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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Ana Carolina Nilce Barreira Candia RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO IMATERIAL (OU AFETIVO) DIRETO E INVERSO Mestrado em Direito Civil São Paulo 2017 Ana Carolina Nilce Barreira Candia RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO IMATERIAL (OU AFETIVO) DIRETO E INVERSO Mestrado em Direito Civil Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito Civil, sob a orientação do Prof. Dr. Francisco José Cahali. São Paulo 2017 Banca Examinadora _____________________________ _____________________________ _____________________________ Dedico este trabalho a Deus, a toda minha família e a todos aqueles que de alguma forma contribuíram na evolução desta dissertação. Agradeço ao CNPQ pela concessão da bolsa. AGRADECIMENTOS Quanta responsabilidade a mim cabe neste trecho do trabalho. Muitas são as pessoas a quem devo agradecer. Tive a sorte de trilhar a estrada até aqui encontrando seres humanos incríveis. A começar pelo ilustre orientador Prof. Dr. Francisco José Cahali, cuja maestria e domínio do conteúdo jurídico há muito admiro. Entretanto, o que realmente me impressiona é a capacidade de aliar toda essa expertise com altas doses de cordialidade, humildade, e acima de tudo: humanidade. Não tenho palavras suficientes para agradecer: muitíssimo obrigada! Agradeço também a querida Prof. Dra. Odete Novais Carneiro Queiroz que me ensinou as primeiras lições de Direito Civil e me acompanhou ao longo dos cinco anos da graduação, sempre com exímia dedicação e rigor para alcançar o melhor de cada aluno! Foi a primeira a me incentivar e impulsionar para o início do curso de Mestrado: Muito obrigada!! Sou muito grata também ao Prof. Dr. Oswaldo Peregrina Rodrigues e ao Prof. Dr. Adriano Ferriani pelas sábias orientações e apontamentos sobre o tema tratado, bem como por apresentar questionamentos necessários. Busquei responde-los seguindo os preceitos e as orientações bibliográficas passadas. Com certeza, os Drs. foram fundamentais para se alcançar o resultado exposto no trabalho. Muito obrigada!! Ao longo da jornada encontrei também a querida Prof. Dra. Fabiana Del Padre Tomé, que, com as interessantes aulas sobre o complexo Constructivismo Lógico Semântico, me incentivou a repensar toda a Teoria Geral do Direito. A dedicação da professora transformava toda a complexidade em clareza sem igual! Muito obrigada! Também tive a oportunidade de acompanhar de perto a expertise e incrível clareza do Prof. Dr. Manoel de Arruda Alvim. É realmente impressionante a capacidade de transitar com domínio e profundidade sobre os mais diversos aspectos materiais e processuais do Direito Civil, sempre com muita humildade e grande cordialidade para com os alunos! Muito obrigada! Com as aulas do Prof. Dr. Arruda Alvim, conheci o Prof. Dr. Everaldo Cambler, a quem devo agradecer pelos ensinamentos, pela atenção com os temas de cada aluno e pela gentileza de sempre: muito obrigada! Agradeço ainda pela maneira sempre muito gentil com que me trataram os ilustres professores presentes em minha trajetória ao longo do curso de Mestrado: Prof. Dra. Rosa Nery, Prof. Dr. Maria Helena Diniz, Prof. Dr. Maria Celeste Cordeiro Leite Santos e Prof. Dr. Rogério Donnini, muito obrigada! Devo agradecer também ao ilustríssimo Dr. Theodureto de Almeida Camargo Neto, que me apresentou o tema do Dano Afetivo e muito contribuiu para a minha formação como profissional do Direito. Agradeço pela consideração que sempre demonstrou, pela cordialidade com que sempre me tratou, pelos ensinamentos de cada conversa, e por ter me concedido a oportunidade de contato com os mais variados assuntos do Direito Civil! Muito obrigada! Há muito dos seus ensinamentos nessa dissertação! Não poderia, de forma alguma, deixar de mencionar as queridas Érika Menezes e Tânia Magalhães, que contribuíram de maneira tão carinhosa com minha formação e não mediram esforços para ensinar e elucidar os mais diversos assuntos processuais! Tiveram grande participação em minha trajetória: muito obrigada! Agradeço também ao Dr. Ricardo Negrão pela oportunidade e gentileza com que sempre me recebeu! Sou grata por tantos esclarecimentos acerca do campo empresarial do Direito Civil! Muito obrigada! Merecem agradecimento também as queridas Fernanda Cosme, Sabrina Scafi, Vanessa e Rogério Lopes por me receberem tão bem e me auxiliarem no aprendizado e desenvolvimento dos assuntos propostos: muito obrigada! Sempre muito gentil, carinhosa e esclarecida: Dr. Márcia Donini Dias Leite. Foi quem me apresentou as primeiras lições sobre o direito processual. Com muita paciência e atenção, dedicava-se a tentar esclarecer as minhas inúmeras dúvidas. Agradeço pela oportunidade e por todo zelo! Muito obrigada! Importante agradecer também ao Dr. Luis Fernando Nardelli – dotado de cultura ímpar – que muito gentilmente contribuiu com as pesquisas e roteiro a ser observado neste trabalho: muito obrigada pela cordial atenção de sempre! Mister agradecer também ao querido Dr. Caesar Augustus e ao Dr. Nilton Serson pela oportunidade, paciência e intenso ensino sobre a prática jurídica: muito obrigada! Não tenho como deixar de agradecer à Deus e à toda minha família. Agradeço ao meu querido Tio Dr. Meliton Candia, que chegou até a ler sobre a autopoiese do sistema jurídico comigo: não tenho palavras para agradecer todo o apoio, amor e suporte! Agradeço ao meu pai Dr. Rodolfo Candia por buscar estar sempre a postos para me direcionar e proteger – inclusive dos insetos que por ventura aparecem para me assustar no meio da madrugada! Agradeço à minha mãe Dra. Alice Candia pelos diversos ensinamentos, apoio e exemplo de luta e trabalho! Aos meus irmãos, Aline e Rafael, por compartilharem toda a minha existência. Às minhas queridas e amadas primas Tamires e Aneliz e tia Edilaine por todo carinho. À Lindete Lago por estar sempre presente. À Nalva e Gil por sempre me ajudarem. Ao meu ‘companheirinho’ Charlie que esteve comigo durante toda a elaboração deste trabalho. Ao Arthur Suelotto pelo auxilio na execução do Curso. À Dr. Daniela Freitas pela parceria. Ao Frederico Oliveira pela ajuda com as pesquisas de doutrina e jurisprudência alienígena. À Dra. Isadora Urel, à Dra. Mirelle Lotufo e ao Dr. Adriano Elias Oliveira, por compartilharem comigo dicas e experiências ao longo do nosso curso. À amiga querida Bianca Pavam, minha parceira desde a minha primeira aula de Direito. À tia Sônia pela preocupação e cuidado. A todos os meus familiares e a todos que contribuíram direta ou indiretamente com este trabalho: MUITO OBRIGADA! RESUMO Autora: Ana Carolina Nilce Barreira Candia Título: Responsabilidade civil por abandono imaterial (ou afetivo) direto e inverso Dedica-se o presente trabalho a observar que o fato de algum dos genitores não deter a guarda da prole não é fator a permitir a total ausência, ainda que haja o custeio de alimentos e outras questões materiais. Isto porque, o poder familiar imputa deveres paternos que não podem ser cumpridos sem que haja presença. Desta forma, a ausência implica, necessariamente, em inadimplemento, pelos pais, dos deveres de cuidado inerentes ao poder familiar, ou seja, se constitui como ato antijurídico. Os danos decorrentes deste devem, assim, ensejar a incidência da responsabilidade, a qual tem como base o preceito de não lesar a outrem. Buscando obedecer a este princípio,é que o genitor que vê o outro progenitor praticando alienação parental do(a) filho(a), deve buscar tutela jurisdicional a fim cessar este ato e garantir o seu direito-dever de visitar e conviver com o filho. Se o pai ou a mãe nada faz para cessar a alienação parental, não poderá usá-la como pretexto para afastar a responsabilidade civil caso pratique o abandono, vez que esse cenário configuraria o ato de se beneficiar da própria torpeza, pois se utilizaria da omissão em não cessar a alienação para se furtar do adimplemento do dever de cuidado. Por outro lado caso haja busca pelo não guardião em visitar o(a) filho(a), mas este é que – por motivos próprios- pratique a rejeição, não se estará diante de hipótese de abandono paterno a ensejar o dever de indenizar, vez que, nesta hipótese, há a prática, pelo pai ou mãe, de atos comissivos para a convivência. Com relação ao amor, verificou-se que a incidência da indenização não é por falta de afeto, e sim por ausência de cuidado; cabendo notar que quem cuida não demostra rejeição, ainda que não ame. Também se apontou que a paternidade biológica, adotiva ou socioafetiva são equivalentes, portanto, os deveres inerentes também o são. Por sua vez, aquele que, apesar de não efetivar averbação de paternidade no registro civil, cativa infante agindo como se pai ou mãe fosse, também deverá responder pelos danos causados caso posteriormente abandono o menor. Isto porque, estar-se-á diante de descumprimento dos preceitos da boa-fé objetiva. Seguindo a mesma lógica de raciocínio, porém, de maneira inversa, denotamos também o direito dos idosos à convivência familiar e o dever dos filhos cuidarem daqueles. Assim, ainda que haja o custeio de questões materiais, a falta de zelo e ausência da prole quando os pais são idosos se constitui como ato antijurídico a enseja os decorrentes danos. Contudo, há exceção da exigibilidade deste cuidado quando o filho que