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Análise das obras literárias da UFPR © Hexag Sistema de Ensino, 2018 Direitos desta edição: Hexag Sistema de Ensino, São Paulo, 2019 Todos os direitos reservados. Autores Lucas Limberti Murilo de Almeida Gonçalves Pércio Luis Ferreira Diretor geral Herlan Fellini Coordenador geral Raphael de Souza Motta Responsabilidade editorial, programação visual, revisão e pesquisa iconográfica Hexag Sistema de Ensino Diretor editorial Pedro Tadeu Batista Editoração eletrônica Arthur Tahan Miguel Torres Bruno Alves Oliveira Cruz Eder Carlos Bastos de Lima Felipe Lopes Santos Iago Kaveckis Letícia de Brito Matheus Franco da Silveira Raphael de Souza Motta Raphael Campos Silva Projeto gráfico e capa Raphael Campos Silva Foto da capa pixabay (http://pixabay.com) Impressão e acabamento PSP Digital Gráfica e Editora LTDA ISBN: 978-85-9542-114-1 Todas as citações de textos contidas neste livro didático estão de acordo com a legislação, tendo por fim único e exclusivo o ensino. Caso exista algum texto, a respeito do qual seja necessária a inclusão de informação adicional, ficamos à disposição para o contato pertinente. Do mesmo modo, fizemos todos os esforços para identificar e localizar os titulares dos direitos sobre as imagens publicadas e estamos à disposição para suprir eventual omissão de crédito em futuras edições. O material de publicidade e propaganda reproduzido nesta obra é usado apenas para fins didáticos, não representando qual- quer tipo de recomendação de produtos ou empresas por parte do(s) autor(es) e da editora. 2019 Todos os direitos reservados para Hexag Sistema de Ensino. Rua Luís Góis, 853 – Mirandópolis – São Paulo – SP CEP: 04043-300 Telefone: (11) 3259-5005 www.hexag.com.br contato@hexag.com.br Lista da UFPR surge com obras inusitadas Oito obras, do Nativismo épico ao contemporâneo na prova de Literatura A prova de Literatura da Universidade Federal do Paraná definiu oito obras literárias para a sua lista de leituras obrigatórias. As escolhas caminham desde o Nativismo épico – final do Arcadismo –, passam pelos românticos até chegarem na literatura que se produz atualmente. A prova cobrará alguns aspectos pouco tradicionais nos vestibu- lares, como é o caso do poema épico neoclássico e, até mesmo, alguns livros da contemporaneidade, que não têm a mesma tradição de antigos autores. Apesar de ter aspectos inusitados, a figura de Machado de Assis está nesta lista. Aliás, difícil é encontrar uma lista sequer de vestibulares na qual o “bruxo do Cosme Velho” não estará lá, resplandecendo sua genialidade. A obra de Machado de Assis escolhida para esta lista é Várias histórias, um conjunto de contos da melhor qualidade, inclusive compondo as mais conhecidas e tradicionais histórias de sua literatura realista e irônica. As narrativas curtas colocam o “dedo na ferida“ dos costumes e das moralidades da burguesia no final do século XIX, que podem ser observadas até hoje. Voltando no tempo, o candidato deverá dominar os fatores estéticos da obra O Uraguai, do poeta Basílio da Gama. Uma aventura nativista ambientada no Sul do Brasil, no contexto do Tratado de Madri, que opunha jesuítas e índios a portugueses e espanhóis. Destaque para a idealização feminina na figura da índia, presente na personagem Lindoia. Na sequência, temos o representante do Romantismo, o brasileiro Gonçalves Dias, e sua obra Últimos can- tos, com poemas de idealização da pátria, dos índios e dos amores. Destaque para “I-Juca-Pirama”, o poema épico que narra a saga do último índio tupi. Clara do Anjos é a próxima obra aqui analisada, na qual Lima Barreto expõe o papel feminino e os precon- ceitos que a mulher sofria na passagem do século XIX para o XX, como a submissão, o abandono, a violência e o constrangimento público. João Cabral de Melo Neto surge na lista com uma de suas obras mais conhecidas, Morte e vida severina, uma poesia rígida e forte na dicção existencial do sertão, na trajetória de Severino (“Severinos”) do interior ao litoral. O gênero dramático, ou seja, o texto escrito para o teatro continua na sequência, com a obra “Eles não usam black-tie“, de Gianfrancesco Guarnieri. Um espetáculo engajado que marcou seu tempo e faz sentido até hoje, retratando traços de utopia e realidade, de alienação e revolução, na relação de um pai e um filho em pleno movimento operário e luta por direitos de greve. Foi encenado no histórico “Teatro de Arena” e foi adaptado para o cinema. A literatura contemporânea está representada na lista com a obra Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum. O autor amazonense tece uma narrativa de cunho memorialista que sobrepõe as reminiscências do lem- brar em várias vozes apresentadas. Encerrando o conjunto de obras, surge Nove noites, de Bernardo Carvalho, uma obra complexa que mescla duas instâncias narrativas em caráter de desconstrução, misturando realidade e ficção. Seguindo as orientações e análises propostas neste volume especial do “Entre Aspas”, tenho certeza de que os candidatos darão conta de entender o processo constitutivo desta lista composta de grandes obras da literatura brasileira. Boas leitura e análise! Lucas Limberti PREFÁCIO SUMÁRIO UFPR ENTRE ASPAS Obra 1: O Uraguai 5 Obra 2: Últimos cantos 19 Obra 3: Casa de pensão 31 Obra 4: Clara dos Anjos 39 Obra 5: Sagarana 49 Obra 6: Morte e vida Severina 67 Obra 7: Nove noites 81 Obra 8: Relatos de um certo Oriente 91 L ENTRE ASPAS C O Uraguai Obras L C Basílio da Gama 7 BASÍLIO DA GAMA Basílio da Gama (1741-1795) nasceu na atual cidade de Tiradentes, em Minas Gerais. Estudou em colégio jesuíta, no Rio de Janeiro, pois tinha a intenção de ingressar na carreira eclesiástica. Completou seus estudos em Portugal e na Itália, no período em que os jesuítas foram expulsos dos domínios portugueses. Na Itália, Basílio construiu uma carreira literária, tendo conseguido uma façanha única entre os brasileiros da época: ingressar na Arcádia Romana, na qual assumiu o pseudônimo de Termindo Sipílio. Em 1767, voltou ao Rio de Janeiro, onde foi preso no ano seguinte acusado de ter ligação com os jesuítas. De acordo com um decreto então em vigor, qualquer pessoa que mantivesse comunicação com os jesuítas, oral ou escrita, deveria ficar exilada por oito anos em Angola. Publicou, em 1769, o poema épico “O Uraguai”, uma obra-prima na qual se encontram alguns dos mais apreciáveis versos da língua portuguesa. Tem como tema a luta de portugueses e espanhóis contra os índios de Sete Povos das Missões do Uruguai, instalados nas missões jesuítas no atual Rio Grande do Sul, que não queriam aceitar as decisões de delimitação das fronteiras do sul do Brasil impostas pelo Tratado de Madri. Basílio da Gama soube como poucos transformar política em poesia. Em 1776, publicou “Os Campos Elíseos”, um poema em que se exaltam supostas virtudes cívicas de membros da família de Sebastião José. Com a morte do rei em 1777, Pombal não se manteve no cargo, foi duramente atacado e vários de seus atos foram anulados. Basílio permaneceu-lhe fiel e chegou a escrever em sua defesa. Em 1788, lastimou a morte de Dom José, em “Lenitivo da saudade”. Preso, Basílio foi levado a Lisboa. Lá, livrou-se da prisão por fazer um poema em homenagem à filha do conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal. Essa amizade lhe possibilitou ter novos contatos com os árcades portugueses. Basílio da Gama foi admitido na Academia das Ciências de Lisboa, e sua última publicação foi “Quitúbia” (1791), um poema épico celebrando um chefe africano que auxiliou a colônia na guerra contra os holandeses. O autor faleceu em Portugal, no ano de 1795. Contexto: Minas Gerais e o ciclo do ouro O Arcadismo brasileiro originou-se e teve expressão principalmente em Vila Rica (atual Ouro Preto), Minas Gerais, e seu aparecimento teve relação direta com o grande crescimento urbano verificado no século XVIII nas cidades mineiras, cuja vida econômica girava em torno da extração de ouro.O crescimento dessas cidades favorecia tanto a divulgação de ideias políticas quanto o florescimento da literatura. Os jovens brasileiros das camadas privilegiadas da sociedade costumavam ser mandados a Coimbra 8 para estudar, uma vez que, na colônia, não havia cur- sos superiores. Ao retornarem de Portugal, traziam consigo as ideias que faziam fermentar a vida cultural portuguesa à época das inovações políticas e culturais do ministro marquês de Pombal, adepto de algumas ideias do iluminismo. Em Vila Rica, essas ideias levaram vários inte- lectuais e escritores a sonhar com a independência do Brasil, principalmente após a repercussão do mo- vimento de independência dos Estados Unidos da América (1776). Tais sonhos culminaram na frustrada Inconfidência Mineira (1789). Arcadismo na colônia: entre o local e o universal Os escritores brasileiros do século XVIII comportavam- -se em relação ao Arcadismo importado de Portugal de modo peculiar. Por um lado, procuravam obedecer aos princípios estabelecidos pelas academias literárias portuguesas ou se inspiravam em certos escritores clássicos consagrados, como Camões, Petrarca e Ho- rácio, ao mesmo tempo que, visando elevar a literatura da colônia ao nível das literaturas europeias e conferir a ela maior universidade, tentavam eliminar vestígios pessoais ou locais. Por outro lado, acabaram por apresentar em suas obras aspectos diferentes dos prescritos pelo mo- delo importado. A natureza, por exemplo, aparece na poesia de Cláudio Manuel da Costa como mais bru- ta e selvagem do que na poesia europeia; o mito do “homem natural” culminou, entre nós, na figura do índio, presente nas obras de Basílio da Gama e Santa Rita Durão; a expressão dos sentimentos, em Tomás Antônio Gonzaga e Silva Alvarenga, é mais espontânea e menos convencional. Esses aspectos característicos da poesia árcade nacional foram mais