Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
25FILOSOFIA Neste módulo, estudaremos alguns elementos básicos da filosofia analítica, corrente que buscou compreender o papel da linguagem como instrumento para interpretar a realidade e alcançar o conhecimento do mundo. Dentre os filósofos que investigaram a questão da linguagem, vamos destacar Gottfried Leibniz, Bertrand Russel e Ludwig Joseph Johann Wittgenstein. 1. Introdução: a questão da linguagem Temos confiança na linguagem. “Acreditamos que as palavras e a ordenação sintática do discurso traduzem com razoável fidelidade nosso pensamento” (ABRÃO, 1999, p. 424). Embora na vida cotidiana não prestemos muita atenção à capacidade de a linguagem exprimir exatamente o que sentimos ou desejamos transmitir, tal cenário muda quando a atividade envolve a formulação de problemas precisos. Nesses casos, a forma por meio da qual expressamos nossos pensamentos assume uma importância imensa. A forma é do domínio da lógica, ciência das leis formais do pensamento e de sua expressão. A função da lógica seria traduzir a linguagem comum em proposições ou sentenças dotadas de maior precisão formal. Por isso ela é instrumento de análise formal da linguagem (ABRÃO, 1999, p. 24). Ao final do século XIX e início do século XX, a questão da linguagem preocupou grande parte dos pensadores e cientistas. A física buscava desenvolver- se como a linguagem adequada para investigar a natureza; a psicanálise queria compreender o inconsciente; a filosofia, por sua vez, preocupava-se em desenvolver um método de análise lógica que garantisse a correspondência entre as palavras, as coisas e os fatos. Segundo Abrão (1999, p. 422), Não se pode classificar a filosofia analítica como uma corrente filosófica. Nela encontraremos muitas concepções diferentes e até opostas sobre vários temas filosóficos e sobre a própria filosofia, o que impede a delineação de um único perfil ou de uma escola. O que todas as ramificações têm em comum, entretanto, é a utilização do método de análise lógica da linguagem. O que os filósofos que se debruçaram sobre a linguagem pretendiam era chegar a uma estrutura gramatical lógica (e, portanto, mais robusta do que a estrutura gramatical da linguagem cotidiana) que fosse capaz de refletir com eficácia o pensamento e, portanto, adequada para decifrar e revelar a realidade sem ambiguidades ou confusões. 2. Gottfried Leibniz (1646-1716) Nascido na Alemanha, absolutamente genial, alquimista e inventor, Leibniz chegou a algumas conclusões que anteciparam, de certa forma, a linguagem dos computadores e a relatividade de Einstein. Na área da matemática, elaborou os princípios do cálculo integral e do cálculo diferencial. A filosofia desenvolvida por Leibniz é ousada e original, já que, a partir de princípios da lógica, ele refutou a ideia então vigente sobre o espaço e o tempo. Àquele tempo, o universo era percebido como um mecanismo semelhante a um relógio colocado em movimento por força e vontade de Deus. Neste universo, "os objetos existiam no espaço absoluto: havia uma diferença absoluta entre suas posições e eles estavam ou em absoluto repouso ou em movimento" (STRATHERN, 2002, p. 9). Observação: A questão do cálculo diferencial e integral foi alvo de conflito e disputa entre Leibniz e Isaac Newton (1643- 1727). Àquela época, Newton acusou Leibniz de plágio, afirmando ter descoberto o cálculo muito antes. Atualmente, aceita-se que Newton descobriu o cálculo primeiro, mas que Leibniz o desenvolveu de forma completamente independente. 