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BREILH, Jaime - Epidemiologia crítica

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Copyright © 2006 do autor
Todos os direitos desta edição reservados à
FUNDAÇÃO 0SW ALD0 CRUZ / EDITORA
ISBN: 85-7541-095-4
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica 
Carlos Fernando Reis & Adriana Carvalho
Revisão, copidesque e normalização de originais 
Janaína de Souza silva
Biblioteca de Ciências da Saúde-Ciências da Saúde 
Distribuidora Curitiba de Papeis e Livros Ltda 
Epidemiologia critica
T e r m o . 22/2008 R e g i s t r o 452867
R$26,77 11/01/2008 LICITAÇÃO
Catalogação-na-fonte
Centro de Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca
B835e Breilh, Jaime
Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. 
/Jaime Breilh. Rio de Janeiro : Editora FIOCRUZ, 2006.
317p., graf.
1 .Epidemiologia. 2.Saúde pública. l.Título.
CDD - 20.ed. - 614.49
2006
EDITORA FIOCRUZ
Av. Brasil, 4036 - sala 112 - Manguinhos 
21040-361 - Rio de Janeiro - RJ 
Tel.: (21) 3882-9039 e 3882-9041 
Telefax: (21) 3882-9006 
e-mail: editora@fiocruz.br 
http://www.fiocruz.br/editora
K U « * ,,.
mailto:editora@fiocruz.br
http://www.fiocruz.br/editora
6
Bases para uma Epidemiologia Contra-Hegemônica
Uma característica própria do scr humano é a de ser um fabricante de 
utopias. O ideário de suas grandes metas é parte essencial de sua natureza 
consciente e de sua condição de espécie histórica.
No campo da ciência, o pensamento ‘portador de frutos’ só é produzido 
pelo que ‘pode ser’, com base no que ‘foi’, e não pelo que ‘é’ (Santos, 2000). Daí 
o fato de qualquer proposta científica, como a que se perfila nestas páginas, e 
por mais especializada que seja, ter de ser concebida no referencial de uma 
meta humanista, caso obedeça a uma adoção de identidade e a uma utopia de 
recriação de um ser humano mais justo, mais eqüitativo, mais sonhador e, 
portanto, mais saudável.
Entretanto, o impulso de um programa científico que assume esse tipo de 
desafios integrais insere-se, por força maior, numa realidade cheia de contradi­
ções e de luta pelo poder - das quais depende, lamentavelmente, a situação de 
saúde de uma sociedade - que torna mais difícil chegar a esses caminhos mais 
justos e eficazes. Essa é uma questão que adquire agora uma vigência terrível, 
na nova era do sistema capitalista em que a eclosão violenta do terrorismo 
reativo, diante do fundamentalismo do mercado, ainda sustentado, apesar de 
seus fracassos estrepitosos, pelo mesmo poder que impulsiona uma ‘teologia 
monetarista desacreditada’ - como a chamou Krupman, ganhador do Prê­
mio Nobel de economia -, marca o começo de uma outra fase do mundo, 
radicalmente polarizada.
Assim, é indubitável que, nos cenários em que trabalham os epidemiolo- 
gistas, há contradições importantes, e uma delas, que não é possível deixar de 
lado, é a oposição de duas grandes visões de mundo e seus problemas: o olhar 
hegemônico dos que concentram o poder e o olhar dos que promovem uma 
contra-hegemonia, para democratizar e para romper os grilhões. Os planos e 
intervenções de saúde encarnam justamente uma dessas visões de mundo.
165
Foi Antonio Gramsci quem estabeleceu uma explicação incisiva da ‘hege­
monia' como um elemento de subordinação social e da 'contra-hegemonia' 
como possibilidade de um bloco popular emancipador (Gramsci, 2000). A hege­
monia foi explicada como forma de dominação de uma classe social sobre as 
demais, a qual não é simplesmente praticada mediante uma organização espe­
cial da força, mas por meio do exercício de uma liderança moral e intelectual 
para cuja vigência essa classe dominante tem de transcender o referencial es­
treito de seus interesses corporativos, e estabelecer compromissos, dentro de 
certos limites, com uma variedade de aliados. Assim se forma um bloco social 
que representa uma base de consentimento para uma certa ordem social, na 
qual a hegemonia é criada e recriada dentro de um conjunto de instituições, 
relações sociais e idéias (Pissomo, 1982). É inegável a importância dessa des­
coberta e de suas conseqüências para o avanço da práxis em todos os campos, 
e especificamente no da saúde.
Ao mesmo tempo, contudo, uma interpretação parcial e esquemática da 
descoberta da hegemonia de Gramsci conspira contra sua plena utilidade, 
sobretudo quando ela é reduzida a um esquema bipolar de classes sociais, 
enquadradas “numa lista de ‘hegemônicos’, em contraposição a uma lista 
de ‘subalternos’":
Quando as complexas relações entre a hegemonia e a subalternidade são 
reduzidas a um simples jogo bipolar, minimiza-se a sutil distinção gramsciana entre 
dominação e hegemonia, e se descuida da ‘rede de intercâmbios, empréstimos e 
condicionamentos recíprocos' entre as culturas de diferentes classes, ou seja, das 
•formações intermediárias' destacadas porCirese. (García-Canclini, 1993:65)
É muito útil, para os projetos atuais de uma epidemiologia crítica, recor­
dar que toda 'dominação' se fortalece à medida que se converte em hegemonia, 
como afirmaram o próprio Gramsci e alguns antropólogos em anos recentes. 
Os dominadores cuidam de algumas necessidades dos dominados e suscitam 
algumas respostas legitimadoras em alguns setores populares. No campo da 
saúde, ésse tipo de respostas legitimadoras continua a ocorrer, mesmo nos 
cenários em que a contra-reforma neoliberal deixou menos espaço para a nego­
ciação oportunista efetuada pelos grupos dominantes.
O que deve ser compreendido, como explicou Maurice Godelier (1978), é 
que as relações de dominação e exploração, para se reproduzirem de forma 
duradoura, ‘devem apresentar-se como um intercâmbio, e um intercâmbio de 
serviços’ entre as classes. As classes hegemônicas tornam-se tais na medida 
em que incluem nas instituições, nos objetos e nas mensagens, em sua função 
e seu sentido, não apenas seus interesses setoriais, mas também a parcela das 
culturas populares que se revela útil e significativa para a maioria. Se não 
vemos o povo como uma massa submissa que sempre se deixa enganar, temos
166
de admitir que sua dependência se deve, em parte, ao fato de ele encontrar na 
ação hegemônica algo de útil para suas necessidades. Por exemplo, os campo­
neses recebem da cultura urbana de massa as informações necessárias para 
compreender e agir ‘corretamente’ em suas novas condições. Entenderemos 
melhor a televisão, nesse caso, como uma espécie de manual de urbanidade. 
Quando se trata de hegemonia, e não de simples dominação e coerção, o víncu­
lo entre as classes apóia-se menos na violência de cima para baixo do que no 
contrato, numa ‘aliança em que hegemônicos e subalternos contratam entre si 
.serviços recíprocos’.
Da mesma forma que a velha epidemiologia funcionalista constituiu um 
instrumento de hegemonia, a nova epidemiologia crítica tem de ser concebida 
como um elemento de contra-hegemonia, para chegar ao estatuto de uma ativi­
dade emancipadora.
Ao longo destas páginas, falamos da urgência de inscrever o esforço epis- 
temológico numa concepção emancipadora da práxis, e, para isso, é preciso 
esclarecer algumas categorias e relações fundamentais nas quais se enraíza 
uma parte substancial do pensamento epidemiológico e da saúde coletiva. São 
categorias que definem a ação e cuja interpretação depende de as olharmos 
pela perspectiva hegemônica ou pela contra-hegemónica.
AS TRÊS DERROTAS DOS DIREITOS HUMANOS E A REAFIRMAÇÃO DA 
NECESSIDADE EM SAÚDE
Os conceitos de ‘necessidade’, ‘desenvolvimento humano’ e ‘práxis’, bem 
como a formulação de um modelo epidemiológico que articule uma concep­
ção de práxis histórica com os modos de ‘intervenção’, ‘investigação’ e ‘in­
terpretação’ epidemiológicos, têm de fazer parte do grande modelo contra- 
hegemônico da epidemiologia crítica, inscrito no que denominamos de neo- 
humanismo popular.
Em termos históricos, a criatividade e a solidariedade que ansiamos por 
implementar são apenas potencialidades, que nem sempre poderão ser expres­
sas e concretizadas. Elas se desenvolveram sem barreiras estruturais durante 
vários séculos, enquantoas sociedades se organizavam comunitariamente e se 
guiavam para a satisfação de necessidades coletivamente definidas, assim como 
para uma distribuição eqüitativa dos bens coletivos. Nessas épocas, o sujeito 
social atuava em função dos valores de uso, e a atividade coletiva orientava-se 
para a produção de bens que satisfizessem necessidades estabelecidas por con­
venções coletivas; nem a divisão sexual do trabalho, nem as diferenças de 
gênero nem os contrastes étnicos provocavam então desigualdades importan­
tes, porque a sociedade funcionava em busca do bem comum, o enriquecimen­
to privado era impensável e, por isso, não existiam condições para a concen-
167
tração de poder e para desigualdades extremas. Ao desarticular-se esse sujeito 
comunitário e surgirem os sujeitos privados, guiados pela ânsia de entesoura- 
mento mercantil, rompeu-se o direito à eqüidade - note-se que, neste ponto, 
não estamos falando de igualdade. A necessidade foi deslocada e em primeiro 
plano veio colocar-se o interesse de produzir para lucrar, com o que teve início 
a era da concentração de poder e do aparecimento da ineqüidade. Até então, 
haviam existido apenas a diversidade e desigualdades não significativas.