tarde recupe- rados e aprofundados pelo Romantismo, movimento que buscou definir uma identidade nacional em nossa literatura. Além dessa espécie de adaptação do modelo europeu a peculiaridades locais, não se pode esque- cer a forte influência barroca exercida no Brasil, ainda durante o século XVIII. Muitas das igrejas de Ouro Pre- to, por exemplo, só tiveram sua construção concluída quando o Arcadismo já vigorava na literatura. O Arcadismo brasileiro e suas peculiaridades Apego aos valores da terra Um dos elementos que tornam peculiar o mo- vimento árcade brasileiro é o apego aos valores da terra oferecido pela localização geográfica do “grupo mineiro”, fazendo brotar um nativismo que incorporou o ideário da estética bucólica, em voga no Arcadismo. Emerge na natureza brasileira como pano de fundo para a poesia dos “pastores”. Incorporação do indígena Outro aspecto diferenciador do Arcadismo bra- sileiro é a incorporação do indígena, em dois poemas épicos: ”O Uraguai”, em que Basílio da Gama narra a luta contra indígenas e jesuítas, protagonizada por portugueses e espanhóis. Basílio da Gama foi lei- tor assíduo de Voltaire, de quem traduziu a tragédia ”Mahomet”. Publicado em 1769, ”O Uraguai” é considerado a melhor realização no gênero épico no Arcadismo bra- sileiro. Seu tema é a luta de portugueses e espanhóis contra índios e jesuítas que, instalados nas missões je- suíticas do atual Rio Grande do Sul, não queriam acei- tar as decisões do Tratado de Madri. 9 A questão com Pombal O poema, além de contar a expedição do governador do Rio de Janeiro às missões jesuíticas do sul da Amé- rica latina (os Sete Povos do Uruguai), é também um canto de louvor à política de perseguição do marquês de Pombal aos missionários. Tem dedicatória ao minis- tro da Marinha, Mendonça Furtado, irmão de Pombal, que trabalhou na demarcação dos limites setentrionais entre o Brasil e a América espanhola, cumprindo o Tra- tado de Madri (1750), que corrigia a demarcação entre as Américas espanhola e portuguesa, firmada pelo Tra- tado de Tordesilhas. São exatamente esses litígios de fronteiras, so- mados ao heroísmo dos índios, e a crítica à Companhia de Jesus que dão o tom de ”O Uraguai”. Basílio não mediu esforços para demonstrar sua gratidão ao mar- quês de Pombal. O URAGUAI “Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos Embora um dia a escura noite eterna. Tu vive, e goza a luz serena e pura.” Personagens General Gomes Freire de Andrade: chefe das tropas portuguesas Catâneo: chefe das tropas espanholas Cacambo: chefe indígena Cepé: guerreiro índio Padre Balda: jesuíta administrador de Sete Po- vos das Missões Baldeta: filho do padre Balda Caitutu: guerreiro indígena, irmão de Lindoia Lindoia: esposa de Cacambo Tanajura: indígena feiticeira A quebra do modelo clássico A luta travada por portugueses e espanhóis contra ín- dios e jesuítas é narrada por Basílio da Gama desde os preparativos até sua conclusão. Os cantos apresentam a seguinte sequência de fatos: Canto I: as tropas aliadas se reúnem para com- bater os índios e os jesuítas. Fumam ainda nas desertas praias Lagos de sangue tépidos e impuros Em que ondeiam cadáveres despidos, Pasto de corvos. Dura inda nos vales O rouco som da irada artilheria. MUSA, honremos o Herói que o povo rude Subjugou do Uraguai, e no seu sangue Dos decretos reais lavou a afronta. Ai tanto custas, ambição de império! E Vós, por quem o Maranhão pendura Canto II: o exército avança e há uma tentativa de negociação com os chefes indígenas Cepé e Cacambo. Sem acordo, trava-se a luta, que termina com a derrota e a retirada dos índios. Rios de areias de ouro. Essa riqueza Que cobre os templos dos benditos padres, Fruto da sua indústria e do comércio Da folha e peles, é riqueza sua. Com o arbítrio dos corpos e das almas O céu lha deu em sorte. A nós somente Nos toca arar e cultivar a terra, Sem outra paga mais que o repartido Por mãos escassas mísero sustento. Podres choupanas, e algodões tecidos, E o arco, e as setas, e as vistosas penas São as nossas fantásticas riquezas. Muito suor, e pouco ou nenhum fasto. Volta, senhor, não passes adiante. Que mais queres de nós? Não nos obrigues A resistir-te em campo aberto. Pode Custar-te muito sangue o dar um passo. Não queiras ver se cortam nossas frechas. Vê que o nome dos reis não nos assusta. O teu está muito longe; e nós os índios Não temos outro rei mais do que os padres. Acabou de falar; e assim responde O ilustre General: Ó alma grande, Digna de combater por melhor causa, Vê que te enganam: risca da memória Vãs, funestas imagens, que alimentam Envelhecidos mal fundados ódios. 10 Canto III: Cacambo ateia fogo à vegetação em volta do acampamento aliado e foge para sua aldeia. O padre Balde, vilão da história, faz prender e matar Cacambo para que seu filho sacrílego Baldeta possa casar-se com Lindoia, esposa de Cacambo, e tomar a posição do che- fe indígena morto. Lindoia, em uma visão, prevê o terremoto de Lisboa e a expulsão dos jesuítas por Pombal. Não de outra sorte o cauteloso Ulisses, Vaidoso da ruína, que causara, Viu abrasar de Troia os altos muros, E a perjura cidade envolta em fumo Encostar-se no chão e pouco a pouco Desmaiar sobre as cinzas. Cresce entanto O incêndio furioso, e o irado vento Arrebata às mãos cheias vivas chamas, Que aqui e ali pela campina espalha. Comunica-se a um tempo ao largo campo A chama abrasadora e em breve espaço Cerca as barracas da confusa gente. Armado o General, como se achava, Saiu do pavilhão e pronto atalha, Que não prossiga o voador incêndio. Poucas tendas entrega ao fogo e manda, Sem mais demora, abrir largo caminho Que os separe das chamas. Uns já cortam As combustíveis palhas, outros trazem Nos prontos vasos as vizinhas ondas. Mas não espera o bárbaro atrevido. A todos se adianta; e desejoso De levar a notícia ao grande Balda Naquela mesma noite o passo estende. Tanto se apressa que na quarta aurora Por veredas ocultas viu de longe A doce pátria, e os conhecidos montes, Eo templo, que tocava o céu co’as grimpas. Mas não sabia que a fortuna entanto Lhe preparava a última ruína. Quanto seria mais ditoso! Quanto Melhor lhe fora o acabar a vida Na frente do inimigo, em campo aberto, Ou sobre os restos de abrasadas tendas, Obra do seu valor! Tinha Cacambo Real esposa, a senhoril Lindoia, De costumes suavíssimos e honestos, Em verdes anos: com ditosos laços Amor os tinha unido; mas apenas Os tinha unido, quando ao som primeiro Das trombetas lho arrebatou dos braços A glória enganadora. Ou foi que Balda, Engenhoso e sutil, quis desfazer-se Da presença importuna e perigosa Do índio generoso; e desde aquela Saudosa manhã, que a despedida Presenciou dos dous amantes, nunca Consentiu que outra vez tornasse aos braços Da formosa Lindoia e descobria Sempre novos pretextos da demora. Tornar não esperado e vitorioso Foi todo o seu delito. Não consente O cauteloso Balda que Lindoia Chegue a falar ao seu esposo; e manda Que uma escura prisão o esconda e aparte Da luz do sol. Nem os reais parentes, Nem dos amigos a piedade, e o pranto Da enternecida esposa abranda o peito Do obstinado juiz: até que à força De desgostos, de mágoa e de saudade, Por meio de um licor desconhecido, Que lhe deu compassivo o santo padre, Jaz o ilustre Cacambo – entre os gentios Único que na paz e em dura guerra De virtude e valor deu claro exemplo. Chorado ocultamente e sem as honras De régio funeral, desconhecida Pouca terra os honrados ossos cobre. Se é que os seus ossos cobre alguma terra. Cruéis ministros, encobri ao menos A funesta notícia. Ai que já sabe A assustada amantíssima Lindoia O sucesso infeliz. Quem a socorre! Que aborrecida de viver procura Todos os meios de encontrar a morte. Nem quer que o esposo longamente a espere No reino escuro, aonde se não ama. Mas a enrugada Tanajura, que era Prudente e exprimentada (e que a seus peitos Tinha criado em mais ditosa idade A mãe da mãe da mísera Lindoia), E lia pela história do futuro, 11 Visionária, supersticiosa, Que de abertos sepulcros recolhia Nuas caveiras e esburgados ossos, A uma medonha gruta, onde ardem sempre Verdes candeias, conduziu chorando Lindoia, a quem amava como filha; E em ferrugento vaso licor puro De viva fonte recolheu. Três vezes Girou em roda, e murmurou três vezes Co’a carcomida boca ímpias palavras, E as águas assoprou: depois com o dedo Lhe impõe silêncio e faz que as águas note. Como no mar azul, quando recolhe A lisonjeira viração as asas, Adormecem as ondas e retratam Ao natural as debruçadas penhas, O copado arvoredo e as nuvens altas: Não de outra sorte à tímida Lindoia Aquelas águas fielmente pintam O rio, a praia o vale e os montes onde Tinha sido Lisboa; e viu Lisboa Entre despedaçados edifícios, Com o solto cabelo descomposto, Tropeçando em ruínas encostar-se. Desamparada dos habitadores A Rainha do Tejo, e solitária, No meio de sepulcros procurava Com seus olhos socorro; e com seus olhos Só descobria de um e de outro lado Pendentes muros e inclinadas torres. Vê mais o Luso Atlante, que forceja Por sustentar o peso desmedido Nos roxos ombros. Mas do céu sereno Em branca nuvem Próvida Donzela Rapidamente desce e lhe apresenta, De sua mão, Espírito Constante, Gênio de Alcides, que de negros monstros Despeja o mundo e enxuga o pranto à pátria. Tem por despojos cabeludas peles De ensanguentados e famintos lobos E fingidas raposas. Manda, e logo O incêndio lhe obedece; e de repente Por onde quer que ele encaminha os passos Dão lugar as ruínas. Viu Lindoia Do meio delas, só a um seu aceno, Sair da terra feitos e acabados Canto IV: o mais bonito dos cinco cantos, nele são retratados os preparativos do casamento de Baldeta com Lindoia. Esta, chorando a morte do marido e não desejando casar-se, entre num bosque e deixa-se picar por uma cobra veneno- sa. Chegam os brancos, que cercam a aldeia. Todos fogem; antes, porém, os padres