abandona, outrora foi vítima abandonado na infância ou adolescência, ou seja, foi vítima de ato indigno que deve afastar a exigibilidade tanto de alimentos como de cuidados imateriais. Palavras-chave: Responsabilidade civil. Deveres paternos e maternos filiais. Poder familiar. Paternidade socioafetiva. Adoção. Boa-fé objetiva. Obrigações dos filhos para com os pais idosos. Abandono imaterial ou afetivo direto e inverso. Deveres de cuidado. Presença e convivência como dever. ABSTRACT Author: Ana Carolina Nilce Barreira Candia Title: Liability for immaterial (or affective) abandonment forward and reverse The work at hand intends show that, if one of the parents does not detain custody of the offspring, that is not a factor to allow total absence, even when it already involves support regarding cost of food and other material issues. This is because a parent’s obligation to impute paternal duties cannot be fulfilled without presence. In this way, absence necessarily implies the parent's failure to fulfil the duties of care inherent to the parent’s obligation, that is, it constitutes an unlawful act. The damages resulting from this must, therefore, give rise to the incidence of liability, which is based on the precept of not harming others. Seeking to obey this principle, is that the parent who sees the other parent practicing parental alienation of the child should seek judicial protection in order to cease this act and ensure their right-duty to visit and live with the child. If the father or mother does nothing to stop the parental alienation, he cannot use it as a pretext to exclude civil liability if he practices abandonment, since this scenario would be the act of benefiting from his own inaction, since it would use the omission in not ceasing the alienation in order to avoid the duty of care. On the other hand, if the non-custodian seeks to visit the child, but - for reasons of his own - is faced with rejection by the child, there will be no possibility of parental abandonment to give rise to the obligation to indemnify. Instead, in this hypothesis, there is the practice, by the father or mother, of commissive acts for their convenience. With respect to love, it was verified that the incidence of the indemnity is not for lack of affection, but for lack of care; It should be noted that those who care do not show rejection, even if they do not love. It was also pointed out that biological, adoptive or socio-affective parenthood are equivalent, therefore, the inherent duties are also equivalent. In turn, the one who, although not effecting paternity registration in the civil registry, captivates the infant acting as if the father or mother were, must also respond for the damages caused in case of later abandonment of the minor. This is because it will be faced with non-compliance with the precepts of objective good faith. Following the same logic of reasoning, however, in reverse, we also denote the right of the elderly to family life and the duty of their sons to care for them. Thus, even if there is material costing, the lack of zeal and absence of the offspring when the parents are old constitutes itself as an unlawful act and causes the consequent damages. However, there is an exception to the enforceability of this care, when the child who leaves was once a victim abandoned in childhood or adolescence, that is, he was the victim of an unworthy act that should rule out the enforceability of both food and immaterial care. Keywords: Civil responsibility. Maternal duties branches. Socio-affective paternity. Adoption. Objective good faith. Obligations of children to elderly parents. Intangible or direct abuse. Moral damage. Duties of care. Presence and coexistence as duty. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11 2. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA CONFIGURAÇÃO DA FAMÍLIA ........................................................................................................................................ 14 2.1. O instituto da família sobre o prisma do Direito Romano até a Constituição Brasileira de 1824 .................................................................................................................. 14 2.2. Visão jurídica da família a partir da Constituição Brasileira de 1824 até a Carta Magna de 1988 ....................................................................................................................... 17 3. A TRANSFORMAÇÃO DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO: DE UM VIÉS PATRIMONIALISTA PARA UMA VISÃO HUMANISTA INSERIDA COM A CARTA MAGNA DE 1988 .......................................................................................... 22 3.1. O Direito e a era pós-moderna ...................................................................................... 22 3.2. O Código Civil e a Pós-Modernidade: Constitucionalização do Direito Civil ......... 24 3.3. Constitucionalização do Direito de Família ................................................................. 26 4. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO IMATERIAL (OU AFETIVO) ..................................................................................................................... 30 4.1. Breve consideração sobre o termo “Abandono Imaterial (ou Afetivo)” ................... 30 4.2. Aplicação dos princípios constitucionais ...................................................................... 31 4.3. Princípios constitucionais aplicáveis ao Direito de Família ........................................ 33 4.3.1. Princípio da cidadania ............................................................................................... 35 3.3.2. Princípio da dignidade da pessoa humana ................................................................. 37 4.3.3. Princípio da solidariedade .........................................................................................40 4.3.4. Princípio da afetividade ............................................................................................. 42 4.3.5. Princípio da convivência familiar.............................................................................. 45 4.3.6. Princípio da proteção integral a crianças, adolescentes, jovens e idosos .................. 48 4.3.7. Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente ....................................... 50 4.3.8. Princípio da paternidade responsável ........................................................................ 51 4.4 Aspectos relevantes da responsabilidade civil aplicados ao caso ................................ 52 4.4.1. Considerações iniciais ............................................................................................... 52 4.4.2. Requisitos para caracterização da responsabilidade civil subjetiva .......................... 57 4.4.2.1. Culpa ................................................................................................................................ 57 4.4.4.2. Dano ................................................................................................................................. 62 4.4.2.4.1. Dano moral ................................................................................................................ 65 4.2.3. Nexo causal ............................................................................................................... 73 4.5. Responsabilidade civil por abandono imaterial (ou afetivo) direto ........................... 75 4.5.1. Transformação do pater familias em poder familiar ................................................. 76 4.5.2. Conteúdo do poder familiar ....................................................................................... 79 4.5.3. Suspensão do Poder familiar ..................................................................................... 83 4.5.4. Extinção do Poder familiar ........................................................................................ 83 4.5.4.1. Reincidência das faltas previstas no artigo 1.637, CCB ................................................... 84 4.5.4.2. Castigo imoderado ............................................................................................................ 84 4.5.4.3. Prática de atos contrários à moral e aos bons costumes ................................................... 86 4.5.4.4. Deixar o filho em abandono ............................................................................................. 88 4.5.5. Considerações sobre a expressão abandono afetivo (ou imaterial) ‘direto’ .............. 91 4.5.6. Presença como dever ................................................................................................. 92 4.5.6.1. Dever do não guardião supervisionar os interesses do filho ............................................. 93 4.5.6.2. Dever de dirigir a criação e a educação ............................................................................ 95 4.5.6.3. Dever de educação e cuidado: responsabilidade compartilhada entre os pais .................. 96 4.5.6.4. Dever de garantir a efetivação da saúde ........................................................................... 98 4.5.6.5. Dever de garantir a convivência familiar.......................................................................... 