4 A filosofia analítica: a questão da linguagem Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 25 26 FILOSOFIA Leibniz, engenhosamente, percebeu uma falha nesse argumento. De acordo com essa visão absolutista, o espaço tem que ser diferente dos objetos que estão em repouso ou em movimento dentro dele. Nesse caso, o espaço tem que ser completamente uniforme, como um vazio absoluto. Porém, se assim for, como podemos calcular uma localização através de coordenadas? Tais coordenadas devem ser, inevitavelmente, imaginárias – não poderiam, na verdade, existir nessa uniformidade sem características. Mas se tais coordenadas são imaginárias, elas devem ser, arbitrariamente, impostas ao espaço por nós. Então como podemos saber que estão imóveis? Com referência a que estariam imóveis? (STRATHERN, 2002, p. 10). Leibniz concluiu: o espaço e o tempo eram meras construções imaginárias. Como não havia uma estrutura absoluta de referência, não era possível dizer se algo estava mais próximo ou mais distante, se algo aparecera em tempo mais tardio ou não. Cada pessoa tinha uma percepção a respeito do tempo e da distância, especialmente se o seu ponto de vista fosse colocado como referência. Não havia espaço ou tempo absolutos: eles simplesmente não existiam. Apenas Deus era capaz de ver as coisas como realmente eram — de um ponto de vista extremamente impessoal desprovido de tempo e espaço. Até o momento em questão, a filosofia de Leibniz ecoa nitidamente o idealismo de Platão — em que o mundo particular ao nosso redor é visto como uma ilusão, refletindo uma realidade primordial de formas ideais. [Leibniz percebeu como não era possível retroceder a uma proposta como a platônica. Então], Leibniz propôs uma concepção dinâmica, envolvendo a energia cinética. Como resultado da descoberta de Leibniz do cálculo, que envolvia valores decrescentes, tendendo ao infinitamente pequeno, ele concluiu que as coisas, em última análise, consistiam de pontos infinitamente pequenos que não tinham nem espaço nem tempo como atributos. Ele chamaria esses pontos, posteriormente, de “mônadas” (STRATHERN, 2002, p. 11). Inicialmente, era necessário considerar a existência de três tipos de verdade. Havia as verdades definidoras ("o ângulo reto é formado por duas retas perpendiculares"). Depois, havia verdades que se baseavam em proposições idênticas, como na matemática ("5 x 10 = 50"). Finalmente, havia as verdades que derivavam da experiência, que eram contingentes ("O rio Tietê atravessa a cidade de São Paulo"). Havia, no entanto, verdades que não se encaixavam em nenhum desses tipos, como afirmar que "se A = B e B = C, então A = C". No entanto, essas verdades "eram logicamente necessárias, uma vez que afirmar o contrário levaria a uma contradição" (STRATHERN, 2002, p. 12). O princípio da contradição estabeleceu os fundamentos tanto para a matemática como para tudo o que é logicamente possível. No entanto, só porque algo é logicamente possível não significa que realmente aconteça. Para, racionalmente, dar conta do que realmente existe, um terceiro princípio era necessário. Em lugar de simplesmente evitar a contradição, a ciência exigia uma razão suficiente para algo acontecer. Esse princípio da razão suficiente afirmava que nada acontecia no mundo sem que houvesse uma razão por que devesse ocorrer dessa maneira e não de outra. Porém, aqui também, Leibniz desprezou a ciência e adentrou os domínios da metafísica. Ele usaria o princípio da razão suficiente para demonstrar a existência de Deus, assim como muitos outros aspectos metafísicos e teológicos que o cristianismo de sua época incluía (STRATHERN, 2002, p. 12). Era Deus, portanto, quem garantia a harmonia entre as mônadas, o mesmo Deus que criara o equilíbrio: a natureza era “o relógio de Deus (horlogium dei )” (STRATHERN, 2002, p. 17). Leibniz foi capaz de provar isso através de dois princípios fundamentais — o da contradição e o da razão suficiente. Deus pode ser infinito, mas, com relação à criação do mundo, suas infinitas possibilidades foram limitadas. Por quê? Para criar esse mundo, era preciso que fosse um mundo possível. E para que fosse possível, tinha que se adaptar ao princípio da contradição (ou não teria sido possível). De forma semelhante, para que o mundo fosse criado de algum modo, tinha que existir uma razão suficiente. Essa razão era Deus. Porque Deus era bom, ele iria, é claro, criar o melhor dos mundos. Porém, de acordo com o princípio da contradição, esse tinha que ser “o melhor dos mundos possíveis”.Um mundo perfeito era, evidentemente, impossível, e quaisquer defeitos que esse mundo tivesse eram, inevitavelmente, devidos ao seu caráter de possível (STRATHERN, 2002, p. 17). Observação: A metafísica ocupa-se com aquilo que está além da existência física, da concretude. Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 26 27FILOSOFIA Natural que, dado o espectro de suas preocupações, Leibniz tenha tentado compreender a linguagem como instrumento para a formulação e a resolução de problemas filosóficos. Essa linguagem universal não apenas seria entendida por todos, como também transmitiria os conceitos básicos comuns a toda humanidade. Seria uma linguagem internacional de ideias, comparável na sua exatidão à linguagem internacional de números. E onde os números pudessem ser usados no cálculo da matemática, os hieróglifos de Leibniz poderiam ser usados num “cálculo de razão”. Leibniz previu um futuro em que seu método transformaria muitos de nossos hábitos sociais, que passariam da inexatidão confusa vigente à prática racional incontroversa. “Se controvérsias surgissem, a discussão entre dois filósofos seria tão necessária quanto entre dois contadores. Porque bastaria que eles tomassem seus lápis, se postassem junto às lousas e dissessem um ao outro (com um amigo como testemunha, caso quisessem): “Vamos calcular” (STRATHERN, 2002, p. 21). Em conclusão: a base do pensamento de Leibniz era a de que havia um paralelismo entre a lógica do pensamento e a estrutura das coisas, paralelismo esse que refletia a lógica divina (ABRÃO, 1999), daí a sua preocupação com a linguagem e com a lógica que a norteava. 3. Bertrand Russell (1872-1970) Bertrand Russell, um matemático inglês, propôs uma perspectiva da linguagem que criticou, e de maneira incisiva, a lógica tradicional que vigorara até então. A lógica tradicional formulava proposições em que um predicado era atribuído a um sujeito (“Sócrates é mortal”). Para essa lógica, o mundo está dividido entre substâncias (que são os sujeitos) e acidentes (as qualidades e os atributos). O problema é que “há muitos fatos e proposições que não se enquadram nesse modelo, sobretudo quando pensamos em proposições que descrevem relações” (ABRÃO, 1999, p. 425). A lógica tradicional precisava ser reformulada. Abrão (1999) exemplifica: se digo que “o autor de Waverley era escocês”, a análise que busca compreender logicamente o que foi dito deve levar em conta que “pelo menos uma pessoa escreveu Waverley e que quem quer que tenha escrito Waverley era escocês” (Abrão, 1999, p. 427). Esta análise reveste a proposição de um rigor lógico com a qual a linguagem cotidiana não necessariamente deve se preocupar. A ciência, através de observações e inferências, agrupa fatos e estabelece leis. A linguagem deve corresponder ao conhecimento assim adquirido, fazendo jus à sua complexidade. Orações e sentenças devem expressar o mundo ordenando a multiplicidade de fatos observados e inferidos. Somente os resultados científicos são referenciais semânticos confiáveis (ABRÃO, 1999, p. 428). A seguir, leia um trecho de sua obra, na qual Russell discute o valor da filosofia e as diferenças entre o conhecimento filosófico e o conhecimento científico: para ele, a principal função do conhecimento filosófico é a crítica. O conhecimento filosófico, se o que tem sido dito até então é verdadeiro, não difere essencialmente do conhecimento científico; não há fonte especial de sabedoria que seja aberta à filosofia e não à ciência; os resultados obtidos pela filosofia não são radicalmente diferentes daqueles obtidos pela ciência. A característica essencial da filosofia, que a torna um estudo diferente da ciência, é possibilidade de crítica. A filosofia examina criticamente os princípios empregados na ciência e na vida quotidiana, A rt es G rá fic as – O bj et iv o Figura 2. Para Russell, a linguagem deve corresponder à complexidade do conhecimento construído. E as yp ix / AY A M ic ro Figura 1. A intenção de Leibniz era a construção de uma língua universal, a Característica Universal”, que resolvesse qualquer problema filosófico por meio da realização de um “cálculo”, ou uma aplicação de símbolos. Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 27 28 FILOSOFIA procura quaisquer inconsistências que possam existir entre esses princípios e apenas os aceita quando, ao cabo de uma investigação crítica, não aparece razões para os abandonar. Se, como muitos filósofos têm acreditado, os princípios subjacentes às ciências fossem capazes, quando descomprometidos com os detalhes irrelevantes, de nos proporcionar conhecimento concernente ao universo como um todo, tal conhecimento teria a mesma sustentação em nossa crença da qual desfruta o conhecimento científico; mas nossa investigação não nos revelou nenhum conhecimento desse tipo; e, portanto, no que diz respeito às doutrinas especiais dos audaciosos metafísicos, esta investigação tem tido um resultado predominantemente negativo. Mas, no que concerne ao que seria comumente aceito como conhecimento, nossas conclusões têm sido maioritariamente positivas: como resultado de nossa possibilidade de crítica, temos raramente encontrado razões para rejeitar tal conhecimento e não vimos motivos para supor que o homem é incapaz de possuir o tipo de conhecimento que ele geralmente acredita possuir. Quando, todavia, falamos da filosofia como sendo um mecanismo de crítica do conhecimento, faz-se necessário se impor certas limitações. Se adotarmos a atitude do completamente cético, colocando-nos totalmente fora do conhecimento e, desta localização exterior, pedindo que nos compilam a retornar ao círculo do conhecimento, estaremos requerendo o que é impossível. Nosso ceticismo nunca poderá ser refutado, pois toda refutação deve começar em alguma fatia de conhecimento que seja compartilhada pelos que disputam; de uma dúvida vazia, nenhum argumento pode ter início. Desta feita, a crítica do conhecimento empregada pela filosofia não deve ser deste tipo destrutivo se a aquisição de algum resultado é pretendida. Contra o ceticismo absoluto, nenhum argumento lógico pode ser empregado. Não é difícil ver, nada obstante, que o ceticismo deste tipo é irracional. A “dúvida metódica” cartesiana, com a qual a filosofia moderna se iniciou, não é desse tipo, mas é daquele tipo de atividade crítica que declaramos ser da essência da filosofia. Sua “dúvida metódica” consistiu em se duvidar de tudo que era susceptível de dúvida, para que se pudesse, em cada fatia de conhecimento, parar-se e se perguntar se realmente se conhecia aquilo. Este é o tipo de atividade crítica que constitui a filosofia. Alguns conhecimentos, como o da existência dos dados provenientes dos nossos sentidos, parecem um tanto indubitáveis, mesmo que reflitamos calmamente e inteiramente sobre ele. Em relação a tal tipo de conhecimento, a atividade crítica filosófica não requer que nos abstenhamos da crença. Mas, há crenças — como, por exemplo, as de que os objetos físicos assemelham-se aos nossos dados provenientes dos nossos sentidos — que só nos são mantidas até que comecemos a refletir e que derretem quando submetidas a uma investigação pormenorizada. A filosofia nos obrigará a rejeitar tais crenças, a menos que alguma nova linha de argumento seja descoberta para ampará-la. Mas, rejeitar crenças que não parecem estar susceptíveis a objeções, por mais próximos que nós as examinemos, não é razoável e isto não é o que advoga a filosofia. Em uma palavra, a atividade crítica que se objetiva não é a de que, sem razões, determine-se