Essa transição da sociedade comunitária para a dos mercadores privados 
produziu a 'primeira grande derrota dos direitos humanos e da necessidade' 
como eixo da construção social. Desde então, o interesse centrou-se na produ­
ção para o lucro, que passou a ser o eixo de organização de todas as ativida­
des. Depois, uma ‘segunda grande derrota histórica dos direitos humanos e da 
necessidade', como princípio de definição social, deu-se com o surgimento do 
capitalismo da livre concorrência (século XVII) e, um pouco mais tarde, da 
grande indústria (em torno do século XVIII), alicerçado na descoberta de que o 
uso da força de trabalho possibilitava o aumento do valor, a extração de lucros 
do trabalho alheio e a acumulação dessa mais-valia. Nesse momento, mulhe­
res e homens pobres do mundo perderam o direito à propriedade dos bens 
fundamentais da sociedade, industriais e financeiros, mas o sujeito coletivo - 
nessa ocasião, o sujeito trabalhador coletivo - se manteve em vigor e conse­
guiu sustentar os direitos trabalhistas e sociais básicos que se consolidaram 
no pacto social subseqüente à Segunda Guerra Mundial.
A mulher proletária e de classe média, a partir de então, teve de lutar para 
que suas reivindicações de gênero não fossem dissolvidas nas reclamações 
gerais de classe, e aproveitou o clima reivindicativo e a mentalidade socialista 
da época para promover suas próprias reivindicações; com isso, consolidou-se 
e se diversificou o movimento feminista, que descortinou para o mundo a luta 
dos gêneros como uma linha nova e fundamental de emancipação. Os grupos 
étnicos - tendenciosamente denominados de ‘minorias’ pela ciência oficial - 
também iniciaram seu expediente de luta no mundo, cm momentos diferentes e 
com força variável. Os projetos de emancipação étnica, por sua ligação evidente 
com a pobreza, confundiram-se residualmente com os reclamos do proletariado 
mundial, embora, por sorte, tenham também preservado o fio condutor de suas 
reivindicações etnonacionais, o que, em muitos lugares, na atualidade, derivou 
numa força emancipadora, embora o capitalismo globalizado também tenha dado 
impulso a um novo etnocentrismo e a um fundamentalismo reativo.
Já nas décadas mais recentes, o processo de extrema concentração da ri­
queza determinou a acumulação de uma superpopulação relativa, que rom­
peu todas as proporções conhecidas até então. Não mais se tratou de um sim­
ples exército industrial de reserva, porém de uma massa totalmente excluída 
do circuito primário da economia monopolista - uma massa marginalizada,
168
expulsa para a informalidade no campo do trabalho, deslocada no plano terri­
torial para os bairros miseráveis e os espaços mais deteriorados de campos e 
cidades, e cerceada, no campo cultural, numa cultura marginal e de resistên­
cia, na qual não houve oxigênio para a construção de um pensamento emanci- 
pador. Assim, em meados da década de 1980, já chegado o capitalismo tardio 
ou pós-industrial, ocorreu 'a terceira derrota dos direitos humanos’ e da possi­
bilidade de as classes subalternas concretizarem o sempre postergado projeto 
emancipador da modernidade. Foi uma derrota em que se combinou o retroces­
so absoluto dos direitos económicos com níveis mínimos de sobrevivência, 
rompendo-se radicalmente o pacto do pós-guerra. Todavia, apesar de sua gra­
vidade, o impacto econômico não foi a única destruição ou retrocesso sofrido, 
pois a globalização implicou não apenas o despojamento de nossa riqueza 
material e nossos recursos estratégicos, mas também uma contra-reforma jurí­
dica, ideológica e cultural que procura neutralizar-nos espiritualmente, não só 
dissolvendo os espaços e territórios nacionais de reprodução de culturas pró­
prias, mas dominando-nos mediante a implantação de uma cultura do egoís­
mo e do consumo, com o que se procura acabar com a identidade dos povos e 
apagar, através do individualismo, qualquer vestígio de organização coletiva 
e de solidariedade. E tudo isso enquanto se criam severas limitações legais a 
qualquer forma de defesa dos direitos.
É no quadro desse retrocesso colossal que deve ser reavivada uma preo­
cupação com os direitos humanos e a necessidade em todos os campos disci­
plinares e, mais ainda, em campos como o da epidemiologia, direcionados 
para a defesa e a promoção da vida.
Reafirmação urgente da necessidade em saúde
A reflexão sobre a atividade da saúde coletiva e da epidemiologia, como 
instrumento de investigação, planejamento, monitoramento e controle das con­
dições sanitárias e das ações e programas, não pode desvincular-se de várias 
‘categorias’ fundamentais para definir os conteúdos e metas da ação. Uma 
delas, precisamente a que permite iniciar a análise estratégica, é a da ‘necessi­
dade’. Mas a ‘necessidade em saúde’ é definida e usada de acordo com inter­
pretações distintas de como e por que se dá a ’distribuição’ das formas de 
acesso e satisfação numa sociedade.
Atualmente, há um confronto entre duas ‘grandes correntes’ a propósito 
do tema da definição da necessidade: a) a necessidade humana como um valor 
relativo, que depende de opções individuais e das possibilidades de cada pes­
soa e sua família para adquiri-las no mercado (corrente liberal); b) a necessi­
dade como um processo determinante da vida, cuja realização constitui, por 
isso mesmo, um direito humano inalienável, ao qual se deve aceder através de
169
uma distribuição eqüitativa e segura por parte de todos os membros de uma 
sociedade, a qual deve construir-se solidariamente em prol do máximo bem 
comum (corrente solidária). Essa distinção tem profunda influência em cam­
pos como o da epidemiologia e de suas atividades de prevenção, pois, como 
veremos mais adiante, na seção dedicada à crítica da teoria do risco, uma 
definição incorreta da necessidade, ou inclinada para interesses unilaterais, 
conduz a um paradigma ineficaz da prevenção, na melhor das hipóteses, ou„a 
uma utilização contrária aos interesses sociais, na maioria das vezes.
Por isso, ao nos dispormos a construir um olhar alternativo para uma nova 
epidemiologia, é muito importante esclarecer essas acepções e direções possí­
veis e tomar consciência de suas implicações. Surpreendentemente, a tese de 
atender à necessidade humana encontra-se tanto nos discursos dos setores mais 
retrogressivos, que apoiam a corrente liberal, quanto nas propostas alternativas 
das organizações sociais e núcleos científicos mais inovadores, que promovem a 
visão solidária. A experiência recente parece indicar que a aparente reivindica­
ção das necessidades humanas, por parte dos setores hegemônicos, não passa de 
uma forma de substituir 'o direito' por uma acepção muito peculiar e convenien­
te da necessidade, e assim preparar o terreno para sua mercantilização. Se o 
atendimentode saúde e os programas de prevenção já não são direitos inaliená­
veis, mas 'necessidades' discricionárias, o poder tem a possibilidade de decidir 
quais necessidades deve incluir num pacote mínimo para os pobres, e quais 
deve deixar a cargo do mercado e do ‘livre’ arbítrio dos 'clientes'.
Em primeira instância, o debate contemporâneo sobre a ‘definição da ne­
cessidade humana’ poderia ser assim delineado: para uns, todos os seres hu­
manos têm as mesmas necessidades básicas - ‘teoria objetiva' -, enquanto, 
para outros, as necessidades são uma construção sociocultural - ‘teoria sub­
jetiva' ou ‘relativismo’ (Doyal & Gough, 1991).
Não sendo analisada com maior cuidado, essa delimitação geral pode ge­
rar confusão no campo teórico e técnico, sobretudo agora que a nova direita 
maneja o relativismo a seu favor, aduzindo que as necessidades são construí­
das pelas diferentes populações, ou até pelos desejos individuais - para sus­
tentar o empobrecimento neoliberal das necessidades -, e, como já foi dito, 
difunde a idéia de que as necessidades válidas devem ser definidas, em última 
instância, no mercado e no livre arbítrio individualista.
A discussão desse assunto ultrapassa os limites do presente trabalho, mas 
basta dizer aqui que o ‘processo de definição das necessidades' nos grupos 
humanos não é nem exclusivamente objetivo, em resposta a condicionamentos 
individuais imediatos, nem exclusivamente subjetivo, adquirido ou mediado 
por condicionamentos históricos, econômicos e culturais. Embora não seja nosso 
propósito desenvolver aqui uma discussão aprofundada dessa disjunção, ca­
bem algumas considerações sucintas.
170
Como vimos assinalando, o conhecimento da necessidade pode ser enfoca­
do por perspectivas distintas. Há quem sustente que a necessidade não passa 
de um fenômeno objetivo da natureza, um ‘em si' que só pode refletir-se em 
nosso pensamento e ao qual se responde com a consecução de ‘satisfações', 
como um processo reflexo. Essa ‘teoria objetiva’ inscreve-se num enfoque po­
sitivista que desconhece que toda necessidade objetiva contém elementos sub­
jetivos, os quais, se apagados, deixam-nos uma abstração vazia e indetermi­
nada. Inversamente, há quem afirme que a necessidade não passa de uma 
construção a partir de um esquema subjetivo a príori. Essa ‘teoria relativista’ 
inscreve-se num enfoque fenomenológico que desconhece que a necessidade 
construída só o pode ser em relação a uma necessidade concreta, isto é, que a 
necessidade construída traz a marca da necessidade básica objetiva, e que, 
além disso, só o pode ser em relação a definições socialmente construídas. Ou 
seja, elementos objetivos como a sede e a sensação de fome existem na nature­
za humana desde antes, porém marcam e estão presentes nas necessidades que 
construímos com base nelas, individual e coletivamente (Breilh, 2000).
Mas o conhecimento científico da necessidade humana não tem como pon­
to de partida um elemento objetivo abstrato nem um esquema subjetivo abstra­
to, e sim a atividade prática social de seres concretos, historicamente dados. 
Esse ‘enfoque praxiológico' evita fazer-nos cair em abstrações vazias, que re­
duzem o conhecimento.
A construção da necessidade, como todo processo humano, é gerada a 
partir da ordem individual ou micro (gênese) e se reproduz a partir da ordem 
social ou macro (reprodução social) (Samaja, 1993). Na ordem individual pri­
mam os processos fenotípicos básicos, isto é, as necessidades fisiológicas e 
psicológicas; em outras palavras, são as pessoas e as famílias, em seu co­
tidiano, que determinam os movimentos detalhados do consumo, com suas 
preferências e de acordo com seus obstáculos (estilos possíveis e desejáveis de 
vida), mas tais estilos (preferências e obstáculos) não funcionam num vazio 
social, desenrolando-se em espaços sociais concretos, marcados nos condicio­
namentos econômicos, culturais e políticos (modos de vida típicos) que. em 
cada classe social e de acordo com as relações étnicas e de gênero que as 
caracterizam, são viáveis e prováveis, também em relação às determinações 
sociais mais amplas (ver Figura 9, inspirada em Samaja).