99 4.5.6.6. Dever do não guardião em visitar o filho ....................................................................... 100 4.5.7. Danos decorrente da culposa não convivência do pai ou da mãe com os filhos ..... 106 4.5.8. Dever de reparar os danos causados à prole com o abandono imaterial (ou afetivo) ........................................................................................................................................... 115 4.5.8.1. Presença de substituto não apaga a dolorosa realidade de ser um filho rejeitado ........... 119 4.5.8.2. Desamor e dever de cuidado ........................................................................................... 120 4.5.8.3. Dano material com tratamento psicológico .................................................................... 122 4.6. Abandono Afetivo Inverso: responsabilidade civil dos filhos pelos danos causados aos pais idosos em decorrência da não convivência familiar ........................................... 123 4.6.1. O termo “abandono afetivo inverso” ....................................................................... 123 4.6.2. Abandono afetivo inverso: a difícil realidade de muitos idosos .............................. 125 4.6.3. Danos decorrentes do abandono afetivo inverso ..................................................... 128 4.6.4. Dever de indenizar os danos decorrentes do abandono afetivo inverso .................. 135 4.7. Jurisprudência e questões controvertidas referentes ao denominado ‘abandono afetivo’ .................................................................................................................................. 138 4.7.1. Quanto ao abandono afetivo direto ......................................................................... 138 4.7.1.1. Prescrição e decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre “abandono afetivo” publicada em 29 de novembro de 2017 ................................................................................... 147 4.7.1.2. Presença sem amor: quem cuida não demonstra que não ama ................................... 153 4.7.1.3. Há dever de a mãe ou o pai socioafetivo indenizar danos por abandono imaterial do(a) filho(a) afetivo(a)? .................................................................................................................. 158 4.7.2. Quanto ao abandono afetivo inverso ....................................................................... 163 4.7.2.1. Pai que abandonou a prole que era criança ou adolescente, pode exigir que esta o cuide quando estiver idoso? .............................................................................................................. 167 4.8. Projetos de Lei sobre o denominado “abandono afetivo” ........................................ 169 4.9. Função compensatória e sancionadora da responsabilidade civil: sanção como elemento integrado à norma jurídica ................................................................................ 171 5. CONCLUSÃO ......................................................................................................... 178 6. BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 185 11 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho visa a analisar a responsabilidade civil do progenitor que não detém a guarda, arca com custeio material de pensão alimentícia, porém é ausente imaterialmente e não convive, nem visita a prole. Também se insere no escopo dessa dissertação a análise inversa da referida situação. É o caso do(a) filha(a) que, independente de qualquer contribuição material, abandona imaterialmente o pai ou a mãe quando estes se tornam idosos. Pretende-se, dentro destes contextos, analisar o dever de reparar os danos causados com a falta de presença e não convivência quando o descendente ou ascendente se encontram em situação de vulnerabilidade, seja por estarem em fase de desenvolvimento, seja por se tornarem dependentes em razão do avanço da idade. O tema tratado é considerado novo e ainda controverso. Só foi possível suscitar o assunto ora tratado nesta dissertação em razão das diversas alterações sociais ocorridas nas concepções dos papéis a serem exercidos dentro da família, com a valorização do indivíduo e a consolidação do entendimento sobre a possibilidade de se arbitrar indenização em função de danos materiais e também morais causados – dever este de indenizar que passou a incidirinclusive no direito de família. Foram as mudanças histórias nas configurações familiares, com o fim da submissão da mulher em relação ao homem no seio da família propiciada pela igualdade de gênero instituída pela Carta Magna de 1988, aliada à valorização do infante, o qual passou a ser visto como sujeito de direito que merece especial e integral proteção justamente por estar em fase de desenvolvimento bem como à valorização da dignidade humana, da integridade física e psíquica de cada cidadão, do respeito ao idoso e da responsabilidade dos pais para com os filhos durante a infância e adolescência e destes em relação àqueles quando os progenitores estiverem idosos, que permitiram a abordagem do tema ora exposto. O escopo dentro deste contexto é verificar se a não presença (ou ausência imaterial) tem o condão de gerar a incidência do dever de indenizar os danos causados. A ausência material dos filhos infantes ou dos pais idosos pode ocasionar, inclusive, responsabilidade penal. Já a ausência exclusivamente imaterial pode gerar danos? Estes danos devem ser objeto de indenização? Pode-se exigir legalmente o amor? E a 12 presença, pode ser legalmente exigida? Existe dever jurídico de convivência paterno ou materno-filial? O dever de indenizar pecuniariamente o abandono material serve para compensar a dor da ausência? Pode-se punir aquele que não quis ser presente? É possível o caráter punitivo na responsabilidade civil? São esses os questionamentos que se pretende responder com esta dissertação. Para tanto, faz-se primordial breve contextualização história da configuração familiar ao longo dos tempos, passando pelo Direito Romano e alcançando a atual concepção abordada na Constituição Federal Brasileira datada de 1988. Isto porque, não há como tratarmos do assunto família sem ao menos compreendermos o que de fato é essa instituição e como ela tomou os contornos dos quais se reveste atualmente. É disto que se trata no primeiro capítulo. Já o capítulo consecutivo é dedicado à transformação do Direito Civil Brasileiro. Passou-se de tempos de valorização patrimonial para uma era de supervalorização do individuo e de seu bem estar social. Tal alteração foi configurada com a promulgação em 1988 da atual Carta Constitucional. Ocorreu, entretanto, que alguns dispositivos do Código Civil de 1916 se tornaram inaplicáveis por não estarem de acordo com os novos preceitos trazidos pela Constituição vigente. Verificou-se, assim, a chamada Constitucionalização do Direito Civil, pois era necessário que os civilistas, por muitas vezes, buscassem as soluções diretamente nos artigos da Constituição e não mais nos artigos do Código Beviláqua. O cenário alterou-se com a edição do Código Civil que passou a vigorar em 2002. Neste codex foram assumidos os preceitos preconizados pela Carta de 1988 e concretizados em forma de lei civil. No terceiro e último capítulo serão consideradas as transformações referidas anteriormente, que resultaram no contexto atualmente verificado, para se analisar a responsabilidade civil por abandono imaterial ou afetivo. De início, irá se esclarecer o uso da terminologia adotada e em seguida serão apresentados os princípios que embasam o tema sustentado nesta dissertação. Posteriormente, será realizado breve esclarecimento quanto ao instituto da responsabilidade civil e dos elementos genéricos necessários para a sua configuração. Tais elementos serão especificamente apontados nas hipóteses em concreto quando se tratar do dever de reparar os danos causados com o abandono afetivo direto e também na oportunidade de se referir ao dever de indenizar os danos decorrentes do abandono afetivo inverso. 13 A fim de se alcançar tais pontos será observada a transformação do pater familias em poder familiar e o conteúdo deste, bem como analisado pormenorizadamente cada um dos deveres paterno-filiais condizentes com o instituto. Uma vez verificado se é exigível legalmente a presença, na vida do filho, pelo genitor não guardião, passar-se-á à análise dos danos que a ausência paterna ou materna gera na vida dos infantes que estão em fase de desenvolvimento. Neste item será percebida forte presença da multidisciplinariedade com o campo da psicologia. Isto porque essa é a área que se dedica aos estudos da influência dos sentimentos no desenvolvimento da psique humana. Somente depois de tratados esses assuntos é que se poderá responder as questões referentes ao dever de indenizar o abandono imaterial (ou afetivo) direto, confrontando-se, ainda, o amor com o dever de cuidado. No tópico subsequente, apresentar-se-á análise da situação inversa, ou seja, sobre o abandono imaterial dos filhos em relação aos pais idosos. Será esclarecida a terminologia abandono afetivo inverso e abordar-se-á pragmaticamente a respeito da realidade de muitos idosos no Brasil. A partir desse cenário é que se poderá tratar a respeito dos danos que o abandono imaterial pelos filhos causa aos idosos; e novamente estará presente a multidisciplinariedade para se alcançar as conclusões a respeito do dever de indenizar os danos decorrentes do abandono afetivo inverso. No último tópico do trabalho, será apresentada análise jurisprudencial sobre o tema, bem como algumas questões ainda mais controvertidas dentro do conteúdo já controverso. Após, serão mencionados alguns projetos de lei sobre o assunto tratado, e por fim, buscar-se-á responder as questões referentes á função da responsabilidade civil: se apenas compensatória ou se também punitiva. Alcançar-se-á, em seguida, as conclusões sobre o assunto exposto. 