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CARVALHO, Olavo de Visões de Descartes - Entre o Gênio Mau e o Espírito da Verdade

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OLAVO DE CARVALHO
Visões
de
Descartes
Entre o Gênio Mau e o Espírito da Verdade
En mi soledad
he visto cosas muy claras
que no son verdad.
ANTONIO MACHADO
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Epígrafe
Introdução e agradecimentos
Parte 1 – O enigma Descartes
I . O eu pensante e a consciência
II. A psicologia da dúvida
Parte 2 – Consciência e estranhamento
III. Revisão do itinerário
IV. Passagem a um novo enfoque
V. A condição de possibilidade da dúvida cartesiana: o
dinamismo antivital
VI. Uma falsa explicação: o desejo de conhecimento
VII. É natural saber geralmente a verdade ou é natural
geralmente errar?
VIII. Fenomenologia do estranhamento (1) – Precauções de
método
IX. Fenomenologia do estranhamento (2) – Estranhar e
assumir
X. Reflexão completa e dúvida cartesiana
XI. No fundo do poço
XII. Mais problemas
XIII. A segunda morte
Parte 3 – Conclusões e acréscimos
XIV. Os três sonhos
XV. Descartes e Husserl
Apêndice: nas origens da burrice ocidental
Créditos
Sobre a Obra
A
INTRODUÇÃO E AGRADECIMENTOS
LINHAVADO ÀS PRESSAS com transcrições de aulas e outros
fragmentos que fui espalhando entre meus alunos ao longo dos
anos, este livro não é decerto o primor de exposição ordenada que
eu desejaria ter feito dele se me sobrasse tempo. Isso não o impede
de conter o essencial do que andei ensinando sobre a filosofia de
René Descartes segundo um método que absorvi principalmente do
Platão de Paul Friedländer.[ 1 ]
Esse método envolve a convicção de que a filosofia não nasce do
simples gosto pelo raciocínio abstrato, mas do impulso urgente e
profundo de apreender e expressar, na medida das possibilidades
individuais, o sentido universal da experiência acessível. Retornar
das “idéias” às experiências reais que as originaram não é, portanto,
uma tentativa de “explicar psicologicamente” uma filosofia, mas
simplesmente de esclarecer o sentido efetivo que essas idéias
tinham na consciência pessoal do filósofo que as pensou, para além
ou por baixo do sentido formal e dicionarizado que adquiriram
depois na tradição filosófica.
Quando sei, por exemplo, que Hegel via em Napoleão Bonaparte a
encarnação viva da “Alma do Mundo”, entendo mais concretamente
o que ele queria dizer ao falar da “auto-realização de Deus na
História”. Quando sei que Maquiavel apostava quase sempre no
partido perdedor, entendo que sua visão amoral dos jogos de poder
não era o resultado de uma fria observação científica, como tantos
pretenderam, e sim uma idealização poética do mal.[ 2 ]
A pura investigação psicológica de uma biografia de filósofo pode
levar a compreender a sua filosofia como o perfil de uma
consciência individual tomada como mero fato histórico, mas o
método de Friedländer descortina o que essa consciência tem de
universal como manifestação exemplar de altas possibilidades
cognitivas humanas tal como se realizaram num indivíduo e numa
situação em particular. A construção de uma filosofia assume assim
a figura de um drama, não psicológico, mas cognitivo. Foi por isso
que defini a filosofia como “busca da unidade do conhecimento na
unidade da consciência e vice-versa”. Acredito que esse enfoque
neutraliza e supera a antinomia assim formulada por Martial
Guéroult na introdução da sua monumental Histoire de l’Histoire de
la Philosophie: se a filosofia consiste em verdades universais, em
princípio eternas e imutáveis, como pode haver uma história das
filosofias que se sucedem no tempo? A consciência individual
humana, seja a do filósofo, seja a de qualquer outro, não “contém”
verdades universais, apenas as reflete simbolicamente na sua forma
própria e singular. A filosofia, em suma, é uma forma simbólica,
como a arte, a religião ou a ciência mesma. A sucessão das
filosofias, como a das experiências religiosas, dos estilos artísticos e
das teorias científicas, deriva da natureza mesma do símbolo, que
não se afasta do simbolizado nem o esgota jamais, devendo por
isso ser sempre recomeçado de novo e de novo à medida que a
passagem do tempo vai tornando opaco aquilo que na origem
parecia translúcido.
A tese que exponho neste pequeno livro pode ser resumida no
seguinte: O “Gênio Mau” a que se refere Descartes não é um
artifício literário nem um “instrumento psicológico” (termo de Martial
Guéroult) usado para dar mais credibilidade à certeza do ego
cogitans, mas é o verdadeiro tema central das Meditações de
filosofia primeira, a obra máxima do filósofo. O projeto de Descartes
aí não é superar a mera dúvida teorética quanto à possibilidade do
conhecimento, mas aplacar o temor da “morte da alma” sem
recorrer à fé ou a argumentos teológicos de qualquer natureza. Três
séculos depois dele, Edmund Husserl retomaria o mesmo projeto,
resumindo-o como um esforço supremo para “chegar a Deus sem
Deus”.
Esses dois momentos da história da filosofia refletem um dos
dramas mais intensos e temíveis do pensamento moderno, e só
podem ser compreendidos desde o ponto de vista do drama
cognitivo pessoal vivenciado pelos dois filósofos.
Um estudo sobre Husserl, para o qual me exercito há vários anos,
deve portanto seguir-se a este livro, mais cedo ou mais tarde, como
seu complemento natural.
Agradeço a Fernando Manso, a Luciane Amato, a Marcela
Andrade, a Silvio Grimaldo, ao Grupo de Transcrições do Seminário
de Filosofia, à minha esposa Roxane, à minha filha Leilah Maria e a
todos os demais que me ajudaram a conservar os fragmentos que
compõem este livro. Agradeço também ao editor César Kyn e à sua
esposa Adelice pela colaboração inteligente e prestativa. Agradeço
especialmente a Rodrigo Gurgel pelas importantes observações e
correções que me enviou após um atento exame do texto.