As relações históricas em que vive o ser humano fazem com que seu fenó- 
tipo e seu psiquismo se modifiquem, e com isso mudam as necessidades bási­
cas de ordem biológica e psíquica; em outras palavras, os processos históricos 
da ordem macrossocial implicam a construção de necessidades coletivas, ou a 
‘dimensão coletiva das necessidades’ que depois se mantêm como padrões de 
reprodução social nos quais se enquadra a necessidade individual. O consumo 
de água e a resposta para realizá-lo, por exemplo, não é arbitrário, mas objeti-
171
vamente determinado por um requisito fenotípico; entretanto, o quantum des­
sa necessidade, assim como as modalidades de seu consumo, sua qualidade e 
as concepções que o reproduzem, varia de acordo com as circunstâncias e 
exigências de cada momento e lugar.
Figura 9 - A construção da necessidade
Portanto, se a construção das necessidades - incluídas as que se relacio­
nam mais diretamente com a saúde - não é exclusivamente um fenômeno psi- 
cocultural individual, mas um processo histórico coletivo que abarca todas as 
dimensões da reprodução social, então não se pode adotar unicamente a clas­
sificação axiológica das necessidades humanas, proposta à guisa de matriz 
(Max-Neef, Elizalde & Hopenhayn, 1986). Em vez disso, numa primeira instân­
cia, seria preciso colocar as dimensões sociais da necessidade como critério de 
classificação e considerar que a epidemiologia deve responder com suas ações 
em cada um dos seguintes campos da necessidade:
• Necessidades humanas do processo de trabalho.
• Necessidades humanas da vida de consumo e do cotidiano.
• Necessidades humanas da vida organizacional.
° Necessidades humanas da subjetividade, da consciência e da 
vida cultural.
° Necessidades humanas da relação com as condições naturais do 
meio ambiente.
Esta classificação corresponde a demandas que não se realizam nem são 
respondidas apenas no plano individual ou a partir da perspectiva dos indiví-
172
duos, e todas envolvem os requisitos básicos de serem processos: cooperativos 
e solidários; criativos; benéficos para a saúde física e mental; culturalmentc 
enriquecedores, por meio do fortalecimento dos povos e de suas culturas par­
ticulares, bem como das conquistas culturais universais; adaptados às condi­
ções de idade, gênero, atividade e meio; possibilitadores de uma participação 
criativa e autônoma das pessoas e de suas organizações na definição e desen­
volvimento dos próprios direitos; que sejam bens cuja vigência ou aos quais o 
acesso não dependa da renda, da situação de classe, do gênero ou da etnicida- 
de; e que sejam os mais seguros, conforme o horizonte de visibilidade da ciên­
cia num determinado momento (Breilh, 1995b).
Dessa maneira, enfocamos um nível de análise coletiva que atende às ne­
cessidades reproduzidas por uma estrutura social, mesmo que estas tenham 
sido geradas com o concurso das necessidades básicas biopsicológicas. Isso 
não significa que não devamos atentar para as necessidades específicas dos 
indivíduos, mas que devemos organizar a lógica das respostas mais singulari­
zadas no contexto do pensamento e da ação relacionados com o coletivo, e só 
depois entrar no nível micro.
Só faz sentido enunciarmos a necessidade no seio dos processos concretos 
de reprodução social quando entra-se diretamente numa matriz como a pro­
posta por Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn (1986), atomizam-se a visão e a 
análise no indivíduo, porque, embora as necessidades básicas sejam seme­
lhantes no plano formal abstrato, no terreno concreto da vida social, ao contrá­
rio, elas fazem parte de processos e determinações distintos, cujas especificida­
des merecem enfoques diferenciados. Esse é um problema que não se resolve 
com a proposta dos autores de distinguir entre necessidade e satisfação - por 
exemplo, entre a ‘necessidade de proteção’ e o'sistema satisfatório de saúde’ - 
porque as necessidades que os autores reconhecem, tais como a proteção, não 
se produzem nem existem como um fato natural espontâneo, mas são proces­
sos em movimento, com características e modos de devir determinados pelas 
condições socioestruturais e pelos conflitos de interesses a que elas correspon­
dem, com especificidades que, não sendo levadas em conta, conduzem a gra­
ves erros de interpretação e de ação. Do mesmo modo, se é verdade que a 
‘subsistência’, por exemplo, é uma necessidade essencial em qualquer socie­
dade, falar dela no vazio, sem inserir essa análise nos processos históricos 
determinantes da reprodução social (processo de produção e consumo, que 
define a quota e a qualidade dos bens que cabem a cada grupo; processo de 
poder político no Estado, que condiciona a quota e a qualidade dos serviços 
prestados também por essa via etc.), equivale a criar uma abstração inútil, 
caso o que se almeje seja desencadear uma ação emancipadora; é como tirar 
do processo de subsistência a sua raiz e vê-lo incompleto, o que seria apenas 
funcionalmente útil e equivaleria a um modelo de ação cosmética, que repro-
173
duziria as mesmas condições essenciais. Mais que isso, no entanto, uma ne­
cessidade como a subsistência, que tem de ser solidária e digna para ser hu­
mana, não é simplesmente uma necessidade, mas foi historicamente transfor­
mada num direito que não pode ser submetido a nenhuma negociação, da 
mesma forma que os princípios não podem ser negociados.
Vistas as coisas dessa maneira, a ‘subsistência’ não começa como uma 
necessidade natural em si, que se reflete na busca de um elemento de satisfa­
ção como a água e o alimento, mas é um processo que começa em sua forma 
de determinação histórica e se projeta nos processos de satisfação, como uma 
unidade dinâmica que a análise não deve quebrar em pedaços; fazer o inverso 
é um fracionamento positivista tão falacioso quanto a decomposição da reali­
dade em fatores, para estudar de forma positivista as ‘causas' das doenças. O 
que efetivamente se pode fazer com as referidas categorias axiológicas (subsis­
tência, proteção, afeto, entendimento, participação, lazer, criação, identidade, 
liberdade) é inseri-las no referencial dinâmico da reprodução social e nos pos­
tulados solidários e socialmente construídos da ação.
Em síntese, os processos básicos subdividem-se em fisiológicos e da cons­
ciência. Entre os primeiros surgem necessidades como o consumo alimentar 
adequado à atividade e ao meio ambiente, por exemplo, que se inclui entre as 
necessidades humanas universais ou básicas (Doyal & Gough, 1991). O mes­
mo se pode dizer de uma necessidade básica como a de trabalhar num local 
sem estressores físicos e sem processos destrutivos. No primeiro caso, o da 
necessidade de alimento, embora esse processo seja realizado por indivíduos, 
em última instância, não obedece unicamente a uma liberdade ou uma opção 
individual - como afirmaria o liberalismo social de Sen -, mas é profundamen­
te determinado pelo contexto social; do mesmo modo, pode-se dizer que no 
segundo caso, o do trabalho livre de estressores e processos destrutivos, é 
evidente que também isso não é produto de uma restrição ou uma agressão 
que condicione a necessidade de uma pessoa isolada, mas faz parte de um 
modo de vida que pertence a um conjunto social. As ‘necessidades fisiológicas 
básicas' têm de ser integradas como um referente a qualquer medição da qua­
lidade de vida, que deve incluir, portanto, o grau de consumo adequado de 
valores de uso básicos, conforme a idade, o gênero e a atividade, em compo­
nentes como alimentos, proteção em relação ao clima (vestuário e moradia), 
descanso ou repouso e exercício físico adequado, e restauração e manutenção 
da saúde. O acesso a tais necessidades básicas é ‘parte decisiva de um pacote 
integral de saúde’, como direito e aspiração legítima de todos os povos. Mas 
existem também 'necessidades básicas ligadas ao psiquismo' e a seu desenvol­
vimento, as quais, na espécie humana, são necessidades de consciência parti­
cularmente vinculadas ao aumento do consumo, tais como identidade, apren­
dizagem, fruição de suportes afetivos e solidários, capacidade de interpretação
174
crítica e ausência de cerceamentos do pensamento, recreação formativa e de 
reprodução da capacidade física e intelectual, participação consciente nas de­
cisões que dão conteúdo e direção à vida humana, pautadas pela eqüidade. 
'Também estas são necessidades básicas - as mais violadas pelas sociedades 
da desigualdade - que devem fazer parte de um pacote integrado de qualidade 
de vida, e têm de ser incorporadas a sua medição.’
Por isso, não compartilhamos da lógica desses autores, quando restrin­
gem a análise à relação indutiva ‘necessidade -»■ elemento de satisfação’, como 
se estivéssemos tratando de uma relação linear, dada na dimensão individual 
do arbítrio singular e descontextualizada das formas coletivas de organização. 
Não é nos indivíduos que se explica e se realiza a ligação da necessidade com 
a forma de resposta social a ela, pois a estrutura coletiva determina os modos 
de criação e reprodução das necessidades, as formas de produção e circulação 
dos bens produzidos e, por conseguinte, as maneiras de satisfazer as necessi­
dades. Assim, por exemplo, a ‘macdonaldização’ do consumo não é produto de 
gostos nascidos em muitas pessoas, mas produto da transformação de um 
padrão de consumo alimentar e lúdico nas sociedades do capitalismo monopo­
lista urbano. Tampouco o consumo globalizado da Coca-Cola é resultado ex­
clusivo de um 'elemento de satisfação', perfeitamente adequado a um fenótipo 
e a um estilo humano natural, mas sim produto de um processo complexo de 
construção comercial cultural de cenários e afinidades altamente compatíveis 
com a sociedade moderna, dentro do qual pode operar a atração poderosa de 
uma substância que contém elementos como a cocaína ou a cafeína em doses 
baixas. Muito menos são a perda de terreno do Dia de Finados e sua transmu­
tação no Halloween, nas sociedades urbanas, uma resposta a uma condição 
psicocuitural inerente à 'natureza' humana, e sim a imposição de padrões 
lúdicos e comerciais respaldados pelo poder do dinheiro, pelo bombardeio da 
propaganda e pela imposição de novos sentidos, compatíveis com a ‘ameri- 
canização’ das coletividades urbanas.
