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Copyright © 2006 do autor Todos os direitos desta edição reservados à FUNDAÇÃO 0SW ALD0 CRUZ / EDITORA ISBN: 85-7541-095-4 Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica Carlos Fernando Reis & Adriana Carvalho Revisão, copidesque e normalização de originais Janaína de Souza silva Biblioteca de Ciências da Saúde-Ciências da Saúde Distribuidora Curitiba de Papeis e Livros Ltda Epidemiologia critica T e r m o . 22/2008 R e g i s t r o 452867 R$26,77 11/01/2008 LICITAÇÃO Catalogação-na-fonte Centro de Informação Científica e Tecnológica Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca B835e Breilh, Jaime Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. /Jaime Breilh. Rio de Janeiro : Editora FIOCRUZ, 2006. 317p., graf. 1 .Epidemiologia. 2.Saúde pública. l.Título. CDD - 20.ed. - 614.49 2006 EDITORA FIOCRUZ Av. Brasil, 4036 - sala 112 - Manguinhos 21040-361 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (21) 3882-9039 e 3882-9041 Telefax: (21) 3882-9006 e-mail: editora@fiocruz.br http://www.fiocruz.br/editora K U « * ,,. mailto:editora@fiocruz.br http://www.fiocruz.br/editora 6 Bases para uma Epidemiologia Contra-Hegemônica Uma característica própria do scr humano é a de ser um fabricante de utopias. O ideário de suas grandes metas é parte essencial de sua natureza consciente e de sua condição de espécie histórica. No campo da ciência, o pensamento ‘portador de frutos’ só é produzido pelo que ‘pode ser’, com base no que ‘foi’, e não pelo que ‘é’ (Santos, 2000). Daí o fato de qualquer proposta científica, como a que se perfila nestas páginas, e por mais especializada que seja, ter de ser concebida no referencial de uma meta humanista, caso obedeça a uma adoção de identidade e a uma utopia de recriação de um ser humano mais justo, mais eqüitativo, mais sonhador e, portanto, mais saudável. Entretanto, o impulso de um programa científico que assume esse tipo de desafios integrais insere-se, por força maior, numa realidade cheia de contradi ções e de luta pelo poder - das quais depende, lamentavelmente, a situação de saúde de uma sociedade - que torna mais difícil chegar a esses caminhos mais justos e eficazes. Essa é uma questão que adquire agora uma vigência terrível, na nova era do sistema capitalista em que a eclosão violenta do terrorismo reativo, diante do fundamentalismo do mercado, ainda sustentado, apesar de seus fracassos estrepitosos, pelo mesmo poder que impulsiona uma ‘teologia monetarista desacreditada’ - como a chamou Krupman, ganhador do Prê mio Nobel de economia -, marca o começo de uma outra fase do mundo, radicalmente polarizada. Assim, é indubitável que, nos cenários em que trabalham os epidemiolo- gistas, há contradições importantes, e uma delas, que não é possível deixar de lado, é a oposição de duas grandes visões de mundo e seus problemas: o olhar hegemônico dos que concentram o poder e o olhar dos que promovem uma contra-hegemonia, para democratizar e para romper os grilhões. Os planos e intervenções de saúde encarnam justamente uma dessas visões de mundo. 165 Foi Antonio Gramsci quem estabeleceu uma explicação incisiva da ‘hege monia' como um elemento de subordinação social e da 'contra-hegemonia' como possibilidade de um bloco popular emancipador (Gramsci, 2000). A hege monia foi explicada como forma de dominação de uma classe social sobre as demais, a qual não é simplesmente praticada mediante uma organização espe cial da força, mas por meio do exercício de uma liderança moral e intelectual para cuja vigência essa classe dominante tem de transcender o referencial es treito de seus interesses corporativos, e estabelecer compromissos, dentro de certos limites, com uma variedade de aliados. Assim se forma um bloco social que representa uma base de consentimento para uma certa ordem social, na qual a hegemonia é criada e recriada dentro de um conjunto de instituições, relações sociais e idéias (Pissomo, 1982). É inegável a importância dessa des coberta e de suas conseqüências para o avanço da práxis em todos os campos, e especificamente no da saúde. Ao mesmo tempo, contudo, uma interpretação parcial e esquemática da descoberta da hegemonia de Gramsci conspira contra sua plena utilidade, sobretudo quando ela é reduzida a um esquema bipolar de classes sociais, enquadradas “numa lista de ‘hegemônicos’, em contraposição a uma lista de ‘subalternos’": Quando as complexas relações entre a hegemonia e a subalternidade são reduzidas a um simples jogo bipolar, minimiza-se a sutil distinção gramsciana entre dominação e hegemonia, e se descuida da ‘rede de intercâmbios, empréstimos e condicionamentos recíprocos' entre as culturas de diferentes classes, ou seja, das •formações intermediárias' destacadas porCirese. (García-Canclini, 1993:65) É muito útil, para os projetos atuais de uma epidemiologia crítica, recor dar que toda 'dominação' se fortalece à medida que se converte em hegemonia, como afirmaram o próprio Gramsci e alguns antropólogos em anos recentes. Os dominadores cuidam de algumas necessidades dos dominados e suscitam algumas respostas legitimadoras em alguns setores populares. No campo da saúde, ésse tipo de respostas legitimadoras continua a ocorrer, mesmo nos cenários em que a contra-reforma neoliberal deixou menos espaço para a nego ciação oportunista efetuada pelos grupos dominantes. O que deve ser compreendido, como explicou Maurice Godelier (1978), é que as relações de dominação e exploração, para se reproduzirem de forma duradoura, ‘devem apresentar-se como um intercâmbio, e um intercâmbio de serviços’ entre as classes. As classes hegemônicas tornam-se tais na medida em que incluem nas instituições, nos objetos e nas mensagens, em sua função e seu sentido, não apenas seus interesses setoriais, mas também a parcela das culturas populares que se revela útil e significativa para a maioria. Se não vemos o povo como uma massa submissa que sempre se deixa enganar, temos 166 de admitir que sua dependência se deve, em parte, ao fato de ele encontrar na ação hegemônica algo de útil para suas necessidades. Por exemplo, os campo neses recebem da cultura urbana de massa as informações necessárias para compreender e agir ‘corretamente’ em suas novas condições. Entenderemos melhor a televisão, nesse caso, como uma espécie de manual de urbanidade. Quando se trata de hegemonia, e não de simples dominação e coerção, o víncu lo entre as classes apóia-se menos na violência de cima para baixo do que no contrato, numa ‘aliança em que hegemônicos e subalternos contratam entre si .serviços recíprocos’. Da mesma forma que a velha epidemiologia funcionalista constituiu um instrumento de hegemonia, a nova epidemiologia crítica tem de ser concebida como um elemento de contra-hegemonia, para chegar ao estatuto de uma ativi dade emancipadora. Ao longo destas páginas, falamos da urgência de inscrever o esforço epis- temológico numa concepção emancipadora da práxis, e, para isso, é preciso esclarecer algumas categorias e relações fundamentais nas quais se enraíza uma parte substancial do pensamento epidemiológico e da saúde coletiva. São categorias que definem a ação e cuja interpretação depende de as olharmos pela perspectiva hegemônica ou pela contra-hegemónica. AS TRÊS DERROTAS DOS DIREITOS HUMANOS E A REAFIRMAÇÃO DA NECESSIDADE EM SAÚDE Os conceitos de ‘necessidade’, ‘desenvolvimento humano’ e ‘práxis’, bem como a formulação de um modelo epidemiológico que articule uma concep ção de práxis histórica com os modos de ‘intervenção’, ‘investigação’ e ‘in terpretação’ epidemiológicos, têm de fazer parte do grande modelo contra- hegemônico da epidemiologia crítica, inscrito no que denominamos de neo- humanismo popular. Em termos históricos, a criatividade e a solidariedade que ansiamos por implementar são apenas potencialidades, que nem sempre poderão ser expres sas e concretizadas. Elas se desenvolveram sem barreiras estruturais durante vários séculos, enquantoas sociedades se organizavam comunitariamente e se guiavam para a satisfação de necessidades coletivamente definidas, assim como para uma distribuição eqüitativa dos bens coletivos. Nessas épocas, o sujeito social atuava em função dos valores de uso, e a atividade coletiva orientava-se para a produção de bens que satisfizessem necessidades estabelecidas por con venções coletivas; nem a divisão sexual do trabalho, nem as diferenças de gênero nem os contrastes étnicos provocavam então desigualdades importan tes, porque a sociedade funcionava em busca do bem comum, o enriquecimen to privado era impensável e, por isso, não existiam condições para a concen- 167 tração de poder e para desigualdades extremas. Ao desarticular-se esse sujeito comunitário e surgirem os sujeitos privados, guiados pela ânsia de entesoura- mento mercantil, rompeu-se o direito à eqüidade - note-se que, neste ponto, não estamos falando de igualdade. A necessidade foi deslocada e em primeiro plano veio colocar-se o interesse de produzir para lucrar, com o que teve início a era da concentração de poder e do aparecimento da ineqüidade. Até então, haviam existido apenas a diversidade e desigualdades não significativas. Essa transição da sociedade comunitária para a dos mercadores privados produziu a 'primeira grande derrota dos direitos humanos e da necessidade' como eixo da construção social. Desde então, o interesse centrou-se na produ ção para o lucro, que passou a ser o eixo de organização de todas as ativida des. Depois, uma ‘segunda grande derrota histórica dos direitos humanos e da necessidade', como princípio de definição social, deu-se com o surgimento do capitalismo da livre concorrência (século XVII) e, um pouco mais tarde, da grande indústria (em torno do século XVIII), alicerçado na descoberta de que o uso da força de trabalho possibilitava o aumento do valor, a extração de lucros do trabalho alheio e a acumulação dessa mais-valia. Nesse