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OLIVEIRA, Maria Lúcia Wiltshire. De Camões a Saramago; leituras da pátria portuguesa. Rio:Booklink, 2004 (Cap. 3.2 e 3.3). 3.2. A JANGADA, DE QUANTOS PAUS É FEITA? A objetividade do narrador é uma invenção moderna, basta ver que nem Deus Nosso Senhor a quis no seu Livro. José Saramago 1 Num tempo não nomeado, mas que é certamente o de um futuro iminente, a Península Ibérica se separa abruptamente do continente europeu. Uma grande fenda rompe os Pirineus em linha reta de alto a baixo. A Península se torna ilha navegante, uma ―jangada de pedra‖ que no seu percurso pelo Atlântico vai gerar uma cadeia de acontecimentos, cujo desenrolar será objeto da narração, ora irônica, ora imparcial, do autor implícito. A narrativa se abre com o duplo mistério em torno dos cães da cidade de Cérbere, que inexplicavelmente voltam a ladrar depois de uma incrível e secular ―mudez histórica‖. Simultaneamente, em localidades distantes umas das outras, cinco personagens — três homens e duas mulheres — são protagonistas de eventos insólitos que contrariam os mais elementares princípios da natureza: Joana Carda risca o chão, displicentemente, com uma vara e este traço jamais se apaga; numa praia ao norte, Joaquim Sassa lança uma pedra ao mar, também distraidamente, e ela salta várias vezes sobre a água; numa cidade espanhola, um velho farmacêutico, Pedro Orce, pressente a terra tremer sob seus pés, sinal de fratura não ainda detectada pelos sismógrafos; um professor do Ribatejo, José Anaiço, vê-se subitamente acompanhado por uma escolta de pássaros; e na Galiza, Maria Guavaira, qual Penélope em expectativa, desfaz as malhas de uma velha meia de lã, produzindo, interminavelmente, montes de fio azul. Este é o primeiro capítulo do romance, fechado em cinco enigmas e aberto, daí para frente, para uma dupla aventura, uma na terra, outra no mar. Se o início é regido pelo signo da simultaneidade - todos os enigmas geradores da narrativa mantêm relação entre si e com o fenômeno maior da ruptura dos Pirineus - , os demais capítulos obedecerão à ordem linear própria ao texto épico. Um narrador de terceira pessoa acompanhará a grande viagem da ―Jangada de Pedra‖, no mar aberto, ao mesmo tempo em que relatará a viagem dos personagens pelo interior da península/ilha. O interesse do leitor é garantido pelo suspense de uma sempre possível catástrofe: o choque da imensa ―pedra‖ com algum outro obstáculo geográfico. ―Navegando‖ contra todas as evidências científicas, o grande artefato se projeta para o Atlântico e para o futuro. Na epígrafe de Carpentier — ―todo futuro es fabuloso‖ — já se aninha uma concepção de tempo como um vir-a-ser de fatos extraordinários e de fatos imaginados/ ―fabulados‖ pelo autor. Simulacro de ficção científica, a JP nasce de um suposto cataclismo cuja situação-limite permite melhor observar o comportamento humano. Na verdade, o clímax se aloja no início da fábula, seguindo um percurso linear na direção de um desfecho desconhecido. Vejamos como o narrador de Saramago manipula fábula e trama neste quinto romance, de 1986. Como os anteriores tem capítulos (23) não- numerados e não-titulados, distribuídos ao longo de 330 páginas. (…) 3.3.- A NAVEGAÇÃO ALEGÓRICA 1 SARAMAGO, 1986, p. 215. Segundo a classificação de Booth, já referida, podemos inserir A Jangada de Pedra na categoria de obras que apelam prioritariamente para nosso interesse intelecutal ou cognitivo. Isto não quer dizer que estejamos impedidos de desfrutar dos prazeres estéticos que a obra tem a oferecer à nossa sensibilidade, nem que somos indiferentes ao destino dos personagens. A leitura de qualquer obra atinge mente, sensibilidade e coração dos leitores. Em obras de Shakespeare, citado por Booth, os três aspectos comparecem, habilidosamente balanceados. Brecht, por outro lado, estimula o distanciamento ao longo do eixo emocional de modo a fazer entrar em jogo a capacidade de juízo social do leitor. Ao longo de nossa análise temos feito referências às várias viagens que A Jangada de Pedra comporta. Cabe-nos agora separá-las em dois grupos: a viagem (ou viagens) que história conta e a viagem que o discurso empreende. Elas não são discordantes entre si mas também não são homólogas. São viagens paralelas, diríamos até lineares, que se desenvolvem sem atropelos do início ao fim do livro. Sobre a viagem encetada pelo narrador em torno de temas diversos, inclusive metalingüísticos, já nos estendemos nos itens anteriores. Pudemos observar como 0 comentário é fundamental na composição do romance, não só pela sua larga utilização, como pela postura reflexiva de um narrador que igualmente nos convida à reflexão. Este é um estrato pregnante da obra e que diz respeito à função cognitiva e crítica dos leitores. Voltando-nos para a viagem, ao nível da história, veremos que o tipo de interesse predominante, apesar de todas as peripécias da península e andanças dos personagens, não se alterará muito. ao longo da leitura procuramos uma resposta para a pergunta: Que significam estes enigmas? Persiste a nossa curiosidade intelectual diante do destino e significado deste imenso artefato de pedra. Comparativamente, os personagens contam pouco não só porque eles se deslocam como grupo. nada de especial os distingue a não ser o acontecimento enigmático que lhes toca a certa altura de suas vidas comuns. Não temos na JP personagens singulares tal como surpreendemos nos outros romances do autor. Têm-se aqui fatos singulares que envolvem personagens, sem que par disto eles tenham contribuído intencionalmente. São, de certa forma, vítimas de um acontecimento maior que os transcende e que os faz viajar por terra enquanto a península por mar. Interessa-nos averiguar, a partir da natureza da fábula que nos é contada, de que modo é possível uma leitura destas viagens. O acontecimento maior é de caráter inteiramente inverossímil, daí a perplexidade que gera nos cientistas e no mundo representando no romance. Não podemos falar de ―fantástico‖, na acepção de Todorov 2 , pois em momento algum há hesitação dos personagens ou mesmo do narrador quanto à realidade dos fatos. Não há delírio, nem sonho, nem loucura que possam explicar os enigmas. Também não estamos no reino do ―maravilhoso‖, onde os eventos anormais são regidos por outras leis não questionadas pelos personagens e/ou leitores. Encontraríamos, talvez, um paralelo com um certo tipo de science-fictionn atual que, sob um invólucro prodigioso, permite uma leitura além do nível literal, apesar da narrativa não indicar diretamente este caminho. pensamos no monolito enigmático de 2001, uma odisséia no espaço, filme de Stanley Kubrick baseado na obra homônima de Arthur Clark, cuja interpretação não está assegurada na própria obra. Por estas vias alcançamos o domínio teórico do poético, do metafórico e do alegórico, os quais cabe precisar. Apesar de sabermos que a literatura não é representativa, no sentido em que o é o discurso cotidiano, não podemos recusar-lhe esta função, pelo menos enquanto 2 TODOROV, 1975. pretensão. É o que acontece com a ficção ao contrário da poesia. ―Esta oposição, como a maior parte das que se encontram em literatura, não é da ordem do tudo ou nada, mas antes de grau‖ 3 . Geralmente o discurso poético é assinalado por numerosas propriedades — rimas, metro, figuras de retórica, etc. — que nos afastam da literalidade do texto. Somos convocados para uma leitura poética sempre que a metáfora comanda a significação, seja na poesia, seja na ficção. Com base na sistematização de Jakobson segundo a qual a representação metafórica implica uma substituição de significantes por uma similaridade de signficação, assim Lacan define a metáfora: ―implantação, numacadeia significante, de um outro significante pelo qual aquele que este suplanta cai na posição de significado e, como significante latente, perpetua ali o intervalo onde uma outra cadeia significante pode ser enxertada‖ 4 . O título do romance - A Jangada de Pedra - é, a rigor, a grande metáfora do texto, presentificando-se (metáfora in praesentia) os dois termos - península e barca - na relação sintagmática: ―[...] então a Península Ibérica moveu-se um pouco mais, um metro, dois metros, a experimentar forças [...] barca que se afasta do porto e aponta ao mar outra vez desconhecido‖. (JP, 45) (grifo nosso) ou sendo expresso apenas um dos termos, o veículo (jangada): ―[...] e é grande fortuna nossa não ir esta jangada de pedra mergulhando a fundo [...]‖ (JP, 317) (grifo nosso) Para melhor entender a fórmula lacaniana da metáfora, refaçamos, agora, o mecanismo da substituição. ao enunciar Península Ibérica, o narrador está propondo a seguinte relação: S (significante primeiro) enunciado: ―Península Ibérica‖ = s (significado significado (histórico, mítico, geográfico, político, social, etc.) de Península Ibérica A metáfora ―jangada de pedra‖ introduz um significante novo: S‘ que se faz passar o significante primeiro (S) e seu significado (s) sob a barra da significação, o que pode ser visto em duas etapas: 1º) S‘(significante metafórico) ―jangada de pedra ‗ S (significante primeiro) ―Península Ibérica 2º) Se S‘ está sobre S assim como S está sobre s, teríamos que S‘ está sobre s: S‘ : S S‘ S s s O significante metafórico S‘ (―jangada de pedra‖) significa implicitamente o antigo enunciado (―Península Ibérica‖) no que o expulsa e faz, por assim dizer, descer mais profundamente o significado que fica sob a barra. A metáfora nos remete a uma relação entre significante e significado inconsciente formulado por S/s. Assim é que o 3 Ibid., p. 67. 