Em todos os casos expostos, a estrutura produtiva é determinante, uma 
vez que estabelece os condicionamentos decisivos da construção de necessida­
des e das maneiras de satisfazê-las. As necessidades são historicamente pro­
duzidas, e não geradas por sujeitos isolados; são, essencialmente, um produto 
do movimento das opções individuais em meio ao movimento determinante do 
coletivo; e, o que é mais importante, a produção econômica dos bens e a distri­
buição dos que são repartidos pelo Estado não são simples instrumentos a 
serviço da satisfação de necessidades preexistentes (Boltvinik, 1994), mas es­
tão ligadas aos interesses das classes hegemônicas, que criam esses ‘elemen­
tos de satisfação' de acordo com sua conveniência. É nesse contexto que se 
devem estudar as atribuições de valor e os comportamentos das coletividades 
em relação aos serviços públicos e privados de saúde, bem como aos dos
175
profissionais e técnicos que hoje favorecem uma reforma de saúde regressiva, que 
vem modificando o perfil de desenvolvimento da epidemiologia institucional.
Com efeito, as abordagens liberais sobre a necessidade situam-na como 
um problema individual, ligado ao consumo e ao arbítrio pessoal, e, nos pla­
nos retrógrados de reforma, isso adquire uma importância capital, porque é 
assim que os cidadãos e cidadãs deixam de ser ‘detentores de direitos' e se 
transformam em ‘clientes’. Formulada dessa maneira, a necessidade substitui 
o direito, e a distribuição insuficiente de serviços - que é ocasionada pela 
monopolização da riqueza, mas não é reconhecida como tal - passa a consti­
tuir um recursode sobrevivência, medido por técnicas múltiplas, como a da 
‘linha de pobreza’ (limiar de renda/despesa mínima) ou a da ‘satisfação de 
necessidades básicas’ (lista mínima de elementos de satisfação de necessida­
des básicas) às quais os clientes do mercado podem aceder (Desai, 1994).
Neste livro, ao discutirmos mais adiante os modelos de desenvolvimento 
humano que inspiram ou influenciam o planejamento e as propostas de refor­
ma, procuraremos promover uma visão contrária, que enfoca a necessidade 
não em termos de bens e fatores de satisfação, mas como recursos indispensá­
veis à humanização das dimensões da reprodução social, em primeiro lugar, e 
em seguida, na ordem micro, apoiaremos a recriação de propostas como a de 
Sen, que se expressou nos livros citados por nós, reinserindo sua análise numa 
estrutura de poder e ineqüidade, que é onde se explicam as desigualdades 
resultantes e onde se determinam as capacidades (capabilities) muito distintas 
que surgem nas diferentes classes sociais, grupos étnicos e de gênero, e que, 
com justa razão, preocupam o Prêmio Nobel bengalês. Nossa proposta para a 
‘análise da necessidade na saúde’, portanto, funciona em dois movimentos: 
a inserção da análise na estrutura de poder e a inserção das intervenções na 
organização coletiva dos grupos subalternos na referida estrutura de poder. 
Em outras palavras, os determinantes da saúde operam nas dimensões dis­
tintas da vida social (reprodução social), em todo o espectro de bens ma­
teriais e espirituais a que cada grupo social tem acesso, de acordo com a 
qualidade de sua atividade profissional, de suas modalidades típicas de con­
sumo e até de suas formas e relações organizacionais/políticas, culturais e 
ecológicas (Breilh, 1997c).
Uma vez analisada a definição da necessidade, é preciso, inevitavelmente, 
abordar o problema de sua 'distribuição', e nesse ponto, é absolutamente per­
tinente resgatar o questionamento da tese de uma suposta capacidade distribu­
tiva do mercado, subjacente a toda a construção teórica da doutrina neoliberal 
(Valenzuela, 1991). O mercado é não apenas um ótimo distribuidor dos bens e 
do acesso às necessidades, como também, por sua estrutura oligopolista, é o 
reprodutor acelerado de grandes abismos de ineqüidade.
As ações de que depende a atividade epidemiológica, como todo o conjun­
to que pertence essencialmente ao campo da prevenção e da promoção, são
176
sempre profundamente afetadas em toda sociedade em que se inicia um proces­
so de privatização da saúde, porque as modificações que elas sofrem não são 
apenas pontuais, mas comprometem o conjunto do sistema de saúde, e porque 
isso implica ligar as decisões de saúde aos interesses empresariais e de análise 
de custo beneficio, em vez de inseri-las na lógica do custo-benefício da coletivi­
dade e na dos direitos humanos e das necessidades inalienáveis, tema a que 
voltaremos mais adiante, ao abordarmos a crítica do paradigma de risco.
Quando a história humana abandonou a etapa coletivista em que se pro­
duzia e se distribuía conforme a necessidade, para entrar em cheio nos diferen­
tes períodos do produtivismo e da propriedade privada, a construção social da 
necessidade foi deslocada para segundo plano. O produtivismo possibilitou a 
monopolização do poder e significou a derrota da construção coletiva da vida 
social, a tal ponto que, na era moderna, o centro absoluto de toda a vida humana 
passou a girar primordialmente em torno da acumulação em todas as ordens, 
e da concentração dos bens materiais e culturais acumulados. No mundo hege­
mônico, a acumulação é maior e igualmente monopolizada, enquanto no mun­
do subalterno do capitalismo periférico o contraste é maior, porque os centros 
de acumulação se aproveitaram dos níveis ínfimos de vida para aumentar 
seus lucros; tanto num quanto noutro caso. entretanto, a acumulação consti­
tui, agora mais do que nunca, um obstáculo insuperável diante de um projeto 
autêntico de reforma (Benítez, 2000).
A acumulação baseada na exploração do ser humano criou uma distância 
cada vez maior entre o que se produz e o que se distribui, entre a natureza e o 
ser humano, entre o saber e a consciência, entre a necessidade coletiva e a 
tecnologia, entre as possibilidades de comunicação e o que sabemos dos ou­
tros, aspectos estes que guardam estreita relação, todos eles, com as condições 
de saúde. Assim, a acumulação e a racionalidade competitiva de hoje são uma 
barreira radical a qualquer tentativa de reforma, pois nos sufocam na miséria 
em meio à opulência, enchem-nos de saber científico, mas sem consciência, 
deixam-nos culturalmente incomunicáveis em meio à incomensurável capaci­
dade da comunicação digital, e nos sufocam em epidemias - algumas das 
quais praticamente já haviam desaparecido - tudo isso em meio a uma tecno­
logia cada vez mais evoluída, porém estruturalmente impedida de se voltar 
para o benefício coletivo (Breilh, 1998).
A história recente da América Latina determinou, nessa fase, uma expan­
são acelerada do sistema capitalista, que agora aprofunda a essência do inte­
resse privado, graças ao expurgo de certas ‘impurezas ou resíduos de lógica 
social ou solidária' que haviam conseguido persistir como produto das lutas 
do povo e das concessões do keynesianismo. Esse abismo entre a necessidade 
humana insatisfeita, por um lado, e a produção e o poder que a sustenta, por 
outro, atingiu sua expressão máxima no período neoliberal, cujo braço admi-
177
nistrativo é o Fundo Monetário Internacional (FMI), junto com seu agente Finan­
ceiro, o Banco Mundial (BM).
A reflexão sobre o conceito de necessidade introduz-nos em cheio no cam­
po da discussão dos modelos de desenvolvimento humano em que deve inscre­
ver-se, necessariamente, uma proposta epidemiológica alternativa; e, como 
esse é um vasto campo de análise, que ultrapassa os limites deste trabalho, 
cabe aqui apenas tentarmos uma delimitação introdutória.
MODELOS DE DESENVOLVIMENTO HUMANO: CAMINHOS OPOSTOS PARA A 
EPIDEMIOLOGIA
As doutrinas sobre o desenvolvimento humano sempre foram um campo 
de debate inflamado, e não é de estranhar que, no período mais desumano da 
história, proliferem numerosas propostas e versões da teoria da necessidade e 
do desenvolvimento humano, com implicações distintas para a atividade da 
epidemiologia. Com o propósito de estabelecer uma tipologia básica, podería­
mos distinguir duas tendências gerais, que, mais do que se encontrarem qui­
micamente puras em nossas sociedades - sempre caracterizadas por sua com­
plexidade e sincretismo -, estão presentes em forma desigual e combinada, 
mas respondendo a interesses sociais diferentes: a) modelos de desenvolvimen­
to humano que partem de uma aceitação das condições estruturais, das regras 
do jogo e das concepções da sociedade capitalista, quer para modernizá-las e 
aprofundá-las, quer para imaginar a possibilidade de um capitalismo social 
ou benigno; b) modelos pensados a partir de uma perspectiva emancipadora, 
que se projeta, já como uma subversão das bases do poder - incluindo as formas 
de alta concentração da propriedade que sustentam o poder econômico -, de tal 
maneira que se possa concluir o projeto inacabado da modernidade, ou seja, 
como superação dessas bases, mediante a entrada numa era de libertação (pós- 
moderna?) em que desapareçam os componentes substantivos da modernidade 
capitalista (predomínio da razão científica e do pensamento iluminista; idéia 
de progresso e de acumulação ascendente; uniculturalismo; imposição de 
domínio sobre a natureza).
‘Os modelos de desenvolvimento humano do primeiro grupo’, que se ins­
crevem numa defesa do sistema capitalista ou buscam sua reforma ou suavi- 
zação, assumem quatro posturas fundamentais:
• As que denominaremos de 'neoliberais' impulsionam a concentração 
monopolista, como elemento de vigor e força competitiva; propugnam 
pela desregulamentação completa e pela flexibilização da vida social, 
para que o mercado opere em sua plena capacidade como distribuidor;propugnam pela legalização de toda a informalidade, presumindo a 
pobreza como inevitável e merecedora de paliativos focalizados - como
178
os subsídios à demanda de serviços ou os abonos de saúde ou educa­
ção para os pobres paliativos estes que, de qualquer modo, são 
temporais, cobrem apenas níveis básicos de sobrevivência e recaem 
sobre os ombros dos consumidores médios e dos setores assalariados, 
mas não sobre os das empresas (Valenzuela, 1991).