14 2. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA CONFIGURAÇÃO DA FAMÍLIA 2.1. O instituto da família sobre o prisma do Direito Romano até a Constituição Brasileira de 1824 Para tratar sobre o estudo do Direito de Família, faz-se necessária uma breve análise histórica para se compreender a maneira como as relações familiares se apresentam e se modificam com o passar do tempo. Esta contextualização é fundamental para se entender corretamente as normativas jurídicas de cada época, bem como as alterações destas. Afinal, não são as leis ou o Estado que criam o conceito de família e seus institutos; ao contrário: é o sistema jurídico, por meio de seus legisladores e intérpretes, que busca absorver e acompanhar as intensas e constantes modificações no arquétipo familiar. Conforme ensina Batista Villela, “a família antecede o Estado, preexiste à Igreja e é contemporânea ao Direito” 1 . É nesta toada que se faz prudente uma breve análise do direito familiar praticado desde Roma. O termo família, no período Romano, se referia, inicialmente, ao conjunto de escravos pertencentes a um homem, enquanto que o termo fumulus seria destinado a cada escravo doméstico desta ‘família’. Em razão de sua transmissibilidade por testamento, a expressão família passou a abranger não apenas o conjunto de escravos, mas também a mulher e os filhos pertencentes ao homem chefe daquela organização, o qual detinha absoluta propriedade sobre os membros da família, podendo dispor inclusive sobre o direito de vida ou morte destes integrantes. Era o denominado pater família. Neste sentido, relata Friederich Engels que o termo família: a princípio entre os romanos não se aplicava nem ao par de cônjuges e aos seus filhos, mas somente aos escravos. Famulus quer dizer escravo doméstico e família é o conjunto de escravos pertencentes ao mesmo homem. Nos tempos de Gaio, a família ‘id est patrimonium’ (isto é, herança) era transmitida por testamento. A expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo numero de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles. 1 VILLELA,João Baptista. Repensando o direito de família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Anais do I Congresso Brasileiro de Família – Repensando o Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM: OAB-MG, 1999, p. 15-30. 15 É possível visualizar, assim, que o Direito Romano foi constituído em uma sociedade cuja base familiar era fortemente patriarcal, com total submissão da família perante o poder do pai. Nesse contexto de autoridade incontestável do pater família, nenhuma importância era atribuída aos aspectos afetivos da convivência familiar. A este respeito Fustel Coulanges constata: O arcabouço da família não era tampouco o afeto natural, visto que o direito grego e romano não tomavam na menor conta esse sentimento. Poderia este existir no íntimo dos corações, mas para o direito não representava nada 2 . Arnoldo Wald 3 evidencia essa relação de poder e não de afeto, descrevendo que o homem mais velho da família era quem a comandava e detinha o poder sobre os integrantes da célula familiar (“pater familias”), comandando, assim, não apenas todo o patrimônio e bens familiares, mas também ditando a religião, crença e costumes que deveriam ser observados na unidade familiar. Santiago Dantas 4 , por sua vez, explica a forma como se dava a constituição inicial da família no período do antigo Direito Romano: segundo o escritor, o matrimônio se constituía após um ano da união da mulher com o homem. Dado este lapso temporal, a mulher era transferida de sua família de origem para seu marido, restando submissa, assim, à autoridade do ‘pater’: Ao cabo de um ano de usus, o matrimônio se consumava, produzia seu efeito principal, que era transferir a mulher de sua família de origem para a família do marido, ou aí deixá-la sob a autoridade do pater. Se o marido era Sui Júris, a mulher ficava, pode-se dizer sob o poder marital, mas se o marido era alieni iuris a mulher não caía sob o poder do marido, mas do pater do marido; e este poder sobre a mulher e sobre as noras chamava-se manus, rompendo-se por completo os laços de parentesco que prendiam a mulher à sua família de origem. O mesmo autor explica que com a Lei das XII Tábuas (Lex Duodecim Tabularum; 449 a.C.) a configuração do instituto mudou: somente consumava o matrimônio se a mulher permanece por um ano ininterrupto na casa do marido, podendo 2 COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 45. 3 WALD, Arnoldo. Direito de Família.7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 22. 4 DANTAS, Santiago. Direito de Família e das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 30-31. 16 dormir fora por apenas duas noites. Caso a mulher passasse três noites fora, configurava o denominado “trinoctium” e o prazo para constituição do matrimônio recomeçava. Na hipótese de ocorrência do “trinoctium”, configurava-se um matrimônio especial denominado “matrimônio sine manu”. Neste, a mulher, apesar de assumir o posto social de esposa, não figurava em posição submissa perante seu marido (pater), pois continuava sobre o poder de seu pai. Por outro lado, contudo, a esposa no ‘casamento sine manu’ não tinha direito à sucessão marital, mas apenas na sucessão de seu pai (pater originário). Com o predomínio do cristianismo no Império Romano, a forma de constituição inicial da família foi alterada: para a constituição do matrimônio não bastava que a mulher passasse a morar com o homem por um ano ininterrupto; era necessária a celebração de um sacramento que formalizaria o matrimônio e tornaria indissolúvel o vínculo matrimonial. Foi, assim, a partir do Direito Canônico, e de seu primeiro compilado de normas por meio do Decreto de Graciano (denominado de Corpus Iuris Canonici), redigido entre 1.140 e 1.142, que o matrimônio passou a ser visto como um sacramento indissolúvel, que, para ser celebrado, exigia o consentimento das partes 5 . Neste sentido, tem-se que: Para os romanos, o casamento era um estado de fato, que produzia efeitos jurídicos. Paralelo a ele, existia também a figura do concubinato, que consistia em toda união livre entre homem e mulher na qual não ocorre a affectio maritalis, efeito subjetivo do casamento, que representava o desejo de viver com o parceiro sempre (...) Com a decadência do Império Romano e o crescimento do Cristianismo, houve uma gradativa alteração do significado de família. Se a família pagã romana era uma unidade com multiplicidade funcional, a família cristã se consolidou na herança de um modelo patriarcal, concebida como célula básica da Igreja (que se confundia com o Estado) e, por consequência, na sociedade. 6 Esta evidente influência do direito canônico na estruturação jurídica do grupo familiar resvalou nas normativas brasileiras. No Brasil, o Direito Canônico teve forte influência devido à colonização portuguesa, sendo as Ordenações Manuelinas (normativa de Portugal com forte influência Canônica) o primeiro estatuto jurídico do Brasil, ao lado de cartas régias, cartas de foral e de cartas de doação, que se constituíam 5 WALD, Arnoldo. Direito de Família.7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 26. 6 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 50. 17 documentos jurídicos. Durante todo o período colonial e ainda durante o período imperial, vigoravam no Brasil as Ordenações Filipinas (decretadas em 1603), juntamente com decretos, alvarás e resoluções promulgadas por Portugal. Após a Independência do país, a Constituição Brasileira de 1824 recepcionou as Ordenações e demais normativas portuguesas, determinando a vigência destas até a promulgação de um Código Civil, o que se deu apenas em 1916 7 . Antes da vigência do Codex de 1916, elaborado por Clóvis Beviláqua, há que se destacar a Consolidação das Leis Civis, de 1858, e o esboço do Código Civil editado entre 1860 e 1865 por Augusto Teixeira de Freitas. Nesse esboço, ressalta-se o artigo 1.518, que, tratando sobre o pater famílias, autorizava o pai a corrigir e castigar moderadamente seus filhos, podendo requerer ao Juiz dos Órfãos autorização para detenção dos filhos por até quatro meses na casa correcional, sem direito a recurso 8 . Este dispositivo deixa clara a prevalência da autoridade do poder do pai sobre a família, como um senhor absoluto e chefe do lar. 2.2. Visão jurídica da família a partir da Constituição Brasileira de 1824 até a Carta Magna de 1988 As Constituições brasileiras de 1824 e 1891, notabilizadas por um viés marcadamente individualista e liberal, nada dispuseram sobre as relações familiares. Silmara Amarilla 9 aponta que a primeira Constituição (1824) apenas retratou brevemente a família imperial, silenciando quanto aos institutos pertinentes ao tema propriamente dito; e a segunda Carta Magna (1891) dedicou à família um único dispositivo. Este resultava da separação ocorrida entre a Igreja e o Estado (por meio do Decreto 119-A, de 07.01.1890, que, no regime republicano, aboliu o catolicismo como religião oficial) e enunciava que a República apenas reconhecia o casamento civil, cuja celebração deveria ser gratuita, como forma de constituição da família. Vale observar que antes mesmo de ser promulgada a Constituição de 1891, apenas o casamento civil era válido no Brasil, em razão do Decreto 181, de 24.01.1890, 7 SZANIAWSKI, Elimar, Direitos da Personalidade e sua Tutela, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.130. 