que tudo seja rejeitado, mas é a que considera o possível mérito de cada fatia de conhecimento aparente e mantém o que, após uma consideração completa da matéria, continua a aparentar ser conhecimento. Desde que os seres humanos são falíveis, deve-se admitir que algum risco de erro persiste. Com justiça, a filosofia pode sustentar que ela diminui o risco de erros e que, em alguns casos, oferece um risco tão pequeno que praticamentepode ser desprezado. Nenhum advogado da filosofia que seja prudente alegaria ter realizado mais que isso, o que é impossível em um mundo onde equívocos ocorrem (RUSSELL, 2010, p. 218/9). Defensor incansável da ideia de paz no mundo (e, portanto, um opositor às guerras e aos conflitos), Russell era um idealista, um homem extremamente convicto de suas posições políticas e pacifistas, cujo comportamento já lhe rendera duas temporadas na prisão. Em 1950, Bertrand Russell recebeu o Nobel de Literatura em 1950 pelo seu trabalho em prol dos ideais humanitários e da liberdade de expressão. 4. Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889-1951) Wittgenstein foi um filósofo que, de forma bastante radical, escolheu a lógica como eixo central da sua obra. Para ele, os problemas ditos científicos poderiam (ou melhor, deveriam) ser resolvidos no campo da lógica, sendo que todos os outros problemas (éticos e metafísicos, por exemplo) eram irrelevantes. Segundo Chauí (2002, p. 198), Wittgenstein preocupou-se com as formas e o funcionamento da linguagem, desenvolvendo uma corrente filosófica conhecida como filosofia analítica. O centro de sua obra, portanto, é a lógica, entendida como a área do conhecimento que se ocupa "com a linguagem formal ou com a linguagem simbólico-científica. Por ser um discurso ou uma linguagem que fala de outro discurso ou de outra linguagem, se diz que ela é uma metalinguagem". Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 28 29FILOSOFIA Chauí (2002) oferece-nos um exemplo simples. Na vida cotidiana, podemos afirmar que "O Sol é uma estrela". A lógica, por sua vez, declara que a sentença "O Sol é uma estrela" é uma proposição afirmativa; ainda, afirmar ser afirmativa a proposição "o Sol é uma estrela" é construir uma proposição verdadeira. Dessa forma, a lógica é um discurso (dizer ser uma proposição verdadeira o reconhecimento de ser afirmativa a proposição "O sol é uma estrela") que tem como objeto um outro discurso (ser uma proposição afirmativa a sentença "O Sol é uma estrela”). A ideia da lógica como metalinguagem transparece com clareza quando examinamos, por exemplo, as teses principais do austríaco Ludwig Wittgenstein, cuja influência seria sentida por toda a lógica do século passado: 1. qualquer proposição que tenha significado é composta por proposições elementares, nas quais se encontra a verdade ou falsidade da proposição com significado; 2. as proposições elementares adquirem significado porque afiguram (retratam) o mundo não como fatos e coisas, mas como “estado de coisas”; 3. as proposições da lógica são verdadeiras independentemente das noções de “significado” e de “estado de coisas”, porque, rigorosamente, não falam de nada, pois referem-se a qualquer fato, significado ou estado de coisas que possam ocorrer ou não no Universo. As proposições lógicas são verdades vazias, referidas apenas ao próprio uso das convenções lógicas (CHAUÍ, 2002, p. 198). Nascido em Viena, Wittgenstein teve como pai um homem extremamente influente no campo da arte, mas dominador e autoritário. Sua família, rica e poderosa, deu-lhe uma educação primorosa. Sua formação primeira foi na área de matemática e ciência. Posteriormente, estudou engenharia mecânica. Já na Inglaterra, retornou à teoria matemática. Posteriormente, e sob a influência de Russell, voltou- se para a filosofia. A relação entre os dois foi intensa, mas cheia de conflitos. Afinal, Wittgenstein, recusou-se a