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AULA 6 TÓPICOS ESPECIAIS DE HISTÓRIA DA FÍSICA E DA MATEMÁTICA E DE SEU ENSINO Prof. Otto Henrique Martins da Silva 2 CONVERSA INICIAL Aprendendo e ensinando física com a história da física e etnociência Nessa aula, vamos propor uma discussão acerca do uso da história da ciência no ensino de física. Vamos apontar as razões que fundamentam o uso pedagógico da história, trazendo as recomendações de alguns autores renomados e indicações de trabalhos desenvolvidos por pesquisadores que sugerem formas que contemplam o uso da história da ciência no ensino de física. Na sequência, indicamos temas que poderão ser utilizados pelos professores em sala de aula, com respectivas sugestões de abordagens históricas que contemplam a conservação da quantidade de movimento e da energia. Vamos estudar a criação do conceito de pressão atmosférica e o vácuo. Finalmente, finalizamos com uma rápida discussão sobre as perspectivas da etnociência e da etnomatemática, considerando as culturas das populações de minoria e suas etnias. CONTEXTUALIZANDO Os conceitos, as leis e os princípios que fundamentam a física não foram simplesmente criados por cientistas geniais, pois são resultado de um processo histórico coletivo, que possibilitou o desenvolvimento da ciência e a evolução do pensamento científico. Cada um desses conceitos, leis ou princípios teve a sua gênese em uma questão problemática. A partir dessa perspectiva, podemos perguntar: Quais seriam as problemáticas que motivaram a criação da conservação da quantidade de movimento e da energia, além do conceito de pressão atmosférica? TEMA 1 – O USO DA HISTÓRIA DA FÍSICA NO ENSINO A história da ciência tem sido bastante discutida e pesquisada no âmbito acadêmico. Porém, a sua prática em sala de aula ainda é pouco frequente, ou seja, os professores pouco utilizam a história da ciência em suas aulas para o ensino de teorias e conceitos físicos. Uma das causas relacionadas, segundo Roberto de Andrade Martins (2006), é a falta de materiais didáticos adequados para uma maior ênfase à história da ciência. Ainda em relação a essa questão, Pena e Ribeiro Filho, em pesquisa publicada na Revista Brasileira de Ensino 3 Física (RBEF), no Caderno Brasileiro de Ensino de Física (CBEF) e na Revista A Física na Escola (FnA), entre 2000 e 2006, sobre a abordagem da História da Ciência na sala de aula, constataram que mesmo com as orientações curriculares para o Ensino Médio, os PCNEM, a abordagem histórica ainda não aparece com significância nas experiências didáticas e, portanto, confirma o que foi apontado por diversos autores (Carvalho; Vannuchi, 1996; Machado; Nardi, 2006), seja pelas dificuldades apresentadas por Ricardo e Zylbersztanj (2002) e Köhnlein e Peduzzi (2005), ou pelos obstáculos apontados por R. A. Martins (2006). Outro trabalho interessante relacionado ao uso da história e da filosofia da ciência em periódicos brasileiros, entre os anos de 2001 a 2010, é o de Schirmer e Sauerwein. Pesquisa verificou que, dos 652 trabalhos analisados, apenas 14% (89) apresentavam relação com a história e a filosofia da ciência. Ainda segundo os autores, desses 89 trabalhos, 15 deles estavam relacionados com propostas de sala de aula, enquanto os 83% (74) restantes ofereciam contribuições e subsidiavam o uso da história e da filosofia da ciência no ensino. Apesar de poucos avanços, a pesquisa em história da ciência tem sido difundida em várias universidades e faculdades brasileiras. Muitos resultados apontam para a importância e os benefícios que ela pode proporcionar ao ensino de ciências, em especial ao ensino de física. Dentre os pesquisadores, está Roberto de Andrade Martins (2006, p. xxi), que afirma que o uso da história da ciência no ensino, “Além de poder ajudar a transmitir uma visão mais adequada sobre a natureza da ciência, a história das ciências pode auxiliar no próprio aprendizado dos conteúdos científicos”. Outro aspecto importante relacionado ao uso da história da ciência no ensino diz respeito à compreensão dos aspectos epistemológico relacionados à construção da