos eles próprios, e alguns outros que, ou devido à fama ou devido a concordarem com eles, merecem sua aprovação. Pois a natureza dos homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência, maior eloqüência ou maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios; porque vêem sua própria sabedoria bem de perto, e a dos outros homens à distância. Mas isto prova que os homens são iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais. Pois geralmente não há sinal mais claro de uma distribuição eqüitativa de alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com a parte que lhes coube.” “Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro e disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho; mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros.” DESCONFIANÇA EM RELAÇÃO AOS OUTROS! “E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo. E isto não é mais do que sua própria conservação exige, conforme é geralmente admitido. Também por causa de alguns que, comprazendo-se em contemplar seu próprio poder nos atos de conquista, levam estes atos mais longe do que sua segurança exige, se outros que, do contrário, se contentariam em manter-se tranqüilamente dentro de modestos limites, não aumentarem seu poder por meio de invasões, eles serão incapazes de subsistir durante muito tempo, se se limitarem apenas a uma atitude de defesa. Consequentemente esse aumento do domínio sobre os homens, sendo necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos admitido.” Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 “Por outro lado, os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que a tal se atreva (o que, entre os que não têm um poder comum capaz de os submeter a todos, vai suficientemente longe para levá-los a destruir-se uns aos outros), por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor, causando lhes dano, e dos outros também, através do exemplo. “De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.” Leva à guerra. “A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.” Coisas que julgamos super importantes (pela nossa posição auto julgada superior) e que nos fazem odiar outras pessoas. Referência à Tomas de Aquino pelo prof: “As palavras às vezes machucam mais que a violência física.” O poder da palavra – gera ódio, não gostamos de ouvir desdéns, difamações, comentários maldosos...Já que nós julgamos de tal maneira que os outros não! Obtenção da vingança, OS HOMENS SÃO IGUAIS NA BUSCA DA HONRA. “Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. Portanto a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra, do mesmo modo que quanto à natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz.” “Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultiva da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.” Hobbes diz que caso não acreditemos nessanatureza das paixões humanas, devemos olhar nossa própria experiência: “Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha suas partas; que mesmo quando está em casa tranca seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita. Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade com seus atos como eu o faço com minhas palavras? Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza humana. Os desejos e outras Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 paixões do homem não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o são as ações que derivam dessas paixões, até ao momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba; o que será impossível até ao momento em que sejam feitas as leis; e nenhuma lei pode ser feita antes de se ter determinado qual a pessoa que deverá fazê-la. “Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim. Porque os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem qualquer espécie de governo, e vivem em nossos dias daquela maneira embrutecida que acima referi. Seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacifico costumam deixar-se cair, numa guerra civil.” “Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos, de qualquer modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra. Mas como através disso protegem a indústria de seus súditos, daí não vem como conseqüência aquela miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados.” Os Estados estão em constante condição de guerra!!!!! Diferente da condição natural. “Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão. Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É pois esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões, e em parte em sua razão.” “As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por outro lado se chama leis de natureza [...]” A ciência do direito vem como uma ciência de construir a paz, e para Hobbes, uma ciência JURÍDICA. Construir instituições que coloquem os homens nessa condição de igualdade diante da lei e, portanto, nenhum cidadão nesta configuração político-jurídico é considerado por natureza superior aos demais, não há nada que seja devido a mim e só a mim pelo o que EU julgo. 2 As características necessárias das instituições do direito para a superação do estado de natureza Herbert Hart, O conceito de direito, cap. IX, seção 2. Retomando Hobbes: para a vida confortável é preciso construir a política e uma autoridade capaz de ser a regra de medida do justo/injusto. Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 Seção 2: O conteúdo mínimo de direito natural. – Existe uma condição mínima que a estrutura jurídica e qualquer conduta tem que supor para que haja uma certa docilidade, civilidade, cooperação entre as pessoas. Caso não haja esta condição, não há como os individuo cooperarem com ela e resta a vida embrutecida do Hobbes. “Ao considerar os truísmos simples que apresentamos aqui e a sua conexão com o direito e a moral, é importante observar que em cada caso os factos mencionados fornecem uma razão pela qual, uma vez admitida a sobrevivência como uma finalidade, o direito e a moral deviam incluir um conteúdo específico. A forma geral do argumento consiste simplesmente em dizer que, sem um tal conteúdo, o direito e a moral não podiam apoiar o desenvolvimento do propósito mínimo da sobrevivência que os homens têm, ao associar-se uns com os outros. Na ausência deste conteúdo os homens, tais como são, não teriam uma razão para obedecerem voluntariamente a quaisquer regras; e sem um mínimo de cooperação dada voluntariamente por aqueles que consideram ser seu interesse submeter-se às regras, e mantê-las, seria impossível a coerção dos outros que não se conformassem voluntariamente com tais regras. [...] Tais conexões são, por isso, de diferente tipo daquelas que relacionam o conteúdo de certas regras jurídicas e morais com os factos afirmados nos seguintes truísmos:” “(i) Vulnerabilidade humana. As exigências comuns do direito e da moral consistem, na sua maior parte, não em serviços ativos a serem prestados, mas em abstenções, as quais são usualmente formuladas na forma negativa como proibições. Destas, as mais importantes para a vida social são as que restringem o uso da violência para matar ou causar ofensas corporais. A natureza fundamental de tais regras pode exprimir-se numa pergunta: se não houvesse estas regras, que sentido poderia ter, quanto a seres como nós próprios, o facto de termos regras de qualquer outro tipo? A força desta questão retórica repousa no fato de que os homens são simultaneamente levados a efetuar, de forma ocasional, ataques físicos e, normalmente, são vulneráveis a estes (dada nossa condição natural humana). Contudo, embora isso seja um truísmo (uma obviedade), não é uma verdade necessária; porque as coisas podiam ter sido diferentes e poderão sê-lo um dia. Há espécies de animais cuja estrutura física (incluindo