mandam queimar as casas e a igreja. A Morte de Lindoya Não faltava, Para se dar princípio à estranha festa, Mais que Lindoia. Há muito lhe preparam Todas de brancas penas revestidas Festões de flores as gentis donzelas. Cansados de esperar, ao seu retiro Vão muitos impacientes a buscá-la. Estes de crespa Tanajura aprendem Que entrara no jardim triste, e chorosa, Sem consentir que alguém a acompanhasse. Um frio susto corre pelas veias De Caitutú, que deixa os seus no campo; E a irmã por entre as sombras do arvoredo Busca co'a vista, e teme de encontrá-la. Entram enfim na mais remota, e interna Parte de antigo bosque, escuro, e negro, Onde ao pé de uma lapa cavernosa Cobre uma rouca fonte, que murmura, Curva latada de jasmins, e rosas. Este lugar delicioso, e triste, Cansada de viver, tinha escolhido Para morrer a mísera Lindoia. Lá reclinada, como que dormia, Na branda relva, e nas mimosas flores, Tinha a face na mão, e a mão no tronco De um fúnebre cipreste, que espalhava Melancólica sombra. Mais de perto Descobrem que se enrola no seu corpo Verde serpente, e lhe passeia, e cinge Pescoço, e braços, e lhe lambe o seio. Fogem de a ver assim sobressaltados, E param cheios de temor ao longe; E nem se atrevem a chamá-la, e temem Que desperte assustada, e irrite o monstro, E fuja, e apresse no fugir a morte. Porém o destro Caitutú, que treme 12 Do perigo da irmã, sem mais demora Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes Soltar o tiro, e vacilou três vezes Entre a ira, e o temor. Enfim sacode O arco, e faz voar a aguda seta, Que toca o peito de Lindoia, e fere A serpente na testa, e a boca, e os dentes Deixou cravados no vizinho tronco. Açouta o campo co'a ligeira cauda O irado monstro, e em tortuosos giros Se enrosca no cipreste, e verte envolto Em negro sangue o lívido veneno. Leva nos braços a infeliz Lindoia O desgraçado irmão, que ao despertá-la Conhece, com que dor! no frio rosto Os sinais do veneno, e vê ferido Pelo dente sutil o brando peito. Os olhos, em que Amor reinava, um dia, Cheios de morte; e muda aquela língua, Que ao surdo vento, aos ecos tantas vezes Cotou a larga história de seus males. Nos olhos Caitutú não sofre o pranto, E rompe em profundíssimos suspiros, Lendo na testa da fronteira gruta De sua mão já trêmula gravado O alheio crime, e a voluntária morte. E por todas as partes repetido O suspirado nome de Cacambo. Inda conserva o pálido semblante Um não sei quê de magoado, e triste, Que os corações mais duros enternece. Tanto era bela no seu rosto a morte! Canto V: o líder português Gomes Freire de An- drada prende os inimigos na aldeia próxima, e há referências ao domínio universal da Compa- nhia de Jesus e a seus crimes. Sossegado o tumulto e conhecidas As vis astúcias de Tedeu e Balda, Cai a infame República por terra. Aos pés do General as toscas armas Já tem deposto o rude Americano, Que reconhece as ordens e se humilha, E a imagem do seu rei prostrado adora. Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos Embora um dia a escura noite eterna. Tu vive e goza a luz serena e pura. Vai aos bosques de Arcádia: e não receies Chegar desconhecido àquela areia. Ali de fresco entre as sombrias murtas Urna triste a Mireo não todo encerra. Leva de estranho céu, sobre ela espalha Co’a peregrina mão bárbaras flores. E busca o sucessor, que te encaminhe Ao teu lugar, que há muito que te espera. Estrutura Escrito em apenas cinco cantos, com a utilização de versos brancos (sem rima) e sem estrofação, ”O Ura- guai” não segue a estrutura camoniana de Os lusíadas. Além disso, embora apresente as cinco partes tradicio- nais das epopeias – proposição, invocação, dedicató- ria, narração e epílogo –, o poema já se inicia com a ação em pleno desenvolvimento: Fumam ainda nas desertas praias Lagos de sangue tépidos e impuros Em que ondeiam cadáveres despidos. Pasto de corvos. Dura inda nos vales O rouco som da irada artilheria. O fato de o autor tratar de um episódio histó- rico recente (na época, ocorrido havia pouco mais de dez anos) é outro aspecto que diferencia ”O Uraguai dos” dos poemas épicos tradicionais. Quem éo verdadeiro herói da história? Pelo fato de ”O Uraguai” ser uma obra de intenções épicas, seria de esperar que em nada tivessem desta- que os movimentos de guerra e os atos de heroísmo. Contudo, não é o que se verifica. Ao contrário, a própria guerra chega a ser questionada como meio de atuação política, o que revela uma postura tipicamente ilumi- nista da parte do autor, cujas ideias coincidem com as de seu amigo marquês de Pombal. Observe: 13 Vinha logo de guardas rodeado, Fonte de crimes, militar tesouro, Por quem deixa no rego o curto arado O lavrador, que não conhece a glória: E vencendo a vil preço o sangue e a vida Move, e nem sabe por que move a guerra. O herói português Gomes Freire de Andrade, o líder das tropas luso-espanholas, também não mostra o entusiasmo dos heróis épicos tradicionais: ... Descontente e triste Marchava o General: não sofre o peito Compadecido e generosa a vista Daqueles frios e sangrados corpos, Vitimas da ambição de injusto império Análise O genocídio de Sete Povos das Missões O Tratado de Madri (1750) determinava uma troca de territórios: os portugueses que se encontravam na co- lônia de Sacramento (hoje parte do Uruguai) deveriam desocupar a região e instalar-se nos sete povoados, chamados “Sete Povos”, pertencentes a Portugal e ocupados por índios. Em troca, a Espanha teria sobera- nia sobre as Tordesilhas. Ocorre que os indígenas que ocupam esses povoados, provavelmente influenciados pelos jesuítas, não queriam passar ao domínio portu- guês. Diante do impasse, os governos português e es- panhol uniram-se para intervir militarmente na região. Foram necessárias duas investidas para que conseguis- sem seu objetivo – a segunda das quais narrada em ”O Uraguai”. Essas lutas ocasionaram a morte de al- guns milhares de índios e constituem um dos principais genocídios verificados no país. Apesar da postura de crítica à guerra manifesta pelo autor, o fato histórico narrado não é alterado, e espanhóis e portugueses saem vencedores da batalha. Do lado inimigo, apenas os jesuítas são verda- deiros tratados no poema como vilões – outro traço da obra que satisfaz os interesses do marquês de Pombal. Os índios derrotados são vistos com simpatia. Talvez até se possa dizer que o autor enfoca os índios como vítimas da ação jesuítica na região e dos confli- tos que dela resultaram. Destacadas a força e a coragem do indígena, fica claro que a derrota se dá apenas em virtude da desigualdade de armas. O índio seria uma espécie de herói moral da luta, dadas suas qualidades de caráter, conforme mostram os versos a seguir. Fez proezas Sepé naquele dia. Conhecido de todos, no perigo Mostrava descoberto o rosto e o peito Forçando os seus co exemplos e coas palavras. Lindoia (1882), por José Maria de Medeiros Observe o trecho do poema em que Lindoia morre: Este lugar delicioso, e triste, Cansada de viver, tinha escolhido Para morrer a mísera Lindoia. Lá reclinada, como que dormia, Na branda relva, e nas mimosas flores, Tinha a face na mão, e a mão no tronco De um fúnebre cipreste, que espalhava Melancólica sombra. Mais de perto Descobrem que se enrola no seu corpo Verde serpente, e lhe passeia, e cinge Pescoço e braços, e lhe lambe o seio. Fogem de a ver assim sobressaltados, 14 E param cheios de temor ao longe; E nem se atrevem a chamá-la, e temem Que desperte assustada, e irrite o monstro, E fuja, e apresse no fugir a morte. Porém o destro Caitutu, que treme Do perigo da irmã, sem mais demora Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes Soltar o tiro, e vacilou três vezes Entre a ira e o temor. Enfim sacode O arco, e faz voar a aguda seta, Que toca o peito de Lindoia, e fere A serpente na testa, e a boca, e os dentes Deixou cravados no vizinho tronco. Açouta o campo co'a ligeira cauda O irado monstro, e em tortuosos giros Se enrosca no cipreste, e verte envolto Em negro sangue o lívido veneno. Leva nos braços a infeliz Lindoia O desgraçado irmão, que ao despertá-la Conhece, com que dor! no frio rosto Os sinais do veneno, e vê ferido Pelo dente sutil o brando peito. Os olhos, em que Amor reinava, um dia, Cheios de morte; e muda aquela língua, Que ao surdo vento, e aos ecos tantas vezes Contou a larga história de seus males. Nos olhos Caitutu não sofre o pranto, E rompe em profundíssimos suspiros, Lendo na testa da fronteira gruta De sua mão já trêmula gravado O alheio crime, e a voluntária morte. E por todas as partes repetido O suspirado nome de Cacambo. Inda conserva o pálido semblante Um não sei quê de magoado, e triste, Que os corações mais duros enternece. Tanto era bela no seu rosto a morte! O poema não enfatiza a guerra em si, nem as ações dos vencedores, nem os vilões jesuítas – trata- dos caricaturalmente. Ganham destaque, de fato, a descrição física e moral do índio, o choque de culturas e a paisagem nacional. Além disso, o autor cria passa- gens de forte lirismo, como a do episódio da morte de Lindoia. Observe a valorização da paisagem brasileira nestes versos: Que alegre cena para os olhos! Podem Daquela altura, por espaço imenso, Ver as longas campinas retalhadas De trêmulos ribeiros, claras fontes, E lagos cristalinos, onde molha As leves asas o lascivo vento. Engraçados outeiros, fundos vales, Verde teatro, onde se admira quanto Produziu a supérflua Natureza. Ruínas da igreja de São Miguel das Missões, RS, palco das lutas narradas em O Uraguai A valorização do índio e da natureza selvagem do Brasil corresponde ao ideal de vida primitiva e natu- ral cultivado pelos iluministas e pelos árcades. Por ou- tro lado, porém, esses aspectos, que podemos chamar de nativistas, prenunciam as tendências da literatura do século XIX: o Romantismo. 