ciência. Busca-se, dessa forma, perceber a ciência como uma construção histórica relacionada aos problemas presentes na sua gênese, por exemplo. No ensino de física, com relação ao estudo da história da ciência, alguns pesquisadores têm apontado especificidades didáticas possíveis de serem aplicadas em sala de aula, como as perspectivas historiográfica e conceitual (ou epistemológica) e, especialmente, as perspectivas didáticas. Dentre estas, destacam-se “Dificuldades do uso da HFC para fins didáticos” (Martins, 2007), “Estratégias didáticas no ensino de Física” (Silva; Martins, 2009) e “Relevância da HFC no ensino” (Quintal; Guerra, 2009). Contudo, há outras abordagens para o uso da história da ciência no ensino que, segundo El-Hani (2006, p. 5), são: 4 chamadas abordagens contextuais do Ensino de Ciências (Matthews 1994), nas quais se propõe que a aprendizagem das ciências deve ser acompanhada por uma aprendizagem sobre as ciências (ou sobre a natureza das ciências)” e diz que estas abordagens “têm sido propostas com o intuito de mudar os currículos de Ciências, em todos os níveis de ensino, propondo-se que elas podem contribuir para (i) humanizar as ciências, conectando-a com preocupações pessoais, éticas, culturais e políticas; (ii) tornar as aulas de ciências mais desafiadoras e estimular o desenvolvimento de habilidades de raciocínio e pensamento crítico; (iii) promover uma compreensão mais profunda e adequada dos próprios conteúdos científicos; (iv) melhorar a formação dos professores, ajudando-os no desenvolvimento de uma compreensão mais rica e autêntica da ciência; (v) ajudar os professores a apreciar melhor as dificuldades de aprendizagem dos alunos, alertando para as dificuldades históricas no desenvolvimento do conhecimento científico; (vi) promover nos professores uma compreensão mais clara de debates contemporâneos na área de educação com um forte componente epistemológico, a exemplo dos debates sobre construtivismo ou multiculturalismo. (Matthews, 1992, 1994) No processo de ensino a aprendizagem, em muitas situações é por meio de uma mudança conceitual que o estudante experimenta novas possibilidades, quando abandona o conceito antigo e o substitui por um novo conceito. Nessa perspectiva, o conhecimento da história da ciência pode ser útil no processo de transformação conceitual, tanto para o estudante quanto para o docente (Barros; Carvalho, 1998). Segundo (Martins, 2006, p. xxii), a resistência a essa mudança é análoga àquelas de cientistas e físicos no período em que viveram. De outro modo, vale também destacar outras contribuições que o uso da história da ciência pode proporcionar às aprendizagens dos estudantes. Sobre essas contribuições, Peduzzi (2001, p. 157-158) destaca: A História da Ciência pode: Propiciar o aprendizado significativo de equações (que estabelecem relações entre conceitos, ou que traduzem leis e princípios) que o utilitarismo do ensino tradicional acaba transformando em meras expressões matemáticas que servem às resoluções de problemas; Ser bastante útil para lidar com a problemática das concepções alternativas; Incrementar a cultura geral do aluno, admitindo-se, neste caso, que há um valor intrínseco em se compreender certos episódios fundamentais que ocorreram na história do pensamento científico (como a revolução científica dos séculos XVI e XVII, por exemplo); Desmistificar o método científico, dando ao aluno os subsídios necessários para que ele tenha um melhor entendimento do trabalho do cientista; Mostrar como o pensamento científico se modifica com o tempo, evidenciando que as teorias científicas não são “definitivas e irrevogáveis”, mas objetos de constante revisão;Chamar a atenção para o papel de ideias metafísicas (e teológicas) no desenvolvimento de teorias científicas mais antigas. Contribuir para um melhor entendimento das relações da ciência com a tecnologia, a cultura e a sociedade; Tornar as aulas de ciência (e de Física) mais desafiadoras e reflexivas, permitindo, desse modo, o desenvolvimento do pensamento crítico. (Matthews, 1995, p. 164-214) 5 Propiciar o aparecimento de novas maneiras de ensinar