4 Ecrits, p. 798. apud. FAGES. Para compreender Lacan, [s.d.]. enunciado ―Península Ibérica‖, que caiu na posição de significado, mantém-se como significante latente dando começo a uma cadeia de significantes produzidos pelo inconsciente. No caso d‘ A Jangada de Pedra importa investigar que outros significantes latentes, produzidos pelo inconsciente coletivo, podem vir à luz sob a análise. Estão aí amalgamadas as formações imaginárias referentes à história das duas pátrias, Portugal e Espanha, e de sua unidade ibérica, à matéria mítica relacionada a façanhas e heróis, à peculiaridades geográficas e espaciais no tocante à Europa e ao Outro Mudo, Novo ou Terceiro, às injunções política, religiosas, sociais, etc. do presente e do passado. A cadeia é infinita, jamais alcançando um suposto ―significado primeiro‖, porque ele é inapreensível. A concepção lacaniana de metáfora nos conduz ao conceito benjaminiano de alegoria. Antes de Walter Benjamin, a idéia que se fazia da alegoria na Antigüidade era a de que ―uma metáfora contínua se desenvolve em alegoria‖ (Quintiliano). Do grego allós = outro e agourien=falar, a alegoria não deixa de ser uma técnica metafórica pela qual uma relação de semelhança põe em causa a oposição retórica sentido próprio/sentido figurado. Esta é a chamada ―alegoria dos poetas‖, que não se confunde com a ―alegoria dos teólogos‖ baseada na interpretação religiosa de textos sagrados 5 . Segundo Torodov, o duplo-sentido da alegoria ―é indicado na obra de maneira explícita: não depende de interpretação (arbitrária ou não) de um leitor qualquer‖ 6 sob pena do conceito diluir-se como sinônimo de interpretação. A posição de Todorov é descritiva e estruturalista, daí restringir-se a um princípio de classificação (alegoria evidente, ilusória, indireta e hesitante) que não dá conta de muitas obras modernas. Na JP, por exemplo, não há indicações clara sobe o sentido alegórico a ser levado em conta pelos leitores. Por outro lado o texto propõe imagens cuja interpretação não está assegurada ou pré-estabelecida num quadro referencial anterior, o que nos reenvia à alegoria benjaminiana. Repudiando a dicotomia romântica ―símbolo vs. alegoria‖ em que a segunda é condenada em favor do primeiro, Benjamin revitaliza o conceito de alegoria como máquina-ferramenta da modernidade. O caráter abstrato da alegoria — ―invólucro ou revestimento exterior de uma abstração 7 — não significa um desinteresse total em relação ao sensível e ao concreto. Pelo contrário, ―é apenas a face de um movimento essencialmente ambíguo, onde essa tendência se associa ao seu contrário — ao apego à realidade concreta‖ 8 . Sua alusividade é pluralista, aberta, polissêmica, comportando uma inesgotabilidade de sentido. Com este resgate da forma alegórica, Benjamin explorou o mundo de Kafka, até então negado por Luckács, herdeiro dos românticos, lendo no ―outro‖ da alegoria o reprimido e o esquecido. ―Decifrar a alegoria é remontar ao olvidado, para salvá-lo do longo e cruel esquecimento‖ 9 . Reencontramos, portanto, o significado inconsciente da metáfora lacaniana na alegoria benjaminiana. Tal articulação nos conduzirá nas análises que se seguem. 3.3.1- Os pequenos enigmas 5 As duas concepções de alegoria são discutidas por João Adolfo HANSEN em Alegoria; construção e interpretação da metáfora, 1986. 6 T. TODOROV, 1971, p. 71. 7 HANSEN, 1986, p. 5. 8 MERQUIOR, 1965, p. 107. 9 Ibid., p. 118. Entendendo enigma como uma ―descrição obscura, ambígua, de alguma coisa para que seja difícil adivinhá-la ou decifrá-la‖ 10 , agrupamos, sob a denominação ―pequenos enigmas‖ os fatos insólitos a que está sujeito o grupo de personagens do romance, cujos nomes, vidas, características e destinos estão motivadamente relacionados ao enigma maior da separação da península. Valendo-nos da onomástica expressiva, da metáfora e da alegoria, deles vamos nos aproximar numa tentativa de ―decifração‖ que certamente não recobre toda a sua proliferação significante. 3.3.1.1- O risco: procura do amor O nome próprio é um significante privilegiado no discurso narrativo. Sua adequação será tanto mais acentuada quanto mais sugerir a caracterização do personagem. Ele é um signo polissêmico, trazendo em seu bojo semas que durante o fluxo narrativo passarão da latência à manifestação. Para Wellek e Warren 11 , cada nome ―é uma espécie de vivificação, animização, individuação‖. Talvez justamente para evitar a individualização, Saramago tenha designado por H. e M. o casal de MPC. No caso de Joana Carda, parece-nos que o nome fala não só da mulher, como da própria narrativa que ela inicia como agente: ―Quando Joana Carda riscou o chão [...]‖ (JP, 9); carda, no seu primeiro sentido, é ―máquina de desembaraçar‖, destrinçar e limpar fibras têxteis‖ e cardar eqüivale a desenredar. Valendo-se do primeiro nome do texto, o narrador propõe uma tarefa: a de desenredar, pela leitura, os fios imperceptíveis que compõem o tecido/texto. Apesar de formalmente demiúrgico, representado e onisciente, o narrador não fornece o sentido da narrativa, abrindo-a para a participação do leitor. Embora o próprio personagem declare — ―não, eu não sou o nome que tenho‖ (JP, 159) —, ele reafirma o destino de sua avó que no passado, pela viuvez e coragem, teria merecido a troca do sobrenome, do masculino Cardo para o feminino Carda. Diz o narrador sobre Joana: ―[...] pelo menos já vimos que não parece mulher para viver de caridades ou a expensas de macho‖ (JP, 176). Caracterizada por José Anaiço como uma ―mulher nova‖ (JP, 119), olhos [...] cor de céu‖ (JP, 120), ―cabelos quase pretos‖ (JP, 121), esta mulher natural de Coimbra, recém-divorciada, está associada a uma outra lógica - ―Se fui aLisboa procurá-los [foi] porque os vi como pessoas separadas da lógica do mundo‖ (JP, 147) - a certa paranormalidade, de sentido premonitório - ―Pedro Orce vai morrer‖ (JP, 326) - , de entendimento do cão - ―Quer que vamos com ele‖ (JP, 155) - e à concepção de destino enquanto devir - ―Acredito no que tem de ser‖ (JP, 10), ―O que tem de ser, tem de ser, e tem, muita força, não se pode resistir-lhe‖ (JP, 141). Joana Carda nos faz lembrar Blimunda do Memorial do convento, seja pelo aspecto premonitório de suas personalidades, seja pela procura do amor a que dedicam suas vidas. Como protagonista do enigma do risco indelével no chão, o personagem aponta para dois rompimentos: a separação conjugal e a separação da península, ambas implicando um corte com o passado e com a tradição: ―[...] tracei um risco que me separava de Coimbra, do homem com quem vivi, definitivamente um risco que cortava o mundo em duas metades, vê-se daqui‖. (JP, 148) O risco no chão prefigura a fenda nos Pirineus, ―risco feito com a ponta aguçada de um lápis‖ (JP, 16), que liberta a mulher e a Península Ibérica dos fios enredados e embaraçantes de sua história. O nome, o enigma e o destino de Joana Carda são a versão 10 AURELIO, p. 656. 11 In: s.d. , p. 272. particular e individualizada da situação coletiva. Entre os personagens, Joana é o mais determinado nas iniciativas, sobretudo no sentido amoroso. Ela tem coragem para abandonar sua cidade e seu passado à ―procura do amor‖. Como desenredadeira, é uma versão moderna de Ariadne, mulher de Teseu na lenda ateniense do labirinto de Creta. 3.3.1.2- O fio: espera do amor O primeiro capítulo, o dos pequenos enigmas, iniciado por Joana Carda, fecha-se ―aos pés da desenredadeira [cujo] fio é a montanha que vai crescendo. Maria Guavaira não se chama Ariadne, com este fio não sairemos no labirinto, acaso com ele conseguiremos enfim perder-nos. A ponta, onde está‖ (JP, 18). Reafirma-se o sentido de mulher como condutora dos caminhos por entre o labirinto-vida e o labirinto-narrativa. Ao contrário de Joana, marcada pela ―procura‖, Maria representa a mulher disponível, generosa, que está tão-somente à ―espera do amor‖ certo. Maria Guavaira é uma Carda, não pelo nome mas em essência, pois, viúva e sozinha, mostra-se capaz de conduzir os negócios de sua propriedade rural na Galiza. qual Penélope desenredadeira assediada pelos pretendentes (o empregado mais novo a corteja), esta mulher aguarda o seu Ulisse/Sassa cuja paronomásia de nomes nos remete à fundação mítica da nacionalidade. Um mito pode se superpor a outro. Curiosamente, Maria Guavaira explica a presença de uma barca de pedra encontrada por Pedro orce como remanescente da lenda antiga segundo a qual ―nesta costa desembarcaram, em barcas de pedra, vindos dos desertos do outro lado do mundo, uns santos, alguns chegaram vivos, outros mortos, como foi o caso de Santiago‖ (JP, 201). Caracterizada por Sassa, Maria Guavaira ―não é bonita [...] mas também não é feia, tem as mãos gastas e fatigadas‖ (JP, 190); ―os cabelos são castanhos‖, ―o queixo redondo‖, ―os lábios cheios‖, os dentes ―são brancos [...] afinal esta mulher e bonita‖ (JP, 191) e não se tinha reparado. O seu nome, ―nome que ninguém mais tem‖ (JP, 264), ou seja, nome não dicionarizado, foi sonhado pela mãe que, por ter se tornado louca, reitera-o como significante jamais alcançável. Tal como Joana Carda, ela recusa a motivação do nome - ―Os sonhos significam sempre alguma coisa, Mas não o nome que estiver no sonho‖ (JP, 264) - mas afirma a dimensão onírica da linguagem; ―Os nomes que temos são sonhos, com que estarei eu a sonhar se sonhar com o teu nome‖. (JP, 264) observe-se que Maria Guavaira não é portuguesa mas galega, o que sugere uma integração de nacionalidades ibéricas que o grupo de personagens/viajantes metaforiza. Por outro lado, seu nome - Guavaira – pode ser entendido como o resultado de uma metátese ocorrida em Guarvaia, nome de uma suposta cantiga galego-portuguesa na qual há referência a um manto recebido como presente. A moça teria siso presenteada pelo rei, seu amante. De Guarvaia para Guavaira pode-se percorrer o seguinte processo: a) transposição do fonema /r/ para a sílaba final; b) transfiguração de manto tecido numa meia destecida; c) transformação de um passado enredado (fios entrelaçados num tecido) em um presente que se deseja desenredado (fios soltos da meia). Por fim, o passado medieval peninsular representado pela guarvaia, é substituído pela guavaira, representando o desafio de um presente a construir. 