15 APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS 2. (UEG) Observe a pintura e leia o fragmento a seguir para responder à questão. Vinha logo de guardas rodeado Fonte de crimes, militar tesouro, Por quem deixa no rego o curto arado O lavrador, que não conhece a glória; E vendendo a vil preço o sangue e a vida Move, e nem sabe por que move a guerra. (GAMA, Basílio da. O Uraguai. In: BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 67.) Embora “O Uraguai“ seja considerado a me- lhor realização épica do Arcadismo brasilei- ro, nota-se, na obra, uma quebra do modelo da epopeia clássica. Em termos de conteúdo, tanto no trecho quanto na pintura apresen- tados, essa quebra se evidencia: a) pela representação de situações tragicômicas. b) pelo retrato de episódios de bravura e hero- ísmo. c) pela alusão a heróis mitológicos da Grécia antiga. d) pelo questionamento da guerra como algo positivo. 3. (UCS) Sabendo que o gênero lírico se caracte- riza pela expressão subjetiva, representando a interioridade do sujeito poético, enquanto o gênero épico é objetivo, expressando predo- minantemente, sob forma narrativa, um epi- sódio heroico, pode-se dizer que são épicas as seguintes obras do Arcadismo no Brasil: a) Vila Rica, de Claudio Manuel da Costa; Cartas chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga; e Glau- ra, de Silva Alvarenga. b) Marília de Dirceu e Cartas chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga; e Caramuru, de Santa Rita Durão. c) O Uraguai, de Basílio da Gama; Prosopopeia, de Bento Teixeira; e Caramuru, de Santa Rita Durão. d) Obras poéticas e Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa; e Cartas chilenas, de Tomás Antô- nio Gonzaga. e) O Uraguai, de Basílio da Gama; Caramuru, de Santa Rita Durão; e Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa. 1. (UFSM) O momento da refeição sempre foi uma ocasião para conversar. Em “O Ura- guai“, de Basílio da Gama, o narrador apro- veita o banquete dos oficiais, que se segue ao desfile das tropas portuguesas, no Canto I, para apresentar as causas da guerra, confor- me mostra o excerto a seguir. [...] Convida o General depois da mostra, Pago da militar guerreira imagem, Os seus e os espanhóis; e já recebe No pavilhão purpúreo,em largo giro, Os capitães a alegre e rica mesa. Desterram-se os cuidados, derramando Os vinhos europeus nas taças de ouro. Ao som da 1ebúrnea cítara sonora Arrebatado de furor divino Do seu herói, Matúsio celebrava Altas empresas dignas de memória. […] Levantadas as mesas, entretinham O congresso de heróis discursos vários. Ali Catâneo ao General pedia Que do principio lhe dissesse as causas Da nova guerra e do fatal tumulto. (GAMA, Basílio da. O Uraguai. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.) 1ebúrnea: relativa ao marfim A partir da leitura do fragmento, bem como da obra a que pertence, assinale verdadeira (V) ou falsa (F) em cada afirmativa a seguir. ( ) Ao introduzir, no Canto I, as causas da guerra, percebe-se a preocupação do nar- rador em contar a história respeitando a ordem cronológica dos eventos, o que se dá desde o início do poema. ( ) A guerra, cujas causas são inquiridas por Catâneo, ocupara grande parte do relato, o que confere a obra seu tom épico, ain- da que certas passagens de “O Uraguai“ também apresentem traços de puro liris- mo. ( ) O poema e todo composto em versos de- cassílabos brancos, predominantemente de ritmo heroico, como se pode ver clara- mente no excerto. ( ) A glorificação do general Gomes Freire de Andrade no excerto evidencia que ele e o herói do poema, símbolo da civilização europeia que chega aos Sete Povos e que se contrapõe aos indígenas, apresentados no poema como selvagens, sem quaisquer qualidades heroicas. A sequência correta é: a) F V V F b) V V F F c) V F F V d) F F V F e) V F V V 16 4. (UFSM) Em “O Uraguai“, Basílio da Gama si- tua a ação em um cenário até então pouco retratado na literatura brasileira: o sul do Brasil. Ali, portugueses, espanhóis e gua- ranis serão personagens de uma batalha de final trágico para os últimos. Assim, sobre as personagens de “O Uraguai“, é correto afir- mar que: a) o padre Balda é retratado como um vilão, como se pode perceber na sua maquinação para a morte de Sepé, cujo objetivo era alçar Baldetta ao posto de líder indígena. b) o irmão Patusca é representado satiricamen- te na obra como guloso e covarde, o que apa- rece claramente ao final da história, quando é surpreendido pelos soldados enquanto fu- gia da aldeia destruída. c) Tanajura é uma velha feiticeira que revela o futuro para Lindoia, momento em que a jovem indígena descobre que morreria em breve. d) o general Gomes Freire de Andrade é o herói do poema, impondo a vontade do rei de Por- tugal a todo custo, sem procurar uma saída que evitasse a chacina dos indígenas. e) Cacambo tem um sonho em que o espírito de Sepé ordena-lhe que incendeie a aldeia para que se afaste o inimigo, dando tempo para a fuga dos indígenas. 5. (UFSM) A luta é um dos assuntos preferidos da literatura épica. Leia o seguinte trecho do poema épico “O Uraguai“, de Basílio da Gama, que trata desse assunto: Tatu-Guaçu mais forte na desgraça Já banhado em seu sangue pretendia Por seu braço ele só pôr termo à guerra. Caitutu de outra parte altivo e forte Opunha o peito à fúria do inimigo, E servia de muro à sua gente. Fez proezas Sepé naquele dia. Conhecido de todos, no perigo Mostrava descoberto o rosto e o peito Forçando os seus co'exemplo e co'as palavras. Assinale verdadeira (V) ou falsa (F) em cada uma das afirmações relacionadas com “O Uraguai“. ( ) O assunto de “O Uraguai“ é a expedição mista de portugueses e espanhóis contra as missões jesuíticas do Rio Grande do Sul, para executar as cláusulas do tratado de Madrid, em 1756. ( ) Mesmo se posicionando favoravelmente aos vencedores europeus, o narrador de “O Uraguai“ deixa perceber, em passa- gens como a citada, sua simpatia e admi- ração pelo povo indígena. ( ) No fragmento referido, Tatu-Guaçu, Sepé e Caitutu têm exaltadas suas forças físi- cas e morais, lembrando os heróis épicos da antiguidade. ( ) A análise formal dos versos confirma que Basílio da Gama imita fielmente a epo- peia clássica, representada pelo modelo vernáculo da época: Os lusíadas, de Ca- mões. ( ) A valorização do índio e da natureza bra- sileira corresponde aos ideais iluministas e árcades da vida primitiva e natural e prenuncia uma tendência da literatura romântica: o nativismo. A sequência correta é: a) F V F V V b) F F V V V c) V V V F V d) V F V F F e) V F F F V 6. (Ufrgs) Considere as seguintes afirmações sobre “O Uraguai“, de Basílio da Gama. I. Sepé, de modo desafiador, Cacambo, mais diplomático, encontram-se, antes da bata- lha, com o general Andrade que os acon- selha a respeitar a autoridade da Coroa. II. Eufórico, o general Andrade, líder das tropas luso-espanholas, extravasa sua emoção celebrando, depois da batalha, a morte de Sepé. III. Cacambo, tendo tido uma visão na qual Sepé aparecia transtornado ao lado de Lindoia desfalecida, incendeia o acam- pamento das tropas inimigas durante a batalha. Quais estão corretas? a) Apenas I. b) Apenas II. c) Apenas III. d) Apenas II e III. e) I, II e III. 7. (Ufrgs) Assinale a afirmativa incorreta em relação à obra “O Uraguai“, de Basílio da Gama. a) O poema narra a expedição de Gomes Freire de Andrada, governador do Rio de Janeiro, às missões jesuíticas espanholas da banda oriental do rio Uruguai. b) “O Uraguai“ segue os padrões estéticos dos poemas épicos da tradição ocidental, como a “Odisseia“, a “Eneida“ e “Os lusíadas“. c) Basílio da Gama expressa uma visão euro- peia em relação aos indígenas, acentuando seu caráter bárbaro, incapaz de sentimentos nobres e humanitários. d) Nas figuras de Cacambo e Sepé Tiaraju está representando o povo autóctone que defen- de o solo natal. e) Lindoia, única figura feminina do poema, morre de amor após o desaparecimento de seu amado Cacambo. 17 TEXTO PARA AS PRÓXIMAS DUAS QUESTÕES CANTO II (...) Prosseguia talvez; mas o interrompe Sepé, que entra no meio, e diz: — “Cacambo Fez mais do que devia; e todos sabem Que estas terras, que pisas, o céu livres Deu aos nossos avós; nós também livres As recebemos dos antepassados. Livres as hão de herdar os nossos filhos. Desconhecemos, detestamos jugo Que não seja o do céu, por mão dos padres. As frechas partirão nossas contendas Dentro de pouco tempo; e o vosso Mundo, Se nele um resto houver de humanidade, Julgará entre nós: se defendemos – Tu a injustiça, e nós o Deus e a Pátria. – Enfim quereis a guerra, e tereis guerra.“ Lhe torna o General. – “Podeis partir-vos, Que tendes livre o passo.“ (...) (O Uraguai, Basílio da Gama) 8. (Ufrgs adaptada) Segundo Sepé, em “O Ura- guai“: a) os índios receberam a liberdade do céu e de seus antepassados para que se associassem ao empreendimento colonial de Portugal e Espanha. b) os índios recusam-se a lutar pelos padres cujo domínio causou as hostilidades com as coroas portuguesa e espanhola. c) os índios pretendem legar aos filhos as ter- ras livres que receberam de seus avós, os quais as receberam do céu. d) os índios protestam contra o jugo do céu cujos representantes na terra são os padres responsáveis pela conversão e catequese. e) pretendem lutar aguerridamente contra a injustiça representada pelo Deus e pela pá- tria dos adversários. 9. (Ufrgs adaptada) Sobre o discurso de Sepé, é correto afirmar que nele se percebe: a) o espírito conciliatório de quem busca esta- belecer a paz. b) a hostilidade de quem considera inevitável a guerra. c) a arrogância de quem afirma estar mais bem armado do que o inimigo. d) a indulgência com que serão tratados os pri- sioneiros de guerra. e) a simpatia votada à causa do inimigo que defende Deus e pátria. 