momento, mulhe res e homens pobres do mundo perderam o direito à propriedade dos bens fundamentais da sociedade, industriais e financeiros, mas o sujeito coletivo - nessa ocasião, o sujeito trabalhador coletivo - se manteve em vigor e conse guiu sustentar os direitos trabalhistas e sociais básicos que se consolidaram no pacto social subseqüente à Segunda Guerra Mundial. A mulher proletária e de classe média, a partir de então, teve de lutar para que suas reivindicações de gênero não fossem dissolvidas nas reclamações gerais de classe, e aproveitou o clima reivindicativo e a mentalidade socialista da época para promover suas próprias reivindicações; com isso, consolidou-se e se diversificou o movimento feminista, que descortinou para o mundo a luta dos gêneros como uma linha nova e fundamental de emancipação. Os grupos étnicos - tendenciosamente denominados de ‘minorias’ pela ciência oficial - também iniciaram seu expediente de luta no mundo, cm momentos diferentes e com força variável. Os projetos de emancipação étnica, por sua ligação evidente com a pobreza, confundiram-se residualmente com os reclamos do proletariado mundial, embora, por sorte, tenham também preservado o fio condutor de suas reivindicações etnonacionais, o que, em muitos lugares, na atualidade, derivou numa força emancipadora, embora o capitalismo globalizado também tenha dado impulso a um novo etnocentrismo e a um fundamentalismo reativo. Já nas décadas mais recentes, o processo de extrema concentração da ri queza determinou a acumulação de uma superpopulação relativa, que rom peu todas as proporções conhecidas até então. Não mais se tratou de um sim ples exército industrial de reserva, porém de uma massa totalmente excluída do circuito primário da economia monopolista - uma massa marginalizada, 168 expulsa para a informalidade no campo do trabalho, deslocada no plano terri torial para os bairros miseráveis e os espaços mais deteriorados de campos e cidades, e cerceada, no campo cultural, numa cultura marginal e de resistên cia, na qual não houve oxigênio para a construção de um pensamento emanci- pador. Assim, em meados da década de 1980, já chegado o capitalismo tardio ou pós-industrial, ocorreu 'a terceira derrota dos direitos humanos’ e da possi bilidade de as classes subalternas concretizarem o sempre postergado projeto emancipador da modernidade. Foi uma derrota em que se combinou o retroces so absoluto dos direitos económicos com níveis mínimos de sobrevivência, rompendo-se radicalmente o pacto do pós-guerra. Todavia, apesar de sua gra vidade, o impacto econômico não foi a única destruição ou retrocesso sofrido, pois a globalização implicou não apenas o despojamento de nossa riqueza material e nossos recursos estratégicos, mas também uma contra-reforma jurí dica, ideológica e cultural que procura neutralizar-nos espiritualmente, não só dissolvendo os espaços e territórios nacionais de reprodução de culturas pró prias, mas dominando-nos mediante a implantação de uma cultura do egoís mo e do consumo, com o que se procura acabar com a identidade dos povos e apagar, através do individualismo, qualquer vestígio de organização coletiva e de solidariedade. E tudo isso enquanto se criam severas limitações legais a qualquer forma de defesa dos direitos. É no quadro desse retrocesso colossal que deve ser reavivada uma preo cupação com os direitos humanos e a necessidade em todos os campos disci plinares e, mais ainda, em campos como o da epidemiologia, direcionados para a defesa e a promoção da vida. Reafirmação urgente da necessidade em saúde A reflexão sobre a atividade da saúde coletiva e da epidemiologia, como instrumento de investigação, planejamento, monitoramento e controle das con dições sanitárias e das ações e programas, não pode desvincular-se de várias ‘categorias’ fundamentais para definir os conteúdos e metas da ação. Uma delas, precisamente a que permite iniciar a análise estratégica, é a da ‘necessi dade’. Mas a ‘necessidade em saúde’ é definida e usada de acordo com inter pretações distintas de como e por que se dá a ’distribuição’ das formas de acesso e satisfação numa sociedade. Atualmente, há um confronto entre duas ‘grandes correntes’ a propósito do tema da definição da necessidade: a) a necessidade humana como um valor relativo, que depende de opções individuais e das possibilidades de cada pes soa e sua família para adquiri-las no mercado (corrente liberal); b) a necessi dade como um processo determinante da vida, cuja realização constitui, por isso mesmo, um direito humano inalienável, ao qual se deve aceder através de 169 uma distribuição eqüitativa e segura por parte de todos os membros de uma sociedade, a qual deve construir-se solidariamente em prol do máximo bem comum (corrente solidária). Essa distinção tem profunda influência em cam pos como o da epidemiologia e de suas atividades de prevenção, pois, como veremos mais adiante, na seção dedicada à crítica da teoria do risco, uma definição incorreta da necessidade, ou inclinada para interesses unilaterais, conduz a um paradigma ineficaz da prevenção, na melhor das hipóteses, ou„a uma utilização contrária aos interesses sociais, na maioria das vezes. Por isso, ao nos dispormos a construir um olhar alternativo para uma nova epidemiologia, é muito importante esclarecer essas acepções e direções possí veis e tomar consciência de suas implicações. Surpreendentemente, a tese de atender à necessidade humana encontra-se tanto nos discursos dos setores mais retrogressivos, que apoiam a corrente liberal, quanto nas propostas alternativas das organizações sociais e núcleos científicos mais inovadores, que promovem a visão solidária. A experiência recente parece indicar que a aparente reivindica ção das necessidades humanas, por parte dos setores hegemônicos, não passa de uma forma de substituir 'o direito' por uma acepção muito peculiar e convenien te da necessidade, e assim preparar o terreno para sua mercantilização. Se o atendimentode saúde e os programas de prevenção já não são direitos inaliená veis, mas 'necessidades' discricionárias, o poder tem a possibilidade de decidir quais necessidades deve incluir num pacote mínimo para os pobres, e quais deve deixar a cargo do mercado e do ‘livre’ arbítrio dos 'clientes'. Em primeira instância, o debate contemporâneo sobre a ‘definição da ne cessidade humana’ poderia ser assim delineado: para uns, todos os seres hu manos têm as mesmas necessidades básicas - ‘teoria objetiva' -, enquanto, para outros, as necessidades são uma construção sociocultural - ‘teoria sub jetiva' ou ‘relativismo’ (Doyal & Gough, 1991). Não sendo analisada com maior cuidado, essa delimitação geral pode ge rar confusão no campo teórico e técnico, sobretudo agora que a nova direita maneja o relativismo a seu favor, aduzindo que as necessidades são construí das pelas diferentes populações, ou até pelos desejos individuais - para sus tentar o empobrecimento neoliberal das necessidades -, e, como já foi dito, difunde a idéia de que as necessidades válidas devem ser definidas, em última instância, no mercado e no livre arbítrio individualista. A discussão desse assunto ultrapassa os limites do presente trabalho, mas basta dizer aqui que o ‘processo de definição das necessidades' nos grupos humanos não é nem exclusivamente objetivo, em resposta a condicionamentos individuais imediatos, nem exclusivamente subjetivo, adquirido ou mediado por condicionamentos históricos, econômicos e culturais. Embora não seja nosso propósito desenvolver aqui uma discussão aprofundada dessa disjunção, ca bem algumas considerações sucintas. 170 Como vimos assinalando, o conhecimento da necessidade pode ser enfoca do por perspectivas distintas. Há quem sustente que a necessidade não passa de um fenômeno objetivo da natureza, um ‘em si' que só pode refletir-se em nosso pensamento e ao qual se responde com a consecução de ‘satisfações', como um processo reflexo. Essa ‘teoria objetiva’ inscreve-se num enfoque po sitivista que desconhece que toda necessidade objetiva contém elementos sub jetivos, os quais, se apagados, deixam-nos uma abstração vazia e indetermi nada. Inversamente, há quem afirme que a necessidade não passa de uma construção a partir de um esquema subjetivo a príori. Essa ‘teoria relativista’ inscreve-se num enfoque fenomenológico que desconhece que a necessidade construída só o pode ser em relação a uma necessidade concreta, isto é, que a necessidade construída traz a marca da necessidade básica objetiva, e que, além disso, só o pode ser em relação a definições socialmente construídas. Ou seja, elementos objetivos como a sede e a sensação de fome existem na nature za humana desde antes, porém marcam e estão presentes nas necessidades que construímos com base nelas, individual e coletivamente (Breilh, 2000). Mas o conhecimento científico da necessidade humana não tem como pon to de partida um elemento objetivo abstrato nem um esquema subjetivo abstra to, e sim a atividade prática social de seres concretos, historicamente dados. Esse ‘enfoque praxiológico' evita fazer-nos cair em abstrações vazias, que re duzem o conhecimento. A construção da necessidade, como todo processo humano, é gerada a partir da ordem individual ou micro (gênese) e se reproduz a partir da ordem social ou macro (reprodução social) (Samaja, 1993). Na ordem individual pri mam os processos fenotípicos básicos, isto é, as necessidades fisiológicas e psicológicas; em outras palavras, são as pessoas e as famílias, em seu co tidiano, que determinam os movimentos detalhados do consumo, com suas preferências e de acordo com seus obstáculos (estilos possíveis e desejáveis de vida), mas tais estilos (preferências e obstáculos) não funcionam num vazio social, desenrolando-se em espaços sociais concretos, marcados nos condicio namentos econômicos, culturais e políticos (modos de vida típicos) que. em cada classe social e de acordo com as