certos conteúdos; Melhorar o relacionamento professor-aluno; Levar o aluno a se interessar mais pelo ensino de Física. Depois de uma mudança conceitual, a história da ciência corresponde a um instrumento que possibilita uma análise sobre a evolução de conceitos, leis ou teorias físicas numa perspectiva histórica. Desse modo, as questões epistemológicas sobre a natureza do conhecimento científico são discutidas com fins e objetivos didáticos, como nos trabalhos de Krapas, Queiroz e Uzêda (2011), Silva (2009), Roca (2009) e Feldens, Dias e Santos (2010). As discussões trazidas por tais autores são fundamentadas em conhecimento construído historicamente e desenvolvidas a partir de fontes primárias e secundárias, proporcionando uma nova contextualização histórico-conceitual de conceitos, leis ou teorias em questão. A perspectiva historiográfica possibilita, no ensino de física, a compreensão sócio-histórica da construção do conhecimento científico. Além disso, revela a dimensão humana da ciência; ou seja, essa perspectiva pode resgatar aspectos e elementos humanos presentes na construção desse conhecimento a partir de sua gênese. Para além disso, o uso da história da ciência também corresponde a um interessante encaminhamento metodológico na discussão sobre as características da natureza científica, como constatou Forato, Pietrocola e Martins em um dos seus trabalhos, quando buscaram “analisar a adaptação dos conhecimentos especializados da HFC para a escola básica” (2011, p. 31). Além dessas contribuições, o uso da história da ciência no ensino possibilita análises históricas sobre a produção do conhecimento científico em relação ao conhecimento escolar presente nos livros didáticos. Sobre essa questão, podemos citar os trabalhos que apontam para essa possibilidade: Teixeira, Peduzzi e Freire Junior (2010) e Baldow e Monteiro Junior (2010). TEMA 2 – O MOVIMENTO DOS CORPOS As primeiras formulações do que seja o movimento dos corpos datam dos antigos filósofos na antiguidade, com destaque para Aristóteles. De acordo com Aristóteles, o movimento de um corpo está associado a uma causa que o mantém em movimento ou que pode colocá-lo em repouso. Assim, não seria possível um movimento sem uma causa, ou seja, sem uma força. Na obra Física, Aristóteles afirma: “tudo que se move deve ser movido por alguma coisa” (citado por Baptista; 6 Ferraciole, 1999, p. 191). Essa ideia é uma das principais concepções de Aristóteles, que produziu vasta obra, tratando de muitos outros assuntos. Para Aristóteles, a Terra era o centro do Universo. Se encontrava imóvel, enquanto os planetas Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, além da Lua, orbitando em sua volta. Os corpos seriam constituídos por quatro elementos principais – terra, água, ar e fogo – com a capacidade de movimento para estar, sempre, em seu lugar natural. Desse modo, os corpos graves (pesados) tendiam a movimentar-se para baixo, enquanto os corpos leves tenderiam a subir, pois este seria o seu lugar natural. De acordo com o tipo de movimento, os corpos poderiam realizar um movimento natural ou um movimento violento, forçado, se consideramos os materiais leves e pesados. Outra concepção aristotélica sobre os movimentos dos corpos diz respeito ao movimento de queda livre. Ele afirmava que corpos de massas diferentes, ao cair de uma mesma altura, teriam tempos de quedas distintos; ou seja, o mais pesado chegaria primeiro ao solo. Ainda sobre o movimento de corpos materiais no ar, Aristóteles desenvolveu uma teoria para explicar o movimento de um corpo lançado no ar. Segundo ele, para estar em movimento – portanto, com velocidade –, era necessária uma causa motriz sobre o corpo enquanto estivesse no ar. Para explicar esse tipo de movimento, o movimento de um projétil, Aristóteles desenvolveu o conceito de antiperístase, relacionado então ao movimento forçado ou violento. Desse modo, a causa do movimento estava no ar, pois ele exerceria uma força motora sobre o objeto lançado, o que diminuiria em função da resistência associada ao movimento forçado; quando a força fosse extinta, o objeto cairia