aceitar a crença de Russell no empirismo: a possibilidade de adquirir conhecimento a partir de nossa experiência. O conhecimento, dizia, limitava-se à lógica. Quando Russell afirmou que sabia não haver rinocerontes na sala, recusou-se a aceitar. Era logicamente possível haver um rinoceronte na sala. Russell perguntou-lhe então onde esse rinoceronte poderia estar, e começou a procurar atrás das cadeiras e debaixo da mesa. Ainda assim, negou-se terminantemente a aceitar que Russell soubesse com certeza que não havia rinocerontes na sala (STRATHERN, 1997, p. 7). Não demorou muito para que Russell descobrisse que seu aluno era arrogante e temperamental. No entanto, a arrogância não era proporcional ao talento, e seu mestre tentou convencê-lo a buscar ajuda de um professor de Cambridge. A experiência foi desastrosa: não era todo mundo que tinha paciência para tamanha prepotência. Apesar disso, Russell era sincero ao dizer que lembrava do período de convivência com Wittgenstein como “uma das mais excitantes aventuras intelectuais” de sua vida. Passaram a discutir lógica matemática, que na época era tão complexa que apenas meia dúzia de pessoas no mundo eram capazes de entendê-la. Ainda assim, segundo Russell, em dois anos Wittgenstein “aprendeu tudo que eu tinha para ensinar”. Mais do que isso, Wittgenstein conseguira convencer Russell de que ele jamais voltaria a ser criativo em filosofia. Era por demais difícil para ele. Somente ele, Wittgenstein, tinha possibilidade de desbravar o caminho dali para frente (STRATHERN, 1997, p. 8). Em sua primeira obra, Notas sobre lógica, Wittgenstein fez declarações surpreendentes: "A" é o mesmo que a letra "A". As coisas precisavam ser mostradas de forma simbólica, não bastando que fossem ditas, algo que parece absurdamente simples, mas que, no fundo, é de uma imensa complexidade. O que Wittgenstein estava tentando mostrar era que a lógica era a base da filosofia, e a linguagem a forma pela qual essa se materializava. Figura 3. A filosofia analítica ocupa-se com o estudo do discurso que fala de outro discurso ou de outra linguagem, ou seja, ela é uma metalinguagem. Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 29 30 FILOSOFIA Recluso em um lugar ermo da Noruega, Wittgenstein continuou a refletir sobre a questão da lógica e da filosofia. Ele afirmava ser possível demonstrar que uma proposição lógica era falsa ou verdadeira, independentemente das partes que a compunham. Por exemplo, se dizemos: “Esta maçã é vermelha ou não vermelha”, trata-se de uma tautologia (ou seja, é sempre verdadeiro). E isso será sempre verdadeiro, seja a maçã vermelha ou não. Da mesma forma, se dizemos: “Esta maçã não é vermelha nem não vermelha”, caímos numa contradição (ou seja, isso será sempre falso). Se dispuséssemos de um método para descobrir se uma proposição lógica é uma tautologia, ou uma contradição, ou nenhuma das duas, teríamos então uma regra para determinar a veracidade de todas as proposições. Essa regra, enunciada como uma proposição, seria a base de toda a lógica (STRATHERN, 1997, p. 10). Após servir como soldado do exército aus tro-hún - garo na Primeira Guerra Mundial, Wittgenstein voltou-se para a religião, e de forma bastante peculiar: Deus era o que dava significado ao mundo; se o significado do mundo estava "fora", como saber se a vontade de fazer o bem ou mal (que estava "dentro" do indivíduo) estava conectada com a ideia de Deus? A rendição do exército austro-húngaro levou Wittgenstein à uma prisão na Itália. Lá, ele encerraria sua grande obra, o Tractatus logico-philosophicus. A simplicidade das observações do filósofo é aparente, e recomenda-se não se deixar enganar. Escrita numa série de observações numeradas, suas primeiras frases deixam claro que a filosofia ingressara em um novo estágio. “1. O mundo é tudo que é o caso. 1.1 O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas”. A uma afirmação clara e retumbante segue-se outra, ligadas por um mínimo absoluto de justificativa ou argumento: “1.13 Os fatos no espaço lógico são o mundo. 