3.3.1.3- Estorninhos: um novo vôo Corruptela de Inácio, avô do personagem, José Anaiço, tal como Joana Carda (por quem se apaixona), recebe o nome por herança familiar mas da família está separado. Originário do Ribatejo, divorciado e sem filhos, o personagem é um professor de História, de férias, a quem o autor concede função reflexiva no corpo da narrativa. Por vezes ele reflete conceitos do próprio narrador: ―A minha sabedoria está-me aqui a segredar que tudo só parece, nada é, e temos de contentar-nos com isso [...]‖ (JP, 133). Fora o narrador e entre os personagens, ele é aquele que mais se aproxima de um ―alter ego‖ do autor. Protagonista do enigma dos estorninhos sobre sua cabeça, José Anaiço parece representar a imagem do intelectual, de certo modo atordoado por questões impertinentes (os estorninhos?) que desaparecem, literal e alegoricamente falando, assim que cede ao amor, ou, nas palavras do narrador, ―só o deixando na hora de principiar-se outro vôo‖ (JP, 172). Se os estorninhos representam uma certa indisponibilidade intelectual refratária à emoção, o seu coincidente desaparecimento com o aparecimento de Joana na vida de Anaiço sugere uma nova realidade vital, ―um novo vôo‖ para o personagem. Além da paronomásia onomástica de seus prenomes José/Joana, os sobrenomes do casal sugerem um mesmo campo semântico relativo ao passado inquisitorial da Companhia de Jesus fundada por Santo Inácio. O valor metonímico do nome é invertido: Inácio/Anaiço se torna potencialmente vítima da tortura do amor sob a ação da ―carda‖, ―instrumento de dilacerar as carnes, pobres mártires, esfolados, queimados, degolados, cardados. é isso que me espera‖ (JP, 159), diz Anaiço para Joana. Por outro lado a consagração, pela lei do amor, desta primeira união implica um novo recomeço afetivo que prefigura um recomeço político para a Península: ―Estamos do lado de cá do risco, juntos, por quanto tempo e Joana respondeu, já falta muito para o sabermos‖. (JP, 151) 3.3.1.4- Pedra: um novo salto Ao se olhar no espelho, Joaquim Sassa vê-se como um homem novo com mais de trinta anos, sobrancelhas pretas, olhos castanhos à portuguesa, nítida cana do nariz, comum, enfim, funcionário público de uma cidade praiana ao norte de Portugal, sozinho e que não sabe ―de quem gostar e como se faz para continuar a gostar‖ (JP, 160). O narrador contrasta esta indiferença à paixão de um rapaz holandês morto pela sua causa política, que sabia ―o que queria, ou julgava sabê-lo, [...] não era como o Joaquim Sassa, que não sabe de quem há de gostar [...] talvez lhe chegue o dia, se estiver com atenção à oportunidade‖ (JP, 166). No primeiro capitulo, Sassa displicentemente atira uma pedra ao ar e ao mar; no capítulo décimo-segundo, intencionalmente alcança a ponta do fio de lã azul que ondulava no ar (cf. JP, 184) levando-o ao amor e à Maria Guavaira. Entre uma pedra e um fio, entre uma primeira causa e um último efeito, muitas coisas podem se passar sem que nos sejam perceptíveis. Sintomaticamente é Joaquim Sassa o personagem que recebe a lição sobre causas e efeitos no interrogatório imaginário construído pelo narrador, fazendo-nos lembrar a cena de 2001, uma odisséia no espaçoem que um osso atirado ao ar transforma-se em nave espacial: ―Duvido que atirar uma pedra ao mar possa ser causa de partir-se um continente, Não quero entrar em vãs filosofias, mas respondam-me se vê alguma ligação entre o facto de um macaco ter descido duma árvore há vinte milhões de anos e a fabricação duma bomba nuclear, A ligação é, precisamente, esses vinte milhões de anos, Bem respondido, mas agora imaginemos que seria possível reduzir a horas o tempo entre uma causa, que neste caso seria o lançamento da sua pedra, e um efeito, que foi a separação da Europa, [...]‖. (JP, 53-54) Na celebração simbólica da união de Joaquim Sassa à Maria Guavaira pelo uso da mesma colher - ressonância do amor de Blimunda e Baltasar - inaugura-se outro recomeço afetivo em que o fio da paixão envolve um coração de pedra. Joaquim Sassa consegue, finalmente, assistir a outro incrível fenômeno: ―um novo salto‖ da pedra que é o seu indiferente ou empedernido coração. os dois enigmas, entre si relacionados, também dizem respeito, como no caso de Anaiço e Joana, ao enigma maior da ―separação da Europa‖, citado pelo interrogador. Apesar da pouca brandura de alma, Sassa deve o nome, a uma árvore corpulenta da Núbia, ―lindo nome, de mulher, Núbia, lá para os lados do Sudão, África Oriental‖ (JP, 55) 3.3.1.5- O homem do passado `Também de ―pedra‖ o nome de Pedro orce é composto. Trata-se, no entanto, de outro sentido, ou seja, ―pedra‖ como base, como origem e como parte da Península Ibérica/Jangada de Pedra. O personagem porta, em seu nome, sua origem andaluza, da aldeia de Orce, em Granada, perto de Venta Micena onde se teria encontrado o mais antigo fóssil humano da Europa, chamado O Homem de Orce. Caracterizado pelo narrador como um homem velho, de mais de sessenta anos, cabelos brancos, farmacêuticos e químico, por várias vezes lhe está associada uma função mágica, de prestidigitador (cf. JP, 82). Consegue ver a aura por cima da casa de Maria Guavaira e é imaginoso, na opinião de Anaiço: ―Alguma razão há para tanto se falar das imaginações andaluzas, fervem em pouca água‖ (JP, 140). Como parte que é da península/jangada, seja por ser pedra, seja por pertencer, figuradamente, às profundezas de Orce, Pedro Orce é um sensibilíssimo sismógrafo humano capaz de anunciar o começo e o fim do grande movimento da ―jangada de pedra‖. Apesar de oriundo de terras andaluzas, ―tem luzes de quem andou, em qualquer tempo, nas terras gerais da península, o facto de ter dito que não conhecia Lisboa [...] não depõe contra a hipótese [...]‖ (JP, 276). Por este enunciado vê-se que Pedro Orce é a metáfora do homem velho peninsular que, no final do romance, será enterrado pelos dois casais. Sua seiva, no entanto, fecunda as duas mulheres e sobre sua sepultura a vara de negrilho reverdece, ―talvez floresça no ano que vem‖ (JP, 330). Como ancião tem características sagradas pois, ao ter envelhecido sem desaparecer (lá está enterrado), evoca sua ligação com forças supra-temporais de conservação. Sua resistência ao tempo é prova de solidez, autenticidade, verdade. Como o apóstolo é o iniciador de uma nova comunidade sobre a qual se assentará um projeto de fraternidade universal análoga a que presidiu os primórdios do catolicismo. Em certa medida, Orce parece representar, pela sua contradição entre caráter imaginoso e formação científica, um segmento do alter ego do autor que igualmente oscila entre os dois pólos. Depois de uma longa exposição sobre o cosmo, Orce deduz - ―o universo talvez seja um anel‖ - e pergunta ―que nome tem o que a seguir a nós vem‖ (JP, 269). Ao que Anaiço (outro alter ego do autor) responde: ―Com o homem começa o que não é visível‖ (JP, 269). A carência efetiva de Pedro Orce se acentua ao ver-se velho e solitário diante da explosão de amor que acontece ao seu redor, nos dois casais. Para minimizá-la, encontra consolo na amizade com o cão, prodigioso como ele, com o qual dorme - ―foi dormir no automóvel duas horas, abraçado ao cão‖ (JP, 179) e divide a ração - ―metade do que me couber a mim é para ele‖ (JP, 261). 3.3.1.6- O cão sábio ―O cão que tem todos os nomes e nenhum‖ (JP, 217) pode ser considerado um personagem da narrativa, não só porque conduz os viajantes pela península tendo participação nos eventos, como também porque protagoniza um enigma, o da ―mudez histórica‖. é ele quem conduz o grupo até à casa de Maria Guavaira levando na ―boca um fio de lã azul‖ (JP, 151). a tensão entre instinto e racionalidade humana se objetiva na aventura que tem o cão como guia: ―Há um acordo entre este cão e estas pessoas, quatro seres racionais consentem em deixar-se conduzir-se pelo instinto animal, salvo se estão todos eles a ser atraídos por um íman colocado ao norte ou puxados pela outra ponta de um fio azul gêmeo deste que o cão não larga‖. (JP, 177) Por esta função o cão pode se chamar Piloto (JP, 180 e 190) e pela sua dedicação ao grupo é Fiel (JP, 177, 180, 181) ou Constante (JP, 267). No entanto, o narrador sabe que ―um certo outro nome lhe flutua às vezes na memória, Ardent, mas desse ninguém aqui se lembrou‖ (JP, 267). Desde a primeira página do romance, o narrador menciona a ―mudez histórica‖ dos descendentes de Cérbero, cão de três cabeças que guardava os infernos gregos. Um destes, o cão Ardent, é a primeira criatura a perceber o estalar da pedra que dará origem à dupla viagem de que falamos, por terra e por mar. Não é um cão qualquer, ―de paternidade suspeita ou clandestina, a sua árvore genealógica tem raízes no inferno [assim como seu nome e sua mudez], que, como sabemos, é o lugar aonde vai dar toda a sabedoria, a antiga que já lá está, a moderna e a futura que hão de seguir o mesmo caminho‖ (JP, 177). Em certo sentido, a mudez do cão metaforiza uma sabedoria ainda não alcançada pela mente humana e que é uma mistura de razão e instinto, realidade e imaginação. Não