relações étnicas e de gênero que as caracterizam, são viáveis e prováveis, também em relação às determinações sociais mais amplas (ver Figura 9, inspirada em Samaja). As relações históricas em que vive o ser humano fazem com que seu fenó- tipo e seu psiquismo se modifiquem, e com isso mudam as necessidades bási cas de ordem biológica e psíquica; em outras palavras, os processos históricos da ordem macrossocial implicam a construção de necessidades coletivas, ou a ‘dimensão coletiva das necessidades’ que depois se mantêm como padrões de reprodução social nos quais se enquadra a necessidade individual. O consumo de água e a resposta para realizá-lo, por exemplo, não é arbitrário, mas objeti- 171 vamente determinado por um requisito fenotípico; entretanto, o quantum des sa necessidade, assim como as modalidades de seu consumo, sua qualidade e as concepções que o reproduzem, varia de acordo com as circunstâncias e exigências de cada momento e lugar. Figura 9 - A construção da necessidade Portanto, se a construção das necessidades - incluídas as que se relacio nam mais diretamente com a saúde - não é exclusivamente um fenômeno psi- cocultural individual, mas um processo histórico coletivo que abarca todas as dimensões da reprodução social, então não se pode adotar unicamente a clas sificação axiológica das necessidades humanas, proposta à guisa de matriz (Max-Neef, Elizalde & Hopenhayn, 1986). Em vez disso, numa primeira instân cia, seria preciso colocar as dimensões sociais da necessidade como critério de classificação e considerar que a epidemiologia deve responder com suas ações em cada um dos seguintes campos da necessidade: • Necessidades humanas do processo de trabalho. • Necessidades humanas da vida de consumo e do cotidiano. • Necessidades humanas da vida organizacional. ° Necessidades humanas da subjetividade, da consciência e da vida cultural. ° Necessidades humanas da relação com as condições naturais do meio ambiente. Esta classificação corresponde a demandas que não se realizam nem são respondidas apenas no plano individual ou a partir da perspectiva dos indiví- 172 duos, e todas envolvem os requisitos básicos de serem processos: cooperativos e solidários; criativos; benéficos para a saúde física e mental; culturalmentc enriquecedores, por meio do fortalecimento dos povos e de suas culturas par ticulares, bem como das conquistas culturais universais; adaptados às condi ções de idade, gênero, atividade e meio; possibilitadores de uma participação criativa e autônoma das pessoas e de suas organizações na definição e desen volvimento dos próprios direitos; que sejam bens cuja vigência ou aos quais o acesso não dependa da renda, da situação de classe, do gênero ou da etnicida- de; e que sejam os mais seguros, conforme o horizonte de visibilidade da ciên cia num determinado momento (Breilh, 1995b). Dessa maneira, enfocamos um nível de análise coletiva que atende às ne cessidades reproduzidas por uma estrutura social, mesmo que estas tenham sido geradas com o concurso das necessidades básicas biopsicológicas. Isso não significa que não devamos atentar para as necessidades específicas dos indivíduos, mas que devemos organizar a lógica das respostas mais singulari zadas no contexto do pensamento e da ação relacionados com o coletivo, e só depois entrar no nível micro. Só faz sentido enunciarmos a necessidade no seio dos processos concretos de reprodução social quando entra-se diretamente numa matriz como a pro posta por Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn (1986), atomizam-se a visão e a análise no indivíduo, porque, embora as necessidades básicas sejam seme lhantes no plano formal abstrato, no terreno concreto da vida social, ao contrá rio, elas fazem parte de processos e determinações distintos, cujas especificida des merecem enfoques diferenciados. Esse é um problema que não se resolve com a proposta dos autores de distinguir entre necessidade e satisfação - por exemplo, entre a ‘necessidade de proteção’ e o'sistema satisfatório de saúde’ - porque as necessidades que os autores reconhecem, tais como a proteção, não se produzem nem existem como um fato natural espontâneo, mas são proces sos em movimento, com características e modos de devir determinados pelas condições socioestruturais e pelos conflitos de interesses a que elas correspon dem, com especificidades que, não sendo levadas em conta, conduzem a gra ves erros de interpretação e de ação. Do mesmo modo, se é verdade que a ‘subsistência’, por exemplo, é uma necessidade essencial em qualquer socie dade, falar dela no vazio, sem inserir essa análise nos processos históricos determinantes da reprodução social (processo de produção e consumo, que define a quota e a qualidade dos bens que cabem a cada grupo; processo de poder político no Estado, que condiciona a quota e a qualidade dos serviços prestados também por essa via etc.), equivale a criar uma abstração inútil, caso o que se almeje seja desencadear uma ação emancipadora; é como tirar do processo de subsistência a sua raiz e vê-lo incompleto, o que seria apenas funcionalmente útil e equivaleria a um modelo de ação cosmética, que repro- 173 duziria as mesmas condições essenciais. Mais que isso, no entanto, uma ne cessidade como a subsistência, que tem de ser solidária e digna para ser hu mana, não é simplesmente uma necessidade, mas foi historicamente transfor mada num direito que não pode ser submetido a nenhuma negociação, da mesma forma que os princípios não podem ser negociados. Vistas as coisas dessa maneira, a ‘subsistência’ não começa como uma necessidade natural em si, que se reflete na busca de um elemento de satisfa ção como a água e o alimento, mas é um processo que começa em sua forma de determinação histórica e se projeta nos processos de satisfação, como uma unidade dinâmica que a análise não deve quebrar em pedaços; fazer o inverso é um fracionamento positivista tão falacioso quanto a decomposição da reali dade em fatores, para estudar de forma positivista as ‘causas' das doenças. O que efetivamente se pode fazer com as referidas categorias axiológicas (subsis tência, proteção, afeto, entendimento, participação, lazer, criação, identidade, liberdade) é inseri-las no referencial dinâmico da reprodução social e nos pos tulados solidários e socialmente construídos da ação. Em síntese, os processos básicos subdividem-se em fisiológicos e da cons ciência. Entre os primeiros surgem necessidades como o consumo alimentar adequado à atividade e ao meio ambiente, por exemplo, que se inclui entre as necessidades humanas universais ou básicas (Doyal & Gough, 1991). O mes mo se pode dizer de uma necessidade básica como a de trabalhar num local sem estressores físicos e sem processos destrutivos. No primeiro caso, o da necessidade de alimento, embora esse processo seja realizado por indivíduos, em última instância, não obedece unicamente a uma liberdade ou uma opção individual - como afirmaria o liberalismo social de Sen -, mas é profundamen te determinado pelo contexto social; do mesmo modo, pode-se dizer que no segundo caso, o do trabalho livre de estressores e processos destrutivos, é evidente que também isso não é produto de uma restrição ou uma agressão que condicione a necessidade de uma pessoa isolada, mas faz parte de um modo de vida que pertence a um conjunto social. As ‘necessidades fisiológicas básicas' têm de ser integradas como um referente a qualquer medição da qua lidade de vida, que deve incluir, portanto, o grau de consumo adequado de valores de uso básicos, conforme a idade, o gênero e a atividade, em compo nentes como alimentos, proteção em relação ao clima (vestuário e moradia), descanso ou repouso e exercício físico adequado, e restauração e manutenção da saúde. O acesso a tais necessidades básicas é ‘parte decisiva de um pacote integral de saúde’, como direito e aspiração legítima de todos os povos. Mas existem também 'necessidades básicas ligadas ao psiquismo' e a seu desenvol vimento, as quais, na espécie humana, são necessidades de consciência parti cularmente vinculadas ao aumento do consumo, tais como identidade, apren dizagem, fruição de suportes afetivos e solidários, capacidade de interpretação 174 crítica e ausência de cerceamentos do pensamento, recreação formativa e de reprodução da capacidade física e intelectual, participação consciente nas de cisões que dão conteúdo e direção à vida humana, pautadas pela eqüidade. 'Também estas são necessidades básicas - as mais violadas pelas sociedades da desigualdade - que devem fazer parte de um pacote integrado de qualidade de vida, e têm de ser incorporadas a sua medição.’ Por isso, não compartilhamos da lógica desses autores, quando restrin gem a análise à relação indutiva ‘necessidade -»■ elemento de satisfação’, como se estivéssemos tratando de uma relação linear, dada na dimensão individual do arbítrio singular e descontextualizada das formas coletivas de organização. Não é nos indivíduos que se explica e se realiza a ligação da necessidade com a forma de resposta social a ela, pois a estrutura coletiva determina os modos de criação e reprodução das necessidades, as formas de produção e circulação dos bens produzidos e, por conseguinte, as maneiras de satisfazer as necessi dades. Assim, por exemplo, a ‘macdonaldização’ do consumo não é produto de gostos nascidos em muitas pessoas, mas produto da transformação de um padrão de consumo alimentar e lúdico nas sociedades do capitalismo monopo lista urbano. Tampouco o consumo globalizado da Coca-Cola é resultado ex clusivo de um 'elemento de satisfação', perfeitamente adequado a um fenótipo e a um estilo humano natural, mas sim produto de um processo complexo de construção comercial cultural de cenários e afinidades altamente compatíveis com a sociedade moderna, dentro do qual pode operar a atração poderosa de uma substância que contém elementos como a cocaína ou a cafeína em doses baixas. Muito menos são a perda de terreno do Dia de Finados e sua transmu tação no Halloween, nas sociedades urbanas, uma resposta a uma condição psicocuitural inerente à 'natureza' humana, e sim a imposição de padrões lúdicos e comerciais respaldados pelo poder do dinheiro, pelo bombardeio da propaganda e pela imposição de novos sentidos, compatíveis com a ‘ameri- canização’ das coletividades urbanas. Em todos os casos expostos, a estrutura produtiva é determinante, uma vez que estabelece os condicionamentos decisivos da construção de necessida des e das maneiras de satisfazê-las. As necessidades são historicamente pro duzidas, e não geradas por sujeitos isolados; são, essencialmente, um produto do movimento das opções individuais em meio ao movimento determinante do coletivo; e, o que é mais importante, a produção econômica dos bens e a distri buição dos que são repartidos pelo Estado não são simples instrumentos a serviço da satisfação de necessidades preexistentes (Boltvinik, 1994), mas es tão ligadas aos interesses das classes hegemônicas, que criam esses ‘elemen tos de satisfação' de acordo com sua conveniência. É nesse contexto que se devem estudar as atribuições de valor e os comportamentos das coletividades em relação aos serviços públicos e privados de saúde, bem como aos dos 175 profissionais e técnicos que hoje favorecem uma reforma de saúde regressiva, que vem modificando o perfil de desenvolvimento da epidemiologia institucional. Com efeito, as abordagens liberais sobre a necessidade situam-na como um problema individual, ligado ao consumo e ao arbítrio pessoal, e, nos pla nos retrógrados de reforma, isso adquire uma importância capital, porque é assim que os cidadãos e cidadãs deixam de ser ‘detentores de direitos' e se transformam em ‘clientes’. Formulada dessa maneira, a necessidade substitui o direito, e a distribuição insuficiente de serviços - que é ocasionada pela monopolização da riqueza, mas não é reconhecida como tal - passa a consti tuir um recursode sobrevivência, medido por técnicas múltiplas, como a da ‘linha de pobreza’ (limiar de renda/despesa mínima) ou a da ‘satisfação de necessidades básicas’ (lista mínima de elementos de satisfação de necessida des básicas) às quais os clientes do mercado podem aceder (Desai, 1994). Neste livro, ao discutirmos mais adiante os modelos de desenvolvimento humano que inspiram ou influenciam o planejamento e as propostas de refor ma, procuraremos promover uma visão contrária, que enfoca a necessidade não em termos de bens e fatores de satisfação, mas como recursos indispensá veis à humanização das dimensões da reprodução social, em primeiro lugar, e em seguida, na ordem micro, apoiaremos a recriação de propostas como a de Sen, que se expressou nos livros citados por nós, reinserindo sua análise numa estrutura de poder e ineqüidade, que é onde se explicam as desigualdades resultantes e onde se determinam as capacidades (capabilities) muito distintas que surgem nas diferentes classes sociais, grupos étnicos e de gênero, e que, com justa razão, preocupam o Prêmio Nobel bengalês. Nossa proposta para a ‘análise da necessidade na saúde’, portanto, funciona em dois movimentos: a inserção da análise na estrutura de poder e a inserção das intervenções na organização coletiva dos grupos subalternos na referida estrutura de poder. Em outras palavras, os determinantes da saúde operam nas dimensões dis tintas da vida social (reprodução social), em todo o espectro de bens ma teriais e espirituais a que cada grupo social tem acesso, de acordo com a qualidade de sua atividade profissional, de suas modalidades típicas de con sumo e até de suas formas e relações organizacionais/políticas, culturais e ecológicas (Breilh, 1997c). Uma vez analisada a definição da necessidade, é preciso, inevitavelmente, abordar o problema de sua 'distribuição', e nesse ponto, é absolutamente per tinente resgatar o questionamento da tese de uma suposta capacidade distribu tiva do mercado, subjacente a toda a construção teórica da doutrina neoliberal (Valenzuela, 1991). O mercado é não apenas um ótimo distribuidor dos bens e do acesso às necessidades, como também, por sua estrutura oligopolista, é o reprodutor acelerado de grandes abismos de ineqüidade. As ações de que depende a atividade epidemiológica, como todo o conjun to que pertence essencialmente ao campo da prevenção e da promoção, são 176 sempre profundamente afetadas em toda sociedade em que se inicia um proces so de privatização da saúde, porque as modificações que elas sofrem não são apenas pontuais, mas comprometem o conjunto do sistema de saúde, e porque isso implica ligar as decisões de saúde aos interesses empresariais e de análise de custo beneficio, em vez de inseri-las na lógica do custo-benefício da coletivi dade e na dos direitos humanos e das necessidades inalienáveis, tema a que voltaremos mais adiante, ao abordarmos a crítica do paradigma de risco. Quando a história humana abandonou a etapa coletivista em que se pro duzia e se distribuía conforme a necessidade, para entrar em cheio nos diferen tes períodos do produtivismo e da propriedade privada, a construção social da necessidade foi deslocada para segundo plano. O produtivismo possibilitou a monopolização do poder e significou a derrota da construção coletiva da vida social, a tal ponto que, na era moderna, o centro absoluto de toda a vida humana passou a girar primordialmente em torno da acumulação em todas as ordens, e da concentração dos bens materiais e culturais acumulados. No mundo hege mônico, a acumulação é maior e igualmente monopolizada, enquanto no mun do subalterno do capitalismo periférico o contraste é maior, porque os centros de acumulação se aproveitaram dos níveis ínfimos de vida para aumentar seus lucros; tanto num quanto noutro caso. entretanto, a acumulação consti tui, agora mais do que nunca, um obstáculo insuperável diante de um projeto autêntico de reforma (Benítez, 2000). A acumulação baseada na exploração do ser humano criou uma distância cada vez maior entre o que se produz e o que se distribui, entre a natureza e o ser humano, entre o saber e a consciência, entre a necessidade coletiva e a tecnologia, entre as possibilidades de comunicação e o que sabemos dos ou tros, aspectos estes que guardam estreita relação, todos eles, com as condições de saúde. Assim, a acumulação e a racionalidade competitiva de hoje são uma barreira radical a qualquer tentativa de reforma, pois nos sufocam na miséria em meio à opulência, enchem-nos de saber científico, mas sem consciência, deixam-nos culturalmente incomunicáveis em meio à incomensurável capaci dade da comunicação digital, e nos sufocam em epidemias - algumas das quais praticamente já haviam desaparecido - tudo isso em meio a uma tecno logia cada vez mais evoluída, porém estruturalmente impedida de se voltar para o benefício coletivo (Breilh, 1998). A história recente da América Latina determinou, nessa fase, uma expan são acelerada do sistema capitalista, que agora aprofunda a essência do inte resse privado, graças ao expurgo de certas ‘impurezas ou resíduos de lógica social ou solidária' que haviam conseguido persistir como produto das lutas do povo e das concessões do keynesianismo. Esse abismo entre a necessidade humana insatisfeita, por um lado, e a produção e o poder que a sustenta, por outro, atingiu sua expressão máxima no período neoliberal, cujo braço admi- 177 nistrativo é o Fundo Monetário Internacional (FMI), junto com seu agente Finan ceiro, o Banco Mundial (BM). A reflexão sobre o conceito de necessidade introduz-nos em cheio no cam po da discussão dos modelos de desenvolvimento humano em que deve inscre ver-se, necessariamente, uma proposta epidemiológica alternativa; e, como esse é um vasto campo de análise, que ultrapassa os limites deste trabalho, cabe aqui apenas tentarmos uma delimitação introdutória. MODELOS DE DESENVOLVIMENTO HUMANO: CAMINHOS OPOSTOS PARA A EPIDEMIOLOGIA As doutrinas sobre o desenvolvimento humano sempre foram um campo de debate inflamado, e não é de estranhar que, no período mais desumano da história, proliferem numerosas propostas e versões da teoria da necessidade e do desenvolvimento humano, com implicações distintas para a atividade da epidemiologia. Com o propósito de estabelecer uma tipologia básica, podería mos distinguir duas tendências gerais, que, mais do que se encontrarem qui micamente puras em nossas sociedades - sempre caracterizadas por sua com plexidade e sincretismo -, estão presentes em forma desigual e combinada, mas respondendo a interesses sociais diferentes: a) modelos de desenvolvimen to humano que partem de uma aceitação das condições estruturais, das regras do jogo e das concepções da sociedade capitalista, quer para modernizá-las e aprofundá-las, quer para imaginar a possibilidade de um capitalismo social ou benigno; b) modelos pensados a partir de uma perspectiva emancipadora, que se projeta, já como uma subversão das bases do poder - incluindo as formas de alta concentração da propriedade que sustentam o poder econômico -, de tal maneira que se possa concluir o projeto inacabado da modernidade, ou seja, como superação dessas bases, mediante a entrada numa era de libertação (pós- moderna?) em que desapareçam os componentes substantivos da modernidade capitalista (predomínio da razão científica e do pensamento iluminista; idéia de progresso e de acumulação ascendente; uniculturalismo; imposição de domínio sobre a natureza). ‘Os modelos de desenvolvimento humano do primeiro grupo’, que se ins crevem numa defesa do sistema capitalista ou buscam sua reforma ou suavi- zação, assumem quatro posturas fundamentais: • As que denominaremos de 'neoliberais' impulsionam a concentração monopolista, como elemento de vigor e força competitiva; propugnam pela desregulamentação completa e pela flexibilização da vida social, para que o mercado opere em sua plena capacidade