os esqueletos externos ou a carapaça) os torna virtualmente imunes a ataques de outros membros da sua espécie e animais que não têm órgãos que lhes permitam desferir um ataque. Se os homens viessem a perder a sua vulnerabilidade face aos outros, desaparecia uma razão óbvia para o preceito mais característico do direito e da moral: Não matarás.” Preceito básico e primordial para as estruturas jurídicas e morais. “(ii) Igualdade aproximada. Os homens diferem uns dos outros na força física, na agilidade e, ainda mais, na capacidade intelectual.Seja como for, constitui um fato de muito grande importância para a compreensão de formas diferentes do direito e da moral a circunstância de nenhum individuo ser muito mais poderoso do que os outros, de tal modo que alguém seja capaz, sem cooperação, de dominar ou subjugar os outros por tempo superior a um período curto. Mesmo o mais forte, tem de dormir de vez em quando e, quando adormecido, perde temporariamente a superioridade. Este fato de igualdade aproximada, mais do que qualquer outro, torna óbvia a necessidade de um sistema de abstenções mútuas e de compromisso que está na base, quer da obrigação jurídica, quer da moral. A vida social com suas regras a exigir tais abstenções é, por vezes, penosa, mas é, de qualquer modo, menos desagradável, menos brutal e menos abrupta do que a agressão sem restrições, para seres assim aproximadamente iguais. É, claro, inteiramente compatível com isto e um truísmo igual que, quando tal sistema de abstenções é estabelecido, haverá sempre alguns que desejarão explorá-lo, simultaneamente vivendo sob a sua proteção e violando as suas restrições. Isto é, na verdade – como mostraremos mais tarde – um dos fatos naturais que torna necessária a passagem da simples moral para as formas organizadas e jurídicas de controle. Mais uma vez, as coisas podiam (e podem ser! O autor não faz previsões sobre o futuro) ter sido de outro modo. Em vez de serem aproximadamente iguais, podia ter havido certos homens infinitamente mais fortes do que os outros e mais aptos a viverem sem descanso, quer porque alguns deles estavam, nestes aspectos, muito acima da atual média, quer porque a maior parte estava muito abaixo dela. Tais homens excepcionais podiam ter muito a ganhar com a agressão e pouco a ganhar com a abstenção mútua e o compromisso com os outros. Mas não necessitamos de recorrer à fantasia dos gigantes entre os pigmeus para ver a importância fundamental do fato da igualdade aproximada: tal é ilustrado da melhor forma pelos fatos da vida internacional onde há (ou houve) grandes disparidades, em força e vulnerabilidade, entre os Estados. Esta desigualdade entre os membros do direito internacional é, como veremos mais tarde, uma das coisas que lhe deu um caráter tão diferente do direito interno e limitou a medida em que é capaz de operar um sistema coercivo organizado.” Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 “(iii) Altruísmo limitado. Os homens não são demônios dominados por um desejo de se exterminarem uns aos outros e a demonstração de que, por força apenas da finalidade modesta da sobrevivência, as regras básicas do direito e da moral são coisas necessárias, não deve ser identificada como o ponto de vista falso de que os homens são predominantemente egoístas e não têm uma preocupação desinteressada na sobrevivência ou no bem-estar dos seus semelhantes. Mas se os homens não são demônios, tampouco são anjos: e o ato de que estão a meio caminho entre estes dois extremos é algo que torna um sistema de abstenções recíprocas simultaneamente necessária e possível. Como anjos, nunca tentados a causar danos aos outros, as regras que exigem abstenções não seriam necessárias. Com demônios dispostos a destruir, independentemente dos custos para si próprios, seriam impossíveis. Sendo as coisas como são, o altruísmo humano é limitado no seu âmbito e é intermitente (instável), e as tendências para a agressão são suficientemente frequentes para serem fatais relativamente à vida social, se não forem controladas. “ “(iv) Recursos limitados. Constitui um simples fato contingente que os seres humanos necessitem de comida, roupas e abrigo e que estes bens não existam à mão com abundância ilimitada, mas sejam, pelo contrário, escassos, tenham de ser cultivados ou arrancados à natureza, ou tenham de ser construídos pelo esforço e trabalho humanos. Esses fatos tornam por si só indispensáveis certa forma mínima da instituição da propriedade (embora não necessariamente da propriedade individual) e a espécie distintiva de regra que exige respeito por aquela. As formas mais simples de propriedade hão de ver se em regras que vedam às pessoas em geral, diferentes do <proprietário>, a entrada ou o uso de terra ou a apreensão ou o uso de coisas materiais. Para que as colheitas cresçam, a terra tem de estar protegida de incursões indiscriminadas e a comida tem de, nos intervalos entre o seu crescimento ou colheita e o consumo, estar protegida da apreensão pelos outros. Em todos os tempos e lugares, a própria vida depende destas abstenções mínimas. Mais uma vez, a este respeito as coisas podiam ter sido diversas do que são. O organismo humano podia ter sido constituído como as plantas, capaz extrair alimento do ar, ou aquilo de que ele necessita podia ter crescido sem cultivo, com abundância ilimitada.” “As regras que temos discutido até aqui são regras estáticas, no sentido de que as obrigações que se impõem e a incidência destas obrigações não são susceptíveis de modificação pelos indivíduos. Mas a divisão do trabalho, que todos os grupos, à excepção dos mais pequenos, devem desenvolver para obter os recursos adequados, traz consigo a necessidade de regras que são dinâmicas, no sentido de que permitem aos indivíduos criar obrigações e fazer modificar a sua incidência. Entre estas, estão as regras que permitem aos homens transferir, trocar ou vender os seus produtos; porque estas transações envolvem a capacidade de alterar a incidência daqueles direitos e obrigações iniciais que definem a forma mais simples de propriedade. A mesma inevitável divisão do trabalho e a necessidade perene de cooperação são também fatores que tornam necessárias na vida social as outras formas de regras dinâmicas ou criadores de obrigações. Estas asseguram o reconhecimento das promessas como fonte de obrigação. Através deste expediente, os indivíduos encontram-se habilitados a, através de palavras faladas ou escritas, ficarem sujeitos a censuras ou a castigo por não terem agido de certos modos estabelecidos. Quando o altruísmo não é ilimitado, exige-se um processo permanente destinado a regular os atos auto vinculativos, com a finalidade de criar uma forma mínima de confiança no comportamento futuro dos outros e para assegurar a previsibilidade necessária à cooperação. Isto é mais obviamente necessário quando as coisas que se vão trocar ou planear conjuntamente são serviços recíprocos, ou sempre que os bens objeto de troca ou venda não estão disponíveis ao mesmo tempo ou imediatamente.” “(v) Compreensão e força de vontade limitadas. Os fatos que tornam necessárias à vida social as regras respeitantes às pessoas, à propriedade e aos compromissos são simples e os seus benefícios recíprocos são evidentes. A maior parte dos homens é capaz de os ver e de sacrificar os interesses imediatos de curto prazo que a conformidade a tais regras pede. Podem na verdade obedecer, por uma variedade de motivos: uns a partir de um cálculo prudente de que os sacrifícios valem os ganhos; outros a partir de uma preocupação desinteressada pelo bem-estar dos outros; e ainda outros porque encaram as regras como merecedores de respeito em si próprias e encontram os seus ideais na devoção a elas. Por outro lado, nem a compreensão do