1.2 O mundo decompõe-se em fatos”. A conclusão do livro é ainda mais memorável: “7. Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. Poucos alteraram o curso da filosofia de maneira tão notável. Essa perspicácia sucinta só é suplantada por Sócrates (“Conhece-te a ti mesmo”), Descartes (“Penso, logo existo”) e Nietzsche (“Deus está morto”). Nos trechos em que não é por demais técnico (no sentido lógico), o Tractatus é a mais estimulante obra filosófica já escrita. Sua clareza e os ousados saltos de suaargumentação a tornam às vezes quase poética, tanto quanto muitas de suas conclusões. E sua ideia básica é fácil de ser captada (STRATHERN, 1997, p. 12). Wittgenstein havia chegado ao âmago da questão: a linguagem. A linguagem é o que nos dá um retrato do mundo; portanto, ela só pode falar do que existe. Não há como expressar o fenômeno de um corpo que ocupa dois lugares no espaço ao mesmo tempo, por que essa não é uma possibilidade lógica. Quando analisada até suas proposições mínimas, a linguagem consiste em retratos da realidade. Dessa forma, as proposições podem representar o todo da realidade, todos os fatos – porque as proposições e a realidade têm a mesma forma lógica. Elas não podem ser ilógicas. Os limites da linguagem são os limites do pensamento, porque tampouco este pode ser ilógico. Não podemos ir além da linguagem, já que fazê-lo seria ir além dos limites da possibilidade lógica. As proposições lógicas da linguagem são um retrato do mundo e nada mais podem ser. Nada podem dizer sobre qualquer outra coisa. Isso significa que certas coisas simplesmente não podem ser ditas (STRATHERN, 1997, p. 12). Observação: Recordemos: Sócrates usou a sentença “conhe - ce-se a ti mesmo” para explicar o acesso à verdade. Ele defendeu que o conhecimento era o caminho para a verdade; no entanto, como conhecer a si mesmo? A busca pelo autoconhecimento era difícil, árdua, e exigia reflexão constante sobre nossas ações e nossas opiniões. O autoconhecimento era um processo, no qual a experiência da purificação e da elevação espiritual poderia nos conduzir a uma mudança radical na forma a partir da qual nos vemos e vemos o mundo. O Cogito, ergo sum, de Descartes (“penso, logo existo”), tem a intenção de declarar que podemos (e devemos) desconfiar de tudo (em suma, assumir a dúvida metódica como procedimento), exceto de que estamos pensando. Em outras palavras, o fato de se reconhecer o ato de pensar é a garantia da existência. Se eu não existisse, como seria possível estar pensando? Finalmente, a morte de Deus expressa em Nietzsche está relacionada não à inexistência de Deus, mas à percepção errônea de ser Deus uma verdade eterna, que controla o mundo e decide sobre o seu destino. O homem é livre e não deve se submeter às regras da religião; ao contrário, deve ser capaz de discernir e descobrir a verdade, o bem e a justiça. Apoiar-se em Deus é, de fato, um sinal de fraqueza. No entanto, a morte de Deus, ou seja, o abandono dos ideais cristãos, deixa o homem à mercê do destino, e nem mesmo a ciência é capaz de dar conta desse desespero. Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 30 31FILOSOFIA Pode-se falar sobre o que é possível no campo da lógica; no entanto, não há como dizer se algo é verdadeiro. O que Wittgenstein propõe é que só se pode demonstrar que algo é verdadeiro. Daí surge o aforismo de Wittgenstein: sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar. Fala-se sobre o que é possível; se for impossível, se não fizer sentido do ponto de vista lógico, não há como expressar por meio da linguagem. Por isso, não se pode falar de Deus. Embora Deus exista, ele não pode ser falado ou pensado. Deus é inexprimível, é revelado por meio da experiência mística, espiritual. Desgraçadamente, há