10. (Unesp) O URAGUAI (fragmento do Canto IV) Este lugar delicioso, e triste, Cansada de viver, linha escolhido Para morrer a mísera Lindoia. Lá reclinada, como que dormia, Na branda relva, e nas mimosas flores, Tinha a face na mão, e a mão no tronco De um fúnebrecipreste, que espalhava Melancólica sombra. Mais de perto Descobrem que se enrola no seu corpo Verde serpente, e lhe passeia, e cinge Pescoço, e braços, e lhe lambe o seio. Fogem de a ver assim sobressaltados, E param cheios de temor ao longe; E nem se atrevem a chamá-la, e temem Que desperte assustada, e irrite o monstro, E fuja, e apresse no fugir a morte. (BASÍLIO DA GAMA, José. O Uraguai. Rio de Janeiro: Public. da Academia Brasileira, 1941, p. 78-79.) CARAMURU (Canto VI, Estrofe XLII) Perde o lume dos olhos, pasma e treme, Pálida a cor, o aspecto moribundo, Com mão já sem vigor, soltando o leme, Entre as salsas escumas desce ao fundo. Mas na onda do mar, que irado freme, Tornando a aparecer desde o profundo: “Ah Diogo cruel!“ disse com mágoa, E, sem mais vista ser, sorveu-se n'água. (SANTA RITA DURÃO, Fr. José de. Caramuru. São Paulo: Edições Cultura, 1945, p. 149.) Os textos apresentados correspondem, res- pectivamente, a fragmentos marcantes dos poemas épicos “O Uraguai“ (1769), de Basí- lio da Gama, e “Caramuru“ (1781), de Santa Rita Durão, poetas neoclássicos brasileiros. No primeiro, a índia Lindoia, infeliz com a morte do marido Cacambo, deixa-se picar por uma serpente, e falece. No segundo, en- foca-se a índia Moema que, ao ver partir seu amado Diogo Álvares, segue a embarcação a nado e se deixa morrer afogada. Releia os textos e, a seguir: a) aponte o componente nacionalista de ambos os poemas que prenuncia uma das linhas te- máticas mais características do Romantismo brasileiro; e b) cite dois escritores românticos brasileiros que se utilizaram dessa linha temática. GABARITO 1. A 2. D 3. E 4. B 5. C 6. A 7. C 8. C 9. B 10. a) A figura do índio. b) José de Alencar e Gonçalves Dias. L ENTRE ASPAS C Últimos cantos Obras L C Gonçalves Dias 21 GONÇALVES DIAS Gonçalves Dias (1823-1864) foi poeta e teatrólogo brasileiro. É lembrado como o grande poeta indianista da ge- ração romântica. Deu romantismo ao tema do índio e uma feição nacional à sua literatura. É lembrado como um dos melhores poetas líricos da literatura brasileira. É patrono da cadeira nº 15 da Academia Brasileira de Letras. Nasceu nos arredores de Caxias, no Maranhão. Filho de um comerciante português e de uma mestiça, iniciou seus estudos no Maranhão e, ainda jovem, viajou para Portugal. Em 1838, ingressou no Colégio das Artes, em Coimbra, onde concluiu o curso secundário. Em 1840, ingressou na Universidade de Direito de Coimbra, onde teve contato com escritores do Romantismo português, entre eles, Almeida Garret, Alexandre Herculano e Felicia- no de Castilho. Ainda em Coimbra, em 1843, escreve seu famoso poema “Canção do exílio“, no qual expressa o sentimento da solidão e do exílio. Voltou ao Maranhão em 1845, depois de formado em Direito. Ocupou vários cargos no governo imperial e realizou diversas viagens à Europa. Foi para o Rio de Janeiro em 1846 e, em 1847, publicou o livro Primeiros cantos, que recebeu elogios de Alexandre Herculano, poeta romântico português. Ao apresentar o livro, Gonçalves Dias confessou: “Dei o nome Primeiros cantos às poesias que agora publico, porque espero que não sejam as últimas“. Em 1848, publicou o livro Segundos cantos. Em 1849, foi nomeado professor de Latim e História do Brasil no Colégio Pedro II. Durante esse período, escreveu para várias publicações, entre elas, o Jornal do Comércio, a Gazeta Mercantil e para o Correio da Tarde. Fundou a Revista Literária Guanabara. Publicou, em 1851, o livro Últimos cantos. Regressou ao Maranhão e co- nheceu Ana Amélia Ferreira do Vale, por quem se apaixonou. Por ser mestiço, a família de Ana Amélia proibiu o casamento. Mais tarde, casou-se com Olímpia da Costa. 22 Gonçalves Dias exerceu o cargo de oficial da Secretaria de Negócios Estrangeiros, foi várias vezes à Europa e, em 1854, em Portugal, encontrou-se com Ana Amélia, já casada. Esse encontro inspirou o poeta a escrever o poema “Ainda uma vez – Adeus!“. Em 1862, viajou à Europa para tratamento de saúde. Sem resultados, embarcou de volta no dia 10 de setembro de 1864. No dia 3 de novembro, o navio francês Ville de Boulogne, no qual estava, naufragou perto do farol de Itacolomi, na costa do Maranhão, onde o poeta faleceu. Contexto A história do Romantismo no Brasil se confunde com a própria história política brasileira da primeira metade do século XIX. Com a invasão de Portugal por Napo- leão, a coroa portuguesa se mudou para o Brasil, em 1808, e elevou a colônia à categoria de Reino Unido, ao lado de Portugal e Algarves. Como decorrência des- se fato, a colônia passou por uma série de mudanças, entre as quais a criação de escolas de nível superior, a fundação de museus e bibliotecas públicas, a insta- lação de tipografias e o surgimento de uma imprensa regular. A dinamização da vida cultural da colônia e a formação de um público leitor (mesmo que inicial- mente só de jornais) criaram algumas das condições necessárias para o surgimento de uma produção literá- ria mais consistente do que as manifestações literárias dos séculos XVII e XVIII. Com a independência política, ocorrida em 1822, os intelectuais e artistas da época passaram a dedicar-se ao projeto de criar uma cultura brasileira identificada com as raízes históricas, linguísticas e cul- turais do país. O Romantismo, além de seu significado primei- ro – o de ser uma reação à tradição clássica – assumiu em nossa literatura a conotação de movimento antico- lonialista e antilusitano, ou seja, de rejeição à literatura produzida na época colonial, em virtude do apego des- sa produção aos modelos culturais portugueses. Portanto, um dos traços essenciais de nosso Romantismo é o nacionalismo, que, orientando o mo- vimento, abriu-lhe um rico leque de possibilidades a serem exploradas, entre as quais o indianismo, o re- gionalismo, a pesquisa histórica, folclórica e linguística, além da crítica aos problemas nacionais – todas pos- turas comprometidas com o projeto de construção de uma identidade nacional. A publicação da obra Suspiros poéticos e sau- dades (1836), de Gonçalves de Magalhães, tem sido considerada o marco inicial do Romantismo no Brasil. A importância dessa obra, porém, reside muito mais nas novidades teóricas de seu prólogo, em que Maga- lhães anuncia a revolução literária romântica, do que propriamente na execução dessas teorias. Indianismo: primeira geração poética Compreendida entre os anos de 1836 e 1852, na pri- meira geração destacam-se os poetas Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias. O nacionalismo e o patriotismo são predomi- nantes nessa geração, que exalta aspectos caracterís- ticos da paisagem tropical. Há uma tendência para o realce das coisas típicas do exotismo e da beleza natu- ral, exuberante, em oposição à paisagem e à natureza europeias. Nas obras de Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães, o indígena é encarado como elemento for- mador do povo brasileiro. A poesia dessa geração romântica é identifica- da por uma forte religiosidade, com predominância do catolicismo, em oposição ao “paganismo” da poesia neoclássica ligada à tradição greco-latina, e também pelo caráter amoroso, fortemente sentimental, fruto de relativa influência da lírica portuguesa, a medieval, a camoniana e a dos românticos de Garrett, principal- mente. 23 ÚLTIMOS CANTOS Sobre este livro em especial, seu próprio nome, Últimos cantos, parece aludir a uma fase de transição. Nele, estão colocados alguns poemas indianistas já conhecidos do livro Poesias americanas, como “I-Juca- -Pirama” e os poemas soltos organizados como Poe- sias diversas. Nessas, encontramos um Gonçalves Dias diferente abordando temas dos mais variados, como poemas laudatórios. Mas há algumas constantes nes- ses poemas, como se aludissem às temáticas comuns das canções trovadorescas, ora lembram as cantigas de amigo e de amor, ora apontam para umapercepção do tempo, uma angústia, uma desilusão com a vida, resumindo-a em “nascer, lutar, sofrer”, e no meio disso tudo, a ilusão amorosa. Também já parece refletir algo parecido com que viria a ser a profusão do egotismo da geração se- guinte dos poetas românticos, como Álvares de Azeve- do, mas diferentemente desses não há o exagero, pois os poemas de Gonçalves Dias são leves, extremamente musicais, mesmo quando fala sobre a morte ou a so- lidão, mas nem por isso deixam de serem profundos e filosóficos. Estrutura Nesta terceira coletânea de poemas, o autor repete a distribuição dos poemas em grupos adotada nos Pri- meiros cantos: Poesias americanas Poesias diversas Hinos Poesia indianista Auguste François Biard, Dois índios numa canoa (1798-1882) Paris, Museu do Quai Branly Durante o Romantismo, os indígenas foram conside- rados, nas artes, o símbolo da jovem nação brasileira, passando a figurar como heróis em diversas obras. O indianismo romântico é uma busca de raízes nacionais, uma procura no passado histórico brasileiro, do mesmo modo como os europeus foram às fontes medievais de sua formação histórica. Na obra de Gonçalves Dias, o indígena aparece como tema renovador já nos Primeiros cantos, esten- dendo-se aos Últimos cantos e também ao inacabado Os timbiras. O poeta busca o elemento indígena nas flores- tas longínquas, ou, ainda, em memórias de florestas que imagina intocadas, bem antes da aproximação do não indígena; é idealizado, forjado nos moldes do “bom selvagem”, criado por Jean-Jacques Rousseau: “O homem nasce bom. A sociedade o corrompe”. 