88 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 676. 9 AMARILLIA, Silmara Domingues Araújo. O afeto como paradigma da parentalidade: os laçose os nós na constituição dos vínculos parentais. Curitiba: Juruá, 2014, p. 44. 18 de autoria de Rui Barbosa. Este mesmo Decreto acabou reproduzido no Código Civil de 1916, o qual apenas alterou o termo ‘Divórcio’ pela expressão ‘desquite’ a fim de configurar a ruptura da sociedade conjugal com a manutenção do vínculo. A subordinação da legitimidade da família ao casamento civil foi, portanto, mantida no Codex de 1916. Sobre este aspecto, Euclides de Oliveira e Giselda Hironaka narram que o antigo Código Civil, que datava de 1916, regulava a família do início do século passado, constituída unicamente pelo matrimônio. Em sua versão original, trazia estreita e discriminatória visão da família, limitando-a ao casamento. Impedia sua dissolução, fazia distinção entre seus membros e trazia qualificações discriminatórias às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessas relações 10 . Nesse contexto, era adotado um forte sistema patriarcal e as divisões de tarefas dentro do lar eram bem determinadas: ao homem cabia o sustento da família, e à mulher velar pela direção da casa (com serviços domésticos, aquisição de vestuário e produtos alimentícios) e educação dos filhos. Nenhuma atividade lucrativa poderia ser exercida pela mulher sem o consentimento marital, podendo, ainda, esta anuência ser revogada a qualquer tempo conforme ditames do marido, vez que a mulher era relativamente incapaz por determinação do artigo 6º do Código Civil de 1916. Este cenário patriarcal foi mantido durante a vigência das Cartas Magnas de 1934, de 1937 e de 1946. A Constituição de 1937 trouxe, contudo, relevante inovação quanto à expressa demarcação de deveres parentais com relação à prole, pois configurou como falta grave o abandono moral, intelectual ou físico de crianças e adolescentes por aqueles que detêm a guarda; além de prever o dever do Estado de assegurar condições físicas e morais de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das faculdades dos infantes e dos juvenis: Art. 127 - A infância e a juventude devem ser objeto de cuidados e garantias especiais por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas a assegurar-lhes condições físicas e morais de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das suas faculdades. O abandono moral, intelectual ou físico da infância e da juventude importará falta grave dos responsáveis por sua guarda e educação, e cria ao Estado o dever de provê-las do conforto e dos cuidados indispensáveis à preservação física e moral. 10 OLIVEIRA, Euclides de; HIRONAKA, Giselda. Do direito de família. In: Direito de família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey; 2002. p. 3. 19 Aos pais miseráveis assiste o direito de invocar o auxílio e proteção do Estado para a subsistência e educação da sua prole. Ou seja, apesar da autoridade do homem com relação à sua prole, esse estava – desde o ano de 1937 – expressamente subordinado, junto com a mulher, ao dever de cuidado e zelo pela integridade física, psíquica e moral dos filhos. Já com relação à emancipação da mulher dentro de seu próprio lar, isso só ocorreu com o advento do Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121/1962) e com a Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/1977). Em função do artigo 30 da Lei n. 4.121/1962 e do artigo 50, §5º da Lei n. 6.515/1977, a ideia de subordinação foi substituída pelo conceito de colaboração e a mulher, após as núpcias, passou a assumir a condição de colaboradora e consorte do esposo na chefia da sociedade conjugal, contribuindo, assim, tanto com a condição moral quanto com a material da família, sem mais depender de outorga marital. Junto com a perda de autoridade do marido, adveio também a possibilidade de reconhecimento da filiação extrapatrimonial por um dos cônjuges, ainda na vigência do casamento, por meio do testamento cerrado 11 , além da possibilidade jurídica de dissolução da sociedade conjugal 12 . A previsão legal de permitir a dissolução do casamento teve como consequência a necessidade de disposição jurídica quanto à guarda da prole advinda da sociedade conjugal desfeita. Assim, os artigos 325 a 329 do Código Civil de 1916 foram alterados pelo Estatuto da Mulher Casada e pela Lei do Divórcio, a fim de determinar diretrizes sobre a guarda dos filhos após a separação judicial ou divórcio. Sob um prisma diferente do atual, a questão da guarda dos filhos vinha relacionada ao comportamento dos cônjuges no casamento, de sorte que, como regra, ao inocente se resguardava esse direito, embora fosse permitido, diante das circunstancias, decidir-se de forma diversa pelo interessa da prole 13 . 11 Lei 6.515 de 26.12.1977, artigo 51, parágrafo único: “Ainda na vigência do casamento qualquer dos cônjuges poderá reconhecer o filho havido fora do matrimônio, em testamento cerrado, aprovado antes ou depois do nascimento do filho, e, nessa parte, irrevogável". 12 Lei 6.515 de 26.12.1977, artigo 2º, parágrafo único: “O casamento válido somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio”. 13 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Direito de Família, v. 6, 28 a ed. rev. e atual. por Francisco José Cahali. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 245. 20 Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, homem e mulher foram equiparados em direitos e obrigações, cabendo à esposa o exercício da chefia da sociedade conjugal em igualdade de condições com o marido. Além disto, o melhor interesse do menor passou a ser regra, e não exceção, para a resolução de questões concernentes à guarda dos filhos havidos dentro ou fora do casamento (pois estes passaram a ter os mesmos direitos): a igualdade constitucional entre o marido e a mulher e a necessidade de preservação, em primeiro lugar, do melhor interesse do menor fizeram com que doutrina e jurisprudência deixassem de lado a literalidade do texto normativo para desvincular a questão dos filhos da verificação de culpa de um dos genitores pela separação 14 . A nova postura sociocultural passou a valorizar os aspectos afetivos da convivência em família, valorizando cada um dos integrantes da célula familiar, com enfoque na afetividade e solidariedade entre as pessoas envolvidas. Como consequência, verificou-se ainda, o alargamento do conceito de família, a qual passou a ser vista como um “núcleo existencial integrado por pessoas unidas por vínculo socioafetivo, teleologicamente vocacionada a permitir a realização de seus integrantes, segundo o princípio constitucional da dignidade humana” 15 . Segundo Gustavo Tepedino, o panorama inaugurado com a Carta Magna de 1988 fez com que o conceito de unidade familiar – que era visto como uma aglutinação formal de pais e filhos legítimos baseada no casamento – se ampliasse e se tornasse flexível, pois tal conceito está, na atualidade, inteiramente voltado para a realização espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros 16 . Diante dos novos valores trazidos com a Constituição Federal de 1988 (como igualdade entre homem e mulher; igualdade entre filhos; proteção à família monoparental assim como à família constituída pelo casamento, bem como pela união estável), o Código Civil que datava de 1916 perdeu, como destaca Luiz Edson Fachin 17 , o papel de lei fundamental do direito de família. Esta função passou a ser exercida 14 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, Direito de Família, v. 6, 28 a ed. rev. e atual. por Francisco José Cahali. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 245. 15 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 43. 16 TEPEDINO. Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio deJaneiro: Renovar, 1999, p. 350. 17 FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade, relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 83. 21 diretamente pela Constituição Federal, ocorrendo, assim, a Constitucionalização do Direito de Família no bojo da chamada Constitucionalização do Direito Civil. 