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Crônicas de Origem - Câmara Cascudo

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Prévia do material em texto

jÇyfe da Câmara Cascudo
Crônicas de Origem
A cidade de Natal nas crônicas
cascudianas dos anos 20
2" edição
Raimundo Arrais
Organização e estudo introdutório
Crônicas de Origem
A cidade de Natal nas crônicas
cascudianas dos anos 20
Luís da Câmara Cascudo
Crônicas de Origem
A cidade de Natal nas crônicas
cascudianas dos anos 20
2aedição
Raimundo Arrais
Organização e estudo introdutório
Ediloro da UFRN
Natal, 2011
UNIVERS.DADE FEDERAL DO R.O GRANDE DO NORTE
Reitor
José Ivonildo do Rego
Vice-Reitora
Angela Maria Paiva Cruz
Diretorda EDUFRN
Herculano Ricardo Campos
Conselho Editoral
CiprianoMaia de Vasconcelos (Presidente)
Ana Luiza Medeiros
Humberto Hermenegildo de Araújo
John Andrew Fossa
Herculano Ricardo Campos
MÔnica Maria Fernandes Oliveira
Tânia Cristina Meira Garcia
Tecia Maria de Oliveira Maranhão
Virgínia Maria Dantas de Araújo
Willian Eufrásio Nunes Pereira
Editor
Helton Rubiano de Macedo
Revisão
Sílvia Barbalho Brito
Wildson Confessor
Editoraçãoeletrônica
Helton Rubiano de Macedo
Capa
Ivana lima
Foto dacapa
Bruno Bougard (1904)
Praça André de Albuquerque
Acervo do Instituto Histórico
Geográfico do Rio Grande do Norte
Supervisãoeditorial
Alva Medeiros daCosta
Supervisão gráfica
Francisco Guilherme de Santana
Divisão deServiços Técnicos
f^!^^^ Centra, Zila Mamede
Cascudo, Luís daCâmara.
»/iSzcOEj^*22-c?rs cascudianas dos—Arrais. - 2. ed. - Natal, RN: EDUFRN 2011 'ntrodutõrio Raimundo
118p.
ISBN 978-85-7273-743-2
RN/UF/BCZM CDD B869.93
CDU821.134.3(81)-94
TOdOS^v^^^
Ugoa Nov8a |59.07^ N^/RN ^7?^°
Prefácio à segunda edição
Esta segunda edição de Crônicas de Origem, com modifica
ções pontuais em relação à edição anterior, de 20051, reúne um
conjunto decrônicas que Luís da Câmara Cascudo publicou na
imprensa da cidade de Natal, ao longo da década de 20 do século
passado. O estudo introdutório que abre o livro procura auxi
liar na compreensão dessas crônicas, que falam de uma Natal
tão distanteno tempo que nem parece ao leitor a cidade em que
vivemos hoje. Procura apresentar o homem e a cidade que foi a
principal fonte desua arte, e situar algumas das idéias expostas
nessas crônicas. Procura relacionar as idéias das crônicas de Cas
cudo com aquelas dos seus contemporâneos, e dos que vieram
antes dele, e identificar os pontos emque as idéias de uns e de
outros se cruzavam, e talvez mesmo se confundissem.
As crônicas de Cascudo, e também dos outros cronistas de
seu tempo, deixam patente que a cidade estava inserida e atra
vessada pelos problemas da modernidade do ocidente, que che
gava a Natal sob a forma de notícias, objetos, idéias, imagens.
Mesmo que entre nós essa modernidade não tenha suscitado a
mesma euforia, nem a violência que em outras latitudes desen
cadeou sobre os mundos tradicionais,na escalareduzida de uma
pequena cidade na periferia do ocidente, os natalenses (pelos
menos os jovens intelectuais e os dois últimos governantes do
período da República Velha) chegaram aexcitar-se einquietar-se
em face das possibilidades, verdadeiras ou ilusórias, de trans
formação de sua cidade. As crônicas de Cascudo registraram o
burburinho eainquietação que acompanharam onascimento de
uma nova cidade. Elas nos fornecem orelato de suas origens.
Entretanto, as crônicas também falam do intelectual que
as escreveu. Revelam ao mesmo tempo oateliê do cronista (seu
método de pesquisa, seu modo de compor com palavras) eos
produtos saídos desse ateliê numa fase de formação, que vai se
desdobrar em uma carreira de cronista ehistoriador da cidade
de Natal, desenvolvida décadas afio, no jornal eno livro Por
isso, oexame atento pode fornecer aos leitores interessados a
compreensão das nuanças, apresentadas na trajetória intelectual
de um Cascudo que éprovavelmente mais conhecido entre nós
como ofolclorista ehistoriador da cidade de Natal.
Essas crônicas andavam esquecidas em velhos jornais, até
que oprofessor José Luiz Ferreira (UERN) as localizou eas trans
creveu. Elas chegaram-me por intermédio do professor Hum
berto Hermenegildo de Araújo, então coordenador do Núcleo
Câmara Cascudo de Estudos Norte-rio-grandenses (NCCEN-
-UFRN). Foi, portanto, essa rede de colaboração, que está desen
volvendo-se no seio da UFRN, em torno dos estudos da cultura
do Rio Grande do Norte sob ainspiração de Cascudo, que, acima
de tudo, tornou este livro possível.
Prof. Raimundo Arrais
Departamento de História/UFRN
Sumário
Estudo introdutório
11 | O nascimento do cronista e o nascimento
da cidade de Natal
Seleção de Crônicas
67 | Instituto Histórico eGeográfico do Rio Grande do Norte
69 | A noite em Natal
71 | A casa do operário
74 | Homo Brasiliensis
76 | Lei n. 145
78 | O livro das velhas figuras
83 | A nossa D. G. de E.
86 | O doutor Antunes
89 | Ea nossa universidade popular?
92 | A taça florida
94 | Carnaval! Carnaval!
100 | Proteção da alegria popular
103 | Ângelo Roselli
106 | O novo plano da cidade I: A cidade
110 | Onovo plano da cidade II: ARibeira no "Master Plan
115 | Junqueira Ayres
ESTUDO INTRODUTÓRIO
O nascimento do cronista e o
nascimento da cidade de Natal
Luís da Câmara Cascudo - singularizado na paisagem
cultural do Rio Grande do Norte pela luminosa erudição, pelos
amplos horizontes do interesse intelectual epela pesquisa siste
mática das manifestações da cultura popular - deve algo.de sua
formação e do seu reconhecimento ao pequeno meio natalense
onde nasceu e no qual desenvolveu seus projetos deescritor. Ao
longo de toda sua vida intelectual, ele observou acidade de Na
tal, estudou-a e, como tantos outros intelectuais de seu tempo,
procurou participar do destino dessa cidade eintegrar-se nele.
Como veremos, sob certos aspectos, as idéias de Cascu
do expressas nas crônicas selecionadas neste livro revelam mu
danças em relação ao pensamento da geração de intelectuais de
Natal que escreveram na passagem do século XIX para o XX.
Todavia, também foi um continuador dos intelectuaisque o pre
cederam, ao menos, em dois aspectos: desenvolvendo temasque
haviam sido esboçados por alguns daqueles autores, e assumin
do posicionamentos semelhantes aos deles. Mas, éem relação ao
lugar que os intelectuais julgavam que deveriam ocupar dentro
da sociedade, que iremos encontrar a firme continuidade entre
as duas gerações: uma, a de Henrique Castriciano (1874-1947);
outra, a de Câmara Cascudo (1898-1986). Para eles, osescritores
e os poetas deveriam desempenhar um papel ativo diante das
grandes questões que percorriam e agitavam a cidade.
Este estudo introdutório pretende situar no seu tempo e
no seu espaço as crônicas que Cascudo publicou na década de
u
20 do século passado, um período em que se tornava evidente
para ele e para seus contemporâneos a emergência daquilo que
estava sendo visualizando como uma nova cidade, uma nova ci
dade de Natal. Quando Cascudo nasceu, a capital contava com
pouco mais de dezesseis mil pessoas, e quando ele escreveu a
primeira das crônicas que selecionamos neste volume, no ano
de1924 (ele começou a publicar crônicas em 1918, em1921 veio
àluz Alma patrícia, seu primeiro livro depois da compilação que
realizou dos versos de Lourival Açucena, em 1920), esse número
ultrapassava acifra dos trinta mil.2 Aimagem que estampamos
na capa de Crônicas de Origem ilustracomo emduas décadas a ci
dade mudou sua fisionomia. Trata-se de uma fotografia de Bru
no Bougard, captada do alto da Catedral (hoje Catedral Velha).
Dos elementos que aparecem no panorama que abarca o núcleo
original da cidade, hoje só permanecem o rio, os mangues, as
dunas ea igrejinha de Nossa Senhora do Rosário. Oano era 1904,
e esse era o cenário correspondente à atual Praça André de Al
buquerque. Em 1896, portanto, dois anos antes do nascimento
deCascudo, quando o terreno trazia poucos sinais de interven
ção humana, a imprensa, empregando os argumentos da época,
pedia que ele fosse convertido num "iugar de recreio para quer
messes eoutras festas ao ar livre, tão necessárias àhigiene moral
do povo...".3 Vinte anos depois, mais ou menos no tempo que
Cascudodebutava na imprensa, a praça estaria completamente
modificada, exibindo passeio, pavilhão central e coreto.4
As crônicas de Cascudo começaram a ser publicadas no
jornal AImprensa, fundado em 1914 pelo seu pai, ocoronel Fran
cisco Cascudo, que no "principado do Tirol" (residência "princi-
pesca" de Cascudo, ocupando vasta área entre as avenidas Cam
pos Sales eRodrigues Alves, eas ruas Apodi eJundiaí, no bairro
do Tirol) acolhia um grupo de jovens ansiosos por conquistar
um lugar no mundo das letras. Câmara Cascudo recordou que
AImprensa fora "fundada emantida por Francisco Cascudo, sem
ganhos eretribuições, antes constituindo um amplo aprendiza
do para duas dezenas de nomes que não podem esquecer avelo
cidade inicial, oambiente animador efraternal, solidário com os
vôos eencorajador de todos os remígios".5 Nesse ambiente, Luís
da Câmara Cascudo se tornou uma liderança intelectual, ocu
pando na pequena capital dos anos 20 uma posição que podia ser
comparada àquela que, na geração anterior, coubera aHenrique
Castriciano.6
As crônicas reunidas neste pequeno repertório não falam
apenas da cidade de Natal. Falam também de seu autor. Com a
pulsação de sua sintaxe pessoal, as cores eas manias da época,
elas nos permitem acompanhar um momento decisivo da for
mação do intelectual de maior relevo da cidade de Natal, reco
nhecido mais tarde como aquele que "tudo sabe" a respeito de
sua cidade e de seu povo, que se habilitava, progressivamente,
à tarefa de escrever a memória de Natal nas crônicas oferecidas
regularmente aos leitores nos jornais da cidade, publicando, em
1947, aprimeira história da cidade de Natal.7
Flores e automóveis
Na crônica intitulada Ataça florida, publicada em 07 de fe
vereiro de 1929, Câmara Cascudo se reportava auma Natal pró
diga em jardins cuidados por mãos recatadas de donas de casa,
i 3
uma cidade cujos moradores encontravam tempo para cultivar
flores, que eles conheciam pelos nomes. As flores, ocronista con
verte-as em elemento representativo daquela cidade antiga: tra
dicionais, singelas, vicejando nos canteiros que olhavam avida
passar lentamente, seus perfumes chegando até os passantes.