como distribuidor;propugnam pela legalização de toda a informalidade, presumindo a pobreza como inevitável e merecedora de paliativos focalizados - como 178 os subsídios à demanda de serviços ou os abonos de saúde ou educa ção para os pobres paliativos estes que, de qualquer modo, são temporais, cobrem apenas níveis básicos de sobrevivência e recaem sobre os ombros dos consumidores médios e dos setores assalariados, mas não sobre os das empresas (Valenzuela, 1991). ° Os modelos 'empresariais modernos' que concentram o desenvolvi mento em torno de condições facilitadoras do avanço moderno das pequenas, médias e grandes empresas, individuais ou associadas em cooperativas, e até de empreendimentos individuais ou familia res, como unidades competitivas formalmente constituídas e ajusta das a parâmetros modernos de gestão, os quais são apoiados ou regulados por programas de Estado (Coraggio, 1998). ° Os modelos pensados 'em torno do Estado' ou das políticas institucio nais. Nesse grupo podemos destacar os modelos de 'gestão social ou neokeynesianos', centrados na reengenharia do Estado, mediante paradigmas de gestão de alta eficiência, que outorgam importância - pelo menos teórica - à gestão da frente social como elemento de governabilidade, mas incorporando princípios empresariais. Há tam bém uma variante que poderíamos designar de ‘programa de desen volvimento humano do PNUD', que concentra o interesse na modifi cação pontual de alguns indicadores de acesso ao consumo básico educativo e de saúde, bem como de renda, que são perfeitamente compatíveis com as políticas de uma focalização social desvincula da da economia (Breilh et al., 1997; Coraggio, 1999). Em certas oca siões, a concessão de subsídios à demanda, que faz parte de alguns dos modelos anteriores, pode, por sua vez, destacar-se como mode lo, e é conhecida como 'renda cidadã’, a qual pressupõe um reco nhecimento dos chamados direitos de cidadania como caminho para aumentar a igualdade, desvinculando a renda do trabalho ou da produção de bens e serviços e garantindo acesso a uma cesta bási ca pré-fixada, questão esta que, apesar de universal, pressupõe uma contradição com o mercado global, que penaliza as sociedades que reduzem a renda em decorrência da redistribuição (Coraggio, 1999). • Os modelos de ‘economia privada coletiva' e também o do ‘libera lismo social’ (Sen, 2000) e o do ‘desenvolvimento em escala huma na’, os quais, por seu interesse para a construção de uma contra- alternativa emancipadora, analisaremos mais detidamente. Esses modelos enfocam, em especial, o que é possível fazer a partir da •sociedade civil', e reforçam estratégias destinadas a fortalecer a sociedade privada, o mercado local e nacional e um Estado mais democrático, que acompanhe esses processos, os interesses empre sariais e de análise de custo/benefício. 179 Trata-se de um conjunto de propostas que estabelecem uma ruptura parcial com a dominação do produtivismo e das políticas sociais que o secundam, e que se mostram favoráveis a teses redistributivas e humanas, embora não deixem de enraizar a análise na estrutura de poder; poderíamos chamá-las de ‘modelos de transição’. Nesse grupo se incluem as propostas de ‘economia privada coletiva’, que articulam trabalhos independentes ligados ao mercado, mas potencializados por relações cooperativas e, em alguns casos, por vínculos solidários de raiz cultural ou religiosa, ou por movimentos de reivindicação específica, como os étnicos ou os de gênero. Essas propostas incluem, em primeiro lugar, os mode los de ‘economia coletivista’, tais como os sistemas cooperativos ou mutuados solidários, sem fins lucrativos, orientados para a reprodução e a melhoria de seus associados. Ocasionalmente, eles assumem a forma de redes de microem- presas locais, orientadas para a produção ou a comercialização, o que lhes facilita o acesso ao crédito e à tecnologia. Uma variante próxima é a das ‘em presas comunitárias’, as quais, diferentemente das anteriores, centram sua ação na comunidade ampliada, e não apenas nos associados, orientando-se para o benefício comunitário (aqui se incluem as associações de produção artesanal, as redes de permuta e as feiras de consumo popular). Também se destacam nesse grupo as experiências de ‘economia solidária’, muito ligadas à doutrina da opção cristã pelos pobres, e que vão além do sustento meramente econômico e se abrem para o trabalho voluntário e as doações, cuja validade é estabelecida em termos éticos. E, por último, faz parte dessa vertente o modelo da ‘empresa social’, que agrupa setores especiais e desprotegidos para lhes dar uma coesão produtiva, questionando o assistencialismo e visando não apenas à produção de mercadorias, mas também a um valor social agregado, sob a forma de comportamentos e instituições alternativos; para esse modelo, o mercado não é alicnante nem excludente, mas sim uma intersecção entre a empresa e o mercado, no que tange à assistência social (Coraggio, 1999). Muitas das variações anteriormente descritas foram concebidas a partir da conflituosa década de 1970 - período estremecido por movimentos traba lhistas e estudantis e por um intenso debate de alternativas - e foram influen ciadas tanto pelo pensamento socialista da época quanto pelo chamado ‘socia lismo liberal’, que desde então já acumulou avanços importantes no campo da ciência econômica, entre outros assuntos, em torno do questionamento do cres cimento econômico como critério central e medida do desenvolvimento social. Começou-se a questionar a ‘ditadura do PIB’, como indicador onipresente e profusamente usado pelas entidades internacionais para formular suas estatís ticas da pobreza. Esta última corrente teve em seu centro a doutrina da ‘liber dade individual como compromisso social’, de Amartya Sen, inspirada no prin cípio ético da liberdade individual, como um valor central dotado de uma 180 dimensão positiva (a liberdade de fazer algo) - na qual o importante, acima de tudo, é a liberdade de preferência ou de escolha - e de uma dimensão negativa (o libertar-se de algo). O resgate da liberdade individual é fundamental para essa doutrina, visto que uma de suas metas primordiais é a superação das teses clássicas do utilitarismo (elaborado por Jeremy Bentham e desenvolvido por John Stuart Mill), para o qual o importante é obter a 'felicidade máxima do maior número de pessoas', alcançar o prazer ou bem-estar ('utilidade'), recha çar a dor ou a infelicidade e realizar o chamado ‘ótimo de Pareto’, que procla ma como estado ideal a situação em que é impossível aumentar a utilidade de um indivíduo sem diminuir a de outro, meta esta a que se chega com a preci são do 'cálculo de utilidades'.38 A 'teoria da liberdade como compromisso social’ supera a racionalidade fria do crescimento econômico e da disponibilidade de renda, e incorpora as dimensões afetivas, morais e culturais que determinam a capacidade de as pes soas funcionarem e procurarem fazer com que suas escolhas maximizem as utilidades (Sen, 1970, 1982, 1985). No caminho de sua construção teórica, o autor deparou, em primeiro lugar, com o problema de como definir a felicidade e o bem-estar, e, em segundo, com a necessidade de superar o utilitarismo clássico, unicamente preocupado com a soma das utilidades, mas não com sua distribuição desigual na sociedade. Para resolver esses dilemas, adotou a teoria da justiça de John Rawls39 e afirmou que a questão é distribuir de forma eqüitativa não apenas a renda e os recursos, mas também as capacidades e funções humanas fundamentais, ou seja, a capacidade de viver uma vida dig na e sensata, mais do que de acumular bens (Saint-Upéry, 2000). Em suma, o modelo de Sen desvia a atenção dos bens e recursos primários para as capacidades e liberdades, com o que o autor pretende desatar o nó da estreita ótica da desigualdade como diferença de recursos e possibilidades de acesso, a fim de considerá-la como resultado de outrotipo de determinantes (classe, gênero, capacidade física e até localização geográfica); para ele, por tanto, a liberdade individual é um compromisso social. Trata-se de um enfoque que sem dúvida afeta as formas convencionais de medir a pobreza, que com isso deixam de se reduzir a indicadores de baixa renda e passam a incluir 38 Vista por essa óptica, entretanto, uma sociedade de opulentos e miseráveis pode encontrar-se no 'ótimo de Pareto', porque é impossível melhorar a vida dos miseráveis sem prejudicar os interesses materiais dos ricos. 39 John Rawls afirma que a questão é distribuir eqüitativamente o que ele chama de 'bens primários', cuja distribuição seria norteada por dois princípios básicos de justiça: todas as pessoas têm os mesmos direitos, num esquema de direitos e liberdades fundamentais, e o mesmo esquema é válido para todas; além disso, as desigualdades sociais só se justificam nos cargos mais altos, acessíveis a todos com igualdade de oportunidades, mas em posições a partir das quais se deve oferecer o máximo de benefício aos menos privilegiados. 