Richmond, VA, outubro de 2013
[ 1 ] Plato, transl. Hans Meyerhoff, 3 vols., Princeton University Press (Bollingen Series),
1958-1969.
[ 2 ] Expliquei isso em Maquiavel ou A confusão demoníaca, Campinas, Vide Editorial,
2011.
PARTE 1 - O ENIGMA DESCARTES
I
C
O EU PENSANTE E A CONSCIÊNCIA
OMO RENÉ DESCARTES expõe o núcleo das suas concepções
filosóficas sob a forma de uma confissão autobiográfica, julguei
que, ao falar dele, seria vantajoso seguir-lhe grosso modo o
exemplo, apresentando aqui, em vez de um estudo formal, a
evocação singela e um tanto anárquica de algumas reações que a
leitura de suas Meditações de filosofia primeira despertou em mim.
Digo “evocação” em vez de “narrativa” porque não as reconstituo em
ordem cronológica, apenas extraio delas o essencial do que me
deixaram na memória, do qual algumas partes fui expondo em
fragmentos, ao longo dos tempos, em cursos, conferências e
artigos; outras aparecem aqui pela primeira vez.
Além das Meditações e das Objeções e respostas que a
complementam, estudei também as Regras para a direção do
espírito, o Discurso do método, o Tratado das paixões e partes do
Tratado do mundo. Confesso que, fora disso, não li mais nenhuma
linha de autoria do filósofo, embora tenha estudado uma boa
quantidade de excelentes livros a seu respeito, como os de Martial
Gueroult, Alain, Henri Gouhier, Jean-Luc Marion, Maxime Leroy,
Richard Watson, Lívio Teixeira, Ferdinand Alquié, John R. Cole,
Geneviève Rodis-Lewis, Denis L. Rosenfield, Jorge Secada, Antonio
Negri, Benjamín García-Hernández e não sei mais quantos. Meu
conhecimento das partes da filosofia de Descartes que se espalham
pela sua correspondência, bem como pelos seus escritos de
matemática e ciências naturais, é, pois, todo de segunda mão, ainda
que de boas mãos. Mas, de tudo quanto li de Descartes, nada me
impressionou tanto quanto as Meditações, sem dúvida a sua obra
maior. Foi delas que surgiram, no essencial, as experiências a que
me refiro. À leitura das demais obras – dele ou de seus intérpretes –
só recorri para me certificar de que havia compreendido o espírito
das Meditações.
Não tenho, por isso, a mais mínima presunção de expor aqui o
conjunto do sistema cartesiano, nem de revelar suas estruturas
essenciais, nem muito menos de apreciar com justeza a herança
que deixou na História.
Tudo o que desejo é expor com sinceridade as reaçõesque as
palavras do filósofo despertaram na alma de um leitor. Essas
reações são estritamente pessoais, pontuais e limitadas. Não se
referem ao sistema tomado na sua totalidade, mas somente a
determinadas partes e aspectos que me chamaram a atenção
durante a leitura e que continuaram atiçando minha curiosidade ao
longo dos anos. Às vezes, mais que curiosidade: inquietação e
angústia.
O estudo que publiquei recentemente sobre Maquiavel[ 3 ]
reconstituía a seqüência de visões diferentes que o pensamento do
secretário florentino havia despertado em seus intérpretes ao longo
do tempo. O título do presente livro pode sugerir algo de
semelhante, mas é impressão falsa. As obras dos diversos e ilustres
intérpretes do cartesianismo só são mencionadas aqui de raspão.
Só dois tipos de “visões de Descartes” me interessam neste relato:
as que ele teve e as que eu tive dele.
Estas últimas, não obstante a índole pessoal do testemunho, não
são, é claro, um desenho arbitrário, que ouse reconstruir as opiniões
do filósofo segundo uma hierarquia de interesses que é minha, não
dele. Aqueles aspectos e partes que destaquei são geralmente
reconhecidos como importantes e decisivos pelos mais abalizados
intérpretes de Descartes, e tenho, por isso, a certeza de que o
percurso do meu foco de atenção, se não cobriu o território inteiro
da matéria nem pode se gabar de ter descoberto a quintessência do
cartesianismo, também não se desviou para nada de marginal e
irrelevante. Onde nossas perguntas diferem, deixo isso muito claro,
sem aceitar passivamente a formulação que ele lhes deu nem impor
a minha como se fosse a dele.[ 4 ]
Não sei em que medida minhas observações podem ou não
podem concorrer para uma reinterpretação da filosofia de
Descartes. Não sei e, para ser franco, nem me interessa saber. Com
exceção do tempo que consagrei a Aristóteles, para fins de
educação e treinamento, nunca estudei uma filosofia para conhecer
essa filosofia como tal, mas sim para conhecer, através dela, algo
da realidade, do destino, da vida. Dito de outro modo, nunca tomei
filosofia nenhuma como objeto de estudo, mas sempre como
instrumento que me ajudasse a enxergar melhor o verdadeiro objeto
das minhas preocupações. Segui nisso a lição de Alain, aprendida,
por sua vez, do próprio Descartes, segundo a qual cada um deve
filosofar não para fazer avançar uma disciplina acadêmica, mas
“pour son propre salut”.[ 5 ] A recusa geral dessa lição, nos dias que
correm, dá uma boa medida do estado de corrupção mental em que
o nosso país afundou. No Brasil, por influência da “geração de
predadores” a que me referi em artigo de 2011,[ 6 ] só é considerado
filósofo quem se atenha aos fins, temas e métodos convencionais
do ensino acadêmico cada vez mais deficiente[ 7 ] ou quem,
afastando-se deles porventura, o faça no intuito de “transformar o
mundo” num sentido que tem de ser, é claro, o desejado pelos
professores. Aqueles que filosofam como Alain, como Sócrates,
como Agostinho ou – mais ainda – como Descartes são rejeitados
para as trevas exteriores do “beletrismo”, do “amadorismo” ou do
“ensaísmo”, ainda que revelem, como era o caso do saudoso Mário
Ferreira dos Santos (não pretendo que seja o meu), um domínio das
disciplinas acadêmicas muito superior ao dos seus concorrentes
“profissionais”. Nesse quadro paradoxal, os filósofos de verdade –
um Miguel Reale, um Vilém Flusser e os dois Ferreiras, Mário e
Vicente – são oficialmente não-filósofos; e, por sua vez, os não-
filósofos, os burocratas da filosofia, são chamados de filósofos
precisamente porque não têm filosofia nenhuma e sim, em vez
disso, a licença estatal para ensiná-la. A comicidade desse estado
de coisas não escapou a alguns visitantes estrangeiros, Enzo Paci e
Luigi Bagolini entre outros, como não escapará a ninguém que
medite a advertência de Nicolás Gómez Dávila: “Quanto maior seja
a importância de uma atividade intelectual, mais ridícula é a
pretensão de avalizar a competência de quem a exerce. Um diploma
de dentista é respeitável, mas um de filósofo é grotesco”.