interesse de longo prazo, nem a força de vontade ou a retidão desta, das quais depende a eficácia destes diferentes motivos de obediência, são partilhadas igualmente por todos os homens. Todos são tentados por vezes a preferir os seus próprios interesses imediatos e, na ausência de uma organização especial para a sua descoberta e punição, muitos sucumbiriam á tentação. Indubitavelmente, as vantagens das abstenções recíprocas são tão palpáveis que o número e a força dos que cooperariam voluntariamente Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 num sistema coercivo, serão normalmente maiores do que qualquer associação possível de malfeitores. Contudo, exceto em sociedades muito pequenas e fortemente coesas, a submissão a um sistema de restrições serialoucura, se não houvesse nenhuma organização para a coerção daqueles que tentariam então obter as vantagens do sistema, sem se sujeitar às suas obrigações. As <sanções> são, por isso, exigidas não como o motivo normal para a obediência, mas como uma GARANTIA de que os obedeceriam voluntariamente não serão sacrificados aos que não obedeceriam. Obedecer, sem isto, seria arriscar-se a ser posto irremediavelmente contra a parede. Dado este perigo constante, o que a razão pede é a cooperação voluntária num sistema coercivo.” “Deve observar-se que o mesmo fato natural de igualdade aproximada entre os homens se reveste de crucial importância na eficácia das sanções organizadas. Se alguns homens fossem acentuadamente mais poderes do que outros, e assim não dependentes das abstenções, a força dos malfeitores poderia exceder a dos apoiantes do direito e da ordem. Dadas tais desigualdades, o uso de sanções não poderia ter sucesso e envolveria perigos, pelo menos tão grandes como os que essas sanções visavam suprimir. Nestas circunstâncias, em vez de a vida social ser baseada num sistema de abstenções recíprocas, sendo a força apenas usada intermitentemente contra uma minoria de malfeitores, o único sistema viável seria aquele em que os fracos se submeteriam aos fortes nos melhores termos em que pudessem arranjar e viveriam sob a sua <proteção>. Isto levaria, em virtude da escassez dos recursos, a um número de centros de poder conflitantes, cada um agrupado à volta do seu <homem forte>: estes grupos podiam intermitentemente guerrear-se entre si, embora a sanção natural, nunca desprezável, do risco de derrota pudesse assegurar uma paz precária. Regras deste tipo poderiam então ser aceitas para a regulação das questões sobre as quais os <poderes> não tencionavam bater-se. De novo, não precisamos de pensar em termos fantasiosos de pigmeus e gigantes em ordem a compreender a logística simples da igualdade aproximada e a sua importância para o direito. A cena internacional, em que as unidades em causa têm diferido grandemente em termos de força, ilustra suficientemente essa situação. Durante séculos, as disparidades entre os Estados têm resultado num sistema em que as sanções organizadas têm sido impossíveis, e o direito tem-se limitado a matérias que não afetavam questões <vitais>. Resta ver até que ponto é que as armas atômicas, quando à disposição de todos, restabelecerão o equilíbrio do poder desigual e trarão formas de controle semelhantes, de forma mais aproximada, ao direito criminal interno.” Se todos tivessem a bomba atômica, quem jogaria primeiro nessa questão de igualdade aprox.? “Os truísmos simples que discutimos não revelam apenas o núcleo de bom sendo na doutrina do Direito Natural. São de importância vital para a compreensão do direito E da moral e explicam por que razão a definição das formas fundamentais destes em puros termos formais, sem referência a nenhum conteúdo específico ou a necessidades sociais, se tem mostrado tão inadequada. Talvez o maior benefício para a teoria geral do direito desta visão resida na fuga que possibilita a certas dicotomias enganadores, que frequentemente obscurecem as características do direito. Assim, por exemplo, a questão tradicional sobre se todos os sistemas jurídicos DEVEM estabelecer sanções pode ser apresentada a uma luz nova e mais clara, quando dominamos a visão das coisas apresentadas por esta versão simples do Direito Natural. Não teremos já de escolher entre duas alternativas inadequadas, que frequentemente são consideradas como exaustivas: por um lado, a de dizer que isto é exigido <pelo> significado das palavras <direito> ou <sistema jurídico> e, por outro lado, a de dizer que é <apenas um fato> a circunstância de que a maioria dos sistemas jurídicos estatui efetivamente sanções. Nenhuma destas alternativas é satisfatória. Não há princípios firmados que proíbam o uso da palavra <direito> quanto a sistemas em que não há sanções centralmente organizadas e há boas razões (embora não seja obrigatório) para usar a expressão <direito internacional> relativamente a um sistema que não tem quaisquer sanções (isso em 1961, mas ainda hoje estas são precárias). Por outro lado, necessitamos efetivamente de distinguir o lugar que as sanções devem ter dentro de um sistema interno, para poderem servir os propósitos mínimos de seres constituídos do modo como os homens o são. Podemos dizer, dado o enquadramento dos fatos e finalidades naturais, que aquilo que torna as sanções não só possíveis, como necessárias num sistema interno, é uma necessidade natural, e uma tal frase é necessária também para tornar compreensível o estatuto das formas mínimas de proteção das pessoas, da propriedade e dos compromissos, os quais são aspectos igualmente indispensáveis do direito interno. É desta forma que devemos responder à tese positivista de que <o direito pode ter qualquer conteúdo>. Isto porque é uma verdade de certa importância a de que deve reservar-se um lugar para uma terceira categoria de afirmações, para a descrição adequada não só do direito, mas de muitas instituições sociais, além das definições e das afirmações comuns de fato: trata-se das afirmações Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 cuja verdade é contingente quanto aos seres humanos e quanto ao mundo em que vivem, embora mantendo as características salientes que têm.” Requisitos mínimos naturais que devem ser respeitados para estruturar qualquer base jurídica. O direito não significa necessariamente justiça, mas COOPERAÇÃO. PowerPoint – Pressupostos para a legitimidade de uma decisão judicial – quando aquele que julga age em nome do direito. Decisões judiciais: ● Apresentam-se como razões exclusionárias para a ação do indivíduo (Joseph Raz). “É assim que deve ser feito”. ● São razões que se apresentam como um dever ser incondicional. ● A ameaça de sanção por virtude de seu descumprimento é um instrumento adicional para que o indivíduo tenha interesse em cumprir a decisão > ter uma obrigação é diferente de ser obrigado. Razão para seguir a decisão dadas pelo direito atribuídas às instâncias legítimas, mesmo que possamos ser prejudicados por ela, este é o sentido da obrigação. ● São razões do sistema, independentes das convicções pessoais do julgador. Imparcialidade. Não são particulares. Razões dadas pelo sistema jurídico: Em ao menos dois sentidos fracos, não podem ser razões arbitrárias: ● Não podem submeter uma pessoa à vontade momentânea de outra sem qualquer tipo de limitação/autorização (condição de escravidão); ● Não podem ser aleatórias (o Poder Judiciário não pode ser uma loteria, uma surpresa, sem previsibilidade). Quem pode fornecer razões para agir em caso de conflito: ● Ninguém pode ser juiz em sua própria causa; para sair da condição de guerra de Hobbes, é preciso um 3º imparcial. ● Ninguém pode ser juiz de uma causa em que a vitória de uma das partes lhe traga aparentemente maior vantagem, ou honra, ou prazer do que a vitória da outra parte, pois ele teria recebido