181 termos que caracterizam a insuficiência de liberdade, incompatível com uma existência satisfatória, e demonstram uma carência de capacidade (Sen, 2000). Dessa maneira, resgata-se a importância de reconhecer como aspec to-chave do nível de vida a faculdade de transformar a renda e os bens em capacidade e liberdade. O neo-utilitarismo de Sen desdobra-se, portanto, em três níveis de análise: o das capacidades, o dos modos de funcionamento e o dos bens. O meio físico e social, assim como as características pessoais, determinam as caracte rísticas materiais e os bens necessários para garantir a capacidade de funci onamento das pessoas, o que, por fim, e havendo um certo estado psíquico, determina a utilidade que elas alcançam. Em outras palavras, o que faz esse modelo neo-utilitário é inserir a mediação das capacidades, pois o modelo neoclássico simplesmente relaciona (no caso típico de um consumidor) a liber dade de escolha e o funcionamento (consumo) da pessoa num certo estado psíquico (preferências), situando como única limitação os recursos disponí veis, sem levar em conta as capacidades (Desai, 1994). Sen insiste no fato de que a faculdade diferenciada das pessoas de trans formar a renda e os bens em capacidade e liberdade depende de condições sociais que as políticas devem modificar, e assinala que, por exemplo, ‘a situação da saúde pública e do ambiente epidemiológico pode ter uma influên cia profunda na relação entre a renda pessoal, por um lado, e a liberdade de desfrutar de boa saúde e vida longa, por outro, pois alguns dos países mais ricos, como os Estados Unidos, são muito atrasados nesse aspecto, e a liber dade positiva de viver sem uma mortalidade prematura é um compromisso da sociedade (Sen, 2000). Outra proposta transicional é o ‘modelo de desenvolvimento em escala humana' (Max-Neef, Elizalde & Hopenhaydn, 1986; Max-Neef, 1999), uma ofen siva interessante contra o produtivismo e o instrumentalismo, embora não corte as amarras no que concerne a sua base estrutural - perspectiva muito próxima da de Sen. Ela propõe uma economia humanista que, segundo seus autores, implica, fundamentalmente, conseguir a transformação da pessoa- objeto em pessoa-sujeito, e a correspondente substituição dos ‘indicadores de crescimento quantitativo dos objetos' por ‘indicadores do crescimento quali tativo dos sujeitos'. Esse modelo identifica a qualidade de vida como a possibi lidade de as pessoas satisfazerem adequadamente seu sistema de necessidades, o qual, em essência, seria idêntico em todas as sociedades, diferindo apenas quanto aos elementos de satisfação correspondentes. Aqui, a chave está em decifrar a dialética entre necessidades, elementos de satisfação e bens econô micos, mediante uma concepção da necessidade e da relação necessidade/ elemento de satisfação cujos aspectos insubsistentes já foram analisados numa seção anterior, e que os autores expõem na forma de uma ‘matriz de necessi dades e elementos de satisfação’. 182 As teorias que qualificamos de transicionais partem, em suma, de um postulado básico que centra o desenvolvimento nas pessoas, e é justamente aí que se enraízam a força e, ao mesmo tempo, a debilidade de sua proposta. Elas situam o cerne de seu interesse na dimensão humana e na proteção integral da qualidade de vida, e contestam que esta possa ser medida por uma divisão per capita do produto interno ou peia receita/despesa familiar média; isso é muito bom, mas elas isolam sua visão no individual, com o que cortam pela raiz a possibilidade de uma emancipação humana e social verdadeira. MODELOS EMANCIPADORES PARA 0 DESENVOLVIMENTO HUMANO A chave unificadora dos anseios de nossos setores, nós que defendemos o popular com um sentido democrático, é a 'vontade de emancipação', que significa a busca organizada e solidária de rompimento com todos os víncu los materiais, políticos e culturais que criaram a concentração monopolista do poder na sociedade capitalista, bem como as bases para a propagação das epidemias antigas e modernas. A luta pela emancipação unifica todas as utopias construídas para libertar o ser humano da exploração econômica, da dominação política, do cerceamento da cultura e da subjetividade e das rela ções ecológicas anti-humanas, tudo isso para possibilitar a libertação da vida e do pensamento, a vigência do bem comum e a construção de socieda des mais saudáveis. Os 'modelos de desenvolvimento humano do segundo grupo', que osten tam uma intencionalidade emancipadora e uma independência do sistema ca pitalista, podem decompor-se em três tipos de posturas principais: a) os que propõem a abertura de uma economia popular paralela ao sistema econômico capitalista; b) os modelos que propugnam pela superação radical das bases do poder econômico reprodutoras da ineqüidade; c) os que propõem a superação ou a libertação (pós-moderna?) não apenas das limitações da estrutura econô mica do capitalismo, porém a superação dos fundamentos filosóficos, racio nais e estruturais da era capitalista moderna. As propostas desse tipo que hoje circulam nos partidos de esquerda e nos movimentos sociais não se ajustam com pureza à nomenclatura que aqui propo mos com fins analíticos, mas se apoiam com maior ênfase nas linhas citadas. Ao primeiro tipo de modelo daremos o nome de ‘economia popular parale la', uma vez que afirma a necessidade de se iniciar a construção de uma econo mia popular e de fazer essa construção a partir das bases da nova sociedade. Dentro dessa linha, destaca-se a proposta de ‘autocentração ou acumulação po pular autocentrada e descentralizada' que foi defendida para as sociedades andinas (Schuldt, 1995). Esse modelo aposta num processo de acumulação po pular geográfica e politicamente descentralizado, calcado num projeto político 183 nacional de base regional que incorpore as massas heterogêneas no processo de tomada de decisões - nos níveis local, regional e nacional -, à medida que se configurem e se reforcem as bases econômicas dos segmentos populares, num processo de acumulação orientado para atender às ‘necessidades básicas’ e que, para isso, redefina os padrões de produção e consumo. Para atingir esse objetivo, propõe-se uma dinâmica de produção baseada na interação acordada de atividades ‘de’ e ‘para’ o mercado interno e no encadeamento de produtores de bens de massa simples e meios de produção que estejam a serviço deles, com base num pluralismo tecnológico que desloque para um lugar secundário a produção de bens e serviços de luxo. O eixo, portanto, é o aumento de uma capacidade e habilidade ‘pessoais’ que reforcem as comunidades e os sujeitos sociais (locais), caminhando, a partir daí, para o controle da acumulação nacional - um controle local da distribuição do excedente, do mercado, dos recursos naturais e das tecnologias. Trata-se de um modelo de desenvolvi mento que tem a virtudede ser formulado como uma oposição à reprodução dependente, centrada nas exportações e nos bens de consumo de luxo, e cuja autocentração busca o desenvolvimento humano enfocado nas necessidades e no aumento dos direitos, capacidades e realizações próprios, sobretudo de comunidades locais e pequenos grupos, cujas identidades e sujeitos sociais se construiriam, com isso, ‘de baixo para cima’, aproveitando as experiências, os saberes e a ‘racionalidade oculta’ que seriam indispensáveis para se reto mar o controle da acumulação. Tudo isso, é claro, com o apoio de um Estado nacional democrático, que contribua, a curto prazo, para o desenvolvimen to dessa força produtiva doméstica e do mercado interno, e trabalhe, a lon go prazo, em prol do redirecionamento do modelo exportador primário, sem desperdiçar os ‘nichos rentáveis’ do mercado mundial (Acosta, 1998; Acosta & Schuldt, 1999). Também faz parte dessa linha o modelo de ‘economia popular’ que se autodefine como ‘não economicista’, e que desloca seu foco de interesse da acumulação para a reprodução ampliada da vida humana, subordinando a acumulação à satisfação das necessidades básicas de todos, para colocar a produção como meio e a reprodução como sentido, o que equivale, para seu autor, a situar os equilíbrios psicossociais acima dos equilíbrios macroeconômicos (Coraggio, 1998, 1999). A estratégia proposta para alcançar seus objetivos é a construção de um subsistema de economia popular centrado nas unidades domésticas de trabalhadores do campo e da cidade, formais e informais, braçais e intelectuais, nos moldes de um programa aberto que não se encerra na vinculação nem na desvinculação da economia capitalista domi nante. A chave desse modelo estaria em dar um salto para alcançar a solidari edade orgânica entre os diferentes elementos e atividades populares, o que pressupõe fortalecer a interdependência entre as unidades domésticas e as comu nidades através de um intercâmbio reiterado, mediado pelo mercado ou por 184 relações diretamente sociais. Ele escolhe a unidade doméstica porque seu objetivo último é uma reprodução ampliada da vida que não se reduza aos níveis básicos da necessidade, mas seja uma busca de qualidade na vida sem limites intrínsecos, e também porque o recurso principal dessa unidade é o fundo de trabalho de seus membros. É evidente a influência dos modelos que antes chamamos de transicionais nessas duas últimas propostas, que buscam uma guinada emancipadora e democrática para a economia. Entretanto, o traço que mais preocupa é que talvez seja muito arriscado propor a possibilidade de uma separação viável entre a economia empresarial monopolista, a economia pública e a economia popular, e construir um processo de reforma profunda, com uma opção emancipatória, quando continuam intac tos os elementos-chave da estrutura de poder e hegemonia, e quando se parece querer deixar a construção política entregue a esse tipo de construção espontâ nea, ‘de baixo para cima’, de redes comunitárias e cidadãos democráticos. Daí a necessidade de dar mais alguns passos à frente e propor um ‘modelo de emancipação humana popular' (Breilh, 1995a, 1999b; Hidalgo, 2000) que articule algumas das contribuições anteriormente delineadas, porém numa vi são integradora que as insira num processo de libertação econômica do siste ma de propriedade monopolista; que integre na construção de baixo para cima um poder popular multicultural, veiculado num bloco popular contra-hegemô- nico, a fim de transformar não só a estrutura do poder econômico, mas tam bém o sistema de poder político, desmantelando o Estado atual para dissolver o poder vigente e viabilizar o desenvolvimento da democracia; e que, por fim, integre o avanço do multiculturalismo e a incorporação de todos os saberes na edificação de uma nação em que caibam todos os projetos populares - tecendo uma trama de estreita comunicação entre esses projetos - gerados a partir da luta dos partidos e movimentos sociais, desde