Este livro arrisca-se, portanto, a ser expelido do campo da filosofia
brasileira precisamente por não ser mero trabalho escolar e sim uma
obra de filosofia stricto sensu, que, se assume como ponto de
partida a obra de um filósofo ilustre, não a toma como objeto de
estudo e sim como ocasião e estímulo para descobrir algo que não
está nela nem poderia estar.[ 8 ]
Como eu ia dizendo, o interesse que me moveu a ler Descartes
não foi o desejo de conhecer “a filosofia de Descartes”, mas sim o
de obter dela alguma ajuda para enfrentar três problemas que me
pareciam importantes e que, em parte, mas só em parte, coincidiam
com aqueles que ela suscitava: Qual o caminho que leva ao
conhecimento certo, adequado à ordem do ser? Quais as certezas
fundamentais (supondo-se que existam e sejam mais de uma) das
quais todas as outras dependem? Qual o critério da verdade e do
erro?
Dessas três perguntas, como vim a reconhecer depois, só a
primeira tinha na minha mente um sentido parecido ao que tinha
para Descartes. Na segunda, nunca esperei, como ele, que as
certezas derivadas e secundárias tivessem com as fundamentais a
relação simples que, na ordem dedutiva, as conseqüências têm com
as premissas. De maneira inicialmente espontânea e nebulosa, que
pouco a pouco foi depois se precisando, o que eu entendia como
certezas fundamentais não eram proposições universais
indubitáveis, das quais tudo o mais pudesse ser deduzido. Eram
apenas princípios ordenadores que dessem sentido ao conjunto da
experiência acessível (acessível a mim, é claro), ainda que não
podendo, ou nem sempre podendo, fundamentar cada parte
logicamente, como Descartes esperava que os seus princípios
fizessem.
Quanto ao critério da verdade e do erro, que Descartes acreditou
encontrar nas “idéias claras e distintas” e na certeza que o eu
pensante tem de si mesmo, foi problema que desde o início me
pareceu infinitamente mais complicado e temível.
Desde logo, eu estava advertido do perigo pelos versos de Antonio
Machado que aqui coloquei em epígrafe. Aos quinze anos de idade,
acreditei ter descoberto a Lei dos Três Estados, que brilhava ante
meus olhos com clareza fulgurante. Pouco depois fiquei sabendo
que era de Comte e estava errada. A mais clara e distinta das
idéias, mesmo quando verdadeira, pode ser apenas uma verdade
lógico-formal, desligada de todo conteúdo determinado, portanto
apenas uma verdade possível, hipotética, como todas as verdades
da lógica. Digo, por exemplo, que todos os tiranos que não foram
maus foram bons ou neutros de algum modo. É uma verdade lógica
indiscutível, de vez que entre o bom, o mau e as várias gradações
possíveis do mezzo a mezzo, não há outra alternativa. Mas, quando
vasculho a História em busca de algum tirano que não tenha sido
mau, não encontro nenhum. Aquela proposição, portanto, só é
verdadeira no terreno puramente lógico, mas a lógica só investiga
as relações entre proposições, não entre estas e “a realidade” (a
não ser que você reduza a realidade a um conceito lógico, mas
neste caso ela já não será a realidade e sim apenas um conceito).
Em segundo lugar, Descartes, que professava colocar tudo em
dúvida, jamais mostrou duvidar por um só instante do seu desejo
sincero e honesto de descobrir a verdade. Ele proclama esse desejo
com uma certeza absoluta e faz dele, explicitamente, o motor da sua
vida. Em que medida poderia eu fazer o mesmo? Que garantias
tinha eu de que queria a verdade e não somente alguma ilusão
lisonjeira, “clara e distinta”? O critério da verdade e do erro, que
para Descartes se resumia num simples método lógico de
investigação, tinha para mim, antes disso, uma dimensão
psicológica e moral aterradora. Se logicamente a verdade é apenas
o oposto do erro ou da falsidade e tudo pode se resolver com
tabelas de proposições verdadeiras e falsas, na alma humana ela
tem um inimigo mais poderoso, carregado de uma energia que a
impassividade fria e cristalina da lógica desconhece: a mentira. Pior
que todas, a mentirainterior, a camuflagem que estendemos sobre
aquilo que sabemos, para negá-lo ou fazê-lo parecer outra coisa.