podemos esquecer que o inferno é também o interior de cada um. 3.3.2- O grande enigma Pelo exame dos personagens, percebem-se pontos em comum. Em primeiro lugar todos têm sobrenomes motivados, mesmo quando sua significação permanece inalcançável no inconsciente do Outro (caso de Guavaira). Seus prenomes — José, Maria, Joana (forma feminina de João), Joaquim, Pedro — parecem alusões bíblicas à família de Cristo, incluindo avô (Joaquim) e dois discípulos (Pedro e João), reiterando, talvez, a caracterização do grupo como a semente de um ―novo tempo‖ e de um ―novo homem‖. Em segundo lugar, se por um lado os nomes dizem respeito às suas características, estas são retomadas na forma do enigma que cada um protagoniza. Joana Carda é a Ariadne desembaraçadora dos obstáculos de uma nova aventura afetiva mas também se vale do fio/risco para se desembaraçar, corajosamente, de sua vida pregressa. José Anaiço tem no nome a herança da intelectualidade que se desdobra sob a forma dos estorninhos. Curiosamente, o personagem mantém afinidades com o autor, não só pelo nome (José) e pela vocação intelectual, mas também pela naturalidade; são ambos do Ribatejo. Também Joaquim Sassa reatualiza as iniciais do nome do autor (JS), fazendo- nos lembrar o passado comum de ambos como funcionários públicos, do qual o personagem parece se libertar, ao se laçado pelo fio do amor da outra Ariadne da história. Sob a ação do amor decifra-se o enigma de uma subjetividade petrificada na autocomtemplação (repare-se que a apresentação de Joaquim Sassa se faz pelo espelho). O corpo branco e nu de Maria Guavaira, depois de três anos sob roupas escuras, torna-a outra mulher, de vestes coloridas estalando ao vento como bandeiras de liberdade. Por outras palavras, ela se livra de sua antiga condição de isolamento. Em síntese, os dois casais promovem um novo recomeço em suas vidas individuais e alegorizam um novo recomeço paraa península. Diz Anaiço para Guavaira, relacionando os pequenos ao grande enigma: ―Embora pareça absurdo, acabámos por acreditar que existe uma relação qualquer entre o que me aconteceu e a separação de Espanha e Portugal da Europa, [...]‖ (JP, 189) Se, por um lado, os casais representam a libertação de um passado e a promessa de um futuro, adivinhado em amores novos (―são a mais forte coisa (...)‖, como se sabe), por outro, Pedro orce incorpora pelo nome (duplamente, ―pedra‖ península e ―Orce‖ homem antigo) e pelo destino (sua morte, ao final) o próprio passado que é, metaforicamente, enterrado e igualmente vivificado na explosão genesíaca da península. ―Nenhuma viagem é ela só, cada viagem contém uma pluralidade de viagens, (...)‖ (JP, 253), diz o narrador, autorizando-nos a pluralizar nossa leitura. A viagem particular e terrestre dos personagens implica uma travessia por cidades e regiões ibéricas, feita segundo os ponteiros do relógio a partir de Córdova, que é um lugar onde os três homens se reúnem. Embora Anaiço e Sassa tenham feito parte do percurso anterior juntos, da cidade do primeiro, passando por Aracena (p. 71), Sevilha (p. 75) e Granada (p. 77), somente na companhia do homem cujo nome é topônimo inicia-se verdadeiramente a viagem, de trajeto circular, por sobre a península, até alcançar novamente a região de orce onde Pedro será enterrado. O roteiro da ―navegação‖ por terra reproduz a milenar imagem da serpente que morde a própria cauda, ícone da articulação entre vida e saber 12 , símbolo da sabedoria na narrativa bíblica. A viagem em círculo renova, portanto, a imagem arquetípica da perfeição, alegorizando a busca da sabedoria ou a procura da verdade individual ou coletiva, que se encontra, a primeira, dentro de cada um, e a segunda, no solo pátrio. Daí ter-se mencionado a viagem amorosa que cada um dos pares empreende e que nada mais é do que o encontro de cada um consigo mesmo. O percurso, quer o dos personagens, quer o da península, só se conclui, pelo menos na narrativa, quando dentro das mulheres, pelo encontro de dois seres, um novo ser germina. Este reencontro se dá no momento em que um velho ser perece. Vida e morte re-entronizam a imagem cíclica da serpente e da qual encontramos vestígio no texto: ―o universo talvez seja um anel‖ (JP, 269), diz Orce humildemente, contrariando, portanto, o conceito de causa primeira que, para Maria Guavaira pode ser Deus, para Sassa é vontade, para Joana é inteligência e para Anaiço é história (cf. JP, 270). As águas, tradicionalmente associadas ao conceito de mudança e, portanto, à própria vida, tornam-se objeto de reflexão do homem velho Orce que articula os dois termos da imagem: ―As águas, estas águas são outras, assim a vida se transforma, mudou e não demos por isso, estávamos quietos e julgávamos que não tínhamos mudado, ilusão, puro engano, íamos, com a vida‖. (JP, 130) 12 As relações entre a serpente e o pensar são analisadas por Augusto de Campos a propósito do poema ―Ebauche d‘Un Serpent‖ de Paul Valéry em Paul Valéry: a serpente e o pensar, 1984. O amoroso trajeto sobre ―as duas pátrias, Portugal embrechado, suspenso, Espanha desmandibulada a sul‖ (JP, 95) se prenuncia sobre o mapa desdobrado diante dos olhos dos três homens prestes a partir: ―As mãos alisam e afagam o papel, passam sobre o Alentejo e continuam, para o norte, como se acariciassem um rosto, da face esquerda para a face direita, é o sentido dos ponteiros do relógio, o sentido do tempo [...]‖ (JP, 95) (grifos nossos) Orce lembra, retomando Estrabão, ―que a península tem o feitio duma pele de boi‖ (JP, 95), o que faz supor aos demais a imagem da ―besta ciclópica que ia ser sacrificada e esfolada para acrescentar ao continente Europa um desepojo que haveria de sangrar por todos os tempos dos tempos‖ (JP, 95. De virtual despojo de animal imolado, a península ergue-se da ara a que foi atirada, cede à ―tentação vagabunda‖ que o ―calo ósseo do Pirinéus reprimia‖ (JP, 95) e assume-se como jangada. Curiosamente na contracapa da primeira edição do romance, estão dispostos, pelo autor, duas inscrições que assinalam um antes e um depois, um passado morto e um futuro (?) móvel. A Ibéria tem a forma duma pele de boi. Estrabão A Península Ibérica tem a forma duma jangada. Anónimo português A pele-despojo infla-se ganhando a espessura de uma baleia, animal extremamente sensível que busca sua salvação no afastamento da costa traiçoeira. As imagens fortes do grito e do arrastamento da península-mamífero conduzem-nos à idéia de uma coletividade dilacerada, sofredora e ansiosa de liberdade: ―[...] então que vá lá alguém [...] filmar o arrastamento da grande massa de pedra, grava, quem, sabe, essa espécie de baleia, esse rangido, esse rasgar interminável‖. (JP, 137) Numa remissão a Jonas, a baleia figura ainda a matriz cósmica, lugar de passagem da escuridão para a luz através da morte e renascimento de um ser superior. Morfologicamente, lembra a imagem do arco duplo e da arca de Noé. Atônito, o narrador embaralha sua definição para acidentes geográficos: ―a península, ou ilha, ou lá o que é, se desloca a uma velocidade de [...]‖ (JP, 90), ―[...] mas a península, ou lá o que seja, deu a impressão de avançar ainda com mais vigor sobre o mar grosso‖ (JP, 94) (grifos nossos), acabando por valer-se da imagem do monstro do caos identificado, na Bíblia, como grande animal aquático: ―[...] o leviatã de agora, que vai empurrando o oceano‖. (JP, 130) (grifo nosso) No mais das vezes, pelo seu caráter ambulante, a península/ilha é comparada a um barco, ―afinal é como se agora viajássemos num imenso barco, tão grande que até seria possível viver nele o resto da vida sem lhe ver proa ou popa [...]‖ (JP, 139). a imagística da navegação comparece nas expressões proa, cais, porto, almirante. ―Vejam-se os portugueses, ao longo das suas douradas praias, proa da Europa que foram e deixaram de ser, porque do cais europeu nos desprendemos, mas novamente fendendo as ondas do Atlântico, que almirante nos guia, que porto nos espera, [...]‖ (JP, 94) (grifos nosso) Na citação acima, não só a condição portuguesa do passado mas também o papel estratégico do país na configuração continental da Europa, nos reenviam para mítica de Portugal como rosto que ―fita, com olhar sphyngico e fatal, o Ocidente futuro do passado‖. No poema pessoano como na prosa saramaguiana o enigma comparece; em ambos um almirante invisível e um ―porto sempre por achar‖ 13 . O povo português revive, diante da tela eletrônica, a imemorial espera deste porto ignoto, entre esperançoso e desconsolado: ―Mostram também imagens de Portugal, [...] e estava muita gente a olhar o horizonte, com aquele trágico ademane de quem se preparou desde século para o ignoto e teme que afinal não venha, ou seja igual ao comum e banal que todas as horas trazem‖. (JP, 93) José Anaiço, ―professor de ofício‖, de ―ciência histórica‖ (JP, 276), inverte a relação entre sujeito desejante e objeto desejado para exprimir uma nova situação que a península/ilha propõe aos portugueses. Vale-se da passagem hilária da história portuguesa envolvendo a ação do rei D. João II, a quem os inimigos chamaram O Tirano, os amigos O Príncipe Perfeito e o narrador, o humorista perfeito. Como se sabe, coube ao enérgico rei, através de tratados (Alcáçova, Tordesilhas) marca terras imaginárias para além dos mares até então conhecidos. ―Um dia que já lá vai, D. João o Segundo, nosso rei, perfeito de cognome e a meu ver humorista perfeito deu a certo fidalgo uma ilha imaginária, diga- me você se sabe doutro país onde pudesse ter acontecido uma história como esta, E o fidalgo, que faz o fidalgo, foi-se ao mar à procura dela, gostaria bem que me dissessem comose pode encontrar uma ilha imaginária. A tanto não chega minha ciência, mas esta outra ilha, a ibérica, que era península e deixou de o ser, vejo-a eu como se, com humor igual, tivesse decidido meter-se ao mar à procura dos homens imaginários”. (grifos nossos) (JP, 65) Os homens imaginários do futuro podem ser estes viajantes comandados por uma mulher que os leva ao risco mágico sem indicações preestabelecidas, como os antigos e atuais argonautas: ―[...] até agora parecia-lhes terem viajado no meio de um nevoeiro, ou adequando esta situação particular às circunstâncias gerais, tinham sido como antigos e inocentes navegantes, no mar estamos, o mar nos leva, para onde nos levará o mar‖. (JP, 144) A expressão jangada de pedra, além do título, aparece no corpo da narrativa por várias vezes, no início – ―[...] agora não viajamos de comboio, vamos mais devagar, em ima duma jangada de pedra, que navega no mar, sem prisões [...]