verticalmente no solo. Essa força motora apareceria quando o ar se deslocava da parte frontal do corpo para o espaço de sua parte, o que impulsionaria o corpo para frente, no movimento forçado. A física aristotélica foi aceita por muitos séculos. No entanto, no início da Idade Média, muitos filósofos se opuseram a essa física, entre eles Joannes Philoponus (século VI), Jean Buridan (século XIV), Nicole Oresme (século XIV), Merton College (século XIV) e, algum tempo depois, o próprio Galileu Galilei (século XVI e XVII). Os críticos a Aristóteles desenvolveram a teoria do impetus, iniciada por Philoponus em Alexandria no começo do século VI d. C. Afirmava-se que a força era algo transmitido ao corpo, mas sem a necessidade de contato físico, pois era consumida pelo próprio movimento, ainda que não houvesse resistência do ar – ou seja, no vácuo. Na sequência, matemáticos e filósofos do 7 Merton College desenvolveram estudos sobre o movimento uniforme e uniformemente acelerado, diferenciando a velocidade média da velocidade instantânea, criando a partir disso uma regra que relaciona tais velocidades, a saber: “um corpo movendo-se com movimento uniformemente acelerado percorre a mesma distância em um dado tempo que aquela que ele percorreria, caso se movesse com movimento uniforme e velocidade igual à velocidade média”. (Pires, 2008, p. 74). Essa teoria foi demonstrada geometricamente por Nicole Oresme no século XIV. Os estudos que fundamentaram a cinemática foram mais bem estudados e aprofundados por Galileu, por meio de seus experimentos e do uso formal da matemática, com o processo de matematização. TEMA 3 – PRINCÍPIOS DE CONSERVAÇÃO NAS COLISÕES DOS CORPOS Depois de a física newtoniana ter sido aceita por filósofos, matemáticos e físicos do século XVIII, iniciou-se uma fase de estudo e aplicação em desenvolvimento científico, principalmente pelo advento da Revolução Industrial. A partir de então, esse desenvolvimento proporcionou a criação de outros conceitos físicos, como energia, calor, trabalho e radiação. Verificamos então o protagonismo grandes cientistas: Lavoisier, Mayer e especialmente os físicos e matemáticos Leibniz, Joule, Helmholtz, Euler, Lagrange e d’Alambert. Dentre os diversos temas estudados a partir do século XVIII, destacam-se os princípios físicos, porque constituem um capítulo importante no desenvolvimento da estruturação da física dos séculos seguintes. Eles têm como características fundamentais a invariância, ou seja, as grandezas que os definem não variam quando outras grandezas são variáveis. Os princípios físicos decorrem, “na maior parte dos casos, da observação direta do que ocorre na natureza, ditado pelo encadeamento dos fenômenos e não é consequência de nenhuma dedução lógica, o que significa que um princípio não se explica, não se interpreta” (Baptista; Ferracioli 2000, p. 541). Em relação ao movimento dos corpos num dado sistema físico, e considerando aquilo que pode ser medido, o que de fato é conservado nesse movimento quando um sistema físico experimenta modificações em suas configurações? Ou seja, quais grandezas físicas permanecem constantes? Esse tipo de preocupação surgiu quando os filósofos do século XVII, ao observarem os movimentos dos corpos, perceberamque a velocidade diminuía, até que parassem. Por isso, todo movimento no universo tenderia a cessar. Contudo, não 8 era isso que presenciavam na totalidade do cosmos, pois tudo estava em movimento, como os planetas, ou o devir das coisas ou a própria vida no seu movimento (nascer, crescer e morrer). Ou seja, ao contrário da tendência de cessação, o que se constatava era o movimento das mudanças. Em relação à física, e especialmente ao movimento dos corpos, os filósofos/físicos começaram a investigar o que se conservaria quando um sistema físico experimentasse mudanças em suas configurações. Dentre esses físicos e filósofos, Descartes verificou que, embora a velocidade não se conservasse, a grandeza física denominada quantidade de movimento se conservava, sendo definida pelo produto da massa e da velocidade do corpo. Desse modo, Descartes defendeu que a grandeza