Uma atmosfera de lirismo recobria aquela Natal eseus po
etas mais expressivos escreviam versos ingênuos, ecoando por
vezes um romantismo que retirava sua força da natureza sobre a
qual acidade estava assentada. Cascudo identificou isso na poesia
de Ferreira Itajubá.» Porém, ele devia ter aspirado esse lirismo nos
tempos felizes vividos na casa paterna (estivera sob seu teto nos
anos 10 e20, até odesmoronamento financeiro do pai), aqual exi
bia belos caramanchões com jasmins, resedás ebogarisejardinsco
roados de dálias, que ele recordou mais tarde, em suas memórias.'
Todavia, nessa Natal nem tudo eram flores. No panora
ma suave das páginas cascudianas, que apresentam aos olhos
do leitor acalmaria da cidade antiga, às vezes irrompe de modo
inesperado oelemento perturbador da harmonia eda quietude
que fez essa cidade desaparecer em algum momento do início
do século XX. Em algum momento se rompera aplacidez antiga.
Em algum momento, apontava ocronista: "A vida apressou o
ritmo e estas flores desapareceram".
Nessa perspectiva, ele parece assinalar aconsumação de
um estado de coisas que, na opinião de alguns, estava se inician
do por volta de 1908. Pois, naquele ano, algumas vozes haviam
saudado os meios de transporte sobre trilhos, eoritmo novo que
os burros correndo sobre esses trilhos estavam introduzindo em
Natal. Destaquemos uma voz desse coro de entusiastas:
14
Parecia que o Natal triste e macambúzio metera-se em
brios, todo risos, todo festas, para o início de uma nova
era. Ealgo de novo havia no ativo de uma cidade que se
prepara para sergrande namoderna civilização: o bonde,
encurtando distâncias, acelerando o movimento, criando
a vida de rua, é certamente uma verdadeira revolução no
meio pacato emque temos permanecido atéagora.10
Duas passagens das memórias de Cascudo, escritas muito de
pois das crônicas da década de 20, deixam-nos perceber aforça eper
manência da impressão do poder destrutivo do tempo. Numa das
passagens ele condena apressa que regia avida da cidade moderna,
as pessoas vivendo "quase sem ver apaisagem lateral"; ocronista la
menta que aexpansão violenta da cidade houvesse provocado "oexí
liodo transeunte".11 Noutra passagem, o tom é igualmente amargo:
Natal lamenta o privilégio de possuir o maior número de
automóveis per capita, em todo o Brasil. O transeunte é
um hóspede indesejável e atrevido, disputando aos mo
tores bufantes as reduzidas faixas de acesso. A via, por
eufemismo, pública, é praticamente uma pista de veloci
dade, sonorizada por buzinas incessantes.12
Nos anos 20, como veremos ao longo desta introdução, a
cidade de Natal se renovava. Essa era uma realidade inegável
para os seus intelectuais. Mas, o nosso cronista, ao passar em
revista essa cidade nova que foi tomando forma diante de seus
olhos, nãodeixava de valorizar justamente oselementos do pas
sado que ela comportava, que sobreviviam dentro dela. Assim,
nessa crônica de 1929, que voltaremos a explorar mais adiante,
Cascudo dirigia palavras entusiasmadas àação do prefeito Ornar
0'Grady, que, no mesmo ano, estava colocando em execução o
PlanoGeral de Sistematização de Natal, elaborado peloarquiteto
Giacomo Palumbo, como apoio do governador Juvenal Lamarti-
15
k.
ne de Faria. Oefeito do programa urbanístico que fora aplicado
na capital era sintetizado por Cascudo nessa frase breve: opre
feito estava "tornando Natal uma cidade bonita". Ele reconhecia
naquela cidade orenovar de uma beleza que devia ser atribuída,
pelo menos em parte, ao conjunto de ações da municipalidade e
do governo do estado, que mandara construir jardins erealizara
oplantio sistemático de árvores. Cumpre destacar que, eCascu
do trata do tema em duas longas crônicas da época, oPlano Ge
ral de Sistematização de Natal apresentava um alcance que oar-
quiteto-historiador George Dantas, mencionando oalargamento
em relação ao plano que havia criado aárea correspondente aos
bairros de Petrópolis eTirol, associada ao nome de Polidrelli, nos
apresenta em suas grandes linhas:
O Plano incorporou às suas metas trabalhos já realiza
dos - ou em realização, na administração de 0'Grady -,
expandiu a malha definida por Polidrelli em 1904, e foi
delineado pelo zoning, atribuindo a cada parte da cida
de uma função específica. Preocupava-se em preparar a
cidade parao futuro, [...] pensando nas necessidades de
tráfego, aéreo e viário.13
Esse "retorno às flores" indicava a recuperação de alguma
coisa que pertencia ao quadro da cidade desaparecida. Assim, a
crônica de 1929 introduz a referência aos ruídos, entre eles o ruído
do automóvel, que estavam sufocando alinguagem sutil das flores.
Cascudo exprimia ainquietante sensação de que os elementos que
assinalavam as particularidades do modo de vida tradicional da ci
dade estavam sendo corroídos. Épossível identificarmos em Cascu
do eem outros intelectuais de sua cidade esua geração elementos
para reconstituirmos onome daquela cidade suspirada do passado,
que não existia mais nos anos 20: era a Natal antiga. Esse nome foi
16
adotado justamente sob oimpacto da destruição que aapagara. As
sim, onome surgiu posteriormente ao fato que ele representa, por
que aNatal em que vivia Cascudo era percorrida por uma mudança
acelerada que estava fazendo nascer outra cidade, designada como
uma nova Natal. Desse modo, torna-se impossível descrever acida
de antiga sem asua contrapartida, oseu outro, acidade nova. No
plano dos signos (nas páginas dos cronistas, poetas, memorialistas),
portanto, écomo se ela fosse despontando entre os escombros da
cidade que se modernizava, de modo mais acentuado nos anos 20.
Anova Natal que estava tomando forma lentamente aos
olhos dos intelectuais egovernantes era muito mais do que uma
realidade geográfica, embora ela tivesse sido anunciada, pela
primeira vez, diretamente associada àgeografia, dentro de uma
área que corresponderia aos futuros bairros de PetrópoliseTirol
(área em que foi implantada a"malha definida por Polidrelli,
em 1904", aque se refere George Dantas, na referida passagem),
organizada segundo um traçado de linhas retas elargas, expri
mindo os princípios elementares do racionalismo que orienta
va oplanejamento das cidades. Essa área tomaria exatamente o
nome de Cidade Nova.
Num sentido mais amplo, essa nova Natal designava tam
bém um conjunto de modificações introduzidas nos dois bairros
mais antigos, aCidade Alta eaRibeira, aterramentos, construção
de edifícios prestigiosos (exemplo, oTeatro Carlos Gomes), ajar-
dinamento de praças, inauguração de linhas de bonde eilumina
ção elétrica. Anova Natal, aqui reportada, consiste, portanto, num
conjunto formado pela matéria (o solo urbano, os edifícios e os
equipamentos) que recobre toda aparte urbana da cidade epelas
17
práticas sociais que se desenrolavam sobre este solo: as relações
entre as pessoas, os costumes, amoda, as expressões artísticas.
Na crônica que dedicou ao comerciante Ângelo Roselli,
em 1929, Cascudo invocava a cidade do passado como uma
Natal "velha edeliciosa, dorminhenta à beira-rio, tão recatada
edoce como aágua móbil everde". Portanto, uma cidade que
se .mpregnava da quietude das águas em cujas margens ela se
estend,a; mais se acomodando auma ordem natural, do que a
modificando para conformá-la àvontade humana. Temos aqui o
estabelecimento de mais um franco contraste entre avida naque
la Natal antiga eavida na cidade moderna: acidade da natureza,
a cidade da técnica.
Acidade de Natal dos escritores do início do século XX
se encontrava justamente no centro da tensão entre essas duas
forças: anatureza eatécnica. ANatal antiga estava mais pró-
x.ma do mundo natural; anova Natal, ao contrário, era em boa
med,da um artifício, oresultado da engenhosidade humana que
•mplantara edificações, ruas, monumentos, eque, com os meios
de transporte acelerados eaenergia elétrica, estavam emanci
pando seus moradores das restrições impostas pelo meio epelos
elementos naturais.