‖ (JP, 85), no meio do relato – ―[as ondas] se encavalgam umas sobre as outras, empurradas por esta jangada de pedra, [...]‖ (JP, 184) e no final, enunciada por José Anaiço: ―Numa jangada de pedra já nós vamos‖. (JP, 313) 13 PESSOA, 1972, p. 79. Vale notar que, na escolha do sema designativo da península enquanto artefato flutuante, o autor não recorre a expressões grandiosas que provoquem reminiscências fantasmáticas, tais como ―nau‖ e ―caravela‖. O vocábulo ―jangada‖ não ressoa miticamente; pelo contrário, denota incontestável fragilidade em seu sentido primeiro, configurado no Aurélio: ―armação feita com as madeiras de um navio para salvamento de náufragos‖ 14 . Se é este o sentido privilegiado pelo autor, não haveria aí a intenção de denunciar a precariedade de um povo, afogado na sua imodesta auto-imagem e que, de modo desconsolado, se vale dos fragmentos-madeiras de um sonho-navio para recompor seu ser nacional? Em outras palavras, a jangada, em substituição às gloriosas naus, não seria a concretização modesta de uma possível ―última nau‖? A jangada parece dotada de uma intencionalidade como se dirigida por um almirante invisível, responsável pelo ―movimento sutil que levava a península pelo mar fora com enigmática constância e segura estabilidade‖ (JP, 135). Seu rumo não é fruto do acaso ou da inconsciência e sim de uma autodeterminação não compreendida pelos povos europeus que ―[...]decidiram tornar-nos em bodes expiatórios das suas dificuldades internas, intimando-nos absurdamente a deter a deriva da península, ainda que, com mais propriedade e respeito pelo factos, lhe devessem ter chamado navegação”. (JP, 169) (grifo nosso) O percurso da jangada é pois o de uma longa navegação alegórica — ―Passaram alguns meses desde que a península se separou da Europa [...]‖ (JP, 315) — através do Atlântico. Sua orientação segue o rumo oeste-sul embora, frente ao obstáculo das ilhas dos Açores, tenha sido obrigada a manobrar para norte, retomando em seguida a direção primitiva. Por esta orientação, a jangada larga o cais europeu e busca nos mares do Ocidente um ponto ideal para alojar-se fazendo incidir sobre si mesma o domínio que outrorea projetara sobre outros povos: Os jornais [...] publicaram [...] a histórica fotografia que mostrava a península, [...] ali quieta no meio do oceano [...] posta sobre o que fora a linha que, naqueles tempos gloriosos, dividira o mundo em duas partes, pataca a mim, pataca a ti, a mim pataca‖. (JP, 297-298) Escolhido o ponto, a península subitamente abandona a as aparente quietude e, para espanto geral, inicia um movimento que ―não era para ocidente nem para oriente, para o sul ou para o norte‖ (JP, 299): ―A Península girava sobre si mesma, em sentido diabólico, isto é, contrário ao dos ponteiros do relógio [...]‖ (JP, 299-300) O movimento de rotação dura um mês. Graças a ele, ―visto da península, o universo transformava-se pouco a pouco [...] como se estivesse a ser reorganizado duma ponta à outra, talvez por se achar que o primeiro não dera resultado‖ (JP, 301). Na imagem hiperbólica da mudança e no comentário do narrador, há motivos para supor uma revolução metafórica realizada pelos povos ibéricos no sentido de sua autodeterminação. Na idéia de revolução estão contidas as muitas ―voltas‖ produzidas pela península, inclusive as que provocam a gravidez simultânea de Maria Guavaira e Joana Carda. Quando o movimento pára e ―a península cai, sim não há outra maneira de o dizer, mas para o sul‖ (JP, 316), ―todas ou quase todas as mulheres férteis se declararam grávidas‖ (JP, 319). A explosão genesíaca da península - que daqui a nove 14 No AURÉLIO, Novo dicionário da língua portuguesa,. p. 982, assim estão referidos os demais sentidos do termo: ―2. Conjunto de pequenas embarcações ligadas umas às outras. 3. Construção ligeira, em forma de grade, para transportes sobre água; caranguejola. 4. Bras., N.E. Embarcação típica, usada para pescaria (...) meses se tornará uma grande maternidade - remete-nos à idéia de amplo rejuvenescimento dos povos ibéricos em contraposição à decadência, antigüidade e ―esterilidade do resto do mundo ocidental‖ (JP, 321). A partir daí, Pedro Orce, representante metonímico e metafórico do ―velho‖, passa a andar ―inquieto, desassossegado‖ (JP, 324) até que se deita e diz, ―distintamente, palavra a palavra, Já não sinto, a terra, já não a sinto, os olhos dele escureceram, uma nuvem cinzenta, cor de chumbo, passava no céu, [...]‖ (JP, 327). Como pai suposto das criaturas que germinam nos úteros das duas mulheres, Pedro Orce retira-se da vida em favor de uma nova geração de homens, não mais europeus, e sim (como dizer?) ibéricos do hemisfério sul. Pois a península parou num ponto qualquer entre a África e a América Latina, ―parece gêmea dos dois continentes que a ladeiam‖ (JP, 323), duas formas sílicas a que se acrescenta uma terceira: ―Já não é a pele esfolada do touro, mas um calhau gigantesco, com a forma de um daqueles artefactos de sílex de que se serviam os homens pré- históricos, [...]‖ (JP, 323) A imensa pedra de forma pré-histórica assim como os diminutos úteros femininos apontam para a possibilidade de um ―mundo novamente formado, limpo e de beleza intacta‖ (JP, 315). Já dissera ―o tal português poeta que a península é uma criança que viajando se formou e agora, se revolve no mar para nascer, como se estivesse no interior de um útero aquático [...]‖ (JP, 319). Nascida em outra latitude, cabe a pergunta: porque entre a África e a América Latina? Vale lembrar aqui o aforismo do sábio Pedro Orce: ―diz-me que fim tivesse e eu te direi que sentido pudesse ter‖ (JP, 155). 3.4- IDENTIDADE NACIONAL Como ―épica de uma sociedade que se funda na crítica, o romance é um juízo implícito sobre essa mesma sociedade‖ 15 . Por esta assertiva de Octávio Paz reingressamos na questão extraliterária que A Jangada de Pedra nos propõe, seja pela forma com que é ―internalizada‖ no texto, seja pela manifestação discursiva do narrador e do autor. Se o crítico mexicano fala de ―juízo implícito‖, há que se determinar a autoria deste juízo que, como vimos, não se confunde nem com a voz do narrador, nem com a do autor. No intervalo entre uma e outra, no interdito o no não-dito explícito de ambas, talvez reencontremos essa fala escorregadia e deslizadora que percorre a matéria significante, às vezes de modo intencional, mas também de forma inconsciente. De um lado temos as declarações de José Saramago em entrevistas a jornais, por ocasião do lançamento do romance. De outro, temos os enunciados do narrador da JP. No que tange às relações entre Pátria e Literatura, cumpre observar a dimensão política da obra naquilo que ela condena, reforma ou propõe, no plano dos enunciados do narrador e no planoda construção alegórica arquitetada pelo autor. Pela leitura do dito não teríamos, certamente, dificuldades em desdobrar os juízos disseminados no texto. Já o fizemos a propósito de outros temas. Embora sejamos obrigados a considerá-los, convém 15 PAZ, 1972, p. 71. ultrapassá-los ainda que ao preço de sermos arremessados num mar de contradições. Que fazer diante disso se um texto se mostra ―polifônico‖, ―plural‖ e ―intertextual‖ 16 ? A questão agora diz respeito ao problema das nacionalidades ou, em outras palavras, à identidade nacional, enquanto condição recusada, adotada ou transformada pelo narrador e personagens, Vejamos os tipos, as oposições e as articulações deste tema no corpo do texto. No campo ambíguo das dicotomias pátria/nação, nação/país, país/terra, etc., Pedro Orce corrige a afirmação displicente de Anaiço e reforça a dimensão afetiva da naturalidade em contraposição à nacionalidade ou cidadania: ―[...] a continuar assim vamos entrar em Espanha, voltamos a tua terra, A minha terra é a Andaluzia, terra e país são tudo o mesmo, Não são, podemos não conhecer o nosso país, mas conhecemos a nossa terra, [...] (JP, 178) O narrador, mais concordante com o pensamento arejado de Anaiço, deplora a excessiva dependência das pessoas à sua terra natal; elas viajam muito mas só no interior das fronteiras, pois ―parece que têm medo de se perder da sua casa maior, que é o país, mesmo tendo abandonado a casa pequena, a do seu próprio e mesquinho viver‖(JP, 181). Num outro momento, a célebre relação pátria-família - ―Um país não é mais do que uma grande família‖ (JP, 224) - é ironicamente discutida pelo narrador na suposição do Estado ser obrigados a cuidar da alimentação das pessoas deslocadas: ―Onde comem cinco milhões, comam dez, [...]