24 I-Juca-Pirama Um dos mais conhecidos poemas indianistas é “I-Juca- -Pirama“, cujo título significa, na língua tupi, “o que é digno de ser morto”. O narrador do poema é o chefe da tribo timbira, que conta aos jovens timbiras o drama do último des- cendente da tribo tupi, feito prisioneiro dos timbiras. O guerreiro tupi seria sacrificado e devorado numa festa canibal, mas pelo amor ao pai, já velho e cego, o prisioneiro implora ao chefe dos timbiras que o liberte para cuidar do pai. Julgando-o um covarde, o chefe timbira desiste do sacrifício e solta o prisioneiro. O jovem tupi reencontra-se com o pai. Este des- cobre, por meio dos odores da tinta específica do ritual canibalesco timbira, que o filho estivera preso. Indigna- do com o filho, amaldiçoa-o violentamente. Ferido em seu orgulho, o jovem tupi põe-se so- zinho a lutar contra os timbiras até a morte, conven- cendo a todos de sua coragem e bravura, preservando, dessa forma, a honra e a dignidade dos tupis. Leia o Canto IV do poema “I-Juca-Pirama“, em que o narrador cede a voz ao índio tupi, que declama o seu canto de morte, pedindo aos timbiras que o liber- tem para cuidar do pai velho e cego. Meu canto de morte, Guerreiro, ouvi; Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo Tupi. Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci; Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiro, ouvi. Já vi cruas brigas, De tribos imigas, E as duras fadigas Da guerra provei; Nas ondas mendaces Senti pelas faces Os silvos fugaces Dos ventos que amei. Andei longes terras, Lidei cruas guerras, Vaguei pelas serras Dos vis Aimorés; Vi lutas de bravos, Vi fortes – escravos! De estranhos ignavos Calçados aos pés. [...] Aos golpes do inimigo Meu último amigo, Sem lar, sem abrigo Caiu junto a mi! Com plácido rosto, Sereno e composto, O acerbo desgosto Comigo sofri. Meu pai a meu lado Já cego e quebrado, De penas ralado, Firmava-se em mi: Nós ambos, mesquinhos, Por ínvios caminhos, Cobertos d’espinhos Chegamos aqui O velho no entanto Sofrendo já tanto De fome e quebranto, Só qu’ria morrer! Não mais me contenho, Nas matas me embrenho, Das frechas que tenho Me quero valer. 25 Então, forasteiro, Cai prisioneiro De um troço guerreiro Com que me encontrei: O cru dessossego Do pai fraco e cego, Enquanto não chego, Qual seja – dizei! Eu era o seu guia Na noite sombria, A só alegria Que Deus lhe deixou: Em mim se apoiava, Em mim se firmava, Em mim descansava, Que filho lhe sou. Ao velho coitado De penas ralado, Já cego e quebrado, Que resta? – Morrer. Enquanto descreve O giro tão breve Da vida que teve, Deixa-me viver! Não vil, não ignavo, Mas forte, mas bravo, Serei vosso escravo: Aqui virei ter. Guerreiros, não coro Do pranto que choro; Se a vida deploro Também sei morrer. Apesar de ter uma fama narrativa que configu- ra o gênero épico e um conteúdo dramatizável, pre- domina no poema o gênero lírico – um lirismo fácil e espontâneo, perpassado das emoções e subjetividade do poeta. Como é próprio do Romantismo, estilo a que está ligado Gonçalves Dias, é um lirismo que brota do coração e da “imaginação criadora” do poeta e que expressa bem o sentimentalismo romântico. A obra é indianista e vale ressaltar a musicalidade dos versos que é uma característica típica de Gonçalves Dias. O poema “I-Juca-Pirama“ nos dá uma visão mais próxima do índio, ligado aos seus costumes, ide- alizado e moldado ao gosto romântico. O índio inte- grado ao ambiente natural e, principalmente, adequa- do a um sentimento de honra, reflete o pensamento ocidental de honra tão típico das novelas de cavalaria medievais – é o caso do texto “Rei Arthur e a távola redonda“. Se os europeus podiam encontrar na ida- de média as origens da nacionalidade, o mesmo não aconteceu com os brasileiros. Provavelmente por essa razão, a volta ao passado, mesclada ao culto do bom selvagem, encontra na figura do indígena o símbolo exato e adequado para a realização da pesquisa lírica e heroica do passado. O índio é então redescoberto, embora sua re- criação poética dê ideia da redescoberta de uma raça que estava adormecida pela tradição e que foi revivida pelo poeta. O idealismo, a etnografia fantasiada, as si- tuações desenvolvidas como episódios da grande ges- 26 ta heroica e trágica da civilização indígena brasileira, a qual sofre a degradação do branco conquistador e colonizador, têm na sua forma e na sua composição re- flexos da epopeia, da tragédia clássica e dos romances de gesta da idade média. Assim, o índio que conhece- mos nos versos bem elaborados de Gonçalves Dias é uma figura poética, um símbolo. Gonçalves Dias centra “I-Juca-Pirama“ num estado de coisas que ganham uma enorme importân- cia pela inevitável transgressão cometida pelo herói, transgressão de cunho romanesco (o choro diante da morte) que quando transposta a literatura gera uma incrível idealização dos estados de alma. Como exem- plo, podemos citar as reações causadas pelo “suposto medo da morte“. Com isso, o autor transforma a alma indígena em correlativos dos seus próprios movimen- tos, sublinhando a afetividade e o choque entre os afetos: há uma interpenetração de afetos (amor, ódio, vingança etc.) que estabelece uma harmonia românti- ca entre o ser que está sendo julgado e a sua natureza – a natureza indígena, com a consequente preferência pelas cenas e momentos que correspondem ao teor das emoções. Daí as avalanches de bravura e de louvor à honra e ao caráter. Poesia lírica O lirismo amoroso aparece na obra de Gonçalves Dias na forma de baladas, canções, poemas longos, tudo numa linguagem personalizada e bastante comedida, distante da lamúria chorosa que haveria de caracteri- zar outras gerações românticas. Os temas de sua poesia lírica são abrangentes: desde a pátria, a natureza e a grandiosidade divina, até a solidão, o preconceito e o desacerto amoroso. O poema a seguir é uma espécie de profissão de fé a respeito dos limites entre a paixão e o amor, apontando diferenças, estabelecendo parâmetros e, enfim, trazendo à tona a emoção com raciocínio. SE SE MORRE DE AMOR Se se morre de amor! – Não, não se morre, Quando é fascinação que nos surpreende [...] Amor é vida; é ter constantementeAlma, sentidos, coração – abertos Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos D’altas virtudes, te capaz de crimes! Compreender o infinito, a imensidade, E a natureza e Deus; gostar dos campos, D’aves, flores, murmúrios solitários; Buscar tristeza, a soledade, e ermo, E ter o coração em riso e festa; E à branda festa, ao riso da nossa alma Fontes de pranto intercalar sem custo; Conhecer o prazer e a desventura No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto O ditoso, o misérrimo dos entes: Isso é amor, e desse amor se morre! (“Se se morre de amor”. DIAS, Gonçalves. Poesia e prosa completa. Op. cit.) MARABÁ Eu vivo sozinha, ninguém me procura! Acaso feitura Não sou de Tupã! Se algum dentre os homens de mim não se es- conde: — “Tu és”, me responde, “Tu és Marabá!” — Meus olhos são garços, são cor das safiras, — Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar; — Imitam as nuvens de um céu anilado, — As cores imitam das vagas do mar! Se algum dos guerreiros não foge a meus passos: “Teus olhos são garços”, Responde anojado, “mas és Marabá: “Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes, “Uns olhos fulgentes, “Bem pretos, retintos, não cor d’anajá!” — É alvo meu rosto da alvura dos lírios, — Da cor das areias batidas do mar; 27 — As aves mais brancas, as conchas mais puras — Não têm mais alvura, não têm mais brilhar. Se ainda me escuta meus agros delírios: — “És alva de lírios”, Sorrindo responde, “mas és Marabá: “Quero antes um rosto de jambo corado, “Um rosto crestado “Do sol do deserto, não flor de cajá.” — Meu colo de leve se encurva engraçado, — Como hástea pendente do cáctus em flor; — Mimosa, indolente, resvalo no prado, — Como um soluçado suspiro de amor! “Eu amo a estatura flexível! ligera, Qual duma palmeira”, Então me respondem: “tu és Marabá: “Quero antes o colo da ema orgulhosa, Que pisa vaidosa, “Que as flóreas campinas governa, onde está.” — Meus loiros cabelos em ondas se anelam, — O oiro mais puro não tem seu fulgor; — As brisas nos bosques de os ver se enamoram, — De os ver tão formosos como um beija-flor! Mas eles respondem: “Teus longos cabelos, “São loiros, são belos, “Mas são anelados, tu és Marabá: “Quero antes cabelos, bem lisos, corridos, “Cabelos compridos, “Não cor d’oiro fino, nem cor d’anajá.” E as doces palavras que eu tinha cá dentro A quem nas direi? O ramo d’acácia na fronte de um homem Jamais cingirei: Jamais um guerreiro da minha arazoia Me desprenderá: Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, Que sou Marabá! (“Marabá”. In: DIAS, Gonçalves. Poesia e prosa completa) Leia outro poema da obra Últimos cantos: LEITO DE FOLHAS VERDES Por que tardas, Jatir, que tanto a custo À voz do meu amor moves teus passos? Da noite a viração, movendo as folhas, Já nos cimos do bosque rumoreja. Eu sob a copa da mangueira altiva Nosso leito gentil cobri zelosa Com mimoso tapiz de folhas brandas, Onde o frouxo luar brinca entre flores. Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, Já solta o bogari mais doce aroma! Como prece de amor, como estas preces, No silêncio da noite o bosque exala. Brilha a lua no céu, brilham estrelas, Correm perfumes no correr da brisa, A cujo influxo mágico respira-se Um quebranto de amor, melhor que a vida! A flor que desabrocha ao romper d'alva Um só giro do sol, não mais, vegeta: Eu sou aquela flor que espero ainda Doce raio do sol que me dê vida. Sejam vales ou montes, lago ou terra, Onde quer que tu vás, ou dia ou noite, Vai seguindo após ti meu pensamento; Outro amor nunca tive: és meu, sou tua! Meus olhos outros olhos nunca viram, Não sentiram meus lábios outros lábios, Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas A arazoia na cinta me apertaram. Do tamarindo a flor jaz entreaberta, Já solta o bogari mais doce aroma Também meu coração, como estas flores, Melhor perfume ao pé da noite exala! Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes À voz do meu amor, que em vão te chama! Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil A brisa da manhã sacuda as folhas! No poema, o poeta filia-se à tradição medieval das canções de amigo imprimindo-lhe a cor local. No que diz respeito à estruturação da sonoridade do poe- ma “Leito de folhas verdes”, a sua métrica se compõe 28 em versos decassílabos com acentos tônicos regulares nas segunda/terceira, sextas e décimas sílabas, carac- terizando, assim, o verso heroico. Na primeira estrofe, o eu lírico feminino anseia pela volta de seu amado, Jatir, (1º e 2º versos) e ques- tiona o porquê de sua demora. Note-se que aqui, os elementos da natureza corroboram a sensação de an- gústia da mulher (3º e 4º versos). Na segunda e terceira estrofes, temos o leito de amor, feito sob a copa da mangueira e feito de fo- lhas brandas. Aqui, a natureza traduz toda a doçura do esperado encontro amoroso: mimoso tapiz de folhas brandas; o frouxo luar brinca entre flores; solta o boga- ri mais doce aroma. A espera se prolonga e a angústia cresce, como evidencia a metáfora contida nos versos 4º e 5º da 5ª estrofe: Eu sou aquela flor que espero ainda/ Doce raio do sol que me dê vida. Ela é a flor que depende dos raios de sol (a presença do amado) para viver. A 6ª estrofe evidencia a idealização do amor, que vence todos os obstáculos (versos 1 e 2). Da mes- ma forma, é idealizada a figura feminina que devota total fidelidade ao seu homem, conforme observamos na 7ª estrofe. Na última estrofe, temos a desilusão do eu líri- co. Com a chegada da manhã, a esperança e a expec- tativa dão lugar à decepção e à tristeza, pois Jatir não responde ao seu chamado. Pede então que a brisa da manhã leve consigo as folhas do leito inútil. Os versos presentes nessa estrofe representam uma metáfora dos sentimentos e das emoções do “eu poético”, tendo em vista que, ao amanhecer, as flores que durante a noite exalavam um forte perfume, neste momento, seu perfume já não tem a mesma intensi- dade, ou seja, podemos comparar a intensidade do aroma noturno com os sentimentos da amada. Isto é, as esperanças que, durante a noite, fortaleciam seu co- ração estão se desfazendo, contrastando com as espe- ranças que ela nutria ainda durante a noite, momento em que seu coração se sentia mais esperançoso e forte, tal qual o perfume das flores. Em “Leito de folhas verdes”, temos, portanto, uma síntese dos elementos mais caros à tradição ro- mântica: o sentimentalismo, a idealização amorosa, a idealização da figura feminina, a natureza expressiva, o medievalismo e o nacionalismo (de matiz indianista). 29 APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS 2. Sugere que a natureza se prepara para a che- gada de Jatir o verso: a) “Eu sob a copa da mangueira altiva”. b) “A arazoia na cinta me apertaram”. c) “Já solta o bogari mais doce aroma!”. d) “Um quebranto de amor, melhor que a vida!”. 3. O eu lírico do texto tem por interlocutor: a) o leitor. b) Jatir. c) Tupã. d) a natureza. 4. Revela o elemento tempo no poema o verso: a) “Onde o frouxo luar brinca entre flores”. b) “Sejam vales ou montes, lago ou terra”. c) “A cujo influxo mágico respira-se”. d) “Correm perfumes no correr da brisa”. 5. Nos versos “Eu sou aquela flor que espero ainda/ doce raio do sol que me dê vida”, te- mos: a) um eufemismo. b) uma hipérbole. c) uma metáfora. d) um pleonasmo. 6. Uma das passagens do poema na qual fica cla- ro que o eu lírico trata-se de uma mulher é: a) “Nosso leito gentil cobri zelosa”. b) “À voz do meu amor moves teus passos?”. c) “Onde quer que tu vás, ou dia ou noite”. d) “À voz do meu amor, que em vão te chama!”. 7. Que referências no poema nos fazem con- cluir que o eu lírico trata-se de uma moça indígena? a) viração, bosque b) leito, tamarindo c) quebranto, brisa d) arazoia, Tupã 8. No decorrer do poema, o eu lírico expressa um sentimento de: a) impaciência. b) decepção. c) expectativa. d) irritação. 9. “Por que tardas, Jatir, que tanto a custo? À voz do meu amor moves teus passos?”, a ex- pressão destacada da ideia de: a) causa. b) consequência. c) modo. d) tempo. TEXTO PARA AS QUESTÕES 01 A 09 LEITODE FOLHAS VERDES Por que tardas, Jatir, que tanto a custo À voz do meu amor moves teus passos? Da noite a viração, movendo as folhas, Já nos cimos do bosque rumoreja. Eu sob a copa da mangueira altiva Nosso leito gentil cobri zelosa Com mimoso tapiz de folhas brandas, Onde o frouxo luar brinca entre flores. Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, Já solta o bogari mais doce aroma! Como prece de amor, como estas preces, No silêncio da noite o bosque exala. Brilha a lua no céu, brilham estrelas, Correm perfumes no correr da brisa, A cujo influxo mágico respira-se Um quebranto de amor, melhor que a vida! A flor que desabrocha ao romper d’alva Um só giro do sol, não mais, vegeta: Eu sou aquela flor que espero ainda Doce raio do sol que me dê vida. Sejam vales ou montes, lago ou terra, Onde quer que tu vás, ou dia ou noite, Vai seguindo após ti meu pensamento; Outro amor nunca tive; és meu, sou tua! Meus olhos outros olhos nunca viram, Não sentiram meus lábios outros lábios, Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas A arazoia na cinta me apertaram. Do tamarindo a flor jaz entreaberta, Já solta o bogari mais doce aroma Também meu coração, como estas flores, Melhor perfume ao pé da noite exala! Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes À voz do meu amor, que em vão te chama! Tupã! lá rompe o sol! Do leito inútil A brisa da manhã sacuda as folhas! (Gonçalves Dias) 1. A informação principal do texto é: a) a certeza do eu lírico a cerca do amor de Jatir e da brevidade de seu retorno. b) a confirmação de que o amor do eu lírico por Jatir vence distância e obstáculos. c) o eu lírico está a espera de seu amado sem qualquer esperança de sua chegada. d) o retorno do amado é aguardado não só pela amada como também pela natureza. 30 10. (UFPR 2017) Sobre o livro de poesia Últimos cantos, de Gonçalves Dias, considere as se- guintes afirmativas: I. A métrica em “I-Juca-Pirama” é variável e tem conexão com a progressão dos fatos narrados, o que permite dizer que o ritmo se ajusta às reviravoltas da narrativa. II. “Leito de folhas verdes” e “Marabá” te- matizam a miscigenação brasileira ao apresentarem dois casais inter-raciais. III. A “Canção do tamoio” apresenta o relato de feitos heroicos específicos desse povo para exaltar a coragem humana. IV. O poema “Hagaar no deserto” recria um episódio bíblico e apresenta uma escrava escolhida por Deus para ser mãe de Isma- el, o patriarca do povo árabe. Assinale a alternativa correta. a) Somente as afirmativas I e III são verdadei- ras. b) Somente as afirmativas II e III são verdadei- ras. c) Somente as afirmativas I e IV são verdadei- ras. d) Somente as afirmativas I, II e IV são verda- deiras. e) Somente as afirmativas II, III e IV são verda- deiras. 11. (Ufrrj) I-Juca-Pirama Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és! DIAS, Gonçalves. Últimos cantos. In: REBELO, M. (Org.). Antologia escolar brasileira. Rio de Janeiro: MEC/Fename, 1967, p. 276. Nos versos do poema acima, vê-se a indigna- ção do velho índio tupi, ao saber que o filho pedira aos inimigos aimorés que lhe poupas- sem a vida. Neles, Gonçalves Dias apresenta um dos tra- ços mais caros ao Romantismo, que é o: a) culto a valores heroicos, como herança da era medieval. b) subjetivismo que se revela através da poesia em primeira pessoa. c) gosto pelas metáforas. d) escapismo, que faz o romântico criar um mundo próprio e idealizado. e) gosto pelo mistério, que se traduz num ma- soquismo. 12. (PUC-Camp) Do tamarindo a flor jaz entreaberta, Já solta o bogari mais doce aroma; Também meu coração, como estas flores, Melhor perfume ao pé da noite exala! (Leito de folhas verdes) Ação tão nobre vos honra, Nem tão alta cortesia Vi eu jamais praticada Entre os Tupis – e mas foram Senhores em gentileza. (I-Juca-Pirama) Os excertos dos poemas anteriormente indi- cados, dos Últimos cantos, exemplificam esta afirmação sobre a poesia de Gonçalves Dias: a) A contemplação da natureza leva à expres- são de convicções religiosas, assim como os valores cristãos sobrepõem-se sutilmente à rudeza da vida selvagem. b) Não se distingue a donzela branca da aman- te indígena, tanto quanto não se opõe a bravura do índio à bravura de um cavaleiro medieval. c) O amor da índia espelha a força da própria natureza, mas código de conduta dos guer- reiros indígenas reflete os valores dos fidal- gos medievais. d) A sublimação do amor implica a idealização da morte, assim como o código de conduta dos guerreiros indígenas idealiza os valores dos fidalgos medievais. e) O amor da índia espelha a força da própria Natureza, tanto quanto se apresentam com naturais e próprios os valores de conduta do guerreiro indígena. GABARITO 1. D 2. C 3. B 4. A 5. C 6. A 7. D 8. C 9. D 10. C 11. A 12. C L OBRAS C Casa de Pensão Obras L C Aluísio de Azevedo 33 ALUÍSIO DE AZEVEDO O cortiço é sem dúvida a obra que fundamenta uma tendência literária chamada de Naturalismo no Brasil. Essa tendência tem início no Brasil com a publicação de O mulato, de Aluísio Azevedo, no ano de 1881, no entan- to, é O cortiço que engloba todas as características necessárias para compor o chamado “romance de tese” e os pressupostos cientificistas característicos do final da segunda metade do século XIX. Em O Cortiço, a história gira em torno de dois portugueses, Miranda e João Romão, a princípio um contra- ponto entre a riqueza luxuosa do primeiro e a miséria e avareza do segundo. Os caminhos de João Romão para atingir o mesmo plano econômico serão aterradores. Além disso, ele vai buscar também uma ascensão social. Romão não vai medir esforços e escrúpulos para tal. Este é o viés naturalista em questão, ou seja, um mundo de atitudes que pensam no fim sem se preocupar com os meios em uma conduta justificável, que trata a visão realista das obras naturalistas. João Romão é fruto do meio em que luta severamente para sobreviver e prosperar, e atro- pela todos que atravessassem seu caminho. Aluísio Azevedo segue o molde de Eça de Queirós ou de Zola por trazer como técnica as minúcias da descri- ção, a precisão analítica e a crítica social. Além disso, o autor trabalha com versatilidade no emprego dos diálogos, fisiologismo, traduzindo como eram os ambientes dos cortiços cariocas do final do século XIX. Espaços estes, onde a degradação de maneira tensa culmina em desfechos mortais, por ciúmes ou atração sexual. A classe baixa e humilde da sociedade e a classe em ascensão são reunidas em agrupamentos humanos. O próprio cortiço é colocado com um personagem central. O espaço se caracteriza como algo de suma importância para o desenrolar da narrativa, pois vai determinar o comportamento dos personagens. O Cortiço se estrutura em três espaços distintos, que em consequência determinam o elenco social: o sobrado do Miranda, a venda de João Romão e o próprio cortiço. 