Uma dessas restrições da cidade antiga residia no fato de
que os moradores de Natal tinham de organizar sua vida confor
me os ciclos do dia. Na crônica Anoite em Natal, de 1924, Cascudo
relembrava uma cidade em que ocair da noite obrigava os mo
radores se refugiarem em casa para evitar aescuridão ou, na me
lhor das situações, asemiescuridão dos lampiões das ruas So
mente em 1911 chegara aNatal oserviço de iluminação pública
18
saudado entusiastícamente. Afinal, permitia alongar o dia sobre
certos territórios da"cidade, dilatando as possibilidades da vida
social, na medida em que atraía os natalenses para as atividades
noturnas realizadas nos espaços públicos (o que se compreende
bem quando consideramos que o simples clarão da luz elétrica
era um atrativoque levavaas pessoas às ruas), e desencadeando
uma força multiplicadora sobre uma série de outros melhora
mentos dentro da cidade.14
Até o início do século XX, na noite mal-iluminada da ca
pital, o território mais densamente ocupado e freqüentado pe
los moradores achava-se seccionado em dois bairros: Ribeira e
Cidade Alta. A Ribeira e a Cidade Alta estavam separadas por
uma ladeira cascalhenta e escorregadia (atual Junqueira Aires),
o que incomodava especialmente nos dias chuvosos. Isso se re
fletia numa forma de organização localista que levava os mo
radores a estranhamentos e hostilidades mútuas, designando-se
uns aos outros, de modo provocador, como xarias e canguleiros,
espécies de peixes que compunham a dieta dos moradores de
cada um dos dois bairros. As dificuldades de se percorrer o tre
cho entre os dois bairros motivavam protestos na imprensa. Em
1902, pedia-se no Diário de Natal o calçamento "da artéria princi
pal que liga a Cidade Alta à Ribeira", pois esse caminho estava
"completamente inutilizado, ou antes aterrado pelo grosso areai
conduzido da Cidade Alta, pelas águas dos invernos, tornando
por demais incômoda, especialmente para as senhoras, a passa
gem por ali".15
Para Cascudo, a integração desse espaço, que oficialmente
correspondia à cidade de Natal, somente havia sido obtida com
19
a atuação do bonde na cidade, a partir de 1908. Com os trilhos
ligando os dois bairros se pôde rigorosamente falar da existên
cia de um natalense, esse coletivo que transcendia os particularis-
mos. Com efeito, quando os bondes começam asubir a ladeira,
"aproximando os dois núcleos", Cascudo, escrevendo nos anos
quarenta, sentencia: "Xarias e canguleiros morreram. Ficou ona
talense".16
No passado mais recuado, seus moradores viviam em re
lativa independência, inexistindo aunidade necessária ao orde
namento humano designado como cidade. Com efeito, embora
seus dois bairros exibissem adenominação de "cidade" (a Cida
de Alta eaCidade Nova), Natal não podia, na opinião de alguns,
exibir otítulo de cidade- Com efeito, para Cascudo acidade que
até então existira somente na ordem dos signos, no registro civü,
no título outorgado, estaria verdadeiramente nascendo do sopro
moderno que estava passando por ela, naqueles anos 20.18 Idéia
implícita em vários escritos que ele dedicou aNatal eque apare
ce com todas as letras abrindo a crônica de 1929: "Oficialmente
existe aCidade do Natal há trezentos e trinta anos. Relativamen
te parece com este título a oito ou nove anos. Ou melhor, imita
cidade recém fundada, se oenviesamento das artérias não de
nunciasse avelhice." (O novo plano da cidade I: Acidade).
Caso os trilhos do bonde concorreram para integrar os dois
primeiros bairros de Natal, acidade, por todos os lados, continu
ava isolada do território mais amplo que, na condição de capi
tal, ela deveria subordinar, ou, pelo menos, sobre oqual deveria
exercer alguma hegemonia. De um lado, aporta do mar, opor
to, entrada esaída para os mercados nacionais etransoceânicos,
20
Pororasóse passeou na Ribeira sistematizada. Aimpres
sãoé de audácia muito respeitosa. Tudo ou quase tudo
se poupou. Os traçados obedeceram a linha tradicional
paralelos everticais ao rio. Apenas obraço do homem ali
nhou racionadamente os valores confusos que herdamos
em nome da cidade. (O novo plano da cidade I: ARibeira no
"Master Plan").
Guiado por aquela "audácia muito respeitosa", oplano Pa-
lumbo deveria interligar o espaço urbano sem destruir as linhas
básicas do ordenamento da cidade, o que, de acordo com Cas
cudo, efetivamente estava sucedendo. Aí estava uma forte razão
para levar Cascudo aposicionar-se de modo favorável em rela
ção às mudanças introduzidas nos dois bairros: a Natal que iria
irromper daquela intervenção indicava uma conciliação entre o
passado eopresente, ovelho eonovo, otradicional eomoderno.
Cascudo reconhecia como uma virtude da cidade nova o
fato de que ela, na sua gênese, estava conservando certos ele
mentos da cidadeantiga, numa atitudeconciliadora entreo novo
eovelho. Mas a relação entreo novo eovelho, desde pelo menos
a entrada do século XX, vinha assumindo formas variadas entre
os intelectuais de Natal. Uma dessas formas consistia em opor:
de um lado a técnica, o artifício, a criação humana; de outro, a
natureza, o ambiente natural.
Desde o início do novo século, a esperança no futuro forta
lecia a convicção na capacidade daação humana de transformar
oespaço edar-lhe as formas consideradas adequadas ao conforto
econdições higiênicas necessárias àvida coletiva, superando um
passado ainda muito preso ànatureza. Ao longo das três primei
ras décadas do século XX, a idéia a respeito da evolução da cida
de de Natal eos rumos que ela deveria tomar estava atravessada
23
poruma ambigüidade: de um lado, a paisagem natural de onde
teria emergido a cidade; de outro, a cidade-artifício, o produto
dasoperações técnicas, dos"melhoramentos materiais", fórmula
entusiástica encontrada para designar asintervenções da técnica
e da engenharia, realizando calçamento, instalando iluminação,
água encanada, serviços de saneamento, linhas de bonde, que
desde a segunda metade doséculo XIX iam sendo instalados nas
capitais brasileiras pelos ingleses, franceses,canadenses e norte-
-americanos, sobretudo.
Esse éum dos fortes temas que se impõem àqueles que in
dagam a respeito das perspectivas futuras da cidade de Natal;
àqueles dominados pela idéia obsessiva de que a humanidade,
tendo à frente a humanidade dascidades, rumava inelutavelmen-
te para um futuro melhor, àqueles redatores de Oásis, periódico
local (iniciativa de um grêmio literário da cidade), publicado na
última década do século XIX, que adotara o lema do sacerdote do
progresso Eugène Pelletan - Le monde marche (O mundo avança) -
dedicando-se aexaltar, com aforça que atribuía ao verbo revolu
cionário da imprensa, a ação do progresso eas luzes do século.21
De fato, as transformações que na entrada do século XX
vinham acompanhando onovo século em Natal, impunham aos
intelectuais a indagação arespeito do ponto em que acidade se
localizava nessa escala que ia da natureza ao artifício, ou à- para
empregar uma palavra cara à época - civilização. Isso se devia,
pelo menos parcialmente, às relações próximas que, para aque
les que assumiram ogoverno do Rio Grande do Norte, oregime
republicano estabelecera com oprogresso, uma palavra grafada
freqüentemente com a inicial maiúscula, oque lhe conferia uma
24
grandeza de entidade supra-histórica, uma força condutora do
destino dos povos: oProgresso. Afinal, como escreveu um anô
nimo em 1890, no entusiasmo dos primeiros dias da República:
Oespírito republicano, que étambém oespírito da civiliza
ção, já invadiu todos os diques da opinião publica, já abri
gou na maioria generosa dos corações brasileiros, já avassa-
loutodas asresistências condenadas e inúteis, ejáassinalou
umaeradecivilização parao Brasil.22
Tavares de Lyra, reunindo oponto de vista do historiador
(ele foi um pioneiro na historiografia norte-rio-grandense), com
ade ex-governador (tendo governado de 1904 a1906), integrante
do grupo político efamiliar dos Albuquerque Maranhão (genro
de Pedro Velho), era de opinião que oprogresso chegara ao Rio
Grande do Norte trazido pelos republicanos. Seus governos te
riam introduzido, em contraste com os presidentes de província
do tempo do império, medidas vigorosas contra as secas, tinham
lutado por estradas de ferro, tinham realizado melhoramentos
no porto da capital, mesmo que - e isso era reconhecido pelos
homens do poder, mas sobretudo pelos oposicionistas - nada
disso tivesse concorrido para converter Natal em algo mais do
que uma pequena capital, mais do que amodesta sede de um
governo estadual.
De fato, isolada entre as dunas e o mar, Natal, na opinião
de seus intelectuais, precisava sofrer uma intervenção decidida
sobre a natureza,uma intervenção técnica destinadaa - para nos
determos na enumeração de duas das operações mais solicitadas
na época para remover os obstáculos ao progresso da capital -
reequipar seu porto, incluindo afixação de dunas, aretirada de
obstáculos naturais, que bloqueavam a entrada de embarcações
25
de maior calado, e ligar por vias férreas eestradas carroçáveis a
capital aos sertões.
A partir da década de 10, fortalece-se entre a intelectua
lidade natalense a convicção na necessidade imperiosa de se
aplicar sobre anatureza os conhecimentos técnicos, que fascina
vam o mundo moderno e que, acreditava-se, poderiam redimir
acidade dos males que ahaviam paralisado no século anterior,
quando, num século tão irradiante de esperanças, as elites locais,
dada a condição periférica do Rio Grande do Norte, tiveram de
se contentar com a minguada porção que o progresso lhes reser
vara. Apartir daquela década, fez-se ouvir em voz eloqüente o
apelo à técnica dirigido aos governos estaduais e sobretudo ao
governo federal.23
Já na primeira década do século XX, nas crônicas que Hen
rique Castriciano, poeta, filósofo e homem ligado à diversas ad
ministrações até ocomeço dos anos 20, publicou na imprensa lo
cal, despontavam vividas imagens de Natal, cujos problemas não
eram somente o seu isolamento do mundo. Olhado de dentro, o
quadro também era desalentador: acidade parecia plantada num
deserto de melancolia, povoada por gente simplória eamesqui-
nhada por um materialismo brutal.24 Como uma das terapêuticas
a serem aplicadas a essa população, Castriciano recomendava o
ajardinamento das praças da cidade. Ele não se conformava com
ofato de que os moradores da cidade resistissem ao costume, tão
comum àqueles que a retórica evolucionista da época chamava
de "povos adiantados" (ingleses, franceses, norte-americanos...),
de gozar dos benefícios dos jardins que ogoverno de Alberto Ma
ranhão eTavares de Lyra haviam construído na capital.25
26
Entusiasta dos esportes, Castriciano lançava no ar a inda
gação: por que amocidade natalense não nadava, não remava,
não se dedicava às excursões pelos arredores da cidade, deixan
do de desenvolver músculos firmes e privando-se de apreciar a
beleza dos panoramas que circundavam acidade? Aginástica,
entre outras aplicações preconizadas naquela época de naciona-
lismos agressivos, servia para disciplinar efortalecer ocorpo re
clamado pela pátria, consoante aidéia que se generalizava pelo
mundo num momento em que as nações, numa desenfreada
competição imperialista, faziam do entusiasmo por músculos e
pelo ardor patriótico amunição que iria explodir nos campos de
batalha da Primeira Guerra Mundial.26
Entre esses intelectuais do início do século, oque predomi
nava não eram os derramamentos emocionais diante deuma na
tureza destinada àpura contemplação, ao modo do Romantismo
do século XIX. Apaisagem por um lado era concebida como um
instrumento a serviço do progresso dos indivíduos, e, por ou
tro, convertia-se em objeto de exame científico. Era observada e
analisada apartir da categoria meio, que compreendia elementos
naturais como vegetação, clima, regime de chuvas e topografia.