‖. (JP, 224) Ao longo da narrativa, através do jogo de oposições tecidas pelo narrador, observa-se uma intenção - que é a do autor implícito - de fazer oscilar as nossas convicções a respeito das nacionalidades. Todas as querelas, disputas, declarações solenes de apoio ou de recusa por parte dos líderes nacionais estão eivadas de um ridículo que se lê nas entrelinhas do texto. A ironia do autor implícito contamina os registros avaliatórios do narrador ao opor franceses a espanhóis: uma das hipóteses levantada para explicar o desaparecimento do rio Irati, era ―que fosse obra dos franceses, perfídia gaulesa, apesar do acordo bilateral sobre águas fluviais [...]‖ (JP, 21) (grifo nosso). Da autoridade madrilenha parte a ordem técnica e política: ―subam o curso do rio, descubram o que aconteceu e não digam nada aos franceses‖ (JP, 22). Anglofobia e anglofilia por parte dos espanhóis são colocadas em xeque no episódio do ―desgarre geológico e estratégico‖ (JP, 88) do rochedo de Gibraltar, possessão inglesa e mágoa espanhola ―desde mil setecentos e quatro, deitem-lhe as contas, se Gibraltar não for para nós, que nos fazemos ao mar, não seja também para os ingleses‖ (JP, 88). O absurdo de uma disputa estratégica entre duas nacionalidades se materializa na absurda fenda entre La Linea e Gibraltar, considerando-se que o Rochedo, afinal, é parte da península, e como ela, mas não navegantes, ―ilha ao desamparo no meio das águas, transformado, aí dele, um pico, pão-de-açúcar ou arrecife, com os seus mil canhões sem préstimo nem alvo‖ (JP, 92). Repare-se no efeito de ironia obtido pela justaposição de vozes e tons. Do jornalista espanhol comovido, ―[...] se tal vier a acontecer [El Peñon ―isolado no meio do mar‖] não lancemos as culpas aos britânicos (...) tem-na Espanha, que não soube recuperar, a tempo, esse espaço sagrado da pátria, agora é tarde, ele mesmo nos abandona, [...]‖ (JP, 48) 16 Ousamos utilizar as expressões ―polifônico‖, ―plural‖ e ―intertextual‖ num sentido adjetivo sem a intenção de reduzir a fecundidade dos conceitos nas obras de seus autores, respectivamente, Mikhail Bakhtin, Roland Barthes e Julia Kristeva. do primeiro ministro inglês que ―[...] reafirma aquilo a que chama os seus direitos sobre Gilbratar, agora confiscados, [...]‖ (JP, 48), do personagem José Anaiço – ―Ainda não foi desta vez que se acabou o império britânico, [...]‖ (JP, 48) e do governo ao parlamento, rematado o assunto, ciclicamente pelo repórter: ―Gibraltar, nas novas condições geoestratégicas, continuará a ser uma das jóias da coroa de Sua Majestade Britânica, fórmula que como a Magna Carta, tem a virtude magna de satisfazer toda a gente, este remate irônico foi da responsabilidade do locutor, que se despediu‖. (JP, 49) A antiga rivalidade entre portugueses e espanhóis comparece sob a forma do desdém dos últimos, na fala de um locutor de rádio: ―[...] não havendo modificação no rumo, só o país irmão [Portugal], sempre infeliz, sofrerá o impacto direto, [dos Açores]‖ (JP, 203) (grifo nosso) e do ressentimento dos primeiros no discurso do narrador: ―Portugal e Espanha terão de resolver os seus problemas locais, menos os espanhóis do que nós, que a eles sempre a história e o destino trataram com mais do que evidente parcialidade (JP, 214) (grifo nosso); Deixemos lá para os espanhóis, que sempre desdenharam das nossas ajudas, [...]‖ (JP, 315) Em outro momento, o ciúme de um conselheiro da embaixada espanhola em Portugal é ironicamente acentuado pelo narrador ao referir-se a sua ―secura tão ostensiva que só podia provir do brio patriótico melindrado‖ (JP, 116). No âmbito do Estado espanhol, o narrador não deixa de registrar as tentativas de domínio sobre nacionalidades minoritárias (catalães, bascos e galegos), inclusive portugueses: ―O coro de protestos não se limitou a Portugal, também as regiões autónomas espanholas se insurgiram contra a proposta [Madrid como capital da Península], considerada como uma nova manifestação do centralismo castelhano‖. (JP, 298) assim como denuncia a sua condição de esquecidos da história: Sendo a voz galega, portanto discreta e medida, abafaram-na o rapto gaulês e o rompante castelhano, [...] aos povos pequenos ninguém dá ouvidos, não é mania da perseguição, mas histórica evidência. (JP, 25) A grande articulação política do texto é, sem dúvida, a que se dá ibérico de um lado e europeus de outro. A dicotomia perpassa o discurso de personagens e narrador de forma natural e inocente como um fato desde sempre sabido: a Europa não é a península Ibérica e vice-versa apesar de estarem ligadas por um istmo. Diz o narrador, distinguindo-as: ―Pela primeira vez um arrepio de medo perpassou na península e na próxima Europa”. (JP, 30) (grifos nossos). Turistas estrangeiros na península barganham o retorno à Europa: ―Quanto quer para me levar à Europa, e o contramestre (...) calculando-lhe as posses. Sabe, a Europa é longe como um raio, fica lá para o fim do mundo, [...]‖ (JP, 42) E até mesmo técnicos governamentais dos dois países ibéricos não ignoram as históricas diferenças entre eles e os europeus: ―Contudo, não poderemos ignorar que os problemas da nossa comunicação com a Europa, já historicamente tão complexos, irão tornar-se explosivos, [...]‖ (JP, 44) A certa altura José Anaiço se exime de toda responsabilidade frente à possibilidade de uma Veneza inundada e proclama ―Nós já somos europeus‖ (JP, 75), sendo parcialmente contestado por uma voz ambígua que pode ser a do narrador, do seu duplo ou do autor: ―[...] ora, isto não é inteiramente verdade, Por enquanto ainda estão em águas territoriais, disse a voz desconhecida. (JP, 75) Numa fala de Pedro Orce fica clara a separação dos dois conjuntos de nacionalidades distintas, os ibéricos e os europeus: ―E não foi da França que a península se separou, foi da Europa, parece a mesma coisa, mas faz sua diferença‖ (JP, 307). A diferença reside sobretudo no orgulhoe no etnocentrismo europeu que faz da Suíça o seu padrão - ―quinta-essência do espírito europeu‖ (JP, 162) - reduzindo a ―parcelas espúrias‖ aqueles povos que a esse ideal (preconceituoso) não se ajustam: ―Ainda que não seja lisonjeiro confessá-lo, para certos europeus, verem-se livres dos incompreensíveis povos ocidentais, agora em navegação desmastreada pelo mar oceano, donde nunca deveriam ter vindo, foi, por si só, uma benfeitoria, promessa de dias ainda mais confortáveis [a Ibéria é um peso morto], cada qual com seu igual, começámos finalmente a saber o que a Europa é, se não restam nela, ainda, parcelas espúrias que, mais tarde ou mais cedo, por qualquer modo se desligarão também. (JP, 162) (grifos nossos) Desta forte denúncia da sempre presente possibilidade nazifascista de extermínio da diferença, o narrador subtrai a tentação maniqueísta: ―Porém, se há desses europeus, também há europeus destes‖ (JP, 162). A identidade européia, forjada, ao longo dos séculos, pelas classes dominantes, vê-se subitamente contestada por um europeu, ―uma dessas inconformes e desassossegadas pessoas que pela primeira vez ousou escrever as palavras escandalosas, sinal duma perversão evidente. ‗Nous aussi, nous sommes ibériques‘, [...]‖ (JP, 162). O narrador assume o discurso hegemônico para que o entendemos pelo viés da ironia num registro emotivo e modalizante pelo uso de adjetivos e advérbios: Este foi o dia assinalado em que a já distante Europa [...] se viu sacudida, dos alicerces ao telhado, por uma convulsão de natureza psicológica e social que dramaticamente pôs em mortal perigo a sua identidade, negada, nesse decisivo momento em seus fundamentos particulares e intrínsecos, as nacionalidades, tão laboriosamente formadas ao longo de séculos e séculos‖. (JP, 160) O conceito de identidade sofre uma ruptura pela prática do grafite em todas as línguas - ―nós também somos ibéricos‖ - tal ―como um rastilho, [ardendo] por toda a parte em letras vermelhas, pretas, azuis, verdes, amarelas, um fio que parecia inextinguível (...)‖ (JP, 163). A metáfora do rastilho se materializa lingüisticamente pela enunciação do slogan, por toda uma página, do francês ao russo Mi toje iberitsi, atingindo até os muros vaticanos: Nos, quoque iberi sumus (JP, 163). Em contraposição aos conservadores que têm lugar garantido na televisão para aconselhar ―Faça como eu, escolha a Europa‖ (JP, 164), há a ―raça dos inquietos‖ (JP, 162) que, como o trio do MC, recusam valores impostos às suas consciências. Por estas articulações do narrador, depreendem-se uma outra voz que se identifica com uma coletividade até então anônima e silenciosa e que solta a sua discordância em todas as expressões vernáculas européias. Anulam-se as identidades nacionais autocentradas para proclamar-se uma solidariedade extrafronteiras. No seio destas controvérsias político-culturais emerge, ambigüamente, a figura do navegador solitário que há vinte anos andava nos mares do mundo. Confundido com ―salteadores e arrombadores‖ ou louco saído ―do manicômio no dia da debandada‖ (JP, 227), o navegador é abatido a tiros quando desembarca numa Lisboa evacuada, no momento em que, premido pela sede (de água e de amor), avança para ―duas fontes com mulheres nuas, de ferro‖ (JP, 233). Intriga-nos o motivo pelo qual o autor dedica seis páginas à narração deste curioso e trágico episódio. Seria ele a metáfora ao avesso da coletividade, da vida em rebanho, do culto das nacionalidades? De qualquer forma, a imagem do navegador faz lembrar mítico em torno da coragem e da inocência do herói individual, injustamente sacrificado. Em torno de sua imagem podemos pensar numa condenação ao individualismo, mas também numa condenação à violência do mundo e à intolerância diante das singularidades que, na opinião de Lourenço comentando Pessoa, faz parte do instinto dos rebanhos, das coletividades passivas, do gosto pela Ordem. A bem da verdade, enquanto todos viajam em grupo, por terra e por mar, o navegador solitário ―decidiu dividir a vida em metade do céu e metade de mar‖ (JP, 229), passando ao largo das questões da identidade (não sabemos seu nome) e da nacionalidade (desconhecemos suas origens). Sua figura solitária nos envia à própria solidão do narrador (autor, segundo Saramago) que navega no discurso por sobre a fábula. Abandonando, por um tempo, inferências relativas às intenções implícitas do autor, convém observar as suas declarações explícitas sobre a própria construção alegórica. Diz Saramago: Trata-se de uma metáfora política e cultural uma vez que alimento a convicção de que se é verdade que a península Ibérica, portanto, Portugal e Espanha se diferem do continente europeu, por razões geológicas, físicas e culturais, como a língua, as instituições, o Direito, tudo - estas são as nossas primeiras raízes -, a verdade é que nós, os ibéricos, temos outras raízes, que eu chamaria segundas raízes, em outro lugar do mundo. Este lugar começa no México e termina no sul da Argentina. 