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Material Complementar da Competência 1 Os penetras do burocratês Rachel Bonino A proliferação de manuais de redação do Executivo e do Legislativo vira tendência, mas a cada quatro anos novos governantes e parlamentares prolongam a linguagem rebuscada e arcaica dos documentos oficiais. O exemplo do memorando abaixo pode trincar os dentes de qualquer professor de redação oficial de preparatórios para concursos públicos. "Mui Digno Senhor Diretor X, Necessito com urgência urgentíssima que, através da sua assessoria, vossa excelência remeta para mim o relatório sobre o assunto W. Agradecemos e desejamos tudo de bom a todo o departamento, Diretor Y." O maior problema atual da surrada fórmula de escrita de documentos oficiais não parece ser apenas a derrapagem gramatical, nem a falta de objetividade, muito menos o excesso de arcaísmos ou a entrada, de penetra, da linguagem coloquial. É o caráter cíclico da coisa. De quatro em quatro anos, cada renovação do Congresso ou dos governos prolonga o uso de estilos burocráticos caducos, impedindo a evolução da escrita oficial brasileira. A tese, garantem os especialistas, encontra fundamento nos hábitos políticos e na tradição bacharelesca do país. Em 1º de fevereiro tomaram posse 236 novos deputados federais e 21 novos senadores. Com eles, passaram a circular pelo Congresso Nacional cerca de 9,5 mil novos funcionários, nomeados nos cargos comissionados de cada gabinete. O mesmo ocorreu nos 27 legislativos estaduais, e ocorrerá nas 5.554 Câmaras Municipais espalhadas pelo país em 2009, ano de início dos mandatos. Vindos de todos os cantos do país, esse batalhão de servidores, em sua maioria secretários oficiais, trazem para as repartições do Legislativo e do Executivo uma cultura que mistura o escrever empolado e o "politizado", o que não raro só dificulta a comunicação interna e externa. - A Câmara dos Deputados é eminentemente política, por isso é comum os parlamentares acharem que é importante fechar um ofício ou memorando de forma mais cativante; coisa que um 'atenciosamente' não costuma dar conta. É problema no Legislativo, que passa por uma troca constante de servidores a cada quatro anos, muito maior do que os outros poderes - analisa Jairo Brod, autor da coluna A prática da gramática, da Revista da Casa, publicação quinzenal da Câmara, que dá dicas e tira dúvidas de como escrever as papeladas oficiais. A cada legislatura, portanto, retoma-se a mesma hipercorreção burocrática, com o que os novos donos da voz parlamentar, mais realistas que o rei, acreditam fazer boa figura. É assim que também se vêem nas mais diversas repartições públicas os mais díspares padrões "oficiais" e é comum que um ofício simplesmente ganhe outro formato, a depender do braço do Estado. Mais de um manual Foi para evitar que a falta de padrão tornasse uma bagunça ou engessasse o dia-a-dia no Congresso que foi lançado, em 2004, o Manual de Redação Oficial da Câmara dos Deputados. As 420 páginas do documento - muito criticadas, aliás (ler quadro) - dão conta de regras gramaticais, como as de pontuação e concordâncias verbais, e também de todos os modelos e padrões dos documentos oficiais (memorando, ofício, ata, carta, ordem de serviço, parecer, portaria, relatório, entre outros). Mas o Manual da Câmara não foi a primeira iniciativa entre as instâncias públicas. Em 1972, o Ministério da Educação e Cultura publicou o título Normas sobre Correspondência, Comunicação e Atos Oficiais, de autoria de Cauby Souza. Dezenove anos depois, nova tentativa, agora de padronizar a linguagem de todos os poderes, mas somente obrigatória para o Executivo, foi lançada: o Manual da Presidência da República. Foi a pedido do então presidente Fernando Collor de Melo que uma nova comissão de servidores e professores de redação oficial se reuniu para estabelecer novas normas e fórmulas de simplificar o português dos memorandos oficiais. Isso em 1991. Em 2002, o catatau foi revisado e sua segunda edição foi lançada, com a novidade de a versão estar disponível na internet. A partir daí, o que se viu foi a proliferação de manuais nas mais diversas repartições públicas, numa tentativa de repetir a prática testada pelos grandes jornais do país, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, na década de 90. Para se ter idéia, hoje possuem normas próprias o TCU, o Superior Tribunal de Justiça e diversas assembléias legislativas e TCEs do país. Legado burocrático O boom de manuais gera uma polêmica: cada instância pública precisa mesmo de um manual próprio? - Cada novo diretor, presidente que chega a um novo cargo quer mostrar serviço, daí cria um manual para a sua área. Desde [Pero Vaz de] Caminha, nós, brasileiros, temos