Aanálise do meio, fundada nos postulados do evolucionismo do
século XIX, situando todos os povos dentro de uma única escala
(cujo ponto culminante era oda história humana, era oestágio
da "civilização"), combinada com a categoria de raça, que, pre
tendendo apoiar-se em noções científicas, atribuía a brancos e
negros níveis diferentes de inteligência e moralidade, fecundou
o vocabulário do século do progresso, nos seus desdobramen
tos sinonímicos (o progresso material, o progresso espiritual).
27
Dentro dos parâmetros científicos que se impuseram àintelectu
alidade brasileira da segunda metade do século XIX, essas duas
categorias foram centrais para oexame das formas de fixação e
adaptação dos indivíduos nos diversos ambientes epara apro
dução de diagnósticos sobre o futuro nacional.27
De fato, conforme as relações que os indivíduos eos po
vos, dominados pelos seus caracteres raciais, estabeleciam com
o meio ambiente, destinos diferentes os aguardavam. Em 1908,
aplicando essa tese à realidade do Rio Grande do Norte, Henri
que Castriciano escrevia: "Há uma grande diferença física entre
a gente do agreste e a do sertão; diferença que se afirma na sin
gular energia da população da última dessas zonas, em contraste
com a meiguice humilde dos habitantes da primeira".28
Na interpretação da realidade local, a aplicação dos pos
tulados cientificistas na observação da sociedade humana teria
produzido diferenças de ordem psicológicas entre os habitantes
dos vários ambientes do Rio Grande do Norte. Os sertanejos,
internados no isolamento de um mundo rústico, operosos ere
sistentes, travavam uma incansável batalha contra a natureza e
assim vinham endurecendo o seu caráter. Podemos notar aí a
reverberação da ciência eloqüente irradiada apartir de Euclides
da Cunha, que denunciava na guerra travada nos sertões de Ca
nudos o drama de impacto sobre a nacionalidade brasileira no
final do século XIX. Arelação entre homem emeio, ou mais pre
cisamente entre tipos raciais e características físico-ambientais,
devia ser levada em conta por aquele que, como oautor de Os
sertões, formulava prognósticos sobre o destino nacional no iní
cio do século XX.
28
Esses diagnósticos orientaram os intelectuais de Natal no
momento em que eles procuravam indagarsobre a relação entre
a cidade e as condições naturais que a envolviam e a atravessa
vam. Por vezes esses diagnósticos vieram acompanhados de uma
tendência a acentuar as virtudes da natureza em contraste com a
cidade, que ia sendo tomada por problemas decorrentes da for
ma como osindivíduos haviam seorganizado naquele ambiente.
Avida coletiva organizada adequadamente requeria os cuidados
do planejamento em alguns pontos fundamentais, impondo aos
governantes, engenheiros e médicos desafios como distribuir a
água saudável, eliminar dejetos das residências e do espaço pú
blico, edificar fora docaminho dosventos contaminados, orientar
os indivíduos a se alimentarem adequadamente. Emcrônica de
20 de maio de 1908, Henrique Castriciano escrevia que "o clima,
a água, a carne, nem sempre de boa qualidade, as doenças do
sangue, as cloacas que infectam a área urbana, tudo tem vindo à
baila, tudoaparece à tona da discussão, enquanto sevai morren
do, nem sempre com a felicidade do súbito desaparecimento".29
O problema parecia residir na falta deracionalidade no es
tabelecimento da organização social. Em 1920, Henrique Castri
ciano contemplava uma natureza formosa desaproveitada pela
sociedadeurbana e os males batendo às portas da cidade. Assim,
escrevia ele a propósito dos natalenses:
Habitantes de uma das cidades mais formosas do mundo
- falo emrelação à paisagem quenos serve de moldura -
ficamos sabendo com certeza que andam por aí os germes
da febre amarela, do impaludismo, da varíola e das várias
helmintoses que no Brasil anemiam e estiolam as classes
de recursos parcos.30
29
Acidade não tinha virtudes aexibir. Tudo oque ela pos
suía de belo era sua natureza original, que fora conspurcada pe
las enfermidades da sociedade. Avida na cidade era temida Mas
oatestado cabal de que os males da vida urbana haviam conta
minado uma natureza benéfica foi ,avrado pelo médico Januário
Cicco (mspetor de saúde do Porto de Natal echefe das clínicas
do Hospital Juvino Barreto), com sua topografia médica, divul
gada em livro de 1920. Januário Cicco não reconhecia beleza e
generosidade na natureza àsua volta, mas tão somente um qua
dro assustador produzido pela completa negligência com que foi
se realizando aocupação da cidade, pela falta de equipamentos
de saúde coletiva epela ausência de cuidado dos governos com
as vidas dos natalenses. Para se organizar aexistência dos mo
radores dentro da capital, segundo Januário Cicco, era preciso
corrigir as condições naturais.
Os males da cidade deveriam ser corrigidos, mediante ain
tervenção do Estado, apartir da aplicação do saber de higienistas
eengenheiros. Mas os destinos da cidade não estavam nas mãos
do medico, afirmava Januário Cicco, com linguagem vigorosa e
eloqüente, em várias passagens de seu livro. Pois aindiferença
dos governos, até aquele ano de 1920, deixara dormir nas gavetas
dos gabinetes projetos destinados acorrigir os problemas -pelo
menos na opinião autorizada do médico - tenebrosos de Natal
Em contrapartida, omundo rural, especificamente omun
do do sertão, era invocado como uma fonte de virtudes. Havia
quem, suspirando pelo modo de viver antigo, atribuísse os males
dos habitantes da cidade ao afastamento em que eles viviam em
relação aos hábitos que se conservavam no sertão. Afinal, essa é
30
uma idéia generalizada na época, os moradores da cidade eram
atraídos avidamente pelos costumes estrangeiros. Assim, Eloy
de Souza, revelando seu tradicionalismo sob o pseudônimo de
Jacinto Canela de Ferro, se manifestava contrário aos remédios
de botica (farmácia), declarando ser um usuário de ervas e me-
zinhas do sertão. Para ele, as causas das doenças que afetavam
a vida moderna consistiam no abuso de café, fumo e bebida, e
num regime alimentar inferior àquele dos sertanejos, com suas
boas quatro refeições ao dia.31
Esse Jacinto se mostrava tão radicalmente partidário dos
costumes do sertão, que recusava um olhar simpático até aos
melhoramentos recebidos com aplausos gerais na capital. Assim,
preferia deixar de lado os solavancos do bonde e realizar seus
deslocamentos a cavalo. Alguns anos antes, na conferência pro
nunciada em 1909, Eloy de Souza já empregava o mote da "so
briedade sertaneja". Era essasobriedade que assegurava aosho
mens do sertão a resistência necessária diante das calamidades
naturais. Eles viviam a dura vida com "insano labor e austera eco
nomia". A cidade era o teatro da futilidade, vaidade e desdém do
passado. Afirmavaele, na condição de homem fixado na capital,
"no sertão, refugiam-se as tradições que não prezamos".32
Para Eloy de Souza, que havia entrado na política em 1894
sob a proteção de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão (sua
carreira foi desencadeada pela frase, uma promessa e uma con
vocação, que o chefe republicano dirigiu ao jovem estudante de
Direito: "Serás deputado"), as modificações indesejadas naquela
Natal das primeiras décadas do século XX não podiam ser atri
buídas somente àforça corrosiva do progresso sobre os costumes
31
tradicionais. E.oy de Souza atribuía muitos dos frutos ruins ger-
mmados dentro da cidade, que se modificava, ao legado que o
regune monárquico deixara para os governos republicanos To-
mava forma, desse modo, uma das fronteiras que de.imitava o
nm da velha Natal: ainstalação do regime republicano
Oprogresso, do qual os republicanos fizeram sua bandei
ra, trouxera entretanto problemas para aquela sodedade que vi
nha repousando no seu tranqüilo sono monárquico. Conforme
as palavras de Eloy de Souza (1873-1959), apartir de 1904 (ele se
referiaaumperíodocorrespondenteaosgovemosdeTavaresde
Lyra, 1904-1906, Antônio José de Melo eSouza, 1907-1908 ecom
preende osegundo governo de Alberto Maranhão, entre 1908 e
1913), tendo recebido inúmeras realizações, "Natal perdeu por
asam dizer, repentinamente, costumes que pareciam invetera
dos, não encontrando, entretanto, sucedâneos em harmonia com
as necessidades espirituais de seus habitantes»» Abase da afir
mação éamesma utilizada por Tavares de Lyra, porém aanálise
de Eloy de Souza procura compreender oefeito das mudanças
sobre as relações sociais. Ele enumera, na sua análise, a"indeci
são ereceio na escolha dos nossos hábitos", afalta de educação
dos moços eacarência de polidez, dois sinais que, segundo as
convés da época, atestavam obaixo "grau de civilização" de
nossa sociedade.
De fato, na opinião de Eloy de Souza, as moças de Natal vi
vam encerradas em casa, num inaceitável estado de ignorância
eb.sonfuce, oque olevava àconclusão cabal: "falta cordialida
de nas relações pessoais".- Contudo, ele deixava escapar no pe-
nult.mo parágrafo um otimismo súbito eincontido, dirigindo-se
32
assim à sua audiência: "Natal, minhas senhoras e meus senho
res, se transforma e sente-se que aos poucos irá deixando essa
amarga tristeza que ainda lhe dá um aspecto soturno e mau".35
Os pequenos sinais de mudança que ele observava à sua volta
podiam serenfileirados numaconsiderável enumeração: jardins,
árvores, avenidas, empedramento do areai que ligava a-Ribeira
à Cidade Alta, aterramento de alagados, bondes... E arrematava,
com uma frase em que o efeito retórico superava as evidências:
"Por toda a parte a visão de agonia do velho Natal...".36
Para Eloy de Souza, enfim, e ele partilhava da opinião cor
rente, assistia-se ao crepúsculo daquela Natal antiga, por obra
do progresso, ainda que, para ele, o saldo do progresso não fos
se de todo positivo. De modo inequívoco, o progresso arrasta
ra tudo consigo, na sua torrente avassaladora, o bom e o ruim.
Por exemplo, liquidara os bons costumes e as tradições ingênu
as, deixando para trás hábitos pitorescos como as peixadas na
praia da Redinha, as cavalhadas, a romaria votiva nos botes. A
paisagem mudava, o progresso dissolvia as relações tradicionais,
introduzindo novidades mal-assimiladas, produzindo-se uma
situação de desconcerto nas práticassociais ainda não sedimen
tadas entre os natalenses. Assim, a vida moderna exigia novas
formas de sociabilidade, que as pessoas de Natal soletrandoas
primeiras letras do abecedário da civilidade, ainda não se mos
travam capazes de praticar.