Isso não é um obstáculo sobre o qual se possa saltar
tranqüilamente, presumindo que tudo o que se interpõe entre nós e
a verdade seja uma dificuldade de método. Descartes, aparentando
ousadia, chega a levantar a hipótese do engano universal, mas,
nesse cenário, ele desempenha apenas o papel da vítima inocente,
ludibriada pela força superior do Gênio Mau. Quando cheguei a
essa parte das Meditações, a coisa me pareceu de uma
ingenuidade surpreendente, até mesmo com uma ponta de vaidade
psicótica. Por mais que tentasse me achar lindo, eu não conseguia
me imaginar como uma ilha de sinceridade cercada de mentiras e
fingimentos por todos os lados. Bem ao contrário, eu me conhecia
como autor de mentiras interiores bem cabeludas, às vezes
escondendo-me de mim mesmo como um rato na toca. Ninguém
nasce depois de Freud e Nietzsche impunemente. Para me
enxergar como pura vítima de um Gênio Mau eu teria de fazer
abstração de um fato inegável: o fato de que muitas vezes eu
mesmo tinha sido meu próprio gênio mau, empenhado em enganar-
me com uma persistência e uma inventividade admiráveis. A
hipótese de que “tudo” no mundo fosse uma encenação, um teatro
macabro concebido para me enganar, colocava-me
automaticamente fora e acima do cenário falsificado, na condição
não só de vítima inocente, mas de testemunha acusadora do
engodo universal. Mas como poderia eu me colocar nessa posição,
desempenhar esse papel, sem, no mesmo ato, me instaurar a mim
mesmo como o único ponto de veracidade brilhando solitário no
oceano infinito e tenebroso dos enganos? Com toda a evidência, a
proclamação do cogito, a afirmação do eu pensante como
fundamento único do conhecimento da verdade já estava dada
desde o início como premissa oculta da hipótese do Gênio Mau, que
sem ela não poderia ser nem mesmo formulada. Mas, esperem um
pouco: mais tarde não será precisamente da certeza do cogito que
Descartes vai obter a refutação do império do Gênio Mau? Como
pode a premissa que fundamenta uma hipótese constituir também a
base da sua radical impugnação? A experiência de qualquer pessoa
adulta que se conheça um pouco mostra que não existem limites
precisos entre a autonomia interior da consciência individual e a
ação do Gênio Mau: elas se mesclam e se confundem. A fé ingênua
– autêntica ou fingida – que Descartes deposita na sinceridade da
sua busca da verdade separa em compartimentos estanques o eu
pensante e o Gênio Mau, lançando unilateralmente sobre este as
culpas que o eu compartilha, e já fundando como premissa certa e
inabalável, muito antes da afirmação do cogito ergo sum, o eu como
morada única da verdade universal, restando-lhe apenas, para
consumação desse destino excelso, encontrar as regras do método
apropriado. Todo o universo de dúvidas que Descartes dizia
atormentá-lo permanecia exterior ao seu eu pensante, não o
comprometia em absolutamente nada e por isso podia ser
facilmente neutralizado por um “método”. E este, por sua vez, não
fazia senão reafirmar retroativamente a premissa da
incorruptibilidade do eu pensante, postulada entre sombras desde o
início.
Conhecendo-me como me conhecia, eu não podia embarcar nesse
jogo. O método de que eu precisava não era aquela máquina bem
azeitada que um eu soberano manejava com a segurança e a
desenvoltura de quem já se imagina, desde o início, detentor ou
merecedor privilegiado da verdade fundamental. Ao contrário: o que
eu precisava não era um “método”: era uma luta incessante contra a
mentira interior que, com ou sem a ajuda de um Gênio Mau, fazia de
mim um inimigo da verdade no instante mesmo em que eu
proclamava buscá-la, ao ponto de me fazer suspeitar, nos piores
momentos, que eu próprio era o gênio mau empenhado em tudo
falsificar. Haveria um “método” que me garantisse para sempre
contra mim mesmo? Para isso seria preciso que eu me congelasse
num circuito repetitivo, acionando sempre os mesmos botões do
método para neutralizar sempre as mesmas mentiras. Mas já
confessei que minhas mentiras interiores, como as de todo mundo,
eram inventivas, auto-renováveis sob formas diversas e pretextos
imprevisíveis.
O mais incômodo de tudo era que Descartes julgava poder-se
precaver contra o engano mediante o expediente de colocar tudo
em dúvida até obter provas racionalmente inabaláveis. Mas como
poderia a dúvida defender-me contra o auto-engano, se uma das
minhas modalidades prediletas de auto-engano – como, aliás, as do
restante da espécie humana – consistia precisamente em diluir
numa turva poção de dúvidas aquilo que eu sabia perfeitamente
bem?
João Calvino, que era um sujeito execrável mas fino psicólogo,
definiu a consciência como aquilo que, dentro de nós, inibe a
tentação de negar o que sabemos. O que eu precisava não era um
método lógico que permitisse ao meu eu pensante impugnar umas
proposições e provar outras, mas algo, uma força, um elemento, um
impulso, um x, enfim, que impedisse o meu eu pensante de sufocar
a voz da minha consciência mais profunda. O que eu precisava era
o contrário do que Descartes buscava: não um método pelo qual o
meu eu pensante afirmasse a sua soberania, mas uma disciplina
ativa que subjugasse o pensamento às exigências da consciência.
Essa consciência, por sua vez, não era um ponto luminoso estável
e fixo, mas uma vaga luminosidade, trêmula e intermitente, que só
brilhava nos instantes fugazes em que obtinha alguma vitória,
temporária e incerta, sobre as trevas revoltas que a cercavam, ora
impetuosas e atemorizantes, ora entorpecentes e sedutoras.
Somadas e articuladas, a consciência e as trevas constituíam a
minha “alma” ou pessoa, e nesse conjunto o eu pensante não era
senão um servidor da consciência, mas servidor inconstante e
rebelde, traiçoeiro no mais alto grau, que volta e meia proclamava
sua independência e se voltava contra a proprietária, adornando a
mentira com as pompas da certeza racional ou camuflando-a sob o
prestígio intelectual da dúvida cartesiana.