34 Tendência naturalista Naturalismo substantivo masculino condição, estado do que é produzido pela na- tureza. . fil doutrina que, negando a existência de es- feras transcendentes ou metafísicas, integra as realidades anímicas, espirituais ou forças cria- doras no interior da natureza, concebendo-as redutíveis ou explicáveis nos termos das leis e fenômenos do mundo. Estilo de época e estilo individual O Naturalismo marca uma oposição ao mundo idealizado do Romantismo, dando prosseguimento en- quanto tendência ao Realismo. O trabalho se incumbe do materialismo e do cientificismo que analisa as mi- núcias da natureza humana e da sociedade, o determi- nismo do meio social, da raça e do momento histórico. Um dos princípios norteadores do trabalho de H. Taine. Contexto Casa de Pensão é uma obra do ano de 1884, publicada em meio ao desenvolvimento das corren- tes realistas e naturalistas, debruçando-se mais sobre a última. Pensar o contexto de publicação daobra é pensar em um Brasil ainda escravocrata, haja vista que a assinatura da Lei Áurea, que oficializou a abolição da escravidão só aconteceria quatro anos depois. Fica evidente, na obra, que o país iniciava os seus processos de modernização, os centros econômicos e políticos deixavam de ser os latifúndios, e passavam a ser então os sobrados e às áreas urbanas. Em meio ao cenário de expansão do Rio de Janeiro, Aloísio de Azevedo compõe a sua obra, tecendo crítica-analítica sobre a sociedade burguesa da qual faz parte. CASA DE PENSÃO Baseada em um famoso episódio do Rio de Ja- neiro, ocorrido na segunda metade da década de 70, Casa de Pensão aponta para uma releitura da man- chete jornalística que ficou conhecida como Questão Cipriano. Na história original, um estudante, em defesa da honra de sua irmã, assassinou um outro colegial. Não só na história de Cipriano, mas, também, no ro- mance francês Le père Goriot (O pai Goriot), de Balzac, podemos encontrar correspondências com a história de Aluísio, já que, em ambas as obras, o principal espaço é uma pensão, ambiente determinante de seus persona- gens. Além disso, é a figura de um estudante em busca de prestígio social que o foco narrativo acompanha. Foco Narrado em terceira pessoa, por um narrador onisciente e onipresente, Casa de Pensão é um ro- mance naturalista que trabalha entre o jornalismo e a ficção, entre o romance do sujeito e o romance do espaço. Durante os vinte e dois capítulos de Aluísio de Azevedo, acompanhamos a trajetória de Amâncio, es- tudante que do interior do Maranhão chega ao Rio de Janeiro. Personagens Os personagens, sob nomes fictícios, escondem pessoas reais: Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos - (João Capistrano da Silva) Estudante, acusado de seduzir Amélia. Educa- do severamente pelo pai e pelo professor, mimado pela mãe, tem nos acontecimentos da infância a justificativa naturalista pela personalidade tímida e hipócrita. Amélia ou Amelita - (Júlia Pereira) A moça seduzida, pivô da tragédia. É descrita como uma menina esperta, pouco ingênua, na trama, é ela quem alega ter sido seduzida para evitar que Amâncio voltasse ao Maranhão. 35 Mme. Brizard - (D. Júlia Clara Pereira, mãe da moça e do rapaz que assasina Amâncio) É uma viúva, dona da casa de pensão, tem bas- tante interesse no casamento da filha com Amâncio. João Coqueiro - Janjão - (Antônio Ale- xandre Pereira, irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano) É o rapaz irmão de Amélia. De início, devido a um jogo de interesses, ajuda Amâncio oferecendo- -lhe um lugar na pensão, tentando casá-lo com a irmã. Depois da confusão, torna-se o assassino de Amâncio. Alega ter cometido o crime em defesa da honra da fa- mília e, no final, é absolvido. Enredo Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos é um rapaz de uma família rica do Maranhão que parte para o Rio de Janeiro em busca do título de Doutor e de uma liberdade maior em relação ao seio de sua famí- lia. Amâncio chega ao Rio de Janeiro com uma série de cartas de recomendações, escritas pelo seu pai e alguns professores, em função disso, de início, acaba se hospedando na casa do Sr. Campos, homem que tem gratidão e deve favores ao pai de Amâncio. Contudo, a vida proposta pelo tutor Campos a Amâncio é bastante regrada, já que esse é um homem sério e respeitado por todos, descrito como um sujeito ao mesmo tempo batalhador e sortudo. Amâncio, por sua vez, carrega em si o estereótipo do estudante, que se delicia com os prazeres da vida boêmia agora que vive longe dos pais e do ambiente onde desenvolveu os principais traços de sua personalidade: a hipocri- sia. Essa hipocrisia, porém, é vista como um aspecto a exaltar as características Naturalistas do romance, uma vez que a personagem entende-se de tal modo devido às circunstâncias em que viveu. Assim, como numa in- vestigação, parte dos primeiros capítulos é destinada à descrição da vida do estudante, do nascimento à mu- dança. Muito maltratado pelo pai e pelos professores, aprendeu a desconfiar, nas palavras do autor de seus "semelhantes". Além disso, carrega o estigma da Sí- filis, transmitida a ele pela ama de leite, uma escrava negra. É nesse meandro de descrições bastante espe- cíficas, articuladas pelo narrador que tudo vê e tudo sabe, que se justifica a personalidade da personagem. Assim, na fuga da rígida vida, aceita o convite de João Coqueiro e muda-se para uma pensão (a Casa de Pensão) – vale destacar que um certo envolvimento amoroso entre Amâncio e a esposa do Sr. Campos co- meçava a se anunciar no momento dessa decisão. Na pensão, outra vez, o determinismo é posto em jogo, uma vez que a pensão é vista como um ambiente popular, um antro de promiscuidade, responsável por abrigar pessoas marginalizadas e marginalizar aqueles que lá vivem. A pensão é administrada por Mme. Brizard, mãe de João Coqueiro e de Amélia. Esses personagens passam a orbitar Amâncio, pois sabem de sua origem rica, pretendendo, assim, o casamento entre o estu- dante maranhense e Amélia. Em meio a esse jogo de interesses que revela a institucionalização do casa- mento, bem como sua instrumentalização em relação à ascensão social, episódios como a expulsão de jo- vens mulheres da pensão, já que, na visão de Brizard, elas poderiam se apresentar como melhores pretendes a Amâncio do que sua filha, desnudam a crítica à ins- tituição burguesa e exibem o determinismo que ronda as personagens da pensão maltrapilha. Nesse tempo, Amélia e Amâncio enamoram-se. Cabe destacar que a moça é descrita no livro de for- ma não idealizada, isto é, sem ingenuidade. O enlace entre os dois vai bem, o que agrada a família de Amé- lia, que se anima com a ideia do casamento, o qual, consequentemente, traria melhores condições de vida a todos, dada a origem nobre do estudante. Contudo, o casamento não está nos planos de Amâncio, que goza da liberdade e da vida boêmia, embora dê sinais – lem- bremos que lhe foi determinado ser sempre aquilo que esperam dele – de que a moça o agrada para tal. O embate ocorre quando, no Maranhão, seu pai falece. O procedimento então é que ele retorne, para 36 ajudar a mãe e cuidar dos negócios da família. Entre- tanto, Amélia não o pretende deixar partir, nem João Coqueiro, que o intima ao casamento antes da ida ao Maranhão. Amâncio posterga e planeja uma fuga, mas é descoberto. Para evitar, então, que o estudante parte, Amélia o acusa de sedução e, antes que pudesse partir, o jovem é preso. O caso ganha comoção popular e Amâncio vai parar no tribunal, do qual é absolvido. O jovem se tor- na muito popular, inclusive entre as mulheres, e passa a gozar ainda mais dos prazeres da vida boêmia que tanto almejou. Todavia, a família de Brizard não está feliz com a decisão, de modo que, tomado por um im- pulso de defender a honra da família, João Coqueiro, munido de um revólver, assassina Amâncio. O jovem morto tem um enterro, então, espetacularizado e co- berto pela mídia. O livro termina com a também absolvição do assassino, que matou para defender a honra da fa- mília. Nos últimos capítulos, o autor narra a ida da mãe de Amâncio ao Rio de Janeiro, em busca do filho, encontrando-o, porém, apenas em uma foto de jornal, morto e ensanguentado. 37 APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS 7. (Mackenzie) É uma característica da obra de Camilo Castelo Branco: a) a influência rica em sua poesia de símbolos, imagens alegóricas e construções. b) a oscilação entre o lirismo e o sarcasmo, dei- xando páginas de autêntica dramaticidade, vibrando com personagens que comumente intervêm no enredo, tecendo comentários piedosos, indignados ou sarcásticos. c) a busca de uma forma adequada para conter o sentimentalismo do passado e das formas românticas. d) o fato de deixar ao mundo um alerta sobre o mal-estar trazido pela civilização
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