° Os modelos 'empresariais modernos' que concentram o desenvolvi­
mento em torno de condições facilitadoras do avanço moderno das 
pequenas, médias e grandes empresas, individuais ou associadas 
em cooperativas, e até de empreendimentos individuais ou familia­
res, como unidades competitivas formalmente constituídas e ajusta­
das a parâmetros modernos de gestão, os quais são apoiados ou 
regulados por programas de Estado (Coraggio, 1998).
° Os modelos pensados 'em torno do Estado' ou das políticas institucio­
nais. Nesse grupo podemos destacar os modelos de 'gestão social ou 
neokeynesianos', centrados na reengenharia do Estado, mediante 
paradigmas de gestão de alta eficiência, que outorgam importância - 
pelo menos teórica - à gestão da frente social como elemento de 
governabilidade, mas incorporando princípios empresariais. Há tam­
bém uma variante que poderíamos designar de ‘programa de desen­
volvimento humano do PNUD', que concentra o interesse na modifi­
cação pontual de alguns indicadores de acesso ao consumo básico 
educativo e de saúde, bem como de renda, que são perfeitamente 
compatíveis com as políticas de uma focalização social desvincula­
da da economia (Breilh et al., 1997; Coraggio, 1999). Em certas oca­
siões, a concessão de subsídios à demanda, que faz parte de alguns 
dos modelos anteriores, pode, por sua vez, destacar-se como mode­
lo, e é conhecida como 'renda cidadã’, a qual pressupõe um reco­
nhecimento dos chamados direitos de cidadania como caminho para 
aumentar a igualdade, desvinculando a renda do trabalho ou da 
produção de bens e serviços e garantindo acesso a uma cesta bási­
ca pré-fixada, questão esta que, apesar de universal, pressupõe uma 
contradição com o mercado global, que penaliza as sociedades que 
reduzem a renda em decorrência da redistribuição (Coraggio, 1999).
• Os modelos de ‘economia privada coletiva' e também o do ‘libera­
lismo social’ (Sen, 2000) e o do ‘desenvolvimento em escala huma­
na’, os quais, por seu interesse para a construção de uma contra- 
alternativa emancipadora, analisaremos mais detidamente. Esses 
modelos enfocam, em especial, o que é possível fazer a partir da 
•sociedade civil', e reforçam estratégias destinadas a fortalecer a 
sociedade privada, o mercado local e nacional e um Estado mais 
democrático, que acompanhe esses processos, os interesses empre­
sariais e de análise de custo/benefício.
179
Trata-se de um conjunto de propostas que estabelecem uma ruptura parcial 
com a dominação do produtivismo e das políticas sociais que o secundam, e 
que se mostram favoráveis a teses redistributivas e humanas, embora não 
deixem de enraizar a análise na estrutura de poder; poderíamos chamá-las de 
‘modelos de transição’.
Nesse grupo se incluem as propostas de ‘economia privada coletiva’, que 
articulam trabalhos independentes ligados ao mercado, mas potencializados 
por relações cooperativas e, em alguns casos, por vínculos solidários de raiz 
cultural ou religiosa, ou por movimentos de reivindicação específica, como os 
étnicos ou os de gênero. Essas propostas incluem, em primeiro lugar, os mode­
los de ‘economia coletivista’, tais como os sistemas cooperativos ou mutuados 
solidários, sem fins lucrativos, orientados para a reprodução e a melhoria de 
seus associados. Ocasionalmente, eles assumem a forma de redes de microem- 
presas locais, orientadas para a produção ou a comercialização, o que lhes 
facilita o acesso ao crédito e à tecnologia. Uma variante próxima é a das ‘em­
presas comunitárias’, as quais, diferentemente das anteriores, centram sua 
ação na comunidade ampliada, e não apenas nos associados, orientando-se 
para o benefício comunitário (aqui se incluem as associações de produção 
artesanal, as redes de permuta e as feiras de consumo popular). Também se 
destacam nesse grupo as experiências de ‘economia solidária’, muito ligadas à 
doutrina da opção cristã pelos pobres, e que vão além do sustento meramente 
econômico e se abrem para o trabalho voluntário e as doações, cuja validade é 
estabelecida em termos éticos. E, por último, faz parte dessa vertente o modelo 
da ‘empresa social’, que agrupa setores especiais e desprotegidos para lhes 
dar uma coesão produtiva, questionando o assistencialismo e visando não 
apenas à produção de mercadorias, mas também a um valor social agregado, 
sob a forma de comportamentos e instituições alternativos; para esse modelo, 
o mercado não é alicnante nem excludente, mas sim uma intersecção entre a 
empresa e o mercado, no que tange à assistência social (Coraggio, 1999).
Muitas das variações anteriormente descritas foram concebidas a partir 
da conflituosa década de 1970 - período estremecido por movimentos traba­
lhistas e estudantis e por um intenso debate de alternativas - e foram influen­
ciadas tanto pelo pensamento socialista da época quanto pelo chamado ‘socia­
lismo liberal’, que desde então já acumulou avanços importantes no campo da 
ciência econômica, entre outros assuntos, em torno do questionamento do cres­
cimento econômico como critério central e medida do desenvolvimento social. 
Começou-se a questionar a ‘ditadura do PIB’, como indicador onipresente e 
profusamente usado pelas entidades internacionais para formular suas estatís­
ticas da pobreza. Esta última corrente teve em seu centro a doutrina da ‘liber­
dade individual como compromisso social’, de Amartya Sen, inspirada no prin­
cípio ético da liberdade individual, como um valor central dotado de uma
180
dimensão positiva (a liberdade de fazer algo) - na qual o importante, acima de 
tudo, é a liberdade de preferência ou de escolha - e de uma dimensão negativa 
(o libertar-se de algo). O resgate da liberdade individual é fundamental para 
essa doutrina, visto que uma de suas metas primordiais é a superação das 
teses clássicas do utilitarismo (elaborado por Jeremy Bentham e desenvolvido 
por John Stuart Mill), para o qual o importante é obter a 'felicidade máxima do 
maior número de pessoas', alcançar o prazer ou bem-estar ('utilidade'), recha­
çar a dor ou a infelicidade e realizar o chamado ‘ótimo de Pareto’, que procla­
ma como estado ideal a situação em que é impossível aumentar a utilidade de 
um indivíduo sem diminuir a de outro, meta esta a que se chega com a preci­
são do 'cálculo de utilidades'.38
A 'teoria da liberdade como compromisso social’ supera a racionalidade 
fria do crescimento econômico e da disponibilidade de renda, e incorpora as 
dimensões afetivas, morais e culturais que determinam a capacidade de as pes­
soas funcionarem e procurarem fazer com que suas escolhas maximizem as 
utilidades (Sen, 1970, 1982, 1985). No caminho de sua construção teórica, o 
autor deparou, em primeiro lugar, com o problema de como definir a felicidade 
e o bem-estar, e, em segundo, com a necessidade de superar o utilitarismo 
clássico, unicamente preocupado com a soma das utilidades, mas não com 
sua distribuição desigual na sociedade. Para resolver esses dilemas, adotou a 
teoria da justiça de John Rawls39 e afirmou que a questão é distribuir de forma 
eqüitativa não apenas a renda e os recursos, mas também as capacidades e 
funções humanas fundamentais, ou seja, a capacidade de viver uma vida dig­
na e sensata, mais do que de acumular bens (Saint-Upéry, 2000).
Em suma, o modelo de Sen desvia a atenção dos bens e recursos primários 
para as capacidades e liberdades, com o que o autor pretende desatar o nó da 
estreita ótica da desigualdade como diferença de recursos e possibilidades de 
acesso, a fim de considerá-la como resultado de outrotipo de determinantes 
(classe, gênero, capacidade física e até localização geográfica); para ele, por­
tanto, a liberdade individual é um compromisso social. Trata-se de um enfoque 
que sem dúvida afeta as formas convencionais de medir a pobreza, que com 
isso deixam de se reduzir a indicadores de baixa renda e passam a incluir
38 Vista por essa óptica, entretanto, uma sociedade de opulentos e miseráveis pode encontrar-se 
no 'ótimo de Pareto', porque é impossível melhorar a vida dos miseráveis sem prejudicar os 
interesses materiais dos ricos.
39 John Rawls afirma que a questão é distribuir eqüitativamente o que ele chama de 'bens 
primários', cuja distribuição seria norteada por dois princípios básicos de justiça: todas as 
pessoas têm os mesmos direitos, num esquema de direitos e liberdades fundamentais, e o 
mesmo esquema é válido para todas; além disso, as desigualdades sociais só se justificam nos 
cargos mais altos, acessíveis a todos com igualdade de oportunidades, mas em posições a 
partir das quais se deve oferecer o máximo de benefício aos menos privilegiados.
181
termos que caracterizam a insuficiência de liberdade, incompatível com uma 
existência satisfatória, e demonstram uma carência de capacidade (Sen, 
2000). Dessa maneira, resgata-se a importância de reconhecer como aspec­
to-chave do nível de vida a faculdade de transformar a renda e os bens em 
capacidade e liberdade.
O neo-utilitarismo de Sen desdobra-se, portanto, em três níveis de análise: 
o das capacidades, o dos modos de funcionamento e o dos bens. O meio físico 
e social, assim como as características pessoais, determinam as caracte­
rísticas materiais e os bens necessários para garantir a capacidade de funci­
onamento das pessoas, o que, por fim, e havendo um certo estado psíquico, 
determina a utilidade que elas alcançam. Em outras palavras, o que faz esse 
modelo neo-utilitário é inserir a mediação das capacidades, pois o modelo 
neoclássico simplesmente relaciona (no caso típico de um consumidor) a liber­
dade de escolha e o funcionamento (consumo) da pessoa num certo estado 
psíquico (preferências), situando como única limitação os recursos disponí­
veis, sem levar em conta as capacidades (Desai, 1994).