A despeito de tudo, entre os intelectuais da cidade, não fal
tavam diagnósticos positivos para Natal. Manoel Dantas (1867-
1924), por exemplo, escrevia em 1901: "Nesses tempos que vêm
perto, o Rio Grande do Norte terá atingido o desenvolvimento
33
que lhe está assegurado na vida dos povos, e Natal será uma
das grandes cidades da América".* Surpreende que esse mesmo
autor elaborasse, poucos anos depois, aentusiástica evisionária
conferência Natal daqui a50 anos?
Agitações modernas dentro da cidade de Natal
Mesmo que asensibilidade dos intelectuais dos anos 10 e20
deixasse ver aemergência de uma nova Natal no interior da velha
Natal, não há como identificar as fronteiras nítidas que situam ave
lha cidade no tempo, nem estabelecer sua cronologia, assinalandoa
data de sua origem ede seu desaparecimento. Entre os artífices des
sa Natal antiga, aqueles que no plano da representação (escreven
do crônicas, poesias, ficção, memórias) deram forma enome aessa
entidade, não havia acordo sobre isso. Muitos deles se inclinavam
aassociar essa cidade aum vago período que cobrira quase todo o
tempo vivido sob oregime monárquico. Rocha Pombo, em seu livro
de 1922, sintetizou aevolução da cidade no século XIX com essas
palavras: "Continuou Natal asua vida mofina até além de meados
do século". Eanunciou aentrada da cidade no século XX, depois de
apenas uma década de regime republicano, nesse tom animador:
"Estava, pois, preparada para fazer-se em breve uma das mais belas
capitais do Norte".» Aparece aí, novamente, odiscurso dos republi
canos que pretendiam reivindicar apaternidade dessa nova Natal.
Embora estivesse muito longe de ser um entusiasta do re
gime republicano (em parte por uma questão de geração, pois
quando aRepública foi instalada ele contava apenas dez anos),
Câmara Cascudo reforçou ainterpretação do papel do regime
republicano na dinamização da vida da cidade, formulada por
34
aqueles segundo os quais o que havia de condenável na velha
Natal ia sendo superado pelo efeito das energias irradiadas do
regime instalado em 1889. Para esses entusiastas republicanos,
o tempo da monarquia deixara a marca do atraso e abandono
da província do Rio Grande do Norte, quando, obedecendo a
um princípio de rotatividade adotado como estratégia na orga
nização política do Império, os governos provinciais eram entre
gues aos filhos de outras províncias, destinando-se àpobre terra,
freqüentemente, governantes desenraizados e alheios ao desti
no dos potiguares.39 Assim, numa das crônicas desta coletânea,
Cascudo perfila opresidente de província Alarido José Furtado,
aquele que "treze meses depois largava opoleiro", tendo reali
zado uma administração que poderia serretratada num relatório
de três frases: "Não fez coisa alguma. Nem um benefício. Nem
uma machadada abrindo rua."(Larico Pellado).40
Para Cascudo, o não fazer nada, o nada acontecer, era um
dos traços daquela Natal do passado, presa na imobilidade. Não
sabemos se, no rigor do termo, a imobilidade era um atributo
da velha Natal. As coisas, os costumes, as formas de concebere
de sentir o mundo estavam se movimentando, mesmo para os
natalenses, ainda que por canais que não temos ainda como re
conhecer, e emdimensões que ainda não temos como avaliar. A
interpretação de um mundo imóvel se deve a uma visão de his
tória, ao modo como o historiador trata seu objeto de estudo, e
provavelmente, aofato deque ele tomou como escala demedida
a dinâmica do tempoque ele percebia nos anos 20.
E aqui aparecem as grandes linhas que caracterizam a
abordagem de Cascudo sobre o passado, tanto o historiador
35
comoo estudiosoda cultura popular:o historiadorCascudo des
creve uma sociedade esvaziada de suas tensões, protegida das
rupturas radicais. Seu tratamento folclórico concebe o passado
da cidade como odomínio de uma cultura popular na qual se
sobressai uma doce ingenuidade, privada de toda manifestação
dissonante, alheia às forças sociais.41 Opassado que Cascudo
traz à tona, o passado da cultura popular, confere ao escritor a
condição de criador e voz dessa cultura, numa operação assim
descrita por um estudioso do tema:
Ele, ofolclorista ou etnógrafo que fala do morto, apretex
to de lhe devolver avida, mas que só osepulta eodistan
cia cada vez mais. Vozes de apossamento, de captura, que
vaodesenhando uma geografia do eliminado, ao mesmo
tempo que instituem um lugar para o iluminado, aquele
que pode dar novamente a luz a estes sujeitos obscureci-
dos, salvadores de um saber condenado.42
Em Cascudo, o povo será fixado assim: um aglomerado
sem nome, quenão aparece senão sob oclarão deseus atributos,
a espontaneidade, a criatividade e a irreverência (ver a crônica
sobre Larico Pellado). Ele se torna visível nas festas, nos folgue
dos, esó ganha existência dentro da coletividade indistinta, mo-
vendo-se sob oimpério da irracionalidade. Observa-se que esse
povo não tem classe, nem família, nem individualidade.
Do mesmo modo que, no início do século, Eloy de Souza e
Henrique Castriciano ofizeram, Cascudo descrevia Natal como
uma cidade de vida pública retraída, defeito que estava ligado
ao fraco espírito de iniciativa de sua população, ou seja, àfalta
de ações associativas visando no bem-comum ("não possuímos
oinstinto do 'saloon', do ambiente, do ajuntamento", afirma ele
em Anoite em Natal). Avida das ruas é dominada, de um lado,
36
pelos gestos solitários eautoritários dos governantes; de outro,
pelo silêncio morrinhento, periodicamente rompido pelas emo
ções coletivas de alegria, eventualmente pelo medo epela dor.
Em Odoutor Antunes, o cronista observa a "pacata domes-
ticidade de Natal", aludindo às formas de sociabilidade da cida
de, ou mais precisamente, aquilo que poderia ser descrito como
uma ausência dessa sociabilidade. Pois as formas de se agregar
em torno de igrejas, santos e procissões, base da sociabilidade
desde os tempos coloniais, não podiam, segundo o pensamento
dominante naquele começo de século XX, dar os fundamentos
da sociedade moderna.
Assim, o natalense é retratado como um ser que desapa
rece nas sombras do mundo familiar (a família permaneceu por
muito tempo em uma zona escura para os historiadores). Desa
parecida entre as paredes domésticas, avida privada opaca não
era compensada por uma vida pública ativa, que, aos olhos dos
reformadores do início do século, como Castriciano, e dos que
vieram depois, como Cascudo, parecia profundamente debilita
da. Cascudo, como se estivesse dando prosseguimento à incan
sável campanha de seu mestre e amigo Castriciano, mobilizou
suas crônicas para mudar esse quadro. Nelas, ele chamava os
moradores da cidade para freqüentar as praças e as cerimônias
públicas, propondo nos seus escritos, ações que possam dinami
zar a vida urbana.
Demodo semelhante, e maisuma vez desenvolvendo uma
linha de pensamento muitopróxima à de Castriciano, aspropos
tas de Cascudo se voltavam para a criação de instituições que
reunissem os indivíduos em torno de interesses comuns, uma
37
vez que aassociação era um instrumento do progresso, segundo
omodo do século XIX conceber aevolução social. Cascudo se
inscrevia na continuidade daqueles reformadores sociais do co
meço do século, que pediam que os natalenses se juntassem em
formas de organizações leigas que contribuíssem com ainstru
ção das pessoas, difundissem aprática dos esportes, reunissem ;
capital para promover melhoramentos urbanos. E, de fato pelo
menos uma dessas iniciativas deu um fruto duradouro: aLiga de
Ensmo, tendo Henrique Castriciano àfrente, fundada em 191!
da qual se originaria aEscola Doméstica de Natal. Ardia dentro'
do jovem cronista, com amesma intensidade que em Henrique
Castnciano eem Manoel Dantas, oanseio de ver surgirem na ca
pital lugares apropriados ao exercício de novas sociabilidades.«
Ainda no começo da década de 20, Cascudo não reconhe
ça grandes mudanças na cidade. Em 1921, quando publicou
Alma patrícia, ele se reportava aNatal quando mencionoua"tris
teza ntual das cidades pequenas"." Tratava-se de uma cidade
tao macambuzia quanto aquela Natal que alguém, identificando-
-se como D, descrevia quase vinte ecinco anos antes:
Ita7tadomf^°HS "em paSSeÍOS' de conv(vio s°dal ™«o
fada n„T men°S e"I derredor sorri a™^eza opulen:tada pela majestosa altaneria das florestas virgens para
o.nd.v.duo que deseja distrair-se, ocarnaval Seradocomo um Oásis no deserto dessa sensaborona Z£pS£
De acordo com D, Natal parecia um lugar desprovido de
tudo, anão ser do Carnaval. Entretanto, econtinuarmos aleitura
da croruca, veremos que operíodo seguinte retira toda esperança
do leItor ao afirmar que naquela cidade mesmo os momentos de
38
expansão festiva eram insípidos: "Mas aqui o carnaval é justa
mentea épocaem que a gente mais se aborrece".46
Em face disso, a Cascudo e a outros intelectuais da cidade,
impunha-se uma espécie de missão civilizadora. Seguindo uma
tradição que se manifestava desdea passagem do século, tendo
à frente Manoel Dantas, Eloy de Souza e Henrique Castriciano,
cada um no seu estilo, Câmara Cascudo é o intelectual inspirado
pelo desejo deação: assuas crônicas revelam odesejo deagir so
bre o meio, reformá-lo, conduzir os rumos do futuro da cidade.
Formulando sugestões pragmáticas em letra impressa, nos
jornais, revistas e livros, esses intelectuais podiam atingir opúbli
co leitor, participar da criação de um sistema literário na provín
cia e, especialmente aqueles que detinham um saber especializa
do (engenheiros e médicos), agir efetivamente sobre a realidade
local, à medida que iam se inserindo na máquina do governo.