quantidade de movimento era a medida do movimento de um corpo e que seu comportamento era invariante. Outra medida do movimento de um corpo foi proposta por Leibniz. Era considerada invariante quando o sistema experimentava alterações em suas configurações. Leibniz, que foi um crítico da proposta de Descartes, constatou que em alguns casos a quantidade de movimento proposta por Descartes não se conservava. Ele sugeriu uma outra medida de movimento: a força viva – vis viva – definida como o produto da massa pelo quadrado da velocidade. A partir dessa concepção, Leibniz considerou dois tipos de forças: a força viva, que se encontrava no objeto em movimento (ou seja, era inerente ao objeto) e a força morta, que correspondia à força estática de Newton (Pires, 2008, p. 234). A proposta de Descartes, sobre a conservação da quantidade de movimento, não se verificava em alguns casos. Assim, ela foi reformulada por Newton, que considerou a quantidade de movimento uma grandeza vetorial; assim, a conservação passou a ser verificada em todas as situações. Do mesmo modo, Leibniz defendia que a grandeza física em conservação quando o movimento de um corpo experimentava mudanças era a vis viva e não a quantidade de movimento. Quem estava correto? Em relação a essa polêmica, a física clássica constatou que ambas as propostas estão corretas, pois de fato há conservação da quantidade de movimento e da vis viva. O termo vis viva foi substituído, no século XIX, pelo termo energia, proposto por Thomas Young, e energia cinética, nomenclatura moderna de Willian Thomson. A partir dos estudos sobre dinâmica, d’Alembert, no século XVIII, propôs que os efeitos relacionados às ações das forças podem ser analisados ao considerarmos a variação do espeço ou do tempo. Assim, considera-se que a 9 variação do espaço e o efeito da ação das forças estavam relacionados com a vis viva de Leibniz; levando em consideração a variação do tempo, os efeitos dessas ações estavam relacionados com a quantidade de movimento de Descartes. Em relação à vis viva, e já no início do século XIX, Coriolis introduz o conceito de trabalho, mostrando, por meio das leis de Newton, que o trabalho realizado sobre um corpo corresponderia à metade da variação da vis viva. TEMA 4 – O VÁCUO Em torno do século IV a.C., Aristóteles afirmava que inexistiam espaços vazios, pois a matéria ocuparia todo o Universo – ou seja, não há vácuo em lugar algum. Para Aristóteles, toda matéria era constituída de quatro elementos básicos: terra, água, ar e fogo. As regiões celestes eram formadas por um quinto elemento (quinta essência) que preenchia todo o Universo. Por outro lado, os atomistas gregos Leucipo e Demócrito defendiam que tudo era formado de átomos, e que entre os átomos existia apenas o vácuo, ou seja, os atomistas defendiam a existência do espaço vazio no interior da matéria. A concepção aristotélica prevaleceu por vários séculos. Somente no período medieval, com a retomada do pensamento de Aristóteles, a questão sobre o vácuo voltou a ser um tema discutido pelos escolásticos; a ideia de que a natureza tem horror ao vácuo passou a ser alvo de polêmica. No entanto, as experiências do cotidiano corroboravam com a concepção aristotélica; podia-se verificá-la quando um fole bem fechado oferecia resistência para ser aberto ou quando dois mármores bem polidos, ao serem pressionados, ofereciam grande resistência para serem separados. Ao final da Idade Média, o modelo aristotélico permanecia hegemônico. Surgiram então algumas invenções que desafiavam a concepção aristotélica, como a bomba aspirante utilizada para retirar água de poços e minas. No entanto, havia um problema com essa invenção, pois, para desníveis superiores a 10,3 metros, a bomba não conseguia bombear a água, e assim sua utilidade era limitada. Essa questão foi importante para que os físicos/filósofos buscassem resolver ou compreender o problema, no sentido de apontar a causa do mau funcionamento da bomba. A partir dessa motivação problemática, outros conceitos foram sendo criados, como o conceito de pressão e densidade, e especialmente a desconstrução dos argumentos aristotélicos em relação ao vácuo. 