Sen insiste no fato de que a faculdade diferenciada das pessoas de trans­
formar a renda e os bens em capacidade e liberdade depende de condições 
sociais que as políticas devem modificar, e assinala que, por exemplo, ‘a 
situação da saúde pública e do ambiente epidemiológico pode ter uma influên­
cia profunda na relação entre a renda pessoal, por um lado, e a liberdade de 
desfrutar de boa saúde e vida longa, por outro, pois alguns dos países mais 
ricos, como os Estados Unidos, são muito atrasados nesse aspecto, e a liber­
dade positiva de viver sem uma mortalidade prematura é um compromisso 
da sociedade (Sen, 2000).
Outra proposta transicional é o ‘modelo de desenvolvimento em escala 
humana' (Max-Neef, Elizalde & Hopenhaydn, 1986; Max-Neef, 1999), uma ofen­
siva interessante contra o produtivismo e o instrumentalismo, embora não 
corte as amarras no que concerne a sua base estrutural - perspectiva muito 
próxima da de Sen. Ela propõe uma economia humanista que, segundo seus 
autores, implica, fundamentalmente, conseguir a transformação da pessoa- 
objeto em pessoa-sujeito, e a correspondente substituição dos ‘indicadores de 
crescimento quantitativo dos objetos' por ‘indicadores do crescimento quali­
tativo dos sujeitos'. Esse modelo identifica a qualidade de vida como a possibi­
lidade de as pessoas satisfazerem adequadamente seu sistema de necessidades, 
o qual, em essência, seria idêntico em todas as sociedades, diferindo apenas 
quanto aos elementos de satisfação correspondentes. Aqui, a chave está em 
decifrar a dialética entre necessidades, elementos de satisfação e bens econô­
micos, mediante uma concepção da necessidade e da relação necessidade/ 
elemento de satisfação cujos aspectos insubsistentes já foram analisados numa 
seção anterior, e que os autores expõem na forma de uma ‘matriz de necessi­
dades e elementos de satisfação’.
182
As teorias que qualificamos de transicionais partem, em suma, de um 
postulado básico que centra o desenvolvimento nas pessoas, e é justamente aí 
que se enraízam a força e, ao mesmo tempo, a debilidade de sua proposta. Elas 
situam o cerne de seu interesse na dimensão humana e na proteção integral da 
qualidade de vida, e contestam que esta possa ser medida por uma divisão per 
capita do produto interno ou peia receita/despesa familiar média; isso é muito 
bom, mas elas isolam sua visão no individual, com o que cortam pela raiz a 
possibilidade de uma emancipação humana e social verdadeira.
MODELOS EMANCIPADORES PARA 0 DESENVOLVIMENTO HUMANO
A chave unificadora dos anseios de nossos setores, nós que defendemos 
o popular com um sentido democrático, é a 'vontade de emancipação', que 
significa a busca organizada e solidária de rompimento com todos os víncu­
los materiais, políticos e culturais que criaram a concentração monopolista 
do poder na sociedade capitalista, bem como as bases para a propagação das 
epidemias antigas e modernas. A luta pela emancipação unifica todas as 
utopias construídas para libertar o ser humano da exploração econômica, da 
dominação política, do cerceamento da cultura e da subjetividade e das rela­
ções ecológicas anti-humanas, tudo isso para possibilitar a libertação da 
vida e do pensamento, a vigência do bem comum e a construção de socieda­
des mais saudáveis.
Os 'modelos de desenvolvimento humano do segundo grupo', que osten­
tam uma intencionalidade emancipadora e uma independência do sistema ca­
pitalista, podem decompor-se em três tipos de posturas principais: a) os que 
propõem a abertura de uma economia popular paralela ao sistema econômico 
capitalista; b) os modelos que propugnam pela superação radical das bases do 
poder econômico reprodutoras da ineqüidade; c) os que propõem a superação 
ou a libertação (pós-moderna?) não apenas das limitações da estrutura econô­
mica do capitalismo, porém a superação dos fundamentos filosóficos, racio­
nais e estruturais da era capitalista moderna.
As propostas desse tipo que hoje circulam nos partidos de esquerda e nos 
movimentos sociais não se ajustam com pureza à nomenclatura que aqui propo­
mos com fins analíticos, mas se apoiam com maior ênfase nas linhas citadas.
Ao primeiro tipo de modelo daremos o nome de ‘economia popular parale­
la', uma vez que afirma a necessidade de se iniciar a construção de uma econo­
mia popular e de fazer essa construção a partir das bases da nova sociedade. 
Dentro dessa linha, destaca-se a proposta de ‘autocentração ou acumulação po­
pular autocentrada e descentralizada' que foi defendida para as sociedades 
andinas (Schuldt, 1995). Esse modelo aposta num processo de acumulação po­
pular geográfica e politicamente descentralizado, calcado num projeto político
183
nacional de base regional que incorpore as massas heterogêneas no processo 
de tomada de decisões - nos níveis local, regional e nacional -, à medida que 
se configurem e se reforcem as bases econômicas dos segmentos populares, 
num processo de acumulação orientado para atender às ‘necessidades básicas’ 
e que, para isso, redefina os padrões de produção e consumo. Para atingir esse 
objetivo, propõe-se uma dinâmica de produção baseada na interação acordada 
de atividades ‘de’ e ‘para’ o mercado interno e no encadeamento de produtores 
de bens de massa simples e meios de produção que estejam a serviço deles, 
com base num pluralismo tecnológico que desloque para um lugar secundário 
a produção de bens e serviços de luxo. O eixo, portanto, é o aumento de uma 
capacidade e habilidade ‘pessoais’ que reforcem as comunidades e os sujeitos 
sociais (locais), caminhando, a partir daí, para o controle da acumulação 
nacional - um controle local da distribuição do excedente, do mercado, dos 
recursos naturais e das tecnologias. Trata-se de um modelo de desenvolvi­
mento que tem a virtudede ser formulado como uma oposição à reprodução 
dependente, centrada nas exportações e nos bens de consumo de luxo, e cuja 
autocentração busca o desenvolvimento humano enfocado nas necessidades 
e no aumento dos direitos, capacidades e realizações próprios, sobretudo de 
comunidades locais e pequenos grupos, cujas identidades e sujeitos sociais 
se construiriam, com isso, ‘de baixo para cima’, aproveitando as experiências, 
os saberes e a ‘racionalidade oculta’ que seriam indispensáveis para se reto­
mar o controle da acumulação. Tudo isso, é claro, com o apoio de um Estado 
nacional democrático, que contribua, a curto prazo, para o desenvolvimen­
to dessa força produtiva doméstica e do mercado interno, e trabalhe, a lon­
go prazo, em prol do redirecionamento do modelo exportador primário, 
sem desperdiçar os ‘nichos rentáveis’ do mercado mundial (Acosta, 1998; 
Acosta & Schuldt, 1999).
Também faz parte dessa linha o modelo de ‘economia popular’ que se 
autodefine como ‘não economicista’, e que desloca seu foco de interesse da 
acumulação para a reprodução ampliada da vida humana, subordinando a 
acumulação à satisfação das necessidades básicas de todos, para colocar a 
produção como meio e a reprodução como sentido, o que equivale, para seu 
autor, a situar os equilíbrios psicossociais acima dos equilíbrios 
macroeconômicos (Coraggio, 1998, 1999). A estratégia proposta para alcançar 
seus objetivos é a construção de um subsistema de economia popular centrado 
nas unidades domésticas de trabalhadores do campo e da cidade, formais e 
informais, braçais e intelectuais, nos moldes de um programa aberto que não 
se encerra na vinculação nem na desvinculação da economia capitalista domi­
nante. A chave desse modelo estaria em dar um salto para alcançar a solidari­
edade orgânica entre os diferentes elementos e atividades populares, o que 
pressupõe fortalecer a interdependência entre as unidades domésticas e as comu­
nidades através de um intercâmbio reiterado, mediado pelo mercado ou por
184
relações diretamente sociais. Ele escolhe a unidade doméstica porque seu 
objetivo último é uma reprodução ampliada da vida que não se reduza aos 
níveis básicos da necessidade, mas seja uma busca de qualidade na vida sem 
limites intrínsecos, e também porque o recurso principal dessa unidade é o 
fundo de trabalho de seus membros.
É evidente a influência dos modelos que antes chamamos de transicionais 
nessas duas últimas propostas, que buscam uma guinada emancipadora e 
democrática para a economia.
Entretanto, o traço que mais preocupa é que talvez seja muito arriscado 
propor a possibilidade de uma separação viável entre a economia empresarial 
monopolista, a economia pública e a economia popular, e construir um processo 
de reforma profunda, com uma opção emancipatória, quando continuam intac­
tos os elementos-chave da estrutura de poder e hegemonia, e quando se parece 
querer deixar a construção política entregue a esse tipo de construção espontâ­
nea, ‘de baixo para cima’, de redes comunitárias e cidadãos democráticos.
Daí a necessidade de dar mais alguns passos à frente e propor um ‘modelo 
de emancipação humana popular' (Breilh, 1995a, 1999b; Hidalgo, 2000) que 
articule algumas das contribuições anteriormente delineadas, porém numa vi­
são integradora que as insira num processo de libertação econômica do siste­
ma de propriedade monopolista; que integre na construção de baixo para cima 
um poder popular multicultural, veiculado num bloco popular contra-hegemô- 
nico, a fim de transformar não só a estrutura do poder econômico, mas tam­
bém o sistema de poder político, desmantelando o Estado atual para dissolver 
o poder vigente e viabilizar o desenvolvimento da democracia; e que, por fim, 
integre o avanço do multiculturalismo e a incorporação de todos os saberes na 
edificação de uma nação em que caibam todos os projetos populares - tecendo 
uma trama de estreita comunicação entre esses projetos - gerados a partir da 
luta dos partidos e movimentos sociais, desde os movimentos étnicos e de 
gênero, mas institucionalizando os processos de descentralização profunda, 
de desburocratização e de dissolução de todas as estruturas clientelistas.