Tanto quanto a geração que os precedeu, Cascudo e seus
contemporâneos, manejando vários gêneros de escrita, procura
ram interferir na organização da vida coletiva dos moradores de
Natale pensando no seu desempenho podemos afirmar que, sob
o ponto de vista simbólico, elesproduziram a cidade.47 Entretanto,
pelo menos num ponto Cascudo se diferenciava da maioria de
seus contemporâneos dos anos 20: enquanto alguns, em nome do
ideal moderno, recusavam ou viam com reservas as manifesta
ções dopovo (o quemais tarde seria chamado de cultura popular),
Cascudo jáaparece nessas crônicas como ofolclorista que se em
penha na preservação dessas manifestações. Assim, em Proteção
da alegria popular, ele condenava a posição de indiferença e es-
nobismo das elites locais ("possuímos um solene desprezo pelo
3.9
espírito popular"), conferindo valor ao folguedo, explicando que
obumba meu boi espelhava "através duma síntese de sarcasmo
alegre ede descuidosa alegria acrítica eoregistro da evolução
social eeconômica da região." E, logo aseguir:
vflas" HnTnt13 figU/aS Saíram da vida das fa2mdas edas
mini^ / SalU? me$tiça im0bili2a admiravel-mente todos os fatores históricos do nosso passado. É
Zneo a"drama °nde 0S ePbódios ePiloSam tudo
quantoimpressionou a moral ambiente.
Cascudo chegou apedir aintervenção do Estado para a
preservação dessas manifestações tradicionais, antevendo oefei
to destrutivo da modernização sobre elas:
Ogoverno do Estado edo Município nio vindo em aiuda
aesta gente, simplificando as exibições econferindo pní
Ts mTrrerfeM ÍS" <"** f°daS aS fatas *ad"°-
Corn^n,. H? M0,Tera0 CT° Uma la«°a vai se **ando.<-om lentidãoe sem parar de secar.
Na crônica Eanossa universidade popular?, dentro das ativi
dades educativas desencadeadas pelo governador José Augusto
ele sugere assuntos que pudessem concorrer com ainstrução do
operanado, indicando os nomes dos palestrantes para desenvol
ver cada um deles assuntos.* Assim, depois de aludir ao plano
de estudos que traçara para aUniversidade Popular, Cascudo
conclama dois intelectuais que haviam realizado viagem de es
tudos ao Egito, Eloy de Souza eCristovam Dantas, para falar ao
publico naquele grêmio. Omesmo em relação aJanuário Cicco
sobre os remédios populares que omédico andava estudando
Pretendia contar igualmente, nesse empreendimento, com aco
laboração de um íntimo conhecedor do "sertão antigo", ogover
nador Juvenal Lamartine.
40
Aseleção dos temas que deveriam ser explanados diante dos
operários demarcava cs interesses que, ao longo dos anos, iriam
fecundar os estudos deCascudo. Ainiciativa revela apreocupação
com o registro dos depoimentos pessoais colhidos daqueles que
eram capazes de falar sobre o passado, fornecendo informações
para ocronista da Natal antiga. Atodas as pessoas que haviam
conhecido acidade antiga, como também osertão antigo, Cascudo
dirigia indagações, na empreitada de reconstituir opassado em to
das as suas matizes. Seu rol de informantes incluía homens cultos
como Juvenal Lamartine epescadores como Chico Preto. Adeter
minação de Cascudo na preservação eno registro das informações
concernentes ao passado dacidade e da cultura popular se torna
ainda mais compreensível se considerarmos que acidade guardou
muito pouco dos registros do seu passado. Por isso, as fontes orais
são os que Cascudo tem de mais precioso: écom elas que ohisto
riador, do mesmo modo que o folclorista, vai compor seus livros.
Daí a ansiedade do autor de ouvir a todos, saber tudo, registrar as
minúcias daquilo que os informantes têma revelar.
As conferências deviam antes de qualquer coisa concorrer
paraa instrução dos indivíduos. Aliás, comessas recomendações
ao plano de estudos da Universidade Popular, Cascudo assina
la uma diferença de posição em relação ao gênero literário em
voga nas primeiras décadasdo século XX, as conferências literá
rias, que proliferaram na atmosfera finissecular da Belle Epoque
da Capital Federal, o Rio de Janeiro, se espalhando como uma
febre elegante nos centros urbanos da periferia intelectual do
país. Conferências dirigidasa um públicoávido por novidadese
sensíveis aos floreios verbais, consistindo em exercícios literários
41
em torno de assuntos como aflor, oleque, obinóculo.» Cascudo
recusava esse gênero fátuo, lembrando-se de advertir aos seus
hv Tf?b"nada ^ CUmPddeZa' ^ deSCO~s, de tenta-hva de falar boruto." (£ „nossa universidade popular?)
Entretanto, as inidativas destinadas adisseminar ains
trução necessária ao aprimoramento da população de Natal pa-reciam t da ^^ ^ ^ ^^^ P
Inst^toH.storicoeCeográhcodoRioCrandedoNortesedesin-umb de tarefa dvilizadora a jn8títuiçao
focada Pe.o espírito burocrático, exibia um gosto pronuncado
por comemorações. Cascudo registra os poucos nomes daqueles
socos que consagravam otempo pesquisando opassado da pro-
mc.V.cente Lemos, Nestor Lima, Manuel Dantas,
Lyra, Me.ra eSá eAntônio de Souza, um gropo pequeno de es.
tud.osos que -observemos -acrescentavam aos cargos públicos
que exerçam aimensa tarefa de praticamente iniciar apesquisa
histórica no Rio Grande do Norte. ^
Despertam as forças do progresso, nasce acidade
Para Luís da Câmara Cascudo, epossivelmente para toda
sua gerado fora do Estado nâo havia possibUidade de renova-oda Cldade. Mas os afortunados nata]enses ^ me^ ^
dida os norte-rio-grandenses) tiveram asorte de, apartir de me
ados da década de «20, ganhar dois governantes esclarecidos á
.turada tarefa modernizado, que otempo impunha aeles. Se
anos o °naSCT° ^ °Ídade de NataI <* — Natal) nosanos 20 estava na administração do prefeito Ornar 0<Crady ou
tro smal estava na gestão realizada por dois governadores do Rio
42
Grande do Norte, no período entre 1924e 1930,José Augusto Be
zerra de Medeiros e Juvenal Lamartine de Faria. Antes que, entre
os anos 30 e 40, o cronista Cascudo fosse deixando cair umas
gotas deamargura e pincelando uns tons crepusculares sobre as
crônicas que tratavam da cidade desaparecida no passado50, na
queles anos 20, diferentemente, eleestava exaltando o despertar
das forças do progresso acionadas pelos dois governantes deter
minados a dar uma feição moderna à capital.
A atuação de José Augusto, pondo ênfase na educação, na
higiene e na modernização da agricultura, procurara imprimir
uma nova organização na vida econômica, na saúde dos indiví
duos e dos negócios do Estado. No seu governo teriamaparecido
às linhas de ação que caracterizamos modos de administração
modernos - a racionalidade, a impessoalidade - dirigidas para a
solução e harmonização das grandes tensões da sociedade. As
sim, Cascudo enfatizava o culto ao trabalho que ele promovia,
pondo ênfase nas suas medidas destinadas à instrução do pro
letariado. Ganhava força à concepção da qual o trabalho era um
fator de progresso e virtude social, justamente num período em
que o tom de voz do proletariado urbano se elevava na cena po
lítica local. Como parte da estratégia populista de seu governo,
José Augusto dirigiu ações tais como a instrução dos trabalha
dores e a melhoria da moradia proletária, inspiradas nos princí
pios científicos que postulavam a associação entre as condições
do ambiente e as características morais dos indivíduos (A casa do
operário eEa nossa Universidade Popular?)?
Esse ciclo de realizações, que seria quebrado com a queda
de Lamartine, em outubro de 1930, animava os jovens intelectu-
43
-s. Alguns deles se inflamavam com ajuventude que irradiava
daqueles dois homens maduros, José Augusto eJuvenalÍa
xahado ainda que Cascudo era Hdgar Barbosa, em crôni am-iadaS^^^,^^^^^^^^^^
dXirms%mdta^r'siva saír desse ambfe-mava em uma bagunça ,VrS T"? qUe a transfol-•«o jerimum Sffi^'íer™^2 Um ^
laboriosamente em dias H„ it agreste "'aramentre as pzlrnj™ £g?;™™°™^«do... A^
onde passam todos os venceIresdo^Tma' S"4 P°rzando em audácias de aro .S Zul que estào rea'i-
de ícaro, aqui, onde na m . °,° SOnho ™tologico
Io, tinha de se môvfmen? ma'°r 'deia liberal d° sécu-
parados, uma s™o eTnânTo^fo6"^"» C°raçteveias nordestinas...» namca 1ue com» pujante pelas
Mais ou menos na mesma época, ereferindo-se aJuvenal
Lamartine, que na crônica de Edgar Barbosa, realizara "audÍ
c.asdeaçoealumínio^fazendovibrar-sanguenovo^Cald"num de 1928; intitu)ada „Eu^ temo . «£
uiu: i;;;ta retânea)'decamava â de l~-dü ri 6StaVa COnheCend° - -5-*. *> trabalho assíduo. Euma surpresa oencanto das avenidas, orendilhado dasjamas o jüveni] duma tem despMa „£ma;s ^ds
te fixava esse retrato meio futurista de uma Natal que ia sen
do arrastada para ofuturo pela marcha do progresso:
™oU;r d°o? p^iSeTT0 d°S SUÍndastes' dos
essa aeE7â° ^ ' m°ddade" "* 3C0rd° COm escudo foiessa aexclamação pronunciada por Juvenal Lamarfine. Eas qua-
44
lidades excepcionais do governante vão sendo reveladas, uma a
uma, no perfil traçado pelo cronista: "Um presidente que guia
automóvel, viaja de avião, discute literatura, dirige politicamen
te a campanha do feminismo brasileiro é pouco parecido comas
figuras hirtas e que quatrienalmente recebemditirambos nos Es
tados".54 Automóvel, avião, proximidade dos homens de letras,
voto feminino... Eis as forças das quais, em sua curta administra
ção de dois anos, Juvenal Lamartine lançou mão para forjar sua
imagem de governante e homem moderno, com que chegou à
posteridade local.