17 No enunciado acima verifica-se a postulação de uma dupla identidade para os povos ibéricos: ―primeiras raízes‖, no passado e ―segundas raízes‖, no futuro (a serem buscadas). A questão da identidade, seja a européia, seja a ibérica, preocupa o autor. Para ele a Europa está ―muito fatigada, além de não saber exatamente o que é, nem quem é e nem para que serve‖ 18 . Como ―a península Ibérica não pertence à Europa por uma questão de identidade‖ 19 , o autor acha necessária uma aproximação ―daqueles povos que são resultado de nossas aventuras pelo mundo‖ 20 , da América Latina, ―inclusive também com aqueles que habitam a África‖ 21 . 17 Entrevista a Angela Pimenta: Na rota da latinidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 02/12/86, Ilustrada, A-29. 18 Ibid. 19 Ibid. 20 Ibid. 21 Ibid. Em outra oportunidade o autor declara a sua intenção, n‘ A Jangada de Pedra, ―de buscar caminhos para renovar a produção cultural ibérica‖ 22 através da aproximação com povos de mesma língua para com eles formar uma copmunidade. Preservação e renovação cultural estão na origem do dilema ibérico na reflexão do escritor português. A alma atlântica que antevimos em Fernando Pessoa (Manifesto sobre o Atlantismo e Mensagem) revive na metáfora saramaguiana sob a forma de sonho: ―Ponho a Península a vagar para o seu lugar próprio que seria no Atlântico, entre a América do Sul e a África Central. Imagino, portanto, que eu sonharia com uma bacia cultural atlântica‖. 23 . Esta ―bacia‖ nos lembra a Atlântida, continente desaparecido, símbolo de um paraíso perdido ou cidade ideal, como refere Platão em Crítias, a partir dos egípcios. Também representa o domínio de Poseidon que aí alojou seus filhos com uma mortal. Enfim, o locus marinus revive o tema do Paraíso Perdido ou da Idade do Ouro que se encontra em todas as civilizações, no começo ou no fim da raça.. Por várias vezes o autor tem feito restrições à entrada de Portugal no Mercado Comum Europeu numa tentativa de preservação da soberania e cultura nacionais. Em abril de 1989, assim se pronunciou: ―[...] ao aderir à Comunidade Econômica Européia não creio que Portugal tenha salvaguardado os interesses do país: [...] a soberania nacional passou a ser ficção, pois a economia é decidida, em Bruxelas [sede da CEE]‖. 24 No romance, por trás do narrador, o autor tem liberdade de tratar o assunto de forma ferina e irônica, evitando, contudo, o pecado da generalização: ―[...] alguns países membros chegaram a manifestar um certo desprendimento, palavra sobre todas exacta, indo ao ponto de insinuar que se a Península ibérica se queria ir embora, então que fosse, o erro foi tê-la deixado entrar‖. (JP, 44) Como temos encontrado, repetidamente, uma postura anti-autoritáriado narrador frente a discursos oficiais, resulta ambígua a reprodução integral da fala do primeiro ministro do governo português. Por um lado ele protesta contra ―as pressões e as ingerências de toda a ordem e de qualquer providência, proclamando à face do mundo que apenas nos deixaremos guiar pelo interesse nacional e, de modo mais amplo, dos povos e países da península [...]‖ (JP, 170) Mas, por outro lado, curva-se, um tanto servilmente, às manobras e astuciosas do Estados Unidos: ―Uma palavra de reconhecimento é devida ao espírito humanitário e ao realismo político dos Estados Unidos da América do Norte, [...]‖ (JP, 170) Uma vez que a nação americana é alvo de ácidas referências em outros momentos do texto, fica-nos a dúvida: onde termina a verdade e começa a ironia no texto saramaguiano? 22 Entrevista a Sonia Coutinho e João Carlos Pedroso: Viagem fantástica de Saramago. O Globo, Rio de Janeiro, 3/05/88, Segundo Caderno, p. 1. 23 Apud SILVEIRA, Os usos em ura (um perfil para José Saramago) Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7/12/86, Caderno B/Especial, p. 10. 24 SERVA, Livro de Saramago sai no Brasil e em Portugal. Folha de São Paulo. São Paulo, 22/04/89, Letras, G-3. A questão da identidade, seja a individual, seja a nacional, igualmente suscita dúvidas e posturas ambíguas. Desde Platão temos sido levados a acreditar na essencialidade do Uno e do Idêntico. A identidade enquanto conceito é fruto da atividade de abstração da diversidade e das diferenças entre seres e objetos. No tocante à identidade individual, somos arrastados pelo projeto socrático do autoconhecimento como se fosse possível, de forma cabal e definitiva, a descoberta de um eu uno, idêntico a si mesmo e preexistente ao esforço do processo de conhecer. Vale isso para os indivíduos como para as nações. Quem é Portugal? O que foi, na sua aurora, na sua glória, na sua decadência, no seu sonho? O que tem sido e o que quer continuar a ser? Ou, o que pode ser? Relativizada a noção de identidade, pode-se falar em identidade formal e identidade substancial. A primeira implica a aceitação das diferenças no seio de um conjunto de indivíduos que formalizaram um pacto de solidariedade política, cultural e social por força de alguns objetivos comuns. A segunda, identidade substancial, supõe o solapamento das diferenças constituintes do conjunto, levando aos extremos da intolerância interna e do xenofobismo, próprios dos projetos totalitários de Governo. A propalada identidade de um povo pode, portanto, servir a fins políticos conjunturais mas jamais o determina como essência imutável. Sua ficcional substância é estratégia política de superfície que vem sendo incorporada nas lutas de libertação nacional dos povos do Terceiro Mundo. O imperialismo colonial é quase sempre visto como anulador da identidade das nações dominadas. Em troca, a libertação é a afirmação de uma identidade recuperada. Resta saber se são as lutas que recuperam uma identidade, ou se ela é forjada no decorrer do processo. No caso português assistiu-se à transformação de um império colonial em nação dominada. Enquanto foi império, a questão da identidade não era vivida como crucial. A perda do domínio imperial correspondeu pari passu à preocupação e luta pela recuperação da identidade nacional, sobretudo por parte dos segmentos intelectuais da sociedade. Nos textos de Eduardo Lourenço constatamos uma tríplice dimensão para a identidade portuguesa: a história, a cultural (e ética) e a vocacionada ou predestinada. A primeira e a segunda são indiscutíveis. O problema é que a estas tem-se associado obrigatoriamente a terceira. O ser nacional português constituiu-se enquanto diferença, desde a origem do Estado, por oposição aos mouros (Guerra de Reconquista) e aos asiáticos, americanos e africanos (guerras de conquista) no bojo de uma política imperial e imperialista. A emigração contemporânea de mão-de-obra portuguesa para a Europa e a submissão às diretrizes do mercado Comum Europeu são sentidas como aviltamento ao ou traição ao ser nacional. Indaga Lourenço: ―Para quando a nova viagem para esse outro desconhecido que somos nós mesmo e Portugal conosco?‖ 25 Esta ―nova viagem‖ significa a construção de uma novo padrão de identidade nacional capaz de exorcizar o seu caráter substancial, até então responsável pela visão do passado como fardo a suportar ou como pendão glorioso a enaltecer, grotesca e anacronicamente. Na ótica da identidade substancial toda mudança de curso soa herética, ao contrário da concepção formal que acolhe todos os mobilismos. Ora, mudanças do ―navio-nação‖ é o que José Saramago perpetra corajosamente ao fazer estalar os Pirineus, arremessando-o para um outro ponto cardial que não é somente geográfico — sudoeste — mas político e cultural. A nova identidade não se assenta exclusivamente nos mitos do passado, ou nas profecias imperialistas, mas na realidade presente. A metáfora Jangada de Pedra expressa, pelos semas que a constituem, uma dialética entre ser e vir-a-ser: pedra se associa à ―fixidez‖ , 25 LOURENÇO, 1978, p. 68. ―unicidade‖, ―identidade‖, preservação do passado cultural; e jangada remete à ―mobilidade‖, ―pluralidade‖, ―multiplicidade‖, renovação cultural. A tão decantada identidade nacional não é mais fardo e a mudança deixa de ser traição. Na dialética entre ―ser permanente‖ e ―estar mudável‖, que A Jangada de Pedra sugere, pode estar uma resposta contemporânea aos traumatismos sofridos pelo povo português na construção dos seu destino. Por outro lado, a metáfora parece apontar para uma libertação da ideologia nacionalista, seja ela democrática ou autocrática, pois a jangada unifica várias nacionalidades. Fazendo da península uma ilha, rompem-se fronteiras européias, vale dizer, rompe-se o critério identidade-diferença, uma