10 As experiências criadas, que estavam relacionadas ao ar (ou ao vácuo), contribuíram para reduzir a influência aristotélica, pois refutaram a sua afirmação de que a natureza tem horror ao vácuo. Uma dessas foi realizada por Galileu, que tentou calcular o peso do ar (Galileu concluiu que seria 400 vezes mais leve que a água). Em outro experimento, realizado em Roma no ano 1641, Gasparo Berti tentou produzir vácuo. O experimento consistia num tubo longo de chumbo cheio de água, em cuja extremidade, mergulhada num tonel também com água, havia uma torneira; na extremidade superior, havia um recipiente de vidro com um sino. Ao abrir a torneira do tubo, foi verificado, para o espanto de todos, que a água fluía para o tonel, produzindo um vácuo no recipiente de vidro – o que contrariava a afirmação de Aristóteles –, enquanto a coluna de água permanecia a uma altura de cerca de 10 metros em relação ao nível da água. Outra experiência, parecida com a de Berti, conhecida como experiência de Torricelli, foi realizada na Itália por Vicenzio Viviani, discípulo de Galileu. Ele constatou a formação do vácuo; porém, a coluna de líquido (nesse caso, mercúrio) foi inferior à coluna de água. Para realizar esse experimento, ele utilizou um tubo de vidro com uma extremidade fechada, com um metro de comprimento, e o com mercúrio. Tampa-se a extremidade aberta com o dedo e mergulha-se esta extremidade num recipiente aberto com mercúrio; por fim, retira-se o dedo. A experiência mostrou que o mercúrio desce e estabiliza numa altura de cerca de 76 cm em relação ao nível de mercúrio do recipiente, deixando um espaço vazio no topo. (Martins, 1989, p. 36). A explicação para o fenômeno constatado na experiência foi fornecida por Torricelli, que “defende a interpretação moderna: a de que esses efeitos são produzidos pela pressão da atmosfera” (Martins, 1989, p. 36). Assim, foi formulado o conceito de pressão atmosférica, que corresponde à pressão exercida pelo oceano de ar sobre a superfície da Terra, cujo valor é 1 atmosfera, sendo, em mmHg, igual a 760 mmHg. As experiências com vácuo foram difundidas por Torricelli por meio de cartas e por outros estudiosos. Elas foram reproduzidas em altitudes diferentes, como as experiências realizadas por Pascal, e outra bastante interessante, realizada por Otto von Guericke em Magdeburgo, na Alemanha, em 1654. Nesse experimento, obteve-se vácuo no interior de uma esfera formada por dois hemisférios, por meio de bomba de vácuo. O cientista submeteu essa esfera a uma força formada por duas parelhas de cavalos com oito cavalos cada uma. 11 Tais experiências comprovaram a existência do vácuo e a pressão exercida pela coluna de ar da atmosfera, indicando que essa pressão influencia o bombeamentode líquidos em desníveis e a geração de vácuo. TEMA 5 – MOVIMENTOS DA ETNOCIÊNCIA O conhecimento culturalmente acumulado pela humanidade é preservado e transmitido às gerações por meio de diversos mecanismos de transmissão; dentre eles, destaca-se a instituição Escola. Contudo, há outros meios de se efetivar a transmissão cultural, como os meios de comunicação digitais e impressos, eventos artísticos, cinematográficos e teatrais, além de outras instituições não escolares, como museus e espaços culturais e memoriais. Além disso, há de se destacar que o conhecimento cultural acumulado e transmitido está associado a um determinado povo ou nação com traços culturais específicos, como os povos indígenas, os negros ou quilombolas, considerados minorias, mas também os povos que correspondem à maioria, como europeus, latinos e americanos, dentre muitos outros. A partir do espectro cultural, e considerando os espaços que essas culturas ocupam na sociedade, via de regra as culturas pertencentes aos povos considerados minorias são mal vistas, mal compreendidas e pouco valorizadas. Há um preconceito sobre seus valores e tradições que culmina na ideia de inferioridade. Isso ocorre, principalmente, quando há um processo de colonização dos povos nativos de uma dada região, onde a cultura minoritária