POSSIBILIDADES DA EPIDEMIOLOGIA NO MODELO HUMANO POPULAR
Ao longo deste livro, questionamos por vários ângulos o projeto hegemô­
nico de reforma da saúde. Partindo de uma perspectiva realista, mas cheia de 
otimismo, cremos na possibilidade histórica de erigir um projeto alternativo 
que seja a confluência de todas as ações contra-hegemônicas geradas a partir 
do bloco popular. A verdade é que muitos posicionamentos que consideramos 
errados na saúde coletiva não são, necessariamente, produto de um retrocesso 
consciente a posturas francamente conservadoras, nem tampouco, pior ainda, 
de um questionamento da idéia de defender uma construção alternativa da
185
saúde, mas resultam do cerco de hegemonia, persuasão e até chantagem, vez 
por outra, montado pelo BiM e seus apêndices institucionais, e apoiado no 
crescimento de ciências sociais neoconservadoras, que se multiplicam em pro­
gramas funcionalistas de pós-graduação que desarticulam qualquer análise 
referente às raízes estruturais dos problemas. Tudo isso reveste o discurso da 
reforma de uma terminologia aparentemente inovadora, mas impulsionadora 
de mudanças meramente formais, as quais, no caso das políticas de saúde 
traçadas pela reforma da Colômbia, por exemplo, só conseguiram elevar as 
contribuições, aumentar as exigências possibilitadoras do direito à saúde e 
elevar os limites etários para a concessão de pensões, ao mesmo tempo redu­
zindo os benefícios, de tal forma que agora as pessoas contribuem mais para 
receber menos (Redondo & Guzmán, 1999).
Temos de começar a chamar as coisas por seus nomes e a olhar o caminho 
da reforma com outros olhos, mais abertos e críticos, mais atentos às arestas 
e aos contrapesos que nos foram impostos pelo pensamento hegemônico. Deve­
mos inserir toda a análise no cenário atual dos países do mundo periférico e, 
dentro dessa linha, temos de voltar atrás e examinar as propostas da nova 
epidemiologia, sem perder a lembrança de nossa luta, mas reconhecendo que 
nosso paradigma enriqueceu-se notavelmente.
O trabalho epistemológico realizado permitiu-nos formular avanços im­
portantes e, nos anos mais recentes de maturidade do processo, de 
(re)construção teórica, começamos a compreender que ainda não estava cla­
ro o objeto da epidemiologia, e foi nessa linha que se propuseram reflexões 
de enorme transcendência. Creio que a pressão atual nos faz reconhecer que 
teremos não apenas de trabalhar na construção do objeto, mas de reformar 
profundamente o campo de ação; é também urgente ‘trabalharmos na cons­
trução do sujeito da epidemiologia’.
Tão sério é esse desafio de construção de uma nova subjetividade para 
os povos subordinados do mundo, que ele se tornou flagrante nos eventos 
cruciais que definiram seu futuro nos últimos anos: as mobilizações maciças 
de repúdio ao neoliberalismo que terminaram em revoltas contundentes - 
como no caso do Equador, em várias oportunidades, e no da Argentina, em 
nossos dias -, mas que, uma vez derrotados os governantes neoliberais e 
revogado seu mandato pela vontade geral, não resultaram em nada, ante a 
ausência de um projeto emancipatório compartilhado e unitário e de uma 
organização ou bloco revolucionário que desse continuidade ao impulso re­
novador das populações mobilizadas. Os mesmos grupos monopolistas que 
agrediram nossa qualidade de vida, mediante a exploração, a corrupção e a 
entrega de nossos recursos estratégicos, são os que voltaram habilmente 
a tomar as rédeas do poder.
Uma explicação completa e rigorosa dessa derrota ou esterilização da von­
tade popular ultrapassa as possibilidades deste trabalho; queremos apenas
186
destacar que, em qualquer análise dessa problemática, é preciso levar muito a 
sério um fato histórico que tem muito a ver com o tema da construção do 
sujeito coletivo:os ciclos de dominação e de ludíbrio da vontade popular são 
produto, em larga medida, de havermos esquecido ou rechaçado o pensamento 
revolucionário, de termos caído na armadilha que nos ofereceram, de relegar­
mos a riqueza das doutrinas emancipadoras, e de havermos acreditado no 
conto do vigário.
Na falta de uma ideologia revolucionária, e tendo permitido o desmantela­
mento e a desqualificação de nossas organizações e agremiações pelo poder, 
nossas populações ficaram aprisionadas na imobilidade, ou em mobilizações 
maciças sem bússola nem sustentabilidade. Foi isso que Gramsci quis impli­
car quando analisou, em seus Cadernos, o papel conservador da chamada 
sociedade civil, quando ela funciona como um conjunto de fortificações da 
opinião pública ligadas ao Estado dominante, ou manipuladas por seus agen­
tes. Foi também o que quis expressar Agustín Cueva, quando apontou o exem­
plo da sociedade civil dos Estados Unidos como a mais mobilizada e, ao mes­
mo tempo, a mais conservadora. Portanto, a história nos está apresentando a 
conta por termos arquivado as idéias de transformação profunda da sociedade 
e a crítica aos fundamentos estruturais da ineqüidade que, a partir do século 
XIX, foram forjadas nos dois lados do Atlântico, tanto no sul quanto no norte, 
e que relegamos ao esquecimento, justificando essa imensa operação autodes- 
trutiva pelo fracasso do socialismo real europeu e pelos componentes episte- 
mológicos superáveis de doutrinas como o marxismo, que se equivocou em 
muitos assuntos, mas acertou onde realmente importa.
Nas ciências sociais e na epidemiologia, essa orfandade de ideais utópicos 
verdadeiramente emancipadores se fez sentir, e nos forçou a uma etapa confu­
sa, ziguezagueante ou até regressiva do pensamento, em muitos casos, a qual 
se prestou às acomodações e ao servilismo intelectuais.
É por esse motivo que sustentamos enfaticamente que a consolidação de 
um projeto humanista popular - do qual tanto depende uma epidemiologia 
crítica - passa pela recuperação seletiva das melhores idéias das doutrinas 
emancipadoras, assim como pela recuperação, também seletiva, das melhores 
idéias em prol da humanização da sociedade geradas a partir dos espaços não 
acadêmicos e dos saberes dos outros. Esse processo de recuperação certamen­
te não será fruto de um grupo de iluminados, nem tampouco de qualquer tipo 
de elite. Seguindo Gramsci, cremos que esse processo será fruto do encontro 
das massas organizadas de postura renovadora e dos intelectuais orgânicos 
com os interesses estratégicos desses povos. E o que é válido para a dimensão 
geral da construção do projeto neo-humanista popular é igualmente válido 
para os espaços especializados de construção, como a epidemiologia e seu 
objeto/conceito/campo (Gramsci, 2000).
187
Quanto à recuperação do saber dos outros, há muito trabalho a fazer em 
nossa disciplina. Se formos coerentes com o desafio do segundo corte episte- 
mológico do reencontro da ciência com o senso comum e os outros saberes 
(Santos, 1995), o pensamento epidemiológico deverá incorporar uma parcela 
maior desses 'outros saberes', e não se centrar exclusivamente na linha acadê­
mica ‘ocidental’, por mais importante que ela possa ser. Só assim a epidemio- 
logia poderá recuperar sua capacidade de também contribuir para a crítica dos 
modelos de gestão, arejando o campo de análise através do rompimento da 
camisa-de-força do enfoque do risco.
É em relação a tudo isso que ganha um novo sentido o trabalho de renova­
ção teórica, metodológica e técnica da epidemiologia, ao ser articulado com 
um modelo integrado de desenvolvimento humano e ao incorporar toda a ri­
queza da atual mudança de paradigmas e da assimilação do pensamento hu­
mano com um sentido multicultural. Propõe-se aqui a articulação conceituai e 
prática do modelo de desenvolvimento com o modelo de intervenção e investi­
gação na epidemiologia.
No campo sumamente condicionado do que é feito nas instituições oficiais 
sob a égide da chamada ‘epidemiologia nos serviços’, há muito mais a fazer do 
que apenas desenvolver uma ‘vigilância epidemiológica’ rotineira e burocratiza­
da, pois, se a idéia de saúde coletiva é mais do que o somatório problemático 
dos casos atendidos ou ‘de risco’, então, ao abrirmos o conceito de serviço 
para a íntegra do desenvolvimento humano, encontramos diversos campos de 
aplicação no planejamento participativo das ações em todos os campos de de­
senvolvimento da necessidade social de saúde que descrevemos antes - consti­
tuindo-se ele numa ferramenta de planejamento estratégico, de monitoramento 
participativo dos processos críticos da saúde, de concepção de mecanismos de 
controle e avaliação social e de reconstrução dos sistemas de informação, a 
fim de superar a desvirtuação do conhecimento por informações mal cons­
truídas, embora amplamente divulgadas, passo este que é necessário para 
pensarmos no desenvolvimento humano e da epidemiologia a partir de uma 
perspectiva emancipadora (Breilh, 1999e).
O cenário histórico da América Latina facilitou um reagrupamento das 
forças de resistência dos povos e determinou a conseqüente recomposição 
de sua luta. Agora fitamos o desafio de reagrupar democraticamente o ta­
lento que existe em nossos países no campo da saúde coletiva, resgatando 
a memória do movimento que começou a ser desmantelado devido ao terná­
rio do BM, e recuperando criticamente a riqueza do pensamento que come­
çou a ser seqüestrado e desconstruído pelo neofuncionalismo da saúde pú­
blica internacional e oficial.
A segurança humana integral, o problema da igualdade necessária e trí­
plice de acesso e participação - social, étnica e de gênero -, a conquista do 
direito universal a serviços e programas da mais alta qualidade, o estímulo
188
urgente a um processo de humanização e proteção da vida em todas as suas 
dimensões - de trabalho, de consumo, de reprodução cultural e subjetiva, de 
promoção e defesa de uma ecologia saudável e de implementação de uma 
construção multicultural das formas e sentidos da organização -, todos es­
ses são pontos nodais da nova política pela qual lutou o movimento da medi­
cina social latino-americana desde seu nascimento, na década de 1970, e 
desde seu aparecimento formal no Congresso de Ouro Preto, em 1985, e que 
agora, graças à alquimia de um punhado de tecnocratas submissos, apaga­
ram-se das agendas, ou foram nelas transformados em simples elementos de 
uma confusa retórica neofuncionalista.