22 3. A TRANSFORMAÇÃO DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO: DE UM VIÉS PATRIMONIALISTA PARA UMA VISÃO HUMANISTA INSERIDA COM A CARTA MAGNA DE 1988 3.1. O Direito e a era pós-moderna A expressão pós-modernismo foi inicialmente empregada por Frederico Onís com a intenção de “descrever um refluxo conservador dentro do próprio modernismo” 18 . Contudo, tal vocábulo sofreu uma mudança de sentido e passou a ser utilizado na década de 1950 para representar uma contraposição à Era Modernista. A Era Modernista se inicia no final do século XVII e finda no século XIX. Trata-se de época marcada pela predominância da classe burguesa na sociedade e pelo crescente valor atribuído à razão em detrimento à dogmática marcante da Era Antiga e da Era Medieval 19 . Diversamente da Era Moderna, a sociedade pós-modernista, com início no século XX, é caracterizada pela ascensão da classe industrial operária, difusão da democracia e valorização de culturas não ocidentais 20 . As consequências destes acontecimentos se configuram com o intenso desenvolvimento tecnológico; com a ciência e o conhecimento como a principal força econômica de produção a garantir eficiência; com a massificação das estruturas de produção e consumo; com a flexibilização das relações sociais; com o alcance de um novo estágio do capitalismo caracterizado por uma nova lógica de mercado 21 ; e com a mudança do conceito de espaço e tempo. Esse novo contexto econômico-social contribui para se repensar a ciência jurídica. As aplicações jurídicas do período liberal e o método da “mera e exclusiva” subsunção da norma abstrata ao caso concreto se tornaram ineficientes para suprir as necessidades sociais. 18 ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 9-10. 19 LUKACS, John. O fim de uma era. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 13. Título Original: At the end of na age. 20 Ibidem., p. 19. 21 ANDERSON, op. cit., p. 13-18. 23 Diante da hipercomplexidade do mundo pós-moderno marcado pela coexistência de vários grupos sociais “sem valores compartilhados (share values), e cada um, querendo uma norma ou lei especial para si – com um sem-número de leis, decretos, resoluções, códigos deontológicos, etc.” 22 , tem-se a ruptura da tendência à unidade do Direito. Esta passa a ser substituída pela multiplicidade das fontes do Direito. Destaca-se, nesta toada, o aumento da positivação de princípios na ordem jurídica, a admissão de cláusulas gerais e termos jurídicos indeterminados, e a “negação da obrigatoriedade do pensamento sistemático” 23 . Neste contexto, os princípios, marcados por grande dimensão axiológica, adquirem função prática e passam a ser fundamento decisório direto para o aplicador do Direito. Mais do que ‘valores’, a Ciência do Direito passa a reconhecer nos princípios “espécies precisas de comportamentos” 24 . A existência de normas jurídicas compostas de elementos com maior vagueza semântica passa a ser considerada pela Ciência do Direito desde meados do século XX e, consequentemente, do intérprete vem a ser exigido mais do que a efetivação da subsunção da norma: requer-se uma verdadeira construção de fatos jurídicos. Nesta toada, os princípios jurídicos, valorizando a vida e a dignidade da pessoa humana, assumem maior proporção dentro do ordenamento, conferindo sentido e conteúdo ao sistema jurídico. Ocorre, assim, um deslocamento de valor: o patrimônio, que era o centro, é substituído pela valoração da pessoa humana 25 . Essa alteração valorativa é claramente notada com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual traz expressamente em seu bojo a dignidade humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, III), a solidariedade como um dos objetivos fundamentais da República (artigo 2º, I), igualdade entre homens e mulheres (artigo 5º, I), igualdade entre os filhos (artigo 227, §6º), o direito à reparação não só por dano material, mas também por dano moral e à 22 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação, Revista de Direito do Consumidor, n. 33, p. 125-127, jan/mar 2000. 23 BRITO, Alexis Augusto Couto de. Princípios e topoi: a abordagem do sistema e da tópica na ciência do direito. In: LOTUFO, Renan (Coord.). Sistema e tópica na interpretação do ordenamento. Barueri: Manole, 2006, p. 192-193. 24 ÁVILA. Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 11ª ed. ver. São Paulo: Malheiros. 2010, p. 25. 25 AMARAL, Francisco. O dano à pessoa no direito civil brasileiro, Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro, n. 1, p. 13-46, jul. 1982, p. 14-15. 24 imagem (artigo 5º, V), e o princípio neminem laedere 26 (artigo 5º, XXXV), dentre outros dispositivos que sobrepõem o humanismo ante ao patrimonialismo. 3.2. O Código Civil e a Pós-Modernidade: Constitucionalização do Direito Civil O Código Civil de 1916 continha em seu bojo, como marcantes características, o patrimonialismo, a submissão da mulher em relação ao homem, o individualismo e o valor liberal. Tais elementos eram oriundos dos reflexos históricos e políticos que contribuíram para a codificação da aludida proposição jurídica. Além da sociedade agrária e conservadora, o Código de Napoleão (França 1804) e o Código Alemão BGB (1896) também tiveram forte influência no conteúdo do aludido códex. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que sobrepunha o valor humanista sobre o viés patrimonialista (o qual ainda era exposto no Código Civil de 1916), houve um redimensionamento dos princípios orientadores do Direito Privado, incluindo o Direito de Família. Estes foram realocados na Carta Magna, configurando um cenário civil-constitucional. Conforme Guilherme Calmon Nogueira da Gama 27 , o direito civil constitucionalizou-se, afastando-se da concepção individualista, tradicional e conservadora-elitista da época das codificações do século passado. Diante desta constitucionalização do Direito Civil, o aplicador do Direito pode ampliar o alcance da interpretação para se embasar nos princípios, valores e cláusulas gerais dispostas na Lei Maior. 26 Conforme ensina Rogério Donnini: “O dispositivo constitucional que completa o princípio neminem laedere é o artigo 5º, XXXV, que estabelece: “a lei não excluirá de apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Ao estabelecer o direito de ação, destina-se esse dispositivo, também, à reparação e prevenção de danos, com a determinação de que caberá ao Poder Judiciário apreciar a lesão e a ameaça a direito”. O autor continua e expõe: “A dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º, III), como um princípio que não autoriza a ofensa física ou moral e protege a vida digna, ou seja, ultrapassa a proteção prevista no artigo 5º, caput, da Constituição Federal (inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade), com o escopo de dar-lhe dignidade, respaldada no artigo subsequente (artigo 6º, caput), para propiciar uma vida com educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade, à infância e aos desamparados. E isso significa a antiga e, ao mesmo tempo, atual exigência do princípio neminem laedere”. (DONNINI, Rogério. Responsabilidadecivil pós-contratual no direito civil, no direito do consumidor, no direito do trabalho, no direito ambiental e no direito administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 46-47). 27 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Das relações de parentesco. In: PEREIRA, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coords.). Direito de família e o novo Código Civil. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 101-132, p. 106. 25 Segundo Paulo Bonavides 28 , os princípios constitucionais foram convertidos em alicerce normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico do sistema constitucional. As consequências resvalaram diretamente na maneira de se interpretar a lei, pois a identificação dos direitos humanos ensejou a direta ampliação dos direitos merecedores de tutela. Houve, assim, a necessidade de se atualizar o Código Civil para que este se adequasse aos preceitos da nova Carta Magna de 1988. Dois anos após a promulgação desta, Humberto Theodoro Júnior, referindo-se a Carlos Alberto Bittar, expôs o que se segue: Há na Constituição Federal de 1988 muitas inovações que, de forma direta, atingiram disposições do Direito Privado, especialmente no Direito Civil. Mas, além disso, há um outro fator inovativo importantíssimo a ser considerado: o novo texto Constitucional, no dizer de Carlos Alberto Bittar, [...] “sacramenta, para a regência das relações privadas, noções éticas, sociais, políticas e econômicas que as sociedades modernas têm firmado nos países de inspiração romano-cristã mais desenvolvidos, como, dentre outros, a França, a Itália, a Alemanha, a Espanha e Portugal”. Tudo isso gera a necessidade de reformas legislativas profundas, como a que se ensaia, no momento, em matéria de defesa do consumidor, e, mesmo sem textos normativos novos, impõe uma conduta doutrinária e jurisprudencial de reexame e reinterpretação do Direito Positivo em vigor. 29 Sob este espírito eivado de noções éticas e sociais é que foi editado o Código Civil de 2002, o qual, no âmbito do direito de família serviu para, conforme ensina Francisco José Cahali 30 , reproduzir legislações precedentes (que, por serem disformes, haviam revogado dispositivos do Código Beviláqua) e confirmar as novas regras vigentes após a Constituição de 1988, embora escritas em outros termos. O viés humanista na codificação de 2002, com valores sociais e liberais, é notado por meio da inclusão de capítulo sobre “os direitos da personalidade” prevendo perdas e danos em casos de ameaças ou lesões a esses direitos, bem como por meio de institutos como o da função social do contrato, função social da propriedade, fim da distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, possibilidade de resolução de contrato quando este se tornar extremamente oneroso a uma das partes por motivos extraordinários ou imprevisíveis, relativização de contratos de adesão, possibilidade de anulação de contratos celebrados “em decorrência de lesão ou estado de perigo” etc. 28 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 237. 