esse legado burocrático. Gostamos de uma norma - critica João Bosco de Medeiros, professor de Técnicas de Redação e Literatura Brasileira. Para Medeiros, que é autor do livro Correspondências (Atlas), mais eficiente que vários manuais é o uso de um só, que estabeleça um único padrão para os documentos administrativos em geral. E ponto. Para Marcílio França Castro, coordenador da área de redação da consultoria temática da assembléia legislativa de Minas Gerais, a tentativa de padronização dos documentos seria inútil e equivocada. - O manual de redação parlamentar é um livro feito a partir da experiência de uma casa legislativa, que é aberta e plural, o que tem efeitos do ponto de vista do trabalho com a linguagem, o discurso e o texto. Trata-se, evidentemente, de uma perspectiva distinta da do Poder Executivo, por exemplo - explica. A casa criou o seu próprio manual em 2005, com a participação do coordenador. - Há inúmeros manuais, da mesma maneira que existem muitas gramáticas - compara Antônio Oliveira Lima, autor do livro Manual de Redação Oficial - Teoria, Modelos e Exercícios (Campus). Tércia Juliana, professora de redação discursiva e oficial para concursos públicos do Pró-Cursos (DF), ameniza. - O ideal é um padrão único. A aparição de tantos manuais, porém, é uma demonstração de interesse em aprimorar e uniformizar a linguagem. A professora lembra de outro inconveniente em haver tantos manuais: os editais e concursos públicos sem a referência bibliográfica. Normalmente, as provas aplicadas possuem questões dissertativas ou de múltipla escolha sobre redação oficial. Professores e candidatos rebolam para estudar o manual específico de cada prova. Impessoalidade Apesar da briga com relação ao número de normas, numa coisa os especialistas concordam: os manuais são arma para dar impessoalidade e objetividade aos documentos oficiais. Antonio Oliveira Lima começou a dar aulas sobre redação oficial na década de 60. Naquela época, mais comum que ensinar todas as regras daquela repartição era indicar para o candidato que, depois que passasse no concurso, desse um pulo nos arquivos do departamento para copiar as fórmulas de documentos e repeti-las toda vez que necessário. A prática é abominada hoje em dia. - Esse vício de que o texto deve ser copiado existe desde a ditadura. O que o servidor precisa entender é que os textos dos documentos oficiais precisam ser efetivamente escritos, construídos, elaborados - explica Marcílio França Castro, da assembléia legislativa de Minas Gerais. No passado, a redação oficial era pessoal, escrita na primeira pessoa, e repleta de subjetividade. Era assim: "Venho informar que o MEU departamento está com problemas". Bem ao estilo "lá em casa". Hoje, o que os manuais apregoam é o texto na terceira pessoa e com informações claras: "Informo que o departamento está com problemas". A própria Câmara dos Deputados tem cursos mensais organizados pelo Centro de Formação e Treinamento da Câmara (Cefor) para tirar dúvidas e ensinar o modo mais objetivo e simples de montar um memorando ouparecer. Criado em 1990, o departamento é responsável, entre outras funções, por atualizar e aperfeiçoar o conhecimento dos servidores. Mas, apesar do levante pelo português oficial claro e objetivo, muito do que se escreve nos documentos administrativos das repartições brasileiras ainda lembra as atas do tempo do Império. Os atos normativos, por exemplo, ainda carregam o passado empolado: um decreto imperial assinado em 10 de dezembro de 1822 determina que se ponha, ao fim desses documentos, o número de anos transcorridos desde a Independência. E até hoje, todos os decretos e leis assinados pelo presidente da República seguem a determinação de D. Pedro I, acrescentando-se ainda os anos do período republicano. Em pleno ano de 2007, 186º da Independência e 119º da República. Coisas do Brasil. Fora de moda As fórmulas que caducaram e não deveriam mais fazer parte de uma redação oficial Até há bem pouco tempo, uma carta, um ofício ou um memorando tinham 26 possibilidades de fecho. Hoje, o luxo do final elegante é dado apenas a "atenciosamente" ou "respeitosamente". Entre os pronomes de tratamento, só dois devem ser empregados: "Vossa Excelência" e "Vossa Senhoria". Com o aparecimento dos manuais de redação oficial, muitas expressões e fórmulas caíram por terra para dar lugar a uma linguagem mais clara e objetiva, sem firulas. Veja alguns termos que caíram em desuso - ou que deveriam cair: "Digníssimo","muidigno" e "ilustríssimo" "Apresento a Vossa Senhoria os votos de estima e apreço" "Revoga a disposição em contrário" "Salvo melhor juízo" "Apraz-me" ou "Na honra" "Venho por meio desta..." Os deslizes do Manual da Câmara
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