é, geralmente, inferiorizada. Como exemplo concreto, poderemos citar as culturas indígenas e quilombolas ou a produção cultural oriunda de classes de baixo poder aquisitivo existentes nas grandes cidades ou metrópoles brasileiras. Essa perspectiva dos processos culturais reflete sobre o conhecimento produzidos por esses grupos culturais, que constituem a minoria de uma dada nação. Assim, os seus saberes são, também, de algum modo inferiorizados. Sobre essa questão, em especial no campo educacional, há alguns movimentos que buscam valorizar e legitimar as produções culturais que são, de certo modo, marginalizadas e subvalorizadas na sociedade contemporânea, a saber: a etnomatemática e a etnociência. Na perspectiva da etnociência, o antropólogo e pesquisador Goodenough (citado por Santos, 2009, p. 107) afirma que “a cultura “é um sistema de conhecimento, de padrões de percepção, crenças, avaliação e ação, é forma das 12 coisas que as pessoas têm na mente, seu modelo de percepção, relacionamento e de como as interpreta.”. Decorre daí que a cultura que se considera e se estuda na etnociência não é aquela representada por fenômenos materiais, mas sim por aquilo que as pessoas pensam a respeito de tais fenômenos (Santos, 2009, p. 106). Esses movimentos estão contemplados por uma visão integradora da educação, como por exemplo a nova pedagogia intercultural, que possibilita uma visibilidade geopolítica do saber, principalmente quando esse saber pertence a uma cultura indígena, ou seja, aos povos indígenas. Essa pedagogia, segundo Walsh (2011), nos chama a refletir acerca da interculturalidade participativa, que possibilita integrar as pessoas que foram estigmatizadas ao longo do tempo. O seu princípio se fundamenta na integração de conhecimentos, reconhecendo a importâncias de todo conhecimento que contribui para o desenvolvimento da humanidade. Numa perspectiva sociocultural, El-Hani e Mortimer (2007) propõem um modelo de ensino de ciências culturalmente sensível que considera os conhecimentos prévios dos estudantes como conhecimentos culturais. A discussão seria importante por influenciar na aprendizagem da ciência. Porém, esse modelo, ao pensar o conhecimento não científico como senso comum, “desconsidera os conhecimentos próprios de uma identidade coletiva (como exemplo, os saberes da sociedade indígena), construídos e legitimados historicamente pela sociedade nativa” (Monteiro et al. 2017, p. 8). Uma outra forma de abordagem que valoriza as diversas culturas historicamente produzidas é o multiculturalismo. A partir dele, há o reconhecimento das diferentes culturas e da não-superioridade de uma cultura em relação à outra. De acordo com Santos (2009, p. 106), estudos antropológicos, numa perspectiva do multiculturalismo, têm papel primordial, “já que revelam aspectos de produção científica nas culturas dos povos então colonizados, tão ignorados pela Ciência”. Nesse caso, podemos entender ciência da seguinte forma: Um corpus de conhecimentos, organizados e hierarquizados de acordo com uma graduação de complexidade e de generalidade, elaborados pelo homem na sua ânsia de desvendar a ordem cósmica e natural e de esclarecer o comportamento físico, emocional e psíquico do indivíduo e de outros: conhecer-me e conhecer-te. (Santos, 2009, p. 106) 13 No que diz respeito à cultura, a partir da etnociência, Santos (2009, p. 106) afirma que uma cultura é representada por aquilo que se pensa sobre os fenômenos materiais, e não representada por esses fenômenos em si. Nesse contexto, como já afirmamos, a cultura corresponde a um sistema de conhecimento que contempla padrões de percepção e crenças, mas também de avaliação e ação (Santos, 2009, p. 106): É próprio de todas as espécies preparar gerações futuras transmitindo e apreendendo conhecimentos e comportamentos acumulados pelas gerações anteriores. Conhecimento e comportamento são: 1 – gerados por indivíduos a partir de estímulos do seu ambiente natural, social e imaginário; são simbólicos, com a finalidade de entender, explicar e lidar com esse ambiente e com os fatos e fenômenos ali percebidos; 2 – são organizados intelectualmente