vez que a fronteira é a marca, simultânea, da especificidade de cada um dos elementos fronteiriços e da diferença existente entre eles. Rompe-se igualmente com a possibilidade de contigüidade territorial com outra nação semelhante ou com a qual a ilha se identifica: a jangada-ilha não aporta em nenhum porto. Por último, afirma-se o devir histórico uma vez que, ao ter como fronteiras o mar ( elemento fluído, mutável, permeável), a ilha abre-se a todas as permutas, contrariando, aqui, a simbólica da insularidade enquanto isolamento. Não se trata de uma ilha pré-existente, pré-fixada geograficamente, mas sim de uma ilha ambulante que construiu sua identidade no próprio percurso empreendido. Novamente trazemos Pedro Orce: ―[... ] diz-me que fim tiveste e eu te direi que sentido pudeste ter‖. (JP, 155) No diálogo intertextual que entretém com o passado, José Saramago desfaz a aura que existe em torno do destino português alterando o sentido que lhe foi dado por Camões e Pessoa. De certo modo o escritor contemporâneo homenageia o seu antepassado renascentista ao pretender, como aquele, narrar a história de uma viagem, substituindo-lhe, no entanto, a paixão e a glória imperial pelo amor e pela solidariedade entre povos. Na Proposição de ambos, o herói tem uma dimensão coletiva, com a diferença de que o primeiro representa o povo português, e o segundo, um conjunto de nacionalidades ibéricas, portanto, uma coletividade transnacional. Na sua navegação pelo atlântico, diversamente da esquadra lusitana, a ―nau‖ capitaneada por José Saramago não está à procura de novas terras por onde semear o antigo ―evangelho português‖ lopeano e joanino ou para onde dilatar a ―Fé e Império‖ camoniano e sebastianista. Em substituição ao etnocentrismo português, concebe-se um ex-centrismo ibérico capaz de assimilar e oferecer produtos culturais, numa troca entre iguais, de natureza simultaneamente preservadora e renovadora.Na Jangada de Pedra desaparece a figura do soberano ou de uma individualidade qualquer capaz de traçar e assegurar o destino do povo. A sua ausência é significativa, pois aponta para a possibilidade de uma consciência e vontade coletivas a dirigir o grande barco que é a nação. Como já notamos, a jangada não esta à deriva. Pelo contrário, mantém constância, estabilidade e determinação no seu rumo. A Dedicatória da epopéia saramaguiana, se é que ela existe, articula-se com os personagens. Como representantes lúcidos das diferentes nacionalidades ibéricas, poderiam, como grupo, representar metonimicamente o próprio povo ibérico a quem o autor dedica o romance. Abandonado à própria sorte, num mundo sem fé, ninfas ou deuses, o narrador moderno não tem a quem pedir socorro e inspiração. Resta-lhe o exercício metalingüístico, pois ―dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores‖ (JP, 14). É o que Saramago faz no pórtico do seu romance, menos afortunado que Camões na abertura do seu poema. Compensatoriamente, a situação se inverte no final das duas obras: ―a apagada e vil tristeza‖ cede lugar à ―vara de negrilho [...] verde, [que] talvez floresça no ano que vem‖ (JP, 330). Em outras palavras, a melancolia é substituída pela esperança. Correlativo à ausência de um Salvador, não há a figura do Inimigo a quem combater e destruir, E, se tal existe, ele é a própria inconsciência dos povos diante do seu devir histórico. Apesar das referências desabonadoras a certas nacionalidades (francesa, inglesa, americana) tidas como as mais poderosas do mundo, o romance não dá guarida ao imaginário do Complô, tão recorrente aos espíritos nos momentos de fracasso. Os comentários, pela sua superficialidade, ficam no plano da piada. Sem dúvida alguma reencontramos na obra alguns elementos utópicos próprios às constelações da Idade de Ouro e da Unidade, segundo o modelo de Girardet. Apesar da ―distância incomensurável e inultrapassável ente o desejo e a realidade‖ 26 que deprecia a literatura de feição utópica, não se pode desconhecer à sua força mobilizadora, pois há um mito no âmago de toda e qualquer utopia, sobretudo no campo do imaginário político. Na Jangada a utopia da Unidade se concretiza sob vários aspectos. De saída instala-se o avesso da unidade. No ―nós já não somos europeus‖ (JP, 75) está implícita a recusa da artificial ideologia unitária européia. Em segundo lugar ocorre a reunificação de portugueses e espanhóis, pois ―estamos em tempo de irmãos recomeçados, se é humanamente possível ter sido e tornar a ser‖ (JP, 91). A teoria biológica do patriotismo que levou Fernão Lopes a opor portugueses e castelhanos 27 recebe duro golpe. Doravante, na concepção saramaguiana, ―a península, com outro nome, aqui por prudência não posto para se evitarem explosões nacionalistas e xenófobas‖ (JP, 272), é uma unidade cultural por força de uma mesma origem mas sobretudo pela necessidade de um futuro comum. A imagem da ilha, para além das ressonâncias míticas paradisíacas, atualiza-se como objeto/acidente geográfico uno e demarcado. Em Camões, a união carnal dos nautas portugueses com as ninfas da Ilha dos Amores sugere uma descendência de portugueses ―valerosos‖; em Saramago os amores vividos pelos personagens e por todos os ibéricos faz da ilha/península o próprio topos da Unidade: os filhos de Joana Carda e Maria Guavaira são a imagem da mistura e unificação de raças. Por último, o mito da Unidade comparece na alegoria dos três sílex, América do Sul, África e Península Ibérica, ocupando um espaço de confraternização de povos do Terceiro Mundo. O iberismo é um dos pontos que aproxima A jangada de Pedra das reflexões de Antero de Quental e mesmo de Fernando Pessoa, nos seus textos políticos (cf. o ensaio ―ibéria‖, já citado). O Império Espiritual Português proposto por este último tem como aliados naturais o Brasil, a Ibéria e a Inglaterra. O avanço civilizacional, representado à época pela Europa, não permitiu a Pessoa pensar numa deseuropeização de Portugal. Pelo contrário, a sua pátria é parte integrante de uma mítica continental européia. Em Mensagem, a Península Ibérica é uma cabeça imobilizada num corpo europeu cuja ação se limita a um ―olhar sphyngico e fatal‖ de um rosto/Portugal voltado para Ocidente. Na Jangada de Pedra o rosto nostálgico rompe o nevoeiro, como uma ―ultima nau‖ sem timoneiro em direção a um ―Quinto Império‖ que não se derrama sobre uma Europa supracontinental, mas que se irmana a um Terceiro Mundo intercontinental. Diferentemente de Pessoa, a proposta saramagueana não é propriamente espiritual e universal; é antes material e terceiro-mundista, presa que está à conjuntura política portuguesa do fim do século, fazendo repensar o país após o refluxo africano. 26 CHIRPAZ, Playdoyer pour l‘utopie. In: Esprit, Abril, 1974, p. 569, apud Jacinto do Prado Coelho, 1983, p. 13. 27 Cf. SARAIVA, 1988, p. 173. Por último cabe recuperar a extraordinária pertinência da imagem de Jorge de Sena, a propósito d‘ Os Lusíadas, como epopéia da ―Emigração, da diáspora de corpo e alma‖ 28 . A Jangada de Pedra alegoriza, mais do que qualquer outra obra, a situação de Portugal como nação emigrante, pois literalmente a nação emigra para o ocidente. A fábula, quem sabe, pode se tornar verdade no futuro, como já anuciara Carpentier na epígrafe do romance: ―Todo futuro es fabuloso‖. 28 LOURENÇO, 1978, p. 131. 5- CONCLUSÃO Partindo do pressuposto de que A Jangada de Pedra representa uma reflexão sobre a situação de Portugal no mundo moderno, nossa leitura procurou realçar o diálogo da obra com o contexto e com a série literária portuguesa, de modo a revelar o projeto ideológico e estético do autor implícito. Para a demonstração do primeiro aspecto, em especial o das relações entre Pátria e Literatura, recorremos aos trabalhos de três estudiosos da cultura: um crítico português, Eduardo Lourenço, um antropólogo sino-britânico, Benedict Anderson e um historiador francês, Raoul Girardet. Para a leitura do plano estético, valemo-nos de dois conjuntos teóricos: o de Wayne Booth, pelo relevo que dá às marcas da subjetividade no discurso, fundamentais na articulação autor-texto-contexto; e o da intertextualidade, por favorecer a observação tanto do projeto estético (série literária) quanto do ideológico (séries extraliterárias). No diálogo com Camões e Pessoa, Saramago continua a tradição mas também a desfaz. Ao lado d‘ Os Lusíadas e de Mensagem , A jangada de Pedra se insere na longa linhagem de obras que problematizam o ―ser português‖. Sua significação depende, em grande parte, portanto, da interlocução com os textos do passado. A subversão ou negação dos códigos tradicionais se dá de várias formas e principalmente pela libertação do modelo pendular e maniqueísta que caracterizou o perfil literário da pátria portuguesa nos últimos 150 anos. Sob ―o manto diáfano da fantasia‖ 29 , pôde-se detectar, n‘ A Jangada de Pedra, uma autognose da identidade nacional portuguesa, submetida a um outro estatuto. O romance rompe com a mítica e a mística da nacionalidade ao fundir Portugal — Estado nacional e soberano — numa comunidade maior, transnacional e policonstituída, que é a Ibéria. Corrói também a vocação imperial da pátria ao substituir sua dimensão vertical (hegemonia política ou cultural sobre outros povos) por uma proposta de horizontalidade frente às demais nações (solidariedade inter e extraibérica). N‘ A Jangada de Pedra não há lugar para as nostalgias da Idade de Ouro ou para os Salvadores da pátria. A possibilidade de Complô é tratada humoristicamente como parte do jogo diplomático das nações modernas. Resta o caminho da Unidade, não pelo fechamento da nação sobre si mesma, mas