29 THEODORO JÚNIOR. Humberto. Alguns Impactos da Nova Ordem Constitucional sobre o Direito Civil, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 79, n. 662, dez. 1990, p. 7. 30 CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência de união estável. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 279. 26 Verificou-se, assim, maior valorização da visão humanista em detrimento da visão patrimonialista intervindo nas relações sociais analisadas no âmbito jurídico. E neste novo viés que família passou a ser vista em sua dimensão instrumental e os danos extrapatrimoniais passaram a ser, expressamente, considerados pelo Direito. 3.3. Constitucionalização do Direito de Família Com as modificações sociais que influenciaram na promulgação da Constituição Federal de 1988, verificou-se uma mudança de paradigma na regulamentação do Direito de Família não acompanhada pelo Código Civil de 1916. Este cenário culminou com uma verdadeira constitucionalização do direito de família. Nas palavras de Maria Berenice Dias, “em face da nova tábua de valores da Constituição Federal, ocorreu a universalização e a humanização do direito das famílias, que provocou um câmbio de paradigmas” 31 . Conforme assevera Paulo Lôbo: “a Constituição de 1988 expande a proteção do Estado à família, promovendo a mais profunda transformação de que se tem notícia entre as constituições mais recentes de outros países” 32 . No mesmo sentido, Gustavo Tepedino anota que nunca antes uma Constituição brasileira havia disciplinado com tamanha ênfase as relações familiares, cabendo destacar o arrojo no reconhecimento das entidades familiares concebidas e conformadas sem respaldo no matrimônio ou na conjugalidade, bem como a consagração da igualdade da filiação, independente de sua origem 33 . Além da igualdade de direitos dos filhos tidos fora do casamento, antes marginalizados em relação aos havidos na constância do casamento, e do reconhecimento também como família da célula formada a partir da união estável entre duas pessoas (afastada a formalização do casamento como pressuposto para a configuração da família), verificou-se também o reconhecimento da família monoparental, bem como a substituição do caráter patriarcal (com o comando sob as 31 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 36. 32 LÔBO, Paulo. Direito Civil. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 6. 33 TEPEDINO, Gustavo; MORAES, Maria Celina Bodin de; BARBOZA, Heloisa Helena. Código Civil interpretado conforme a Constitucionalização da República. v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 13. 27 mãos do Homem – pater familis) pela igualdade entre homem e mulher – o que permitiu que essa passasse a contribuir diretamente nas ordenações da família. Essas modificações demostram a intervenção do Estado nas relações de direito privado, o que permite o revigoramento das instituições de direito civil e, diante do novo texto constitucional, força o intérprete a redesenhar o tecido do direito civil à luz da nova Constituição. 34 Resta claro, assim, a migração de um Estado Liberal para um Estado Social, o qual intervém em setores da vida privada como forma de proteger o cidadão. Neste aspecto, Paulo Lôbo destaca que as Constituições brasileiras, no terreno das relações familiares, refletiram fielmente a fase histórica vivenciada por cada época, trazendo elementos de identificação do processo de transição do Estado Liberal para o Estado social 35 . As inovações normativas deixam claro o pendor humanista arraigado na Constituição de 1988, o qual tem por consequência o direcionamento à família dos influxos do princípio da dignidade humana. Nesta seara de valorização do indivíduo, da dignidade humana, a família passa ser vista como formação social, lugar-comunidade tendente à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus participantes; de maneira que exprime uma função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes 36 . Com esse espírito de tutela do bem-estar dos entes da entidade familiar, foi editado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) em consonância com o princípio da proteção integral a crianças e adolescentes previsto no artigo 227 da Constituição Federal de 1988, o qual comtempla seu caput com a seguinte redação: Artigo 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 34 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 21. 35 LÔBO, Paulo. Direito Civil. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 6. 36 TEPEDINO, op. cit., p. 421. 28 Entrou em vigor também Código Civil de 2002, o qual procurou atualizar os aspectos essenciais do direito de família, excluindo expressões e conceitos que causavam grande mal-estar e não mais podiam conviver com a nova estrutura jurídica e a moderna conformação da sociedade 37 com valores humanistas retratados na Constituição de 88. Além destas normativas, passou a vigorar o Estatuto do Idoso (Lei n . 10.741/2003), que dispõe sobre a proteção exigida pelo artigo 230 da Constituição Federal de 1988, o qual contempla em seu caput o seguinte comando: Artigo 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. Nesta seara de valorização individual de cada membro da família como forma de garantir a dignidade humana, destaca-se a proteção que a Constituição determina aos menores, jovens e idosos, por meio dos dispositivos insertos no Capítulo VII do Título VIII denominado "Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso". É evidente a preocupação Constitucional com o cuidado relacionado aos interesses da família, da juventude e também do idoso, sendo previsto expressamente na Constituição o dever de assistência dos pais em relação aos filhos e o dos filhos em relação aos pais na velhice, enfermidade ou carência, por meio do artigo 229: Artigo 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. Em consonância com este mandamento constitucional, verifica-se na Codificação Civil de 2002, bem como no Estatuto da Criança e do Adolescente, diversos deveres atribuídos aos pais em função do chamado poder familiar, como se retrata adiante. No mesmo sentido, são determinados diversos deveres aos familiares dos idosos por meio do Estatuto do Idoso. Neste ambiente e com a edição das novas normativas, passou a haver uma desaprovação ao abandono imaterial ou afetivo. Isto porque aspectos humanistas vieram a se sobrepor a questões patrimonialistas. 37 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 33. 29 Assim, ignorar a existência da prole menor de idade ou dos pais idosos, apenas com presença financeira ou material, custeando a manutenção pecuniária, sem nenhuma presença além do que ‘custeio’, passou a não mais se coadunar com os preceitos jurídicos advindos com as modificações trazidas com o espírito humanista. Conforme se verificará com os atuais princípios e regras do ordenamento jurídico apontados neste trabalho, há uma desaprovação jurídica ao abandono imaterial (ou afetivo), ou seja, a prática deste abandono não é ação que converge com os deveres impostos aos pais e aos filhos pelas normas atuais, justamente em razão da nova era do direito inaugurada com a Carta de 1988, também chamada de Constituição Humanista 38 . Desta forma, ainda que haja custeio de questões materiais, há ilicitude na total ausência tanto dos pais na vida dos filhos menores, quanto dos filhos adultos na vida dos pais idosos. Esta ilicitude gera danos, os quais dão ensejo à obrigação de indenizar, como se demonstra nos demais capítulos do presente trabalho. 38 Passou a se verificar um Estado constitucional e humanista de direito a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 ou, nas palavras de Luiz Flávio Gomes, a partir da última evolução do sistema jurídico. GOMES, Luiz Flávio. Primeiras linhas do Estado Constitucional e humanista de Direito. Artigo disponível em <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI103486,31047- Primeiras+linhas+do+Estado+constitucional+e+humanista+de+direito> acesso em 10. out. 2017. 30 4. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO IMATERIAL (OU AFETIVO) 4.1. Breve consideração sobre o termo “Abandono Imaterial (ou Afetivo)” Antes de expor os princípios aplicáveis ao tema do presente trabalho, faz-se mister esclarecer a expressão ‘abandono imaterial’ ou ‘abandono afetivo’. Tal elucidação é necessária para que se possa compreender a razão da aplicação dos apresentados preceitos constitucionais ao caso concreto. A expressão ‘abandono afetivo’ é comumente usada pela doutrina e jurisprudência para se referir à omissão do pai ou da mãe que não detém a guarda dos filhos menores e, a despeito de adimplirem com o custeio financeiro da prole, são totalmente ausentes em relação aos menores. Por outro lado, quando esta espécie de omissão é praticada pela prole em relação aos genitores idosos é utilizada, em geral, a expressão ‘abandono afetivo inverso’. Apesar da utilização do termo ‘afetivo’, não se trata da ausência de afeto ou amor como o termo pode sugerir; trata-se do inadimplemento de deveres de cuidado impostos por princípios e regras do ordenamento jurídico pátrio que serão apontados ao longo deste trabalho. Por esta razão é que nesta dissertação se aponta a expressão ‘abandono imaterial’ para se referir ao que, em geral, é chamado de ‘abandono afetivo’ a despeito de em nada se relacionar com afeto. Ao contrário do ‘abandono afetivo’, o abandono material é definido pelo ordenamento jurídico pátrio, no art. 244 do Código Penal, como sendo o ato de “deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada” 39 . Estaria, assim, o abandono material atrelado ao ato de prover a subsistência, ou seja, refere-se ao custeio de recursos materiais, como a pensão alimentícia. Quando há este custeio pecuniário, mas falta convivência e presença dos pais na vida dos filhos 39 Bem como “deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo”. 