como um corpo coerente do que se faz em e o que se sabe sobre certas situações; 3 – são organizados socialmente no encontro com outros, segundo nos ensina a dinâmica cultural de saberes e fazeres; e 4 – são transmitidos e difundidos. (Santos, 2009, p. 108) Para D’Ambrósio (2004, citado por Santos, 2009, p. 110), “A Etnomatemática e a Etnociência transcendem as várias formalizações das ideias matemáticas e científicas de diversas culturas, particularmente das que se consideram como Matemática e Ciências acadêmicas, provenientes do Ocidente e cujas origens vêm dos povos da bacia do Mediterrâneo”. FINALIZANDO Nesta aula, trouxemos uma discussão sobre o uso da história da ciência no ensino de física, pautada nas pesquisas que investigaram e investigam essa temática. Para se aprofundar no tema, você pode utilizar, por exemplo, os temas relacionados à conservação da quantidade de movimento e energia, complementando o assunto com o desenvolvimento atual dos conceitos e com a aplicação de atividades. Com relação ao tema da etnociência, recomenda-se trabalhos investigativos, no sentido de buscar, nas mais diversas comunidades, conhecimentos produzidos por seus descendentes sobre a concepção e a criação do universo, do mundo e dos seres vivos. 14 LEITURA COMPLEMENTAR DA DISCIPLINA Textos de abordagem teórica ROONEY, A. A história da física. São Paulo: M. Books, 2013. PIRES, A. S. T. Evolução das ideias da física. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2008. 15 REFERÊNCIAS BALDOW, R.; MONTEIRO JUNIOR, F. N. Os livros didáticos de física e suas omissões e distorções na história do desenvolvimento da termodinâmica. Revista de Educação em Ciência e Tecnologia, v. 3, n. 1, 2010. BAPTISTA, J. P.; FERRACIOLI, L. A construção do princípio de inércia e do conceito de inércia material. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 22, n. 2, junho. 2000. _____. A evolução do pensamento sobre o conceito de movimento. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 21, n. 1, mar. 1999. D’AMBRÓSIO, U. Um enfoque transdisciplinar à educação e à história da matemática. In: BICUDO, M. A. V.; BORBA, M. C. (Org.) Educação matemática: pesquisa em movimento. São Paulo: Cortez, 2004. EL-HANI, C. N.; MORTIMER, E.F. Multicultural education, pragmatism and the goals of science teaching. Cultural Study of Science Education, v.2, 2007. ESQUINCALHA, A. C. Etnomatemática: um estudo da evolução das ideias. 2003. FELDENS, B.; DIAS, P. M. C; SANTOS, W. M. S. E assim se fez o quantum. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 32, n. 2, 2012. FORATO, T. C. de M.; PIETROCOLA, M.; MARTINS, R. de A. Historiografia e a natureza da Ciência na sala de aula. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, v. 28, n. 1, p. 27-59, abr. 2011. KRAPAS, S.; QUEIROZ, G. R. P. C.; UZÊDA, D. O tratado sobre a luz de Huygens: comentários. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 28, n. 1, 2011. MARTINS, R. de A. Introdução: a história das ciências e seus usos na educação. In: SILVA, C. C. (Org.). Estudos de história e filosofia das ciências: subsídios para aplicação no ensino. São Paulo: Livraria da Física, 2006. MARTINS, R. de A. O vácuo e a pressão atmosférica, da antiguidade a Pascal. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 2, v. 1, n. 3, p. 9-48, 1989. MONTEIRO, E. P. et al. Estudos culturais para o ensino de ciências em uma perspectiva crítica e pós-colonial: o caso da etnociência. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 11., 2017, 16 Florianópolis. Anais..., Florianópolis, 2017. Disponível em: <http://www.abrapecnet.org.br/enpec/xi-enpec/anais/resumos/R1778-1.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2018. PEDUZZI, L. O. Q. Sobre a utilização didática da História da ciência. In: PIETROCOLA, M. (Org.). Ensino de física: conteúdo, metodologia e epistemologia numa concepção integradora. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001. PIRES, A. S. T. Evolução das ideias físicas. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2008. ROCHA, J. F. M. 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