Com base na perspectiva social que inspira nossa proposta, é importante 
resgatar essa linha emancipadora e levar ao desenvolvimento de um projeto 
de reforma alternativo, que já não se encarna nas instâncias que o apoiaram 
nas duas décadas anteriores, mas se expressa na agenda ampliada do debate 
social das assembléias e congressos dos povos, que têm formulado saídas 
verdadeiramente inéditas para a armadilha em que caiu a América Latina. 
Fazê-lo significa instituir uma separação entre a abordagem da reforma e a 
lógica funcional e regressiva que se apoderou dos foros e centros de estudo 
hegemonizados pela doutrina do BM, bem como de todas as agências de coo­
peração que acabaram por se submeter à visão deste. Em outras palavras, é 
preciso arejar os espaços de debate da reforma e revelar a lógica que está por 
trás do súbito interesse institucional por esse tema, o qual, noutras épocas, 
foi marginalizado do ideário oficial e debatido unicamente nas publicações 
da literatura contra-hegemónica.
189
7
Da Epidemiologia Linear 
à Epidemiologia Dialética
É patente a atual notoriedade do conceito de ‘risco', como categoria a ser 
usada na descrição científica da saúde, não só porque os mais destacados 
epidemiologistas críticos da América Latina insistem na utilização dessa cate­
goria como elemento importante de seus modelos interpretativos, mas também 
pelo fato de que livros recentes empregam-na para caracterizar a sociedade em 
seu conjunto como ‘sociedade de risco’ (Beck, 1998), querendo com issodizer 
‘sociedade de destruição generalizada'.
Nessas circunstâncias, a verdade é que não fica muito claro se o desenvol­
vimento histórico do conjunto de concepções e operações que cercam a catego­
ria de ‘risco’ constitui apenas um ‘modelo de pensamento epidemiológico sobre 
o risco', ou se, ao contrário, dado o seu grau de expansão e influência, conver­
teu-se numa grande ‘matriz disciplinar’ da epidemiologia, delimitando o cam­
po e abarcando todo o sistema de valores, crenças, construções simbólicas e 
modelos que ocorrem em nossa ciência. Para os objetivos deste livro, presumi­
remos esta segunda acepção e a designaremos por ‘paradigma do risco’, enten- 
dendo-se que um paradigma menor pode incluir-se noutro mais amplo, como 
é, neste caso, o paradigma da visão causal positivista.
A epidemiologia crítica latino-americana vem trabalhando desde a década 
passada na análise desse 'paradigma do risco’, estudando o surgimento e a 
transformação da categoria ‘risco’ como eixo principal do discurso da epide­
miologia em sua relação com as práticas médico-sanitárias.
Uma vez reconhecida a emergência desse paradigma como um traço ca­
racterístico da consolidação da epidemiologia em seu conjunto (Almeida-Filho, 
1992c), voltou-se o olhar para a análise da história das idéias epidemiológi- 
cas, buscando uma interpretação da origem do citado paradigma e de suas 
acepções atuais. Já anteriormente, Rosen havia explicado, em sua clássica
191
História da Saúde Pública, de que maneira primou, nos séculos XVI e XVII, a 
teoria da ‘constituição epidêmica', que deu primazia à constelação de estados 
climáticos e locais ligados à morbidez da época, e também a teoria do contá­
gio, desde então referida à idéia difusa das ‘sementes químicas' ou ‘leveduras’ 
que se supunha provocarem a doença (Rosen, 1994). Mas o desenvolvimento 
da observação científica possibilitou a constituição disciplinar da epidemiolo- 
gia, mediante um processo que Ayres (1997) sintetizou em seu valioso ensaio.
O período constitutivo da epidemiologia ocorreu entre 1872, com o nasci­
mento da Associação Norte-americana de Saúde Pública e o início dos anos da 
Grande Depressão, em 1929. O nascimento da American Public Health Associa­
tion foi produto da influência do pensamento humanitário, como reação ao 
projeto socialmente despreocupado do liberalismo industrial que se seguiu à 
Guerra da Secessão. Nesse período, o sanitarismo norte-americano moveu-se 
entre três correntes.- ‘ambientalista’, articulada com a Universidade de Harvard 
e a preocupação de cientistas, como William Sedgwick, com o saneamento do 
‘meio externo'; ‘sociopoiítica’, vinculada à Universidade de Columbia, a trabalhos 
como os de Winslow e às propostas de reforma legislativa e mudança dos 
modos de vida; e uma corrente ‘biomédica’, ligada à Universidade Johns Hopkins 
e à influência de cientistas como o biomédico Henry Welch, inspirado na higiene 
científica alemã, que propugnava a ênfase biológico-experimental, a aplicação 
da biometria e os modelos estatísticos mais rigorosos, ao que vieram somar-se 
a corrente pedagógica do flexnerismo e a influência da Fundação Rockefeller, 
que resultou na criação da Escola de Higiene e Saúde Pública. Esse ‘modelo 
Hopkins’ acabou por se impor. O grande modelo inspirador dessa corrente foi o 
alemão Pettenkofer, que reivindicava a higiene como ciência experimental e 
usava o conceito de ‘meio’ como ferramenta para pensar sobre o ‘contágio’.
Pettenkofer ligou a economia físico-química do organismo individual à 
economia do meio. Sua posição situou-se entre os extremos do contagionismo 
e do anticontagionismo, sustentando que, para que ocorresse o produto ‘Z’ de 
um veneno como o da cólera, era indispensável que se juntassem o fator ‘x’ do 
germe e o chamado fator *y’, que seria o substrato de tempo e espaço capaz de 
conferir aos agentes sua manifestação epidêmica. Winslow modificou essa
fórmula, enunciando-a como uma relação: A(alta2.... ax) - B(b,,b2.....bx) = C,
onde A é o poder do germe; a,,a2....ax são os fatores variados que aumentam a
transmissibilidade; e b,,b2.....bx são os diversos fatores que aumentam a
resistência do hospedeiro. Nessa etapa, os procedimentos matemáticos tiveram 
um lugar subalterno. Com o tempo, entretanto, a ênfase deslocou-se para ‘x’ e 
se afastou do fator *y’ e das preocupações com o ‘meio’. O conceito de ‘risco’ foi 
substituindo o de meio, embora, nessa década de 1920, ainda ocupasse um 
lugar marginal. Na referida etapa, a idéia de risco estava ligada às de ‘ameaça’ 
ou ‘perigo’, mas não às de probabilidade e acaso; naquele momento, não 
interessava a idéia de gradação. Esteve implícito, nessa fase, o resgate do
192
conceito sydenhamiano de ‘constituição epidêmica’, embora o conceito de 
risco desempenhasse um papel periférico e de caráter basicamente descritivo.
Surgiu em seguida, segundo Ayres, a etapa da ‘epidemiologia da expo­
sição’ (1930-1945). O período de depressão iniciado em 1929 esfacelou o 
sonho norte-americano e foi de crise social (a época do ‘New Deal’), claman­
do-se então pela centralização e pela intervenção do Estado. O conceito de 
‘exposição’ apareceu nas décadas de 1930 e 1940, e o conceito de risco 
adquiriu para ele um destaque maior e uma dimensão analítica: o risco, 
nesse caso. referia-se às condições de susceptibilidade individual que de­
terminavam o comportamento epidêmico das doenças infecciosas; o risco já 
não qualificava uma condição populacional, mas indicava uma relação entre 
fenômenos individuais e coletivos.
Veio finalmente a terceira etapa da epidemiologia do risco (1946-1965). Só 
depois da Segunda Guerra Mundial - etapa do preventivismo do pós-guerra - é 
que o conceito de risco pôde alcançar a plenitude de seu desenvolvimento e 
uma centralidade plena na disciplina, como parte de uma concepção tecnicista 
e de quantificação. Passou a designar as probabilidades de susceptibilidade 
atribuíveis a qualquer indivíduo de um grupo particularizado, de acordo com 
seu grau de exposição a agentes de interesse técnico ou científico.
Importantes saltos conceituais caracterizaram então as diferentes for­
mas de incorporação do conceito de risco na conformação da epidemiologia 
moderna. As práticas sanitárias do fim do século XVIII haviam facilitado os 
primeiros sistemas de classificação demográfica da morbidez, surgidos no 
alvorecer do capitalismo da Grande Indústria, época na qual foi despertado o 
interesse pela quantificação dos fenômenos ligados à força de trabalho e aos 
fenômenos socioeconômicos correlatos. Essa foi uma etapa em que a demo­
grafia e a econometria começaram a se articular com os inventários de mor- 
bidade/mortalidade e estabeleceram a relação dos fenômenos econômicos e 
sociais com os eventos do adoecimento e da morte. Depois, em meados do 
século XIX, quando os processos do âmbito público da vida passaram a ser 
vistos como um espaço de facilitação ‘extra-orgânico’, ou ‘meio externo’ - no 
qual ocorriam as causas dos fenômenos orgânicos do ‘meio interno’ -, aban­
donou-se o enfoque das relações gerais entre o biológico, o político e o econô­
mico, e o olhar da epidemiologia voltou-se para a ‘mecânica de meio interno/ 
meio externo’ para a qual Canguilhem havia chamado a atenção (Ayres, 1997).
Nesse momento, a idéia mais concreta e observável ou ‘visível' de ‘trans­
missão’ colocou-se no centro do saber epidemiológico, substituindo a vaga 
noção de contágio, referida a um medo impreciso e mais ligada aos sentidos do 
tato e do olfato (Czeresnia, 1996). E somente em meados do século XX é que se 
impôs a nova racionalidade do causalismo de base biológica, e então a idéia 
naturalista dos fenômenos epidêmicos foi substituída pela idéia probabilística 
da causalidade, traduzida na ‘idéia de risco’ (Almeida-Filho, 1989, 1992c).
193
A partir desse momento, surgiu o ‘paradigma do risco’, que identifica o 
possível com o provável, o populacional com o amostrai e o populacional com 
o individual. Inscreveram-se assim uma forma

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