um suborno (ainda que independentemente da sua vontade), e ninguém pode ser obrigado a confiar nesse juiz; O juiz que busca a honra é um corrupto, esta não é função, mas ser o mais anônimo possível no estado público. Corromper os princípios da organização política a qual ele mesmo está submetido, sob suas próprias razões. Juízes de acordo com o modelo de sociedade: > Sociedade monista > amplo consenso moral (sociedade + simples). ● O juiz é reconhecido como virtuoso por ambas as partes em disputa, isto é, como alguém capaz de chegar à decisão correta que a situação exige. (Também porque há um consenso moral do que é ser a decisão correta neste pequeno e simples grupo). > Sociedade pluralista > desacordo moral, doutrinário (sociedade + complexa, em que discordamos). ● O juiz é um terceiro imparcial que decide com base em razões universais fixadas de maneira prévia à ação das partes a ser julgada > separação entre criação e aplicação do critério de julgamento (paraatribuímos uma Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 legitimidade à esta ordem, é preciso separar àquele que cria o que é lícito e ilícito e aquilo que julga o que é lícito e ilícito.) ● ESTADO DE DIREITO!!!! ● Exemplo MacCormick, Microsoft e Internet Explorer que não era vendida separadamente, comprava o PC e o Explorar estava incluso = apelação (EUA X Microsoft) que fala do juiz que estabeleceu contatos pessoais (e mais outras coisas) aparentava parcialidade, apesar de não poder efetivamente comprovar isto, foi entendido que isto contaminava seriamente o processo e põe em questão a sua integridade - anulam sua decisão e decidem redistribuir a outros juiz. CORROMPER. Não age como 3º imparcial. 3 O positivismo jurídico e a separação entre direito e moral Herbert Hart – Apresentação de PPRT sintetizando o pensamento: Vozes contemporâneas nos dizem que devemos reconhecer algo que foi obscurecido pelos juristas “positivistas”, cujo tempo agora já se foi: 1. Que há “um ponto de intersecção entre o Direito e a moral” Ou 2. que aquilo que é aquilo que deveria ser estão, de alguma forma, indissociavelmente fundidos, que são inseparáveis, embora os positivistas o neguem. O que significam essas expressões? Ou antes, qual das muitas coisas que elas poderiam significar significam de fato? Qual delas os “positivistas” negam e por que é errado fazê-lo? Quais são, então, os erros teóricos dessa distinção positivista (entre o que o direito é vs o que o direito deveria ser)? Por um lado, Hart retoma as duas críticas que Bentham tinha em mente: 1. O anarquista que argumentava nos seguintes termos: “Esta não deveria ser a lei, portanto não o é e estou livre não apenas para censurá-la, mas para ignorá-la”. 2. Por outro, ele pensava no reacionário que argumentava assim: “Este é o direito, portanto ele é o que deveria ser”, e, desta forma, matava qualquer crítica no nascedouro. → Um ponto importante é que, sem dúvida, quando Bentham e Austin insistiram na distinção entre o Direito como ele é e como deveria ser, eles tinha em mente leis específicas, cujos sentidos estavam claros e, assim, não em disputa, e estavam preocupados em sustentar que tais leis, mesmo que moralmente ultrajante, ainda eram leis. No entanto, dizem os críticos, mesmo se aquilo que os Utilitaristas sustentavam nesse ponto estivesse correto, sua insistência a seu respeito, por meio de uma terminologia que sugeria uma separação geral (general cleavage) entre o que é e o que deveria ser o Direito, obscureceu o fato de que, em outros momentos, há um ponto de contato essencial entre os dois. Estas distinções não poderiam ser levadas como se fossem fogo e ferro. Assim, Hart passa a enfrentar: 1. Não apenas as críticas sobre esse ponto específico que os Utilitaristas tinham em mente; 2. Mas também sobre a afirmação (claim) de que uma conexão (connection) essencial entre o Direito e moral emerge se examinamos a forma como as leis, cujos sentidos estão em disputa, são interpretadas e aplicadas a casos concretos, e; 3. De que esta conexão emerge novamente de ampliamos nosso ponto de vista e perguntamos, não se cada norma jurídica particular deve satisfazer um mínimo moral para ser uma lei, mas se um sistema de normas que, como um todo, deixa de fazê-lo, pode ser um sistema jurídico. Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 Há, entretanto, uma complexidade inicial que tem gerado grande confusão na crítica. Pode ajudar identificar cinco (pode haver mais) significados de “positivismo” referidos na teoria do direito contemporânea: 1. Afirmação de que leis são comandos de seres humanos; 2. A afirmação de que não há conexão necessária entre direito e moral ou entre o direito como ele é e como deve ser; 3. A afirmação que a análise (ou estudo do significado) dos conceitos jurídicos a) vale a pena perseguir e b) deve ser distinguida da investigação histórica sobre as causas e origens das leis, das investigações sociológicas sobre a relação do direito com outros fenômenos sociais, e da crítica ou apreciação do direito seja em termos morais, de objetivos sociais, “funções”, ou de outro tipo; 4. A afirmação de que um sistema jurídico é um “sistema lógico fechado” em que decisões jurídicas corretas podem ser deduzidas por meios lógicos a partir de regras jurídicas pré-determinadas sem referência a fins sociais, políticas públicas (policies), padrões morais; 5. A afirmação de que o julgamento moral não pode ser estabelecido ou defendido, como declarações de fato podem, por argumento racional, evidência ou prova (“não cognitivismo” em ética); Bentham e Austin tinham as visões descritas em (1), (2) e (3), mas não aquelas descritas em (4) e (5). A opinião (4) é comumente atribuída aos juristas analíticos, mas não conheço nenhum “analítico” que tivesse tal visão. A lei como comando: crítica. O que são comandos? Eles devem ser gerais; segundo, eles devem emanar daquilo (como sustentavam tanto Bentham como Austin) que existe em toda sociedade política, independentemente de sua forma constitucional a saber uma pessoa ou grupo de pessoas que recebem, habitualmente, a obediência de maior parte da sociedade, mas que não obedecem a outros. É fácil perceber que essa explicação para os sistemas jurídicos é frágil. Algumas leis requerem que os homens ajam, ou se abstenham de agir, de determinado modo, independentemente de eles o quererem ou não. O direito penal consiste, em larga medida, de regras desse tipo: à semelhança dos comandos, elas são simplesmente “obedecidas” ou “desobedecidas”. Mas outras regras jurídicas são apresentadas à sociedade de forma bem diferente e têm funções bem diferentes. → Elas não dizem (como os comandos) “faça isso quer você queira, quer não”, mas, antes, “SE você quiser fazer isso, eis o modo de fazê-lo”. Sob essas regras nós exercemos poderes, ajuizamos ações e afirmamos direitos. Essas expressões marcam as características específicas de leis que conferem direitos e poderes; eles são direitos que estão, digamos assim, à disposição dos indivíduos de uma forma que o direito penal não está. Mas nada disso mostra que a insistência utilitarista na distinção entre a existência da lei e seus “méritos” está equivocada. Hart se volta agora para uma crítica caracteristicamente norte-americana sobre a separação entre o que o Direito é daquilo que o Direito deveria ser. O insight dessa escola pode ser apresentado a partir do seguinte exemplo: Uma regra jurídica nos proíbe de levar um veículo a um parque público. Isto claramente proíbe um automóvel, mas o que dizer de bicicletas, patins, carrinhos de brinquedo? E aviões? Deve haver um núcleo de sentidos estabelecido, mas haverá, também, uma zona de penumbra de casos discutíveis nos quais as palavras nem são obviamente aplicáveis, nem obviamente descartadas. Assim, ao aplicar normas jurídicas, alguém que tem que assumir a responsabilidade de decidir que as palavras englobam ou não englobam o caso em pauta, com todas as consequências práticas que essa decisão envolve. Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 Se uma zona de penumbra incerteza deve envolver todas as regras jurídicas, então sua aplicação a casos específicos na área da zona de penumbra não pode ser uma questão de dedução lógica. O que é, então, que faz com que tais decisões sejam corretas ou, pelo menos, melhores que decisões alternativas? Mais uma vez, parece correto dizer que o critério que, nesses casos, torna sensata uma decisão é algum conceito daquilo que o Direito deveria ser; e é fácil, a partir daí, passar a dizer que deve haver um julgamento moral sobre o que o Direito deveria ser. A pergunta de Hart agora é como e em que medida a demonstração desse erro em não identificar a inevitabilidade das zonas de penumbra mostra que a distinção utilitarista é incorreta ou enganosa? A acusação de formalismo tem sido dirigida tanto às teorias jurídicas “positivistas” quantos aos tribunais. Mas Austin estava absolutamente atento ao caráter da linguagem, à sua imprecisão e ao seu caráter aberto.Ele acreditava que em situações da zona de penumbra, os juízes têm necessariamente que legislar e, em um tom que lembra por vezes o juiz Jerome Frank, ele criticou severamente os juízes da Common Law por legislarem de maneira tímida e débil e por confiarem cegamente em analogias reais ou imaginadas com casos pretéritos, em vez de adaptarem suas decisões às crescentes necessidades da sociedade como revelado pelo padrão moral da utilidade. O que significa, exatamente, um juiz cometer esse erro, ser “formalista”, “automático”, “máquina”? Mas de que maneira, ao ser uma formalista, um juiz faz uso excessivo da lógica? É claro que a essência desse erro é dar a algum termo geral uma interpretação que é cega aos valores e consequências sociais (ou que é, de algum outro modo, tola ou que talvez apenas não sejam apreciadas pelos críticos). A lógica não prescreve interpretação de termos; ela não dita nem uma interpretação tola, nem inteligente de qualquer expressão. A lógica apenas lhe diz hipoteticamente que SE você der a certo termo uma determinada interpretação, uma determinada conclusão irá decorrer. A lógica é silente quanto ao modo de classificar particulares - e é este o coração da decisão judicial. Suponhamos que a norma de que não se possa levar um “veículo” roubado para fora das fronteiras do Estado, e, nesse caso, foi levado um avião. Em vez de fazer uma escolha à luz dos objetivos sociais, o juiz determina o sentido de maneira diferente. Ele ou adota o sentido que a palavra mais obviamente sugere em um contexto não jurídico para o homem comum, ou o sentido que a palavra recebeu em algum outro contexto jurídico ou, pior ainda, ele pensa no caso padrão e arbitrariamente identifica nele certas características - por exemplo, no caso de um veículo, (1) normalmente utilizado no solo, (2) capaz de levar um ser humano, (3) capaz de autopropulsão - e trata os três como sendo condições sempre necessárias e sempre suficientes para o uso da palavra “veículo” em todos os contextos em que surja a despeito das consequências sociais de dar-lhe esta interpretação. Esta escolha, não “lógica”, forçaria o juiz a incluir um carrinho de brinquedo a motor (se propelido eletronicamente) e as excluir as bicicletas e o avião. Nisso tudo há provavelmente muita tolice, mas nem mais, nem menos “lógica” do que em casos nos quais a interpretação dada a um termo geral e a consequente aplicação de alguma regra geral é conscientemente controlada por algum objetivo social determinado. Mas é no mínimo duvidoso que tenha havido alguma decisão judicial (mesmo na Inglaterra) tomada de forma tão automática. Certamente muitas das decisões da Suprema Corte na virada dos séculos, que foram assim estigmatizadas, representavam escolhas claras na zona obscura de levar a efeito uma política de tipo conservador. Isto é particularmente verdadeiro em relação aos votos do Ministro Peckham definindo as esferas de poder da polícia e do devido processo legal. (ver Lochner v. New York, 198 U.S. 1905 – Jornada de trabalho dos padeiros). Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 A opinião do justice Peckham de que não havia fundamento razoável a que se interferisse no direito de livre contrato determinando-se as horas de trabalho no ofício de um padeiro pode de fato ser um perverso exemplo de conservadorismo, mas nele não há nada de automático ou de mecânico. Mas de que modo o erro de se decidir casos de uma forma automática e mecânica e o acerto de se decidir casos com referência a propósitos sociais mostram que é equivocada a insistência utilitarista na distinção entre o que o Direito é e o que deveria ser? Mesmo aqueles que negam tal distinção concordariam que essas decisões estigmatizadas como automáticas são parte do direito. Certamente os utilitaristas diriam que elas são Direito, mas que são mal Direito; que não deveriam ser Direito. Mas isso seria utilizar a distinção, não a refutar. Mas não se segue que, porque o oposto de uma decisão tomada cegamente na maneira formalista ou literalista é uma decisão inteligentemente tomada tendo por referência alguma concepção do que o Direito deveria ser, que temos uma junção entre o Direito e a moral. A palavra “deveria” simplesmente reflete a presença de algum parâmetro para a crítica; um desses parâmetros é o parâmetro moral, mas nem todos os parâmetros são morais. O ponto aqui é que decisões inteligentes que se opõem a decisões mecânicas ou formais não são necessariamente idênticas a decisões defensáveis em bases morais. Assim, o contraste entre a decisão mecânica e a inteligente pode se reproduzir dentro de um sistema dedicado à busca dos objetivos mais cruéis. A terceira crítica à separação entre direito e moral é de caráter bastante diferente. Essa crítica vem daqueles pensadores alemães que vivenciaram o regime nazista e refletiram sobre suas manifestações perversas no sistema jurídico. Um desses pensadores, Gustav Radbruch, partilhara ele mesmo da doutrina “positivista” até a tirania nazista, quando foi convertido por sua experiência e, por isso, seu apelo a outros homens para que descartem a doutrina da separação entre o Direito e a moral tem a força particular de uma retratação. Radbruch concluiu: a. Da facilidade com que o regime nazista explorara a subserviência à mera lei expressa, como ele acreditava, no slogan “positivista” “a lei como lei” (Gesetz als Gesetz); b. Da ausência de protestos por parte dos profissionais de Direito na Alemanha contra as barbaridades que tinham que perpetrar em nome do Direito; Que, o “positivismo” (entendido aqui como a insistência na separação entre o direito como é e o Direito como deveria ser) contribuíra poderosamente para tais horrores. É impossível ler sem simpatia o apelo apaixonado de Radbruch para que a consciência jurídica alemã se abrisse às demandas da moral e seu lamento de que, na tradição alemã, este tão raramente tenha sido o caso. Mas devemos examinar por que o slogan “lei é lei” e a distinção entre Direito e moral assumiram um caráter sinistro na Alemanha enquanto, em outros lugares, como no caso dos próprios Utilitaristas, elas foram acompanhadas de atitudes liberais mais esclarecidas. Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 Por que razão, pergunta Hart, Radbruch acredita que o lema “a lei é a lei” implicaria que o simples fato de que um regra jurídica é válida implicaria que ela devesse ser obedecida? Que a afirmação de que “a lei é a lei” encerrasse todo o debate moral? Certamente, a resposta genuinamente liberal a qualquer uso sinistro de slogan “lei é lei” é “Muito bem, mas isto não encerra a questão. A lei não é a moral; não permitamos que ela suplante a moral”. Depois da guerra, a concepção de Radbruch de que o Direito continha em si mesmo o princípio moral essencial do humanitarismo foi aplicado, na prática, por tribunais alemães e alguns casos em que foram punidos criminosos de guerra locais, espiões e informantes durante o regime nazista. O caso/exemplos dos denunciantes invejosos1: a lei [nazista] “era contrária à boa consciência e ao sentido de justiça de todos os seres humanos decentes”. Muitos de nós podem aplaudir o objetivo - o de punir uma mulher por um ato moralmente ultrajante -, mas isto só foi possível ao se declarar que uma lei estabelecida desde 1934 não tinha força de lei, e pelo menos a sabedoria desse procedimento deve ser questionada. Havia, é claro, duas outras opções: 1. Uma era a de deixar a mulher impune; pode-se simpatizar e endossar o entendimento de que fazê-lo seria ruim. 2. Outra seria a de enfrentar o fato de que, se a mulher devesse ser punida, deveria ser de acordo com a introdução de uma lei francamente retrospectiva e com plena consciência daquilo que se sacrificava para garantir sua punição nesses termos. Odiosas como podem ser a legislação e a punição penal retrospectivas, buscá-las abertamente nesse caso teria, pelo menos, o mérito da franqueza. Teria deixado claro que, ao punir a mulher, uma escolha entre dois males precisara ser feita, entre o de deixá-la impunee o de sacrificar um preciosíssimo princípio moral endossado pela maioria dos sistemas jurídicos. Se fizermos nosso protesto contra leis más na forma de uma assertiva de que certas normas não podem ser leis devido à sua iniquidade moral, confundimos uma das formas mais poderosas, porque a mais simples, de crítica moral. Se, com os Utilitaristas, falamos claramente, diremos que as leis podem ser direito, mas que são perversas demais para serem obedecidas. Esta é uma condenação moral que todos podem entender e que solicita, de forma clara e imediata, atenção moral. 4 A dignidade da legislação e a função do Poder Judiciário Waldron – A dignidade da legislação – PPRT. INTRODUÇÃO: Acredito que a legislação e as legislaturas têm má fama na filosofia jurídica e política, uma fama suficientemente má para lançar dúvidas quanto a suas credenciais como fontes de direito respeitáveis. Nosso silêncio nessa questão é ensurdecedor se comparado com a loquacidade sobre o tema dos tribunais. Não há nada sobre legislaturas ou legislação na moderna jurisprudência (tradução correta de jurisprudência é ‘teoria do direito’) filosófica que seja remotamente comparável à discussão da decisão judicial. E há razão para isso. Pintamos a legislação com essas cores soturnas para dar credibilidade à ideia de revisão judicial. 1 Durante uma ditadura, muitas pessoas denunciaram seus inimigos por delitos de pouca gravidade. Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 • Quero que vejamos o processo de legislação - na sua melhor forma - como algo assim: os representantes da comunidade unindo-se para estabelecer solene e explicitamente esquemas e medidas comuns, que se podem sustentar em nome de todos eles, e fazendo-o de uma maneira que reconheça abertamente e respeite (em vez de ocultar) as inevitáveis diferenças de opinião e princípio entre eles. • As pessoas convenceram-se de que há algo indecoroso em um sistema no qual uma legislatura eleita, dominada por partidos políticos e tomando suas decisões com base no governo da maioria, tem a palavra final em questões de direito e princípios. • O pensamento parece ser que os tribunais, com suas perucas e cerimônias, seus volumes encadernados em couro e seu relativo isolamento ante a política partidária, sejam um local mais adequado para solucionar questões desse caráter. CAPÍTULO 1 John Robert Seeley observou a tendência dos autores políticos alemães de caracterizar os Estados segundo o que se considera ser o domínio da sua atividade principal: Há Der Kriegstaat (o Estado organizado para a guerra); der Rechtstaat (o Estado organizado em torno do princípio do estado de direito e dos direitos individuais); Der Handelstaat (o Estado dedicado à promoção do comércio); Der Polizeistaat (o Estado policial), etc. → Nós vivemos, disse Sir John, em um Estado de Legislação: uma forma de Estado dedicada à questão de melhorar continuamente a vida da comunidade por meio de inovações jurídicas explícitas, isto é, pela legislação parlamentar. O Estado-legislação, disse Seeley- isto é, o Estado continuamente empenhado em fazer leis, em desfazê-las e emendá-las - é uma anomalia: “Em outros tempos, ... a tarefa de alteração não cabia ao Estado ... Em outros tempos, o Estado não era considerado capaz de fazer lei. (...) A lei era um costume sagrado.” Nesse ponto, Seeley concluiu: "Rompemos completamente com a tradição dos primeiros tempos.“ Mais de cem anos antes, em Oxford, William Blackstone observou que um longo percurso de leitura e estudo é exigido para formar um professor de leis, "mas todo homem de fortuna superior acha que é um legislador nato.” Como resultado, disse Blackstone, "o direito consuetudinário da Inglaterra saiu-se como outros edifícios veneráveis da antiguidade, que operários rudes e sem experiência se aventuraram a vestir de nova roupagem e a refinada com toda a fúria do progresso moderno.“ Langdell, ao resenhar o livro de Dicey intitulado “The Relation between Law and Public opinion in England During the Nineteenth Century” diz que a inclusão da expressão “law” no título era enganadora: "Tal como usada comumente pelos advogados, a palavra significa o direito como administrado pelos tribunais de justiça em ações entre partes litigantes, mas no caso, ela claramente não é usada nesse sentido, mas no sentido de legislação.“ O que pode significar alguém insistir em que legislação não é direito? Embora o direito consuetudinário venha se desenvolvendo há séculos, "purificando-se", na expressão de lorde Mansfield, de modo que cada precedente ou cada doutrina por mais que não gostemos dele em si, tem algo em sua linhagem que pede o nosso respeito - um estatuto (uma lei) enfia-se na nossa frente como um arrivista de baixa extração, todo superfície, nada de profundidade, sem herança, tão arbitrário na sua origem como a união temporária de uma maioria no parlamento ou no congresso. No uso comum e no trabalho diário da maioria dos advogados, não há dúvida. Legislação é direito; na verdade, constitui o grosso dos materiais jurídicos com que as pessoas comuns vêm a ter de lidar. Então por que, na filosofia jurídica, tornamos o direito consuetudinário a questão central e interessante? Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 Por que é o direito feito pelos juízes, não o direito feito pela legislatura, que se liga mais naturalmente a outros valores políticos que "direito", "justiça", "Iegalidade" e "estado de direito" evocam? Um juiz, quando legisla no direito consuetudinário (se é isso que ele faz) tem, pelo menos, a gentileza de fingir que está descobrindo o que a lei era o tempo todo: ele não se apresenta explicitamente como um legislador. → Hart considerava que a “suscetibilidade à mudança deliberada” era o que diferenciava o direito e a moral. Para Hart, ter um sistema jurídico significa que os membros não têm mais acesso às regras "instintivamente“ ou "intuitivamente" ou apenas em virtude da sua socialização e criação. Os que leem Hart conseguiram subestimar essa questão de "mudança deliberada" como a essência ou a marca do direito. Mas os positivistas modernos têm dado muito mais importância ao processo pelo qual o direito é desenvolvido nos tribunais. Mas por que o embaraço com a legislação? Há uma desconfiança do explícito e do deliberado na política. Oakeshott, em seu ensaio "Rationalism in Politics“ afirma: perdemos a fé na evolução das estruturas sociais e acreditamos apenas no que foi deliberadamente estabelecido. Para Hart, ao contrário, a prática social normativa do direito não implica um compromisso com a lenta evolução dos costumes, mas com as regras secundárias. Outro principal crítico teórico do racionalismo e da proeminência da legislação no governo moderno é Friedrich Hayek. Embora a essência do bom governo, segundo Hayek, seja o governo por leis gerais, é importante para ele que tais leis sejam concebidas como implícitas nas práticas de uma sociedade livre e que, se forem consideradas como mutáveis, sua mudança deve ser gradual e espontânea, não planejada e orquestrada por um legislador. Direito, nesse sentido, é completamente diferente de legislação. Assim, a tendência da moderna "legislação social" é tratar toda a sociedade como uma organização a ser "gerida" e "administrada", com consequências assustadoras para a liberdade o constitucionalismo e para o estado de direito. A preocupação de Hayek é em manter a independência do direito para com a política. A suposição aqui é que os tribunais não ajam politicamente. Pensamos que sabemos como os legisladores argumentam. Mas sabemos realmente? Uma indicação de que ainda estamos um pouco à deriva nesse assunto relaciona-se com a questão promissora e controvertida de verificar a intenção legislativa. Em uma decisão da Câmara dos Lordes de 1992, no caso Pepper contra Hart, sustentou-se pela primeira vez no direito inglês recente que os tribunais tinham direito de consultar o registro do debate parlamentar para resolver como devia ser interpretado umestatuto. Penso que toda a ideia de que as atas legislativas podem revelar intenção legislativa é gravemente falha. A intenção que está sendo comunicada e recebendo efeito funcional no ato da legislação é apenas a intenção convencionalmente associada à linguagem da decretação. Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 No caso de um indivíduo, podemos perguntar o que quis dizer. Nada disso faz sentido, porém no caso de uma legislatura que não é um único indivíduo natural uma legislatura que, antes, compreende centenas de membros. Além disso, não cabe a questão de sermos capazes de atribuir à legislatura como tal quaisquer pensamentos, intenções, crenças ou propósitos. O que resta é o texto. A seguir, Waldron pergunta: o tamanho do corpo político é um obstáculo para uma legislação racional? Quanto maior o executivo, mais baixo o nível dos legisladores? Por um lado, Condorcet provou aritmeticamente que o governo da maioria torna mais provável que um grupo ofereça a resposta certa a alguma pergunta do que o membro médio do grupo. Mas como um grande grupo de representantes pode coordenar-se para produzir leis que sejam coerentes? O tumulto na produção de leis por parte de uma grande assembleia é um problema? Vejamos o que dizia Maquiavel: “Para mim, parece que os que maldizem os tumultos entre os nobres e os plebeus culpam as coisas que foram a primeira causa da manutenção da liberdade de Roma e que consideram mais os ruídos e os gritos que surgem em tais tumultos do que os bons efeitos que engendraram.” Devemos, disse ele, observar o que o conflito, o tumulto e os números podem fazer pela liberdade e não ficar facilmente desconcertados com a atmosfera barulhenta, fedorenta ou repugnante da assembleia popular. 5 Dworkin e a leitura moral da constituição Ronald Dworkin - O direito da liberdade 1. O livro discute quase todos os grandes problemas constitucionais dos últimos vinte anos, entre os quais o aborto, a ação afirmativa, a pornografia, as questões raciais, a homossexualidade, a eutanásia e a liberdade de expressão - que ainda são objetos de desacordo. 2. O livro como um todo tem um objetivo maior e mais geral. Ilustra um método particular de ler e executar uma constituição política, método esse que chamo de leitura moral. 3. Assim, toda vez vez que surge uma questão constitucional nova ou controversa - a de saber, por exemplo, se a Primeira Emenda autoriza que se elaborem leis contra a pornografia -, as pessoas encarregadas de formar uma opinião sobre o assunto devem decidir qual a melhor maneira de compreender aquele princípio moral abstrato. ❖ Mas a moralidade política é intrinsecamente incerta e controversa; por isso, todo sistema de governo que incorpora tais princípios e suas leis tem de decidir quem terá a autoridade suprema para compreendê-los e interpretá-los - Nos EUA são os juízes da Suprema Corte. Por isso, os críticos da leitura moral da Constituição dizem que essa leitura dá aos juízes o poder absoluto de impor suas convicções morais ao grande público. Essas críticas ainda muito presentes: “não está seguindo a constituição, mas criando-a”. 4. Isso explica por que os acadêmicos e jornalistas têm tanta facilidade para rotular os juízes de “liberais” ou “conservadores”. ❖ Os juízes conservadores que atribuem um valor particular à liberdade de expressão, ou consideram-na particularmente importante para a democracia, tendem, mais do que os conservadores em geral, a estender a proteção oferecida pela Primeira Emenda também aos atos de protesto político, mesmo para causas com as quais não concordam, como demonstra a decisão da Suprema Corte que protege cidadãos que queimaram a bandeira norte-americana. Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 5. Repito, pois, que a leitura moral não é revolucionária na prática. ❖ É evidente que as opiniões dos juízes sobre a moralidade política influenciam suas decisões constitucionais; e, embora fosse fácil para eles explicar essa influência pelo fato de a Constituição exigir uma leitura moral, eles nunca o fazem. ❖ Antes, indo contra toda evidência, eles negam a influência e procuram explicar suas decisões de outras maneiras. 6. Por outro lado, toda leitura moral parecer desairosa dos pontos de vista intelectual e político. Ela parece eliminar a importantíssima distinção entre direito e moral, pondo o direito na dependência dos princípios morais que por acaso são adotados pelos juízes de determinada época. ❖ Parece ainda constranger de modo grotesco a soberania moral do povo - parece tirar das mãos do povo e entregar a uma elite profissional as grandes questões que definem a moralidade política é que o povo teria o direito e o dever de avaliar e decidir por si mesmo. 7. Nunca houve um debate teórico para se saber se os juízes devem interpretar a Constituição ou modificá-la, quase ninguém, na realidade, adotava este último ponto de vista; debatia-se, isto sim, como ela devia ser interpretada. Porém, os políticos conservadores exploraram aquele entendimento simplificado da questão e não obtiveram de seus adversários uma resposta à altura. 8. A confusão, porém, arrasta também os políticos. Estes prometem indicar e confirmar juízes que respeitem os devidos limites de sua autoridade e deixem a Constituição em paz. Ex. do Eisenhower que ao sair da presidência do EUA declara ter se arrependido de dois grandes erros e que estes dois grandes erros estão na Suprema Corte pois foram indicados por ele (dois juízes). 9. Os presidentes Ronald Reagan e George Bush mostraram-se ambos profundamente escandalizados com o fato de a Suprema Corte "usurpar" os privilégios do povo. As grandes propagandas políticas ainda são feitas sobre indicar juízes comprometidos com os EUA. Ex. de Roe vs Wade: caso que descriminalizou o aborto, ainda muito divisora de opiniões, mas que consideram uma modificação da Constituição. 10. As audiências do Senado que se seguem à indicação de um juiz para a Suprema Corte tendem à mesma confusão. 