inúmeras objeções ainda mais cruciais ao Tractatus. Há que se admitir que a linguagem e a realidade têm, sem dúvida, alguma relação entre si. Mas como saber que essa relação é de fato uma “forma lógica”? Wittgenstein foi forçado a camuflar essa questão, embora por certo não acreditasse que era isso que estava fazendo: destruir o pensamento. Isso seria tão impensável quanto uma impossibilidade lógica. Da mesma forma, a categoria das coisas de que não podemos falar inclui inúmeras coisas de que simplesmente devemos falar se quisermos continuar vivendo de maneira civilizada. Para começar, não podemos falar sobre o bem e o mal (ou mesmo sobre o certo e o errado). Também a “linguagem” da arte se enquadra nessa categoria, uma vez que é, em sua essência, ilógica. Sendo metafórica, uma obra de arte é ao mesmo tempo ela própria e algo mais. Dizer de uma obra de arte que o que ela exprime é inexprimível é uma contradição (STRATHERN, 1997, p. 13). Para Wittgenstein, o jogo da linguagem consistia em utilizar a linguagem para representar o objeto, de certa forma determinando a partir daí a concepção da realidade. Assim, a função da filosofia era utilizar a linguagem de forma adequada, estabelecendo seus limites e calando-se quando não houvesse o que falar. Suas ideias ainda exercem uma imensa influência no estudo da linguagem, e a filosofia analítica foi incorporada por inúmeros pensadores posteriores a ele. G et ty im ag es / Yu ni o B ar o G om es Figura 4. “Segundo Wittgenstein, uma pergunta como ‘Deus existe?’ não é apenas impossível de ser respondida, mas, antes de mais nada, impossível de ser formulada, uma vez que ultrapassa os limites da lógica, tornando-se, assim, sem significado” (STRATHERN, 1997, p.13). Esse é um bom momento para refletirmos a respeito da linguagem no campo da experiência virtual. Antes da revolução tecnológica que criou o ciberespaço, texto e imagem constituíam universos distintos. Aliás, o texto era mais importante do que a imagem; ao menos, era visto como fruto de erudição e conhecimento, enquanto a imagem era apenas ilustrativa. O fato de texto, imagens e sons estarem integrados em um mesmo sistema, “interagindo a partir de pontos múltiplos, no tempo escolhido (real ou atrasado) em uma rede global, em condições de acesso aberto e de preço acessível – muda de forma fundamental o caráter da comunicação" (CASTELLS, 2005, p. 414). E, se levarmos em consideração que compreendemos o mundo a partir das possibilidades dadas pela nossa linguagem (quer dizer, se nossa linguagem determina a forma como pensamos e percebemos o mundo), é instigante imaginarmos quais as potencialidades que essas novas linguagens representam em termos de apreensão do mundo. Dê um videogame para uma criança e veja com que facilidade ela percebe a relação entre o movimento de sua mão no mouse e o que ocorre na tela; veja a facilidade com que essa criança “descobre” novos caminhos e soluções! Embora isso pareça pertencer ao ramo da ficção científica, o fato é que a criança “pensa” diferente, sendo possível que a mediação que essas novas linguagens oferecem tenha criado uma nova forma de o cérebro captar, processar e armazenar informação. Sobre esse assunto, sugerimos que você veja o filme A Chegada (2016), uma ficção científica que narra os esforços de uma linguista para decifrar a linguagem de seres extraterrestres que pousam na Terra. A linguagem que esses seres utilizam mescla elementos pictóricos e sonoros, e é totalmente estranha à espécie humana. Como falar com esses seres? A imersão da linguista nessa nova forma de comunicação altera suas potencialidades neurológicas: dominar esse novo código de comunicação faz com que ela se torne capaz de "ver" o tempo, de atravessar as barreiras do tempo. O mundo, antes de ser "falado", é "pensado". ?? Saiba mais Aluno_3a_serie_FILOSOFIA_JR_2019.qxp 21/12/2018 15:31 Página 31
Compartilhar