Das “paixões da alma”, que segundo Descartes o eu pensante
deve esclarecer e domar, nenhuma era mais poderosa e
ameaçadora do que o próprio eu pensante. Que arrebatamento
lúbrico, que acesso de temor, que ciúme doido, que explosão de
cólera se compara, em sua força destrutiva, ao impulso raciocinante
quando destravado de freios morais, quando livre de obstáculos
sentimentais como a piedade, a compaixão, o amor ao próximo, a
humildade, o medo de desagradar a Deus, isto para não mencionar
a simples modéstia e um pouco de senso estético?
Em poucos meses, o culto da razão, na França, matou dez vezes
mais gente do que a Inquisição Espanhola matara em quatro
séculos. As ideologias mortíferas que fizeram do genocídio a prática
habitual de muitos governos conquistaram os povos na base do
apelo emocional, é certo, mas não puderam fazê-lo antes de ganhar
a adesão de hordas inteiras de intelectuais de primeiro plano,
graças ao prestígio científico-racional das noções que as
fundamentavam. É fácil mas inútil alegar que se tratava de
“pseudociência” e não de ciência. Mesmo supondo-se que a
distinção entre as duas seja em todos os casos coisa simples e
improblemática, que não o é de maneira alguma, o fascínio da
pseudociência vem da mesma fonte que o da ciência genuína: tanto
uma quanto a outra não apelam prioritariamente a nenhuma das
paixões grosseiras da alma humana, como o desejo sexual ou a
cobiça de dinheiro, mas à ambição cognoscitiva do eu pensante, ao
impulso de conhecer a verdade e através dela controlar, se não o
universo físico, ao menos as massas de ingênuos que vivem na
ilusão. O dito de Francis Bacon, “saber é poder”, tornou-se a
máxima inaugural da moderna civilização científica. E o próprio
Descartes não enxerga outra virtude maior na sua filosofia do que
sua capacidade de dar aos homens o poder de controlar a natureza.
Entre os personagens de Dostoiévski, os loucos mais perigosos
não exteriorizam a sua loucura em explosões emocionais, mas em
discursos filosófico-ideológicos.Albert Camus distinguia entre os
crimes de paixão e os crimes de lógica – e quem negaria que estes,
mais que aqueles, espalharam violência e crueldade no mundo em
doses insuportáveis? Na tragédia de Eugenio Corti, Processo e
Morte de Stálin, o ditador soviético, respondendo aos companheiros
que lhe imputam uma lista de crimes hediondos, demonstra
calmamente, metodicamente, que tudo o que fizera de mau tinha
sido apenas a aplicação lógica e racional dos princípios do
marxismo-leninismo. E não vejo meio de contestar a advertência de
Victor Frankl: Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que
inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka:
elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e
filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns
pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que,
se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de
umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja
eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns
quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e
conseqüente.[ 9 ]
Não, o eu pensante não é, definitivamente, a sede da consciência,
no sentido que Calvino dá ao termo. Como é, precisamente, a
relação entre esses dois domínios, tal como aparece nas
Meditações de Descartes?
[ 3 ] Maquiavel ou A confusão demoníaca, Campinas, Vide Editorial, 2011.
[ 4 ] À publicação deste livro deve seguir-se, não sei exatamente quando, a da transcrição
completa das aulas do Seminário de Filosofia que dediquei a uma leitura analítica das
Meditações. Nessa transcrição, as hipóteses interpretativas aqui esboçadas encontram
mais ampla fundamentação textual.
[ 5 ] “Les Dieux”, em Les Arts et les Dieux, Paris, Gallimard, 1958, p. 1203.
[ 6 ] “Uma geração de predadores”, Diário do Comércio (São Paulo), 3 de junho de 2011,
reproduzido em http://www.olavodecarvalho.org/semana/110603dc.html.
[ 7 ] “Imitação subdesenvolvida de um modelo degenerado”, chamou-o Jean-Yves Bézieau.
[ 8 ] “Embora tenha dedicado bons anos de minha vida ao estudo de alguns grandes
autores do passado, não me considero um ‘especialista’ em nenhum deles. Acho até
engraçada essa peculiar invenção brasileira: o filósofo especialista em outro filósofo.
Diversamente do que cabe ao mero estudioso, erudito, professor, pesquisador ou coisa que
o valha, a obrigação do filósofo é desenvolver a sua própria filosofia, não a dos outros, por
ilustres e grandes que sejam. Ele pode, como aliás todos fazem, utilizar-se de elementos
que aprendeu deles, mas integrando-os na estrutura do seu próprio pensamento e dando-
lhes por isso, necessariamente, um sentido um tanto diverso do que tinham nos textos
originais. Não há nenhuma infidelidade nisso, é apenas a obra da inteligência que vai em
frente, descobrindo novas dificuldades e soluções, sem poder ater-se servilmente à letra do
que foi ensinado no passado. O próprio Sto. Tomás de Aquino é às vezes um mau
explicador do seu mestre, justamente nos momentos em que sua própria filosofia alcança
dimensões que Aristóteles desconhecera. Pode-se duvidar da exatidão histórica do
Nietzsche de Heidegger, e eu mesmo duvido; mas nem por isso o livro deixa de ser uma
admirável exposição do pensamento de Heidegger” (O. de C., “Malditos farsantes”, 21 de
julho de 2011, em http://www.olavodecarvalho.org/textos/110721farsantes.html). Uma vez,
aliás, travei o seguinte diálogo com uma dama da sociedade: – Ouvi dizer que o senhor é
filósofo! Que interessante! Especialista em quem?
– Em mim mesmo, cara senhora. Os outros são apenas cultura geral.
[ 9 ] Sede de sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Editora Quadrante, 1989, p. 45.