11. Tanto os indicados quanto os legisladores fingem que casos constitucionais difíceis podem ser decididos de maneira moralmente neutra pela simples obediência ao "texto" do documento, de tal modo que seria descabido propor ao indicado quaisquer perguntas acerca de sua moralidade política. Ex. em contrário do juiz Bork: O juiz era tão conservador “o anticoncepcional era inconstitucional porque depois do zigoto já havia vida e não poderia acabar com esta; o Estado poderia complementar orações nas escolas públicas, etc.” que o presidente foi obrigado a pedir que este retirasse o nome para indicação do senado. 12. Para muitos juristas e cientistas políticos o entusiasmo pela leitura moral dentro de uma estrutura política que atribui aos juízes a suprema autoridade cm matéria de interpretação é elitista, anti populista, antirrepublicano e antidemocrático. Porque atribui esta para um grupo minoritário. Quando compreendemos melhor a democracia, vemos que a leitura moral de uma constituição política não só não é antidemocrática como também, pelo contrário, é praticamente indispensável para a democracia. 13. Os dispositivos da Constituição norte-americana que protegem os indivíduos e as minorias da ação do Estado encontram-se sobretudo na chamada Declaração de Direitos - as primeiras emendas apostas ao documento e nas emendas acrescentadas depois da Guerra Civil. ❖ Segundo a leitura moral, esses dispositivos devem ser compreendidos da maneira mais naturalmente sugerida por sua linguagem: referem-se a princípios morais abstratos e, por referência, incorporam-nos como limites aos poderes do Estado. 14. Creio que os princípios estabelecidos na Declaração de Direitos, tomados em seu conjunto, comprometem os Estados Unidos com os seguintes ideais políticos e jurídicos: A) o Estado deve tratar todas as pessoas sujeitas a seu domínio como dotadas do mesmo status moral e político ; B) Deve tentar, de boa-fé tratar a todas com a mesma consideração (equal concern) ; Maria EduardaFagundes Carvalho - 2020/1 C) Deve respeitar todas e quaisquer liberdades individuais que forem indispensáveis para esses fins, entre as quais (mas não somente) as liberdades mais especificamente declaradas no documento, como a liberdade de expressão e a liberdade de religião. 15. É evidente que a leitura moral não é adequada para a interpretação de TUDO quanto uma constituição contém. Ex. Idade do presidente, aquartelamento de soldados em tempo de paz... 16. Porém, não encontramos nada na história que nos permita ter dúvidas acerca do que os autores da Terceira Emenda quiseram dizer. O mesmo processo de raciocínio, porém - a ideia de o que os autores supostamente quiseram dizer quando usaram tais e tais palavras -, nos faz chegar a uma conclusão oposta acerca dos autores do dispositivo da igualdade de proteção. É certo que não esperavam que ela proibisse a segregação racial oficial nas escolas - muito pelo contrário, o mesmo congresso que adotou o dispositivo de igualdade de proteção (14ª emenda) conservou a segregação no sistema escolar do Distrito de Colúmbia. Mas os autores não disseram nada acerca das leis discriminatórias contra os negros, da segregação nas escolas, da homossexualidade ou da igualdade entre os sexos - não disseram nada, nem contra nem a favor. Disseram apenas que a "igual proteção da lei" era necessária, o que evidentemente configura um princípio muito geral e não uma qualquer aplicação concreta deste. 17. Os autores quiseram, pois, pôr em vigor um princípio geral. Mas que princípio é esse? Certa vez se debateu, por exemplo, se no dispositivo de igualdade de proteção os autores só pretendiam estipular o princípio político fraco de que as leis devem ser impostas de acordo com sua formulação, de tal modo que os benefícios legais conferidos a qualquer pessoa, inclusive um negro, não pudessem ser negados, na prática, para ninguém. Seria muito improvável que os congressistas da nação vitoriosa, procurando entender as conquistas e as lições dadas por uma guerra terrível, se contentassem com algo tão limitado e insípido; e não devemos pensar que eles o fizeram, a menos que a linguagem não nos faculte nenhuma outra interpretação plausível. 18. Uma vez admitida essa ideia, porém, deve-se concluir que o princípio é algo muito mais robusto, pois a única alternativa de tradução para o que os autores efetivamente disseram no dispositivo de igualdade de proteção é um princípio de abrangência e força surpreendentes: o princípio de que o estado deve tratar todos, sem exceção, como dotados do mesmo status, e deve tratá -los com a mesma consideração. 19. Somos governados pelo que nossos legisladores disseram - pelos princípios que declararam - e não por quaisquer informações acerca de como eles mesmos teriam interpretado. 20. Em segundo lugar, mas na mesma ordem de importância, a interpretação constitucional sob a leitura moral é disciplinada pela exigência de integridade constitucional discutida em diversos trechos deste livro e exemplificada, por exemplo, no Capítulo 4 desse livro. [Ideia do romance em cadeia]. 21. A leitura moral é uma estratégia aplicável por advogados e juízes que ajam de boa-fé, e nenhuma estratégia de interpretação pode ser mais do que isso. 22. A vela da Constituição é bem grande, e muitos temem que seja grande demais para um navio democrático. 23. Qual a alternativa? A) A primeira e a mais franca admite que a leitura moral é correta - que a Declaração de Direitos só pode ser compreendida como um conjunto de princípios morais. Mas nega aos juízes a autoridade suprema de fazer a leitura moral. Deixa reservada para o povo essa autoridade de interpretação. Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1 B) Como eu disse, a primeira estratégia alternativa aceita a leitura moral. A segunda alternativa, a chamada estratégia "originalista" ou da "intenção original", não aceita. Assim, não se deve entender que o dispositivo de igualdade de proteção exige a igualdade de status em si, mas sim que ele exige aquilo que os próprios autores pensavam ser a igualdade de status. [Ex. do caso Brown] 30. a única objeção substantiva à leitura moral é a de que ela ofende a democracia. 31. Democracia significa o governo do povo. Mas o que significa isso? Por detrás das discussões sobre as melhores técnicas de representação em uma democracia existe uma profunda disputa filosófica acerca do valor ou do objetivo fundamental da democracia. Devemos aceitar ou rejeitar o que vou chamar de premissa majoritária? Qual sua meta: a meta é a de que as leis geradas pelo complexo processo democrático e os cursos de ação por ele seguidos sejam, no fim, os aprovados pela maioria dos cidadãos. 35. Se rejeitarmos a premissa majoritária, precisaremos de uma explicação diferente, e melhor, do valor e da finalidade da democracia. Vou defender agora uma explicação – que chamo de concepção constitucional da democracia - que efetivamente rejeita a premissa majoritária. 36. A concepção constitucional da democracia não opõe objeção alguma ao emprego deste ou daquele procedimento não-majoritário em ocasiões especiais nas quais tal procedimento poderia proteger ou promover a igualdade que, segundo essa concepção, é a própria essência da democracia; e não aceita que essas exceções sejam causa de arrependimento moral. 36. A democracia é um governo sujeito às condições de igualdade de status para todos os cidadãos. Quando as instituições majoritárias garantem e respeitam as condições democráticas, os veredictos dessas instituições, por esse motivo mesmo, devem ser aceitos por todos. Entre essas condições inclui-se sem dúvida, por exemplo, a exigência de que os cargos públicos devem, em princípio, ser acessíveis em igualdade de condições às pessoas de todas as raças e grupos. Reforma das campanhas eleitorais. Maria Eduarda Fagundes Carvalho - 2020/1
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