os movimentos étnicos e de gênero, mas institucionalizando os processos de descentralização profunda, de desburocratização e de dissolução de todas as estruturas clientelistas. POSSIBILIDADES DA EPIDEMIOLOGIA NO MODELO HUMANO POPULAR Ao longo deste livro, questionamos por vários ângulos o projeto hegemô nico de reforma da saúde. Partindo de uma perspectiva realista, mas cheia de otimismo, cremos na possibilidade histórica de erigir um projeto alternativo que seja a confluência de todas as ações contra-hegemônicas geradas a partir do bloco popular. A verdade é que muitos posicionamentos que consideramos errados na saúde coletiva não são, necessariamente, produto de um retrocesso consciente a posturas francamente conservadoras, nem tampouco, pior ainda, de um questionamento da idéia de defender uma construção alternativa da 185 saúde, mas resultam do cerco de hegemonia, persuasão e até chantagem, vez por outra, montado pelo BiM e seus apêndices institucionais, e apoiado no crescimento de ciências sociais neoconservadoras, que se multiplicam em pro gramas funcionalistas de pós-graduação que desarticulam qualquer análise referente às raízes estruturais dos problemas. Tudo isso reveste o discurso da reforma de uma terminologia aparentemente inovadora, mas impulsionadora de mudanças meramente formais, as quais, no caso das políticas de saúde traçadas pela reforma da Colômbia, por exemplo, só conseguiram elevar as contribuições, aumentar as exigências possibilitadoras do direito à saúde e elevar os limites etários para a concessão de pensões, ao mesmo tempo redu zindo os benefícios, de tal forma que agora as pessoas contribuem mais para receber menos (Redondo & Guzmán, 1999). Temos de começar a chamar as coisas por seus nomes e a olhar o caminho da reforma com outros olhos, mais abertos e críticos, mais atentos às arestas e aos contrapesos que nos foram impostos pelo pensamento hegemônico. Deve mos inserir toda a análise no cenário atual dos países do mundo periférico e, dentro dessa linha, temos de voltar atrás e examinar as propostas da nova epidemiologia, sem perder a lembrança de nossa luta, mas reconhecendo que nosso paradigma enriqueceu-se notavelmente. O trabalho epistemológico realizado permitiu-nos formular avanços im portantes e, nos anos mais recentes de maturidade do processo, de (re)construção teórica, começamos a compreender que ainda não estava cla ro o objeto da epidemiologia, e foi nessa linha que se propuseram reflexões de enorme transcendência. Creio que a pressão atual nos faz reconhecer que teremos não apenas de trabalhar na construção do objeto, mas de reformar profundamente o campo de ação; é também urgente ‘trabalharmos na cons trução do sujeito da epidemiologia’. Tão sério é esse desafio de construção de uma nova subjetividade para os povos subordinados do mundo, que ele se tornou flagrante nos eventos cruciais que definiram seu futuro nos últimos anos: as mobilizações maciças de repúdio ao neoliberalismo que terminaram em revoltas contundentes - como no caso do Equador, em várias oportunidades, e no da Argentina, em nossos dias -, mas que, uma vez derrotados os governantes neoliberais e revogado seu mandato pela vontade geral, não resultaram em nada, ante a ausência de um projeto emancipatório compartilhado e unitário e de uma organização ou bloco revolucionário que desse continuidade ao impulso re novador das populações mobilizadas. Os mesmos grupos monopolistas que agrediram nossa qualidade de vida, mediante a exploração, a corrupção e a entrega de nossos recursos estratégicos, são os que voltaram habilmente a tomar as rédeas do poder. Uma explicação completa e rigorosa dessa derrota ou esterilização da von tade popular ultrapassa as possibilidades deste trabalho; queremos apenas 186 destacar que, em qualquer análise dessa problemática, é preciso levar muito a sério um fato histórico que tem muito a ver com o tema da construção do sujeito coletivo:os ciclos de dominação e de ludíbrio da vontade popular são produto, em larga medida, de havermos esquecido ou rechaçado o pensamento revolucionário, de termos caído na armadilha que nos ofereceram, de relegar mos a riqueza das doutrinas emancipadoras, e de havermos acreditado no conto do vigário. Na falta de uma ideologia revolucionária, e tendo permitido o desmantela mento e a desqualificação de nossas organizações e agremiações pelo poder, nossas populações ficaram aprisionadas na imobilidade, ou em mobilizações maciças sem bússola nem sustentabilidade. Foi isso que Gramsci quis impli car quando analisou, em seus Cadernos, o papel conservador da chamada sociedade civil, quando ela funciona como um conjunto de fortificações da opinião pública ligadas ao Estado dominante, ou manipuladas por seus agen tes. Foi também o que quis expressar Agustín Cueva, quando apontou o exem plo da sociedade civil dos Estados Unidos como a mais mobilizada e, ao mes mo tempo, a mais conservadora. Portanto, a história nos está apresentando a conta por termos arquivado as idéias de transformação profunda da sociedade e a crítica aos fundamentos estruturais da ineqüidade que, a partir do século XIX, foram forjadas nos dois lados do Atlântico, tanto no sul quanto no norte, e que relegamos ao esquecimento, justificando essa imensa operação autodes- trutiva pelo fracasso do socialismo real europeu e pelos componentes episte- mológicos superáveis de doutrinas como o marxismo, que se equivocou em muitos assuntos, mas acertou onde realmente importa. Nas ciências sociais e na epidemiologia, essa orfandade de ideais utópicos verdadeiramente emancipadores se fez sentir, e nos forçou a uma etapa confu sa, ziguezagueante ou até regressiva do pensamento, em muitos casos, a qual se prestou às acomodações e ao servilismo intelectuais. É por esse motivo que sustentamos enfaticamente que a consolidação de um projeto humanista popular - do qual tanto depende uma epidemiologia crítica - passa pela recuperação seletiva das melhores idéias das doutrinas emancipadoras, assim como pela recuperação, também seletiva, das melhores idéias em prol da humanização da sociedade geradas a partir dos espaços não acadêmicos e dos saberes dos outros. Esse processo de recuperação certamen te não será fruto de um grupo de iluminados, nem tampouco de qualquer tipo de elite. Seguindo Gramsci, cremos que esse processo será fruto do encontro das massas organizadas de postura renovadora e dos intelectuais orgânicos com os interesses estratégicos desses povos. E o que é válido para a dimensão geral da construção do projeto neo-humanista popular é igualmente válido para os espaços especializados de construção, como a epidemiologia e seu objeto/conceito/campo (Gramsci, 2000). 187 Quanto à recuperação do saber dos outros, há muito trabalho a fazer em nossa disciplina. Se formos coerentes com o desafio do segundo corte episte- mológico do reencontro da ciência com o senso comum e os outros saberes (Santos, 1995), o pensamento epidemiológico deverá incorporar uma parcela maior desses 'outros saberes', e não se centrar exclusivamente na linha acadê mica ‘ocidental’, por mais importante que ela possa ser. Só assim a epidemio- logia poderá recuperar sua capacidade de também contribuir para a crítica dos modelos de gestão, arejando o campo de análise através do rompimento da camisa-de-força do enfoque do risco. É em relação a tudo isso que ganha um novo sentido o trabalho de renova ção teórica, metodológica e técnica da epidemiologia, ao ser articulado com um modelo integrado de desenvolvimento humano e ao incorporar toda a ri queza da atual mudança de paradigmas e da assimilação do pensamento hu mano com um sentido multicultural. Propõe-se aqui a articulação conceituai e prática do modelo de desenvolvimento com o modelo de intervenção e investi gação na epidemiologia. No campo sumamente condicionado do que é feito nas instituições oficiais sob a égide da chamada ‘epidemiologia nos serviços’, há muito mais a fazer do que apenas desenvolver uma ‘vigilância epidemiológica’ rotineira e burocratiza da, pois, se a idéia de saúde coletiva é mais do que o somatório problemático dos casos atendidos ou ‘de risco’, então, ao abrirmos o conceito de serviço para a íntegra do desenvolvimento humano, encontramos diversos campos de aplicação no planejamento participativo das ações em todos os campos de de senvolvimento da necessidade social de saúde que descrevemos antes - consti tuindo-se ele numa ferramenta de planejamento estratégico, de monitoramento participativo dos processos críticos da saúde, de concepção de mecanismos de controle e avaliação social e de reconstrução dos sistemas de informação, a fim de superar a desvirtuação do conhecimento por informações mal cons truídas, embora amplamente divulgadas, passo este que é necessário para pensarmos no desenvolvimento humano e da epidemiologia a partir de uma perspectiva emancipadora (Breilh, 1999e). O cenário histórico da América Latina facilitou um reagrupamento das forças de resistência dos povos e determinou a conseqüente recomposição de sua luta. Agora fitamos o desafio de reagrupar democraticamente o ta lento que existe em nossos países no campo da saúde coletiva, resgatando a memória do movimento que começou a ser desmantelado devido ao terná rio do BM, e recuperando criticamente a riqueza do pensamento que come çou a ser seqüestrado e desconstruído pelo neofuncionalismo da saúde pú blica internacional e oficial. A segurança humana integral, o problema da igualdade necessária e trí plice de acesso e participação - social, étnica e de gênero -, a conquista do direito universal a serviços e programas da mais alta qualidade, o estímulo 188 urgente a um processo de humanização e proteção da vida em todas as suas dimensões - de trabalho, de consumo, de reprodução cultural e subjetiva, de promoção e defesa de uma ecologia saudável e de implementação de uma construção multicultural das formas e sentidos da organização -, todos es ses são pontos nodais da nova política pela qual lutou o movimento da medi cina social latino-americana desde seu nascimento, na década de 1970, e desde seu aparecimento formal no Congresso de Ouro Preto, em 1985, e que agora, graças à alquimia de um punhado de tecnocratas submissos, apaga ram-se das agendas, ou foram nelas transformados em simples elementos de uma confusa retórica neofuncionalista. Com base na perspectiva social que inspira nossa proposta, é importante resgatar essa linha emancipadora e levar ao desenvolvimento de um projeto de reforma alternativo, que já não se encarna nas instâncias que o apoiaram nas duas décadas anteriores, mas se expressa na agenda ampliada do debate social das assembléias e congressos dos povos, que têm formulado saídas verdadeiramente inéditas para a armadilha em que caiu a América Latina. Fazê-lo significa instituir uma separação entre a abordagem da reforma e a lógica funcional e regressiva que se apoderou dos foros e centros de estudo hegemonizados pela doutrina do BM, bem como de todas as agências de coo peração que acabaram por se submeter à visão deste. Em outras palavras, é preciso arejar os espaços de debate da reforma e revelar a lógica que está por trás do súbito interesse institucional por esse tema, o qual, noutras épocas, foi marginalizado do ideário oficial e debatido unicamente nas publicações da literatura contra-hegemónica. 189 7 Da Epidemiologia Linear à Epidemiologia Dialética É patente a atual notoriedade do conceito de ‘risco', como categoria a ser usada na descrição científica da saúde, não só porque os mais destacados epidemiologistas críticos da América Latina insistem na utilização dessa cate goria como elemento importante de seus modelos interpretativos, mas também pelo fato de que livros recentes empregam-na para caracterizar a sociedade em seu conjunto como ‘sociedade de risco’ (Beck, 1998), querendo com issodizer ‘sociedade de destruição generalizada'. Nessas circunstâncias, a verdade é que não fica muito claro se o desenvol vimento histórico do conjunto de concepções e operações que cercam a catego ria de ‘risco’ constitui apenas um ‘modelo de pensamento epidemiológico sobre o risco', ou se, ao contrário, dado o seu grau de expansão e influência, conver teu-se numa grande ‘matriz disciplinar’ da epidemiologia, delimitando o cam po e abarcando todo o sistema de valores, crenças, construções simbólicas e modelos que ocorrem em nossa ciência. Para os objetivos deste livro, presumi remos esta segunda acepção e a designaremos por ‘paradigma do risco’, enten- dendo-se que um paradigma menor pode incluir-se noutro mais amplo, como é, neste caso, o paradigma da visão causal positivista. A epidemiologia crítica latino-americana vem trabalhando desde a década passada na análise desse 'paradigma do risco’, estudando o surgimento e a transformação da categoria ‘risco’ como eixo principal do discurso da epide miologia em sua relação com as práticas médico-sanitárias. Uma vez reconhecida a emergência desse paradigma como um traço ca racterístico da consolidação da epidemiologia em seu conjunto (Almeida-Filho, 1992c), voltou-se o olhar para a análise da história das idéias epidemiológi- cas, buscando uma interpretação da origem do citado paradigma e de suas acepções atuais. Já anteriormente, Rosen havia explicado, em sua clássica 191 História da Saúde Pública, de que maneira primou, nos séculos XVI e XVII, a teoria da ‘constituição epidêmica', que deu primazia à constelação de estados climáticos e locais ligados à morbidez da época, e também a teoria do contá gio, desde então referida à idéia difusa das ‘sementes químicas' ou ‘leveduras’ que se supunha provocarem a doença (Rosen, 1994). Mas o desenvolvimento da observação científica possibilitou a constituição disciplinar da epidemiolo- gia, mediante um processo que Ayres (1997) sintetizou em seu valioso ensaio. O período constitutivo da epidemiologia ocorreu entre 1872, com o nasci mento da Associação Norte-americana de Saúde Pública e o início dos anos da Grande Depressão, em 1929. O nascimento da American Public Health Associa tion foi produto da influência do pensamento humanitário, como reação ao projeto socialmente despreocupado do liberalismo industrial que se seguiu à Guerra da Secessão. Nesse período, o sanitarismo norte-americano moveu-se entre três correntes.- ‘ambientalista’, articulada com a Universidade de Harvard e a preocupação de cientistas, como William Sedgwick, com o saneamento do ‘meio externo'; ‘sociopoiítica’, vinculada à Universidade de Columbia, a trabalhos como os de Winslow e às propostas de reforma legislativa e mudança dos modos de vida; e uma corrente ‘biomédica’, ligada à Universidade Johns Hopkins e à influência de cientistas como o biomédico Henry Welch, inspirado na higiene científica alemã, que propugnava a ênfase biológico-experimental, a aplicação da biometria e os modelos estatísticos mais rigorosos, ao que vieram somar-se a corrente pedagógica do flexnerismo e a influência da Fundação Rockefeller, que resultou na criação da Escola de Higiene e Saúde Pública. Esse ‘modelo Hopkins’ acabou por se impor. O grande modelo inspirador dessa corrente foi o alemão Pettenkofer, que reivindicava a higiene como ciência experimental e usava o conceito de ‘meio’ como ferramenta para pensar sobre o ‘contágio’. Pettenkofer ligou a economia físico-química do organismo individual à economia do meio. Sua posição situou-se entre os extremos do contagionismo e do anticontagionismo, sustentando que, para que ocorresse o produto ‘Z’ de um veneno como o da cólera, era indispensável que se juntassem o fator ‘x’ do germe e o chamado fator *y’, que seria o substrato de tempo e espaço capaz de conferir aos agentes sua manifestação epidêmica. Winslow modificou essa fórmula, enunciando-a como uma relação: A(alta2.... ax) - B(b,,b2.....bx) = C, onde A é o poder do germe; a,,a2....ax são os fatores variados que aumentam a transmissibilidade; e b,,b2.....bx são os diversos fatores que aumentam a resistência do hospedeiro. Nessa etapa, os procedimentos matemáticos tiveram um lugar subalterno. Com o tempo, entretanto, a ênfase deslocou-se para ‘x’ e se afastou do fator *y’ e das preocupações com o ‘meio’. O conceito de ‘risco’ foi substituindo o de meio, embora, nessa década de 1920, ainda ocupasse um lugar marginal. Na referida etapa, a idéia de risco estava ligada às de ‘ameaça’ ou ‘perigo’, mas não às de probabilidade e acaso; naquele momento, não interessava a idéia de gradação. Esteve implícito, nessa fase, o resgate do 192 conceito sydenhamiano de ‘constituição epidêmica’, embora o conceito de risco desempenhasse um papel periférico e de caráter basicamente descritivo. Surgiu em seguida, segundo Ayres, a etapa da ‘epidemiologia da expo sição’ (1930-1945). O período de depressão iniciado em 1929 esfacelou o sonho norte-americano e foi de crise social (a época do ‘New Deal’), claman do-se então pela centralização e pela intervenção do Estado. O conceito de ‘exposição’ apareceu nas décadas de 1930 e 1940, e o conceito de risco adquiriu para ele um destaque maior e uma dimensão analítica: o risco, nesse caso. referia-se às condições de susceptibilidade individual que de terminavam o comportamento epidêmico das doenças infecciosas; o risco já não qualificava uma condição populacional, mas indicava uma relação entre fenômenos individuais e coletivos. Veio finalmente a terceira etapa da epidemiologia do risco (1946-1965). Só depois da Segunda Guerra Mundial - etapa do preventivismo do pós-guerra - é que o conceito de risco pôde alcançar a plenitude de seu desenvolvimento e uma centralidade plena na disciplina, como parte de uma concepção tecnicista e de quantificação. Passou a designar as probabilidades de susceptibilidade atribuíveis a qualquer indivíduo de um grupo particularizado, de acordo com seu grau de exposição a agentes de interesse técnico ou científico. Importantes saltos conceituais caracterizaram então as diferentes for mas de incorporação do conceito de risco na conformação da epidemiologia moderna. As práticas sanitárias do fim do século XVIII haviam facilitado os primeiros sistemas de classificação demográfica da morbidez, surgidos no alvorecer do capitalismo da Grande Indústria, época na qual foi despertado o interesse pela quantificação dos fenômenos ligados à força de trabalho e aos fenômenos socioeconômicos correlatos. Essa foi uma etapa em que a demo grafia e a econometria começaram a se articular com os inventários de mor- bidade/mortalidade e estabeleceram a relação dos fenômenos econômicos e sociais com os eventos do adoecimento e da morte. Depois, em meados do século XIX, quando os processos do âmbito público da vida passaram a ser vistos como um espaço de facilitação ‘extra-orgânico’, ou ‘meio externo’ - no qual ocorriam as causas dos fenômenos orgânicos do ‘meio interno’ -, aban donou-se o enfoque das relações gerais entre o biológico, o político e o econô mico, e o olhar da epidemiologia voltou-se para a ‘mecânica de meio interno/ meio externo’ para a qual Canguilhem havia chamado a atenção (Ayres, 1997). Nesse momento, a idéia mais concreta e observável ou ‘visível' de ‘trans missão’ colocou-se no centro do saber epidemiológico, substituindo a vaga noção de contágio, referida a um medo impreciso e mais ligada aos sentidos do tato e do olfato (Czeresnia, 1996). E somente em meados do século XX é que se impôs a nova racionalidade do causalismo de base biológica, e então a idéia naturalista dos fenômenos epidêmicos foi substituída pela idéia probabilística da causalidade, traduzida na ‘idéia de risco’ (Almeida-Filho, 1989, 1992c). 193 A partir desse momento, surgiu o ‘paradigma do risco’, que identifica o possível com o provável, o populacional com o amostrai e o populacional com o individual. Inscreveram-se assim uma forma
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