Grifo meu.
II
D
A PSICOLOGIA DA DÚVIDA
La verdad es lo que es
y sigue siendo verdad
aunque se piense al revés.
ANTONIO MACHADO
ESCARTES ASSEGURA-NOS que a seqüência das Meditações que o
leva do questionamento do mundo exterior à descoberta do
cogito não é apenas um esquema lógico, uma articulação hipotética
de pensamentos pensáveis, mas uma experiência vivida, um relato
fidedigno de pensamentos pensados. Mas vários indícios, no texto,
sugerem que essa afirmação não deve ser tomada em sentido muito
literal. Notei-os desde a primeira leitura, mas tive de voltar a eles
muitas vezes, sem poder evitar a pergunta: até que ponto aquela
narrativa correspondia adequadamente aos fatos, e a partir de que
ponto ela se tornava um modelo inventado, concebido para dar
ordem e sentido a experiências que na verdade teriam se passado
de maneira muito mais imprecisa e nebulosa, se não totalmente
diversa?
Para piorar as coisas, aquela seqüência de pensamentos se
apresentava como um modelo, um paradigma que deveria repetir-se
de modo igual ou semelhante, com semelhantes ou iguais
resultados, em todo homem que se dispusesse a reexaminar desde
os fundamentos o edifício de suas crenças. Edmund Husserl, nas
suas Meditações cartesianas, que levam esse título precisamente
por isso, afirma que as coisas são realmente assim. Ao menos uma
vez na vida, diz ele, todo pretendente a filósofo tem de fazer tábua
rasa do seu edifício de crenças e, como Descartes, reconstruir tudo
desde o grau zero, a autoconsciência do eu pensante.
Para aprender a fazer isso, eu tinha de me imbuir profundamente
da lição de Descartes antes de poder aprender a de Husserl, que a
estendia e radicalizava.
Uma simples releitura analítica dos textos principais do autor era
desnecessária e insuficiente para isso. Desnecessária, porque
nesse tipo de investigação o essencial já tinha sido feito por Martial
Gueroult, que eu não tinha nem tenho a menor pretensão de
superar. Insuficiente porque, se algum segredo o filósofo havia
guardado, eu não poderia encontrar sinal dele nos textos se primeiro
não o tivesse vislumbrado imaginariamente. E o fato é que, naquele
momento, eu não vislumbrava coisíssima nenhuma.
Decidi, então, começar pelo começo: reencenar na minha própria
cabeça a sucessão das Meditações que vai da dúvida metódica à
descoberta do cogito ergo sum como fundamento absoluto de toda
certeza. Mas não se tratava só de repetir, pela ordem, uma série de
“pensamentos”. Pensamentos supõem percepções, recordações,
sentimentos, fantasias. O que eu queria não era só repetir uma
seqüência de raciocínios: era reconstruir mentalmente as
experiências interiores que Descartes condensara nesse raciocínio.
Como uma extravagância merece outra, apelei, para isso, a um
método que nenhum professor de filosofia julgaria muito respeitável,
mas que me pareceu o mais adequado naquela situação: o método
da “memória afetiva”, com que o grande ator russo Constantin
Stanislavski – cujas obras eu andara estudando sob a direção de
Eugênio Kusnet – construía seus personagens mediante a evocação
de situações da sua própria vida, análogas àquelas que ele deveria
representar no palco.
Esse método me pareceu ainda mais adequado porque o próprio
Descartes, como acabo de dizer, assegurava que suas Meditações
não eram uma construção intelectual e sim o relato de experiências
vividas. Muito mais tarde, ao estudar o Platão do Paul Friedländer e
as obras de Eric Voegelin, confirmei que minha decisão não era tão
louca quanto parecia: com esses dois autores ilustres aprendi que a
compreensão das idéias filosóficas não pode ser obtida nem só pela
análise de textos, nem só pela reconstituição da atmosfera cultural
donde os textos emergiram, mas exige o rastreamento meditativo
das experiências reais de onde as idéias nasceram.
Comecei então a reler as Meditações como se fossem uma peça
de teatro, na qual eu deveria representar, por meio do método
Stanislavski, o papel de René Descartes na reconstituição
imaginativa das suas experiências cognitivas.
Qual não foi minha surpresa ao descobrir que isso era muito mais
difícil do que eu jamais poderia ter imaginado! Descartes resume
tudo em umas poucas páginas, dando a impressão de que a
seqüência de meditações havia fluído pela sua mente com a
naturalidade da água corrente. Mas o esforçode puxar da minha
memória afetiva algum análogo da dúvida metódica, do Gênio Mau
e da certeza absoluta que o Eu Pensante tem de si mesmo
esbarravam em tantos obstáculos e contradições, que não pude
evitar a conclusão de que, enquanto relato de experiências vividas,
as Meditações não eram muito confiáveis. Descartes simplesmente
não podia ter vivenciado aquelas experiências exatamente como ele
as narra.
Que é possível duvidar das nossas sensações, das nossas
imaginações e dos nossos pensamentos, é coisa que qualquer um
de nós pode testemunhar. Também é possível colocar todo o orbe
das nossas representações entre parênteses, reduzindo o “mundo”
a uma hipótese evanescente.
Mas, após ter feito essas operações, Descartes assegurava-nos
ter encontrado, no fundo, a certeza da dúvida: a dúvida é um
pensamento, e, no instante em que a penso, não posso duvidar de
que a penso. A autoconfiança do ego pensante na sua própria
solidez metafísica surgia como poderosa compensação psicológica
para a perda da crença na realidade do “mundo”.
Só que, tão minucioso em descrever os pensamentos que o
induzem ao estado de dúvida integral, ele é estranhamente evasivo
quanto a esse estado mesmo. Na verdade, ele nem mesmo o
descreve: afirma apenas que ele aconteceu, e, saltando
imediatamente da descrição para a dedução, passa a tirar as
conseqüências lógicas que a constatação desse estado lhe impõe.