31 menores ou da prole adulta na velhice dos pais idosos é que se verifica o abandono que se quer tratar no presente trabalho, dai porque o uso da expressão ‘abandono imaterial’. Importante, destacar, entretanto, que em razão da praticamente unânime utilização do termo ‘abandono afetivo’ pelos juristas pátrios é que aponta essa expressão ao longo da dissertação, ainda que não se queira tratar de afeto. Demostrar-se-á a seguir que, apesar de ordenamento jurídico brasileiro não exigir afeto, nem impor o dever de amar; a falta de convivência e presença dos pais na vida dos filhos menores, ou dos filhos adultos em relação aos pais idosos, é omissão que não se coaduna com os deveres impostos pela Codificação Civil, Estatuto da Criança e do Adolescente e Estatuto do Idoso, e nem é compatível com os princípios da Constituição Federal promulgada em 1988. 4.2. Aplicação dos princípios constitucionais Com a promulgação da Constituição Federal datada de 1988, foi inserida no ordenamento jurídico uma carta de princípios com força normativa direta sobre todos os ramos do sistema jurídico, alterando-se assim a lógica anterior, em que os princípios constitucionais eram direcionados ao legislador infraconstitucional. Conforme leciona Paulo Bonavides,os princípios constitucionais foram convertidos em alicerce normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico do sistema constitucional 40 , de forma a não serem mais dirigidos exclusivamente ao legislador infraconstitucional, mas inclusive aos magistrados na promulgação das normas individuais concretas. Nesse contexto, Maria Berenice Dias explica que os princípios constitucionais deixaram de servir apenas de orientação ao sistema jurídico infraconstitucional, desprovidos de força normativa, para serem considerados leis das leis, não dispondo apenas de força supletiva. Adquiriram eficácia imediata e aderiram ao sistema positivo, compondo nova base axiológica e abandonando o estado de virtualidade a que sempre foram relegados 41 . 40 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 237. 41 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 39. 32 Desta forma, a operação hermenêutica inverteu-se em relação ao que era, pois antes a Constituição era tida apenas como uma moldura, cujo conteúdo era preenchido pelas leis e pelos códigos 42 . O destinatário dos preceitos constitucionais era o legislador ordinário, e o civilista refém, conforme dispõe Gustavo Tepedino 43 , da legislação infraconstitucional, sem se sentir vinculado aos preceitos constitucionais, não podendo reinterpretar e revisitar os institutos de direito privado, mesmo quando expressamente mencionados, tutelados e redimensionados pela Constituição. Contudo, com a constitucionalização do direito civil e a consagração da dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, III, CF), o positivismo tornou-se ineficiente 44 e as regras jurídicas passaram a se mostrar limitadas e acanhadas para atender ao comando constitucional 45 . Eis que surge o princípio da interpretação conforme a Constituição, uma das grandes inovações da Carta de 88, que teve o condão de propagar ao intérprete da norma que a aplicasse sempre em consonância com a Constituição, tornando o interprete infraconstitucional um aplicador direto da Constituição, a qual deixou de se destinar apenas aos legisladores. Os princípios constitucionais passaram, assim, a informar todo o sistema legal de modo a viabilizar o alcance da dignidade humana em todas as relações jurídicas 46 . A respeito da irradiação constitucional sobre o direito civil, Luiz Edson Fachin afirma: “sustentamos o direito para além do novo Código Civil. Os princípios constitucionais desbordam das regras codificadas e neles a hermenêutica familiar do século XXI poderá encontrar abrigo e luz” 47 . Vale destacar por fim, que entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 fez com que a codificação civil de 1916 se tornasse obsoleta e inadequada em muitos aspectos. A necessidade de edição de um novo código restava mais do que evidente. 42 LÔBO, Paulo. Do poder familiar. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coords.) Direito de família e o novo Código Civil. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 181. 43 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 18. 44 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais e norteadores e norteadores para a organização jurídica da família. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 20. 45 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 39. 46 Ibidem., p. 39. 47 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p, 39. 33 Neste contexto é que entrou em vigor o código de 2002, que trouxe em seu bojo o reflexo das modificações constitucionais. Desta forma, verificou-se a permuta do termo ‘homem’ pelo emprego da palavra ‘pessoa’, a fim de refletir o objetivo de igualdade entre homens e mulheres; substituição da expressão “pátrio poder” para “poder familiar”, a fim de denotar a igualdade de poderes do pai e da mãe na unidade familiar; possibilidade de o marido adotar o sobrenome da mulher; fim da distinção entre filhos ‘legítimos’ e ‘ilegítimos’; fim do direito do homem mover ação para anular o casamento se descobrir que a mulher não era virgem; revogação do dispositivo que permitia aos pais utilizarem a ‘desonestidade da filha que vive na casa paterna’ como motivo para deserdá-la etc. 4.3. Princípios constitucionais aplicáveis ao Direito de Família Diversos são os princípios constitucionais que incidem diretamente sobre o direito de família. Guilherme Calmon Nogueira da Gama 48 , em livro específico sobre esse tema, elenca os seguintes princípios de status constitucionais aplicáveis no viés familiar: princípio da dignidade humana; princípio da tutela especial à família; princípio do pluralismo democrático; princípio da igualdade material de todos os integrantes da família; princípio da liberdade, da justiça e da solidariedade; princípio da beneficência; princípio da paternidade (parentalidade) responsável; princípio da liberdade restrita e da beneficência à prole em matéria de planejamento familiar; princípio do melhor interesse da criança e adolescente; princípio da afetividade; princípio do pluralismo das entidades familiares; princípio da convivência familiar; princípio da isonomia entre os sexos nas relações conjugais e de companheirismo; e princípio da isonomia entre os filhos. Diante desta gama de princípios, buscar-se-á tratar apenas sobre aqueles que convergem ao tema do presente trabalho, ou seja, a respeito daqueles que de alguma forma se relacionam com o dever de indenizar o abandono afetivo tanto dos pais em relação aos seus filhos criança ou adolescente, quanto da prole em relação aos pais idosos. Nesta seara e tendo em vista a irradiação direta dos princípios em todo o ordenamento jurídico e não apenas direcionados ao legislador infraconstitucional para a 48 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios Constitucionais de direito de família. São Paulo: Atlas, 2008, p. 69-100. 34 formatação dos enunciados prescritivos, verifica-se a necessidade de os magistrados percorrerem os preceitos trazidos no bojo dos princípios para a construção da norma individual concreta relativa à responsabilização civil daquele que pratica o abandono afetivo com a prole ou genitores idosos. Em outras palavras, ainda que não exista lei (por ora, apenas projetos de lei 49 ) que expressamente preveja o dever de indenizar o abandono afetivo, a análise dos dispositivos jurídicos bem como dos princípios que regem o ordenamento leva à conclusão de que descuido afetivo é conduta ilícita. E a conduta ilícita que gera dano faz incidir o dever de indenizar, de acordo com os preceitos da responsabilidade civil. Conforme se verificará ao logo do trabalho, o descaso afetivo com a prole ou com os genitores idosos gera danos psicológicos (atestado em interdisciplinaridade com os estudos da psicologia) que não se coadunam com os princípios expostos a seguir. Desta forma, faz-se necessária a construção de norma individual e concreta pelos magistrados, com embasamento nas normas gerais e abstratas do ordenamento jurídico brasileiro, responsabilizando aquele que comete abandono afetivo para com o filho em fase de desenvolvimento ou para com o pai idoso. Os elementos jurídicos que justificam a construção da aludida norma individual concreta serão expostos ao logo do trabalho, iniciando com os princípios que são, segundo Paulo de Barros Carvalho, “normas jurídicas carregadas de forte conotação axiológica” 50 , pois estão insertos no direito positivo, o qual é formado
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