A aviaçãoregular, de fato, chegou ao Rio Grande do Norte
ainda na administração de José Augusto, cujo marco inicial foi
à abertura do campo de pouso de Parnamirim, com o estímulo
do então senador Juvenal Lamartine.55 Foi entre a administração
José Augusto, com pleno apoio e com continuidade de Juvenal
Lamartine, que a cidade de Natalentrou na rotamundial da avia
ção. Com a instalação da linha francesa de aviação postal ligan
do Natal, acosta do Senegal eaFrança, por meio da Companhia
Latécoère, em seguida Compagnie Générale Aéropostale, àqual
se somaram bem cedo as concorrentes italianas, inglesas enorte-
-americanas. Em pouco tempo, Natal tornou-se "porta de entrada
do continente sul-americano" eem maio de 1930 protagonizou a
façanha de Jean Mermoz, oprincipal piloto da Aéropostale, que
realizou atravessia aérea direto do Senegal àdesembocadura do
Potengi. Toda essa movimentação foi acompanhado pelo Cascu
do jornalista, cujas notas sobre aviação apareceram recentemen
te-* Aposição estratégica da cidade valeu-lhe olisonjeiro título
'cais da Europa", que as elites locais trataram de difundir.57
45
Segundo Cascudo, Lamartine gaivanizava as energias
mancpatorias que se manifestavam por todos os lados. Alg^
cheg r aacreditar que aprópria polífica, inspirada na purfra
ep s nt VÍdad° ^ V°ntadeS P«™•"- querep.sen ava .gnorância eatraso* Era patente avibração dos io-
«rCT"em reIaçâ0 aos govemos renovad°- v̂j.
lulo XX aqUe,e m0VÍment° M«*«™*- ^ Laoséculo XX se iniciar sob aforte sensar^a*
ui ie sensação de renascimento pm vá•os dommios da organizaçâo da ^ -jm -
=5==£=2e£
do governo, especiahnente do governo Lamartine tive am um
-prego pouco criativo: na bruta„dade contra aopol 0pI
menos contra amais incontida, pondoanu ofato de que filll
herda oos métodos da velha política de seus antecesoreÍZ
1 ndloa ^^" ÍmPUÍSÍ°naVa aP0'ÍHCa e*«—iecundando as .deolog.as totalitárias iniciadas na Europa «
s^ulo^^'"^^^^^^i***
r; zrr quepaxtóamanundara~^o^mulher. As mulheres letradas, ainda que fossem poucas também
Tm°̂ *"'<*̂ *™fratura adornada cmtetonca«.^reveIa.se a - :
^™ :r;sodedade em muda- -*»^ -:Pe V, ,flcto;, em que se^^„a mu]her nafa)ense ^
46
sido,em todos os tempos, escravizada aos preconceitos - verdadei
ros entraves à sua marcha pela vida. Em geral, na estreiteza do meio
ambiente, quanto não tem de cumprir a nobremissãode esposa e
mãe, existe como se fosse uma planta de estufa". E, mais adiante,
revelando a esperançade uma emancipação por meioda instrução:
"Um gesto decisivo seria oavanço para a emancipação doseu espí
rito. Que a mulher de amanhã o tenha mais esclarecido!"61 Embora
não saibamos se era isso o que efetivamente pediam as redatoras de
Via láctea, Lamartine teve um gesto de repercussão nacional volta
doparaasmulheres do Rio Grande do Norte, fazendo introduzir na
lei eleitoral do Estado, em 1927, o direito do voto feminino.62
O governo de Juvenal, prosseguindo o de José Augusto,
e, sob alguns aspectos particulares, o de Alberto Maranhão, no
início do século, teria descortinado novas perspectivas para os
jovens. Com efeito, o governante fornecia abrigo a muitos ho
mens de letras e aos tecnicamente qualificados, alargando aquela
proteção às atividades intelectuais promovidas ainda no gover
no de Alberto Maranhão, especificamente com a lei de apoio a
publicação de livros, aprovada em agostode 1900, recordada por
Cascudo numa crônica, em que prescreve oscasos emquese de
veria recorrer a ela. (ver a crônica Lei n.145).
José Augusto, que antecedera Lamartine, jáhavia recebido
sua cota de palavras entusiastas da parte de Cascudo. Assim,
em Homo brasiliensis, Cascudo saudava a emergência entre nós
de um novo tipo de homem (José Augusto), o qual, adotando
um novo estilo de governo, teria afastado a influência daquela
política corroída pelos vícios do personalismo e dos interesses
pessoais que emperravam o progresso ea autonomia do Estado.
47
Ja em Lamartine, Cascudo via um governante que estava
adotando métodos modernos de organização da produção edos
dados da economia estadual, essa última mediante aorganiza
ção da Diretoria Geral de Estatística, dirigida por Anfilóquio Cã- >
mara. Em Anossa D. G. de E., ele discorre sobre oensino agrícola j
mcenfivado por Lamartine, uma iniciativa que ilustrava aquele
mtuito de aplicar conhecimentos técnicos àprodução, acionando
as estações experimentais eas fazendas de sementes, parte de
uma política de melhoramentos da lavoura do algodão «
Todavia, cercar-se da força eda vitalidade dos jovens não
semeavam, por si só, uma renovação virtuosa. Em livro prepa
rado no exílio, depois de ser destituído do governo, oex-gover
nador deixa evidente as limitações que tivera de enfrentar para
desenvolver uma administração avançada, procurava justificar
as nomeações de familiares para auxiliá-lo em cargos de primei
ra .mportância - como odo engenheiro agrônomo Cristovam
Dantas, filho de Manoel Dantas eseu sobrinho; ade Olavo La
martine, seu filho; ade Octavio Lamartine, outro filho etambém
engenheiro agrônomo -argumentando que havia recrutado seus
auxihares dentro do próprio círculo familiar por não encontrar
no me.o natalense(é isso que ofeitor depreende dessas páginas
de Lamartine) gente mais qualificada para as funções técnicas
requeridas por sua administração.64
Em Por aue não temos um centro musical? Cascudo identifica
- governo de Juvenal Lamartine aforça do instrumento mais
revoIuclonário da Vlda moderna. os aviões^ ou nas ^^
os aviões trepidantes", que passam pelos céus do Rio Grande
do Norte. Oavião, assim como oautomóvel, introduzia-se na
48
cena natalense, entusiasmando acidade eentrando na literatura
local. Esse foi um dos grandes elementos aque Lamartine asso
ciou sua reputação de governante esclarecido.
Aelaboração dessa nova sociedade trazia seus modelos,
que estavam nas nações que integravam aquüo que se entendia,
na época, como o"mundo civilizado": França, Inglaterra, Esta
dos Unidos... As crônicas que Cristovam Dantas escreveu nos
anos 20, no jornal ARepública, dando otestemunho edificante
sobre uma sociedade digna de ser imitada, acivilização norte-
-americana, com oseu amor às árvores eaos maquinismos, in
troduzia outros modelos que poderiam orientar aformação de
uma nova cidade.65
As influências novas sobre acidade, aformação de hábitos
novos eaprodução de novas sensibilidades, eram acompanha
das de uma enxurrada de novos nomes. Assim como os nomes
nem sempre eram de fácil pronúncia, os elementos que eles de
signavam nem sempre eram facilmente assimilados. Era aessa
situação que se reportava Eloy de Souza ao comentar os desa
justes que ele observava nas relações sociais entre os natalenses.
Relaciona-se a isso o fato que podemos observar no mo
dernismo local dos anos 20. Entre nós, pode-se dizer que, pelo
menos na sua expressão mais elevada, apoesia de Jorge Fernan
des, arepresentação da vida moderna se dá recorrendo ao léxico
da tradição para descrever os elementos novos que irrompem
no meio potiguar. Em alguns de seus textos, os instrumentos da
modernidade, ao entrarem na realidade local parece não terem
chegado a adquirir uma autonomia lingüística em face dos ele
mentos da cultura local. Podemos lembrar a descrição do Ford
49
amerissagem seeuia M u mdroaviao' ™«npacto da
ficabatend dese^estando, espalhando aágua Enca batendo opapo, cansado de voar..."."
passado remi u" '*^"'^ »*«* —
dos anosr:Pr::riação dos ,etrados -m—**-*
rio, desenvolva li;;CTem0**^ ***"»•
balho intelectua e,e J °" ^ ^ "° « «»
de 1920 a a °na ^ paSSad0- Co™ nos anos
ni irjr::seria consasrad° •-1—--oncebla etazia asuperfíde QpassadQ ^ ^ cj^
-efa*^^^ f ""*«"a*—*"vestida da
«stóricoeCeorfiTÍ "°^ * ^ °^*° eLje°granco doRio Grande doKW* r
*« odever dos historiadores da c ade^ ' "^
esquecimento, encontrando estudald "^'"anuo, estudando ecomentando os docu-
50
mentos que falavam desse passado. Um passado queseexprimi
riaemcertos temas particulares, que ele mesmo chegoua indicar
como sugestões de estudos.
Por outro lado, a reconstituição histórica que Cascudo rea
liza da cidade antiga levava em conta as estreitas relações entre
os indivíduos e o meio onde viviam. Esses traços aparecem tão
próximos nos textos de Cascudo, nas fisionomias dos moradores
da cidade,pelo menos daqueles que ele considerava representa
tivos, a ponto de deixar a sugestão que os tipos humanos carre
gam em sios mesmos traços da cidade. Verifica-se uma espécie
de afinidade de caracteres entre o meio e o indivíduo, mas em
Cascudo essa afinidade perde seus fundamentos cientificistasdo
século XIX e de seu mestre e amigo Castriciano, e se converte
em simples procedimento literário. São incontáveis os indiví
duos que, nos perfis traçados por Cascudo, parecem conservar
uma espécie de fidelidade àquele "espírito do lugar", constante,
etéreo, que se impregna em seus moradores, especialmente na
queles "tipos representativos" da cidade, que forma objeto de
muitas de suas crônicas.
Sua concepção a respeito de registro do passado é ampla,
ele se orienta segundo um sentido largo ao usar os documentos
para reconstituir o passado da cidade, extraindo o que era possí
vel dos vestígios escassos. Ele amplia as possibilidadesdo reper
tório documental do historiador. E faz isso, por exemplo, incor
porando a noção de validade dos testemunhos de todos, sábios e
ignorantes, exatos e boateiros. Por isso ele sustentou o papel da
anedota como fonte importante para o estudioso da sociedade. E
numa crônica de 1928, não incluída nesta coletânea, sugere que
51
Postulava aimportância^^^^°<"**«*
zada, afirmando que nenhum . "^ em Sera' menospre-
uma vez que ela ' exo ^ P°d6 ^"^ deIa,
Pe-tiu apreender addTCTT ""*^ "" I
mento comum aora« a m°S ac*ui um eIe-
*-UUIum ao Cascudo dos ano* ?n ~
está nascendo, eoCascudo , *^ ddade ^
tes. Observamos ma f T "*"*^ «^S^
temperamen: e:i^rd° ^ **—«- Pe«o
—pó..'., ^e^~--*~--
ocotidiano, mesmo oprosaico EleTport d "PeqUen°'
sencialmente um cronista ,V nT ' °S HtaIos' es"
imensoeeclé lol üT* " l"*tt« «*»* -
caior das ruas Ele ,è sbre "" ""*"^**"*»
humamdade as mfi T W ' *"""* "*** da
d-"sares;z::re::::::arp,san°-
ritmo easolidão das ruas os ti i *** C°ÍSaS' °
earealidade, ocronista ado P ^ "** *̂ ^
eom as ruas Assim d tT " mStrUment°S para —rsar
-am aoso^^l**"*"—- sus-
"o tempo; "Há ^s Das T !""^ ' " "*" ""*««aS PaSSad°S' fí2 um Passeio csmarento elon-
52
gopelas velhas ruasde Natal. Tanta casa silenciosa rompendo a
mudez para gritar-menomes e erguer figuras idas no pretérito"
(O doutor Antunes).
Cascudo nasceu na cidade de Natal do ano de 1898, cir
cunstância que lhe permitiu travar contato, desde a infância, com
a velhice de natalenses que vinham de meados do século XIX, de
modo que ele pode ouvir relatos dos antigos e pôde reconhecer
à sua volta os velhos costumes que resistiram até os anos 10 e 20.
Para saber a respeito daquelas épocas que sua vivência pessoal
não poderia ter alcançado, e que ele, por conseguinte, não pode
ria recordar, valia-se exaustivamente do saber de seus informan
tes. Os depoimentos foram essenciais no seu método de recons-
tituição histórica. Na busca dos traços do passado, o cronista se
refere às histórias que circulam entre os natalenses indagando:
"Quantas rolam ainda semi-mortas na memória coletiva?" Com
efeito, de um de seus perfilados, ele afirma, arrematando: "Ficou
da sua vida um traço." (O doutor Antunes). Mas, é com esses tra
ços que ele vai reconstituindo as vidas desaparecidas dentro da
cidade, deixando-nos alguns perfis magistrais nas crônicas que
se iniciam nesses anos 20.
Com o distanciamento operado pelo tempo, a cidade re
construída por Cascudo e outros intelectuais figuraria cada vez
mais claramente como a pátria ideal para o homem, que chega
va aos seus dias de velhice num ambiente que se modificava de
modo acelerado, sem deixar registro nem notícia. Somente bus
cando esses vestígios precários, podia serrecuperado o passado
na cidade deescrita escassa e memória frágil. Por isso ele escreve
sobre Junqueira Ayres, aquele que deu nome à rua que passava
Ç3
diante da ultima residência do cronista: "Para nós está esquec-
do.Nadavivequelherecordeopassado.Ageraçãoqueoconheceudispensou-se de justifica ]n ™ ,ejushhca-Io para anossa." (Junaueira Ayres).
Ocromsta vive opresente da cidade eestuda oseu pass -
Cidades. Com efe.to, aNata, que toma forma nos anos 20 eo
54
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WEBER, Eugen. Françafin-de-siècle São Pauln- r«• ^ao Iaulo. Companhia das Letras, 1988.
58
Notas
i Foramcorrigidas imprecisões, desfeito o erro relativo ao ano de nas
cimento de CâmaraCascudo, algumaspassagens foram melhoradas e algumas
linhas desnecessárias foram suprimidas. Na parte correspondente à seleção de
crônicas de Cascudo, nada foi modificado. Continuam os dezesseis escritos,
publicados nos anos de1924,1927,1928 e, em sua maior parte, no ano de1929.
Crônicas de Origem continua soba autoria de Cascudo, porque entendoque as
crônicasdo intelectual fortemente vinculado a sua cidade,que por mais de seis
décadas foi testemunha privilegiada da vida natalense,são o que o livro traz de
original e revelador. Nesta segunda edição, agradeço a leitura competente feita
pelo colega e amigo, professor Raimundo Nonato deAraújo Rocha.
2 A primeira crônica de Cascudo foi publicada em 18de outubro de
1918, no jornal A Imprensa, sobo título Bric-à-brac, e pode ser lida em LIMA,
Diógenes da Cunha. Câmara Cascudo, umbrasileiro feliz, p.51-52.
3 A República, 15 abril 1896.
4 NESI, Jeane Fonseca Leite. Caminhos de Natal, p. 15-20.
5 CASCUDO, Luís da Câmara. Históriada cidade doNatal, p. 335.
6 Sobre o papel de Cascudo na vida cultural da cidade, ver GURGEL,
Tarcísio. Informação daliteratura potiguar, p. 59-60.Posteriormente, esse estudio
so tratou da vida literária em Natal na obra Belle époque na esquina: o que se
passou na República das Letras potiguar, p. 249-267.
Explorei a relação entre as crônicas de Cascudo e a consolidação do
papel de historiador da cidade em ARRAIS, Raimundo. Posfácio. In: CASCU
DO,Luís da Câmara. História da cidade do Natal. 4. ed, p. 623-648.
9
10
11
p. 193,179;
12 ld.Ontem: maginações e notas deum professor de província, p. 59.
13 DANTAS, George Alexandre Ferreira. Natal "Cães da Europa": o
;I^° Geral de Sistematização no contexto da modernização da cidade (1929-
1930), p. 67-68.
14 Sobre oassunto, ver ANDRADE, Alenuska KellvG. Aalma da cidade, aener
gia elétrica em Natal (1905-1920). Sobre opapel do bonde na expansão física do espaço
nsico de Natal, ver COSTA, Madslane Leandro da. Natal: quando amodernidade vi
nha debonde, cap. 4"Natal: decidade a urbe: ocaminho dasua modernização".
CASCUDO, Luís da Câmara. Alma patrícia, p. 109-124.
ld. O tempo e eu (confidencias e proposições), p. 61-62.
Coisas da Terra. A República, 12set.1908.
CASCUDO, Luís da Câmara. O tempo eeu (confidencias e proposições),
59
!í
f-J
L5
16
19
20
22
poesias, vC2^Tfo5C'ANa "^"^ *«-* 19 fev. 1,08. ,n: Sefete textos e
26 WFRPI3 c r, F *-•"•/p. iUo-111.
mais forte». *' E"gen' Fr""ffin-desièck, cap. 11 «Mais ráDi . .
r mais rápido, mais alto
60
^ adia. Com ainiendència. D,„>,0 do Natal, 02 ^ ^
17 Sobre aCidade Nova, ver PAtVA r~ H-ow*.
cesso de modernização do Natal, ££$£ f^"™" * **«̂ ^°Pr»
SOUZA, Eloy de. Memórias, p. 25.
NESI, Jeanne Fonseca Leite. Cannnhos de Nata,, p85 112
Oaszs. Periódico Litterario enoticioso, 1894 e1897.
30 CASTRICIANO, Henrique. Se/eta: textos e poesias. Cinco minutos, 24
abril 1920,p. 367.
31 Jacinto Canela de Ferro (SOUZA, Eloy de). Cartas de um desconhecido,
p. 69-71- Essa carta éde 14 de maio de 1914.
32 SOUZA, Eloy de. Costumes locais, p. 16-24.
33 SOUZA, Eloy de. Costumes locais, p. 40. Sobre as realizações desses
governos, incluindo o segundo governo de Alberto Maranhão, ver SOUZA,
Itamar de. ARepública Velha no Rio Grande do Norte, 4a. parte "A administração
dos governos estaduais".
34 SOUZA, Eloy de. Costumes locais, p. 43.
35 ld., p. 44.
36 ld., p. 46.
37 DANTAS, Manoel. Homens deoutrora, p. 151.
38 POMBO, Rocha. História do Estado do Rio Grande do Norte, p. 371-372.
39 Aexplicação dessa estratégia está emCARVALHO, José Murilo de. A
construção daordem: a elite imperial, 1996.
40 O perfil desse administrador, num tom mais sóbrio (se comparado
com a crônica Larico Pellado), está em CASCUDO, Luís da Câmara. Governo
do Rio Grande do Norte, p. 51-52.
41 Na História da cidade do Natal há algunsexemplos dessaingenuidade das
festas populares. CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal, p.127.
42 ALBUQUERQUEJÚNIOR, Durval Muniz de. Luís da Câmara Cascu
do em As batalhas contra o tempo: a biografia histórica de um erudito brasileiro
(1898-1986). Projeto de pesquisa CNPq., 2004. Digitado.
43 MARINHO, Márcia. Natal também civiliza-se:sociabilidade, lazer e es
porte na Belle Époque natalense, 2011.
44 CASCUDO, Luísda Câmara. Alma patrícia, p. 47.
45 A República, 07 mar. 1897.
46 ld.
47 Um exemplo desse engajamento está na ficção moralista, queexpõe
a hipocrisia da sociedade moderna e o cerco que ela promovia aos "valores
tradicionais". Veja-se, porexemplo, o livro de Lucas da Costa, Disfarçados, de
1924, tratando das máscaras usadas na vida pública, e os dois romances de
Polycarpo Feitosa, nome literário do governador Antônio José de Melo eSouza
(governador em 1907-1908; 1908-1913), Gizinha, de1930, eOs Moluscos, de1938,
tematizando a situação da família na sociedade natalense.
61
48 Uma análise da UniversiriArU p~„ i • ,
contrabalançara liderança de5ífS„''C"ada P°''OSé Au8us[° "Para
Norte", esuas relações com apolfficá ohl»r panado do Rio Grande do
CA, V^^^StÍSS^T'^CaPÍta' M™<- - ^O-
José Augusto^^^^^^ífo do proletariado no governo
dor militante, p. 157-160; sobre ^nS^SfnAugUS.toJde MedeirosTeduca-dos anos 20, ver COSTA, Homero ffi° ^<?*ranado em Natal, no final
Natal, oprimeiro ato da tragédfa p55 65 """^ cwmmíste * ^35:
^W^a^^^
ogoverno de Juvenal Lamartine noIfe^SanT^T?***** termos: "Com
renovador eousado. Aviação, comuntocfeTmnr ™"gunwe um período
rústico para Natal, dinamismo daZa^ZT™'^0 fanWna Plan° urba"
da inteligência para os quadro PoIfto^S^,cha??,rent0da mocidade eoEstado elibertar ateia do j^SS.TEde P°df fazer P^granizar
mcontestado das nossas energL"BA^S? FH ^ ^ eCOraÇão de líder& •KA1<B°SA, Edgar. Imagens do tempo, p. 13-14.
Oó • A O/T r¥-xy^ w
54
55
62
CASCUDO, Luís da Câmara. Eu não temoamocidade, Praíínãa, 3, p. 23
Idem, p. 21.
LAMARTINE, Pery. Epopéia nos ares, p. 27.
gem aérea^S^)^3 Câmara- "° ""^ do ***>•" Notas de reporta-
-ação Ani^fe1^ -* Em 1922, aadminis-
mesmo do governo, como fJSSSSSS^ ^ Um alÍad° °U §ente
vao alheiando dos interesses ecarrifhos

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