Para dar alguma consistência verossímil à minha performance no
papel de Descartes que pretendia representar no meu teatro interior,
eu precisava portanto fazer o que ele não fizera: examinar e
descrever não o mero conteúdo de algumas dúvidas em particular,
mas o ato mesmo de duvidar, o estado de dúvida.[ 10 ]
E aí a primeira constatação que se me impôs como inegável foi a
seguinte: a dúvida não era propriamente um “estado” — uma
posição estática na qual eu pudesse permanecer, como se
permanece triste ou absorto, imóvel ou deitado. Era uma alternância
entre um sim e um não, uma impossibilidade de deter-me num dos
termos da alternativa sem que o outro viesse disputar-lhe a
primazia. Pois o sim ou o não, tão logo aceitos como definitivos,
eliminariam imediatamente a dúvida, que é feita da sua coexistência
antagônica e de nada mais.
Mas esse antagonismo, como vim a perceber logo em seguida,
não é estático: é móvel. A mente em dúvida passa incessantemente
de um dos termos ao outro, sem encontrar um ponto de apoio onde
possa repousar e “estar”. Só que, como cada um dos termos é a
negação do outro, a mente não poderia deter-se nele sem, por um
instante, negar o outro: e, precisamente nesse instante, não está em
dúvida – está afirmando ou negando, afirmando uma coisa e
negando a outra, ainda que não consiga perseverar na afirmação ou
na negação sem que lhe ocorram mil e uma razões para abandoná-
la. No instante em que nega ou afirma, a dúvida suprime-se a si
mesma como dúvida, passando a argumentar em favor de uma
hipótese e contra a outra, lutando para se estabilizar na afirmação
ou na negação; mas fracassa, e é neste fracasso que consiste,
precisamente, a dúvida. Seguia-se a conclusão fatal: é impossível
uma dúvida que não se ponha em dúvida a si mesma, uma dúvida
que, suspendendo a alternância, se imponha como “estado” e
permaneça. Ao tomar a dúvida como um “estado”, omitindo que se
tratava de uma alternância entre dois momentos antagônicos,
Descartes a coisificava e fazia dela uma certeza: a famosa asserção
“não posso duvidar de que duvido no instante em que duvido”, que
Descartes toma como expressão da mais patente obviedade,
expressava no entanto uma pura impossibilidade psicológica. Mais
certo seria dizer que, ao duvidar, ponho tudo em dúvida, inclusive a
dúvida mesma. A dúvida não é um estado: é uma sucessão e
coexistência de estados antagônicos, é um não poder estar.[ 11 ]
O que aí se passava era que Descartes confundia a dúvida com a
negação, mais propriamente com a negação hipotética. Posso
efetivamente produzir uma negação hipotética e repeti-la
indefinidamente. Posso mesmo ampliá-la – hipoteticamente, é claro
– até que abranja a totalidade do que julgo saber. Mas não posso
“duvidar” do que creio sem ao mesmo tempo afirmá-lo
reiteradamente, na medida em que só assim poderei intercalar com
as suas afirmações sucessivas as suas respectivas negações, e
com estas as suas afirmações e assim por diante, cujo círculo
vicioso constitui a dúvida.
Ora, a negação hipotética não é a mesma coisa que a dúvida, mas
é o seu correspondente lógico, a sua versão reduzida,
conceptualizada e descarnada, separada da experiência viva do
antagonismo que constitui a substância psicológica da experiência
da dúvida. A negação hipotética é a “dúvida” tal como aparece no eu
pensante, não na consciência, não na alma. Descartes usa sempre
o termo “dúvida”, mas de fato não está falando senão da negação
hipotética, portanto somente do eu pensante, não da consciência ou
da alma. Quando, na Segunda Meditação, ele relata as emoções
que sentiu ao ver-se incapaz de contestar as negações que fizera
na véspera, ele volta a falar da alma, é certo, mas não como centro
ativo da dúvida, e sim como vítima passiva dos efeitos provocados
nela pelo eu pensante. Dito de outro modo: ao dar à negação
hipotética as dimensões de uma “dúvida”, Descartes substitui a alma
pelo eu pensante e, falando deste, acredita falar daquela. Mas, se o
eu pensante tem tamanha primazia sobre a alma, como não a terá
também sobre tudo quanto a alma conhece? A prioridade do ego
cogitans, que mais tarde será afirmada como conclusão da
seqüência de pensamentos, já está dada desde início na mera
formulação da “dúvida”. O raciocínio das Meditações é inteiramente
circular, só oferecendo como resposta o que já estava contido na
pergunta.
Colocado nesses termos, o cogito cartesiano repetia apenas o
argumento de Sócrates contra o céptico, de que não se pode negar
sem afirmar a negação, sem afirmar portanto alguma coisa. Mas,
vistas as coisas assim, a bem pouco se reduzia a descoberta
cartesiana: longe de ter instaurado um novo fundamento, crítico ou
negativo, para o mundo do saber, ela não fizera senão demonstrar
novamente, pelas vias tortuosas de uma autodescrição psicológica
bem imprecisa, o primado lógico da afirmação sobre a negação. Só
que o reconhecimento deste primado era, no mesmo ato, a negação
da dúvida como ato fundador.
Mas se a dúvida, como tal, não podia servir de fundamento crítico,
restava ainda perguntar quais fundamentos a tornam possível. E
este era o ponto decisivo, pois, se havia um algo “por trás” da
dúvida, seria esse algo, e não a dúvida, o ponto de apoio firme que
Descartes buscava, e que acreditou ter encontrado na constatação
da dúvida.
Descartes diz que a dúvida é uma certeza no instante em que é
pensada. Mas isto é falso: o que é certeza é a reflexão posterior que
afirma a realidade da experiência da dúvida. No instante mesmo da
dúvida, o que há é, como vimos, uma alternância entre afirmação e
negação, e portanto a impossibilidade mesma de afirmar um estado
qualquer, se por estado entendemos, como se deve entender, a
coincidência entre um juízo de fato e o sentimento que o valoriza
negativamente ou positivamente, como ocorre na tristeza, na raiva,
na pressa, na esperança etc. A dúvida não é um estado, pela
simples razão de que nela o sentimento, que pode ser de
ansiedade, de esperança, de curiosidade etc., não coincide com um
juízo determinado, mas provém justamente da impossibilidade de
afirmar ou negar um juízo. Ela é antes um momento de suspensão
entre estados, um vazio agitado que contém em germe vários
estados possíveis – pelo menos dois – e não se resolve em nenhum
deles sem suprimir-se a si mesma. A mente, portanto, nunca “está”
em dúvida: apenas passa por ela, precisamente como transição
entre estados. É só quando a dúvida deixa de ser experiência
presente para passar a ser objeto de reflexão que surge esta
certeza retrospectiva e narrativa: “Não consegui, até agora,
estabilizar-me na negação ou na afirmação”. Existe, portanto, não
só distinçãológica como também separação de fato entre a dúvida
enquanto experiência presente e a dúvida enquanto objeto de
recordação e reflexão – e é esta que é certa e indubitável,[ 12 ] não
aquela, embora Descartes tome uma pela outra e nos repasse como
evidência intuitiva direta o que é fruto de reflexão posterior. É
somente esta reflexão que, dando um nome à alternância recém-
vivenciada, confere artificialmente a unidade de um “estado” ao que
é na verdade uma sucessão de estados que se suprimem
mutuamente ou uma coexistência de estados puramente potenciais,
dos quais cada um só se pode atualizar à custa da exclusão dos
outros. Conferindo ao vazio da alternância a consistência positiva de
um estado, no mesmo instante Descartes transforma a dúvida em
mera negação hipotética, tomando então como estado psicológico
efetivo o que é apenas o conceito lógico de um estado possível.
Para piorar ainda mais as coisas, na afirmação reflexiva da
realidade da dúvida estão pressupostas duas crenças: a crença na
continuidade da consciência entre a dúvida e a reflexão, e o
conhecimento da distinção entre verdade e falsidade.
1º) Aquele que reflete sobre a dúvida sabe que ainda é “o mesmo”
que teve a dúvida; e se o ato de duvidar é formalmente distinto do
ato da reflexão, o eu consciente, ao refletir, sabe que é ele mesmo o
sujeito de dois atos distintos – distintos logicamente e distintos no
tempo –, donde se conclui que esse eu é logicamente e
temporalmente anterior aos dois atos e independente deles: não é o
ato da dúvida que funda a certeza do eu, mas, ao contrário, a
certeza da continuidade do eu é a garantia única de que a dúvida foi
realmente vivenciada. Pois a dúvida, se não recebesse da reflexão
posterior o nome que lhe confere a aparente unidade de um estado,
acabaria por se reduzir à mera sucessão de negações e afirmações
irrelacionadas, sucessivas alucinações de um sujeito
esquizofrenicamente plural, destituído do domínio de si e dissolvido
no fluxo atomístico dos seus estados.[ 13 ] Para poder ser objeto de
reflexão, a dúvida recebe a artificial unidade de um nome; e se logo
em seguida a mente se esquece de que essa unidade é um mero
ente de razão e a toma como unidade substancial, então se trata de
um desses casos de auto-hipnose retroativa em que o nome produz
magicamente, a posteriori, a realidade do seu objeto.
2º) Sendo formalmente distintos, os dois atos são distintos também
empiricamente, isto é, no tempo: primeiro duvido (isto é, vou e
venho entre sucessivas afirmações e negações), depois reflito que
duvidei (isto é, unifico sob o nome “dúvida” essa multiplicidade de
vivências antagônicas). Mas a unidade do eu, que está
subentendida nessa reflexão mesma, e portanto na certeza da
dúvida, é continuidade no tempo, é memória e recordação: a
memória, estando pressuposta como condição indispensável da
reflexão, é lógica e temporalmente anterior a ela: longe de poder
fundar a confiança que temos na memória, é a dúvida que depende
da memória para tornar-se psicologicamente possível.
Mas, se a dúvida depende da garantia que lhe é dada pelo eu e
pela memória, então ela não tem nenhum poder fundante. É coisa
fundada, é certeza secundária e derivada, é mero disfarce de um
agente mais profundo e mais inquestionável.
3º) Porém, a dúvida subentende algo mais. Como é possível
duvidar? A possibilidade da dúvida repousa inteiramente no nosso
poder de conceber que as coisas sejam de um outro modo que não
aquele com que se nos apresentam num dado momento. A dúvida
assenta-se numa suposição; ela requer e subentende o poder de
supor. Ora, tendo as coisas se apresentado ao sujeito de um certo
modo, e não de outro, este outro e suposto modo só pode
apresentar-se à consciência como invenção do sujeito mesmo,
como produto de imaginação ou conjetura. Para saber que duvida, é
necessário então que o sujeito saiba que supôs; que se reconheça
portanto como sujeito não apenas de dois atos, mas de três: o ato
de duvidar, o ato de refletir sobre a dúvida e, antes de ambos, o ato
de supor ou imaginar.
4º) Mas, se o sujeito não percebesse nenhuma diferença entre as
coisas tal como se lhe apresentam e as coisas tal como as supõe,
não poderia tomar consciência de que supôs, pois não haveria para
ele diferença entre supor e perceber. Eis, portanto, que a
consciência dessa diferença é, ela também, um requisito e um
fundamento da possibilidade da dúvida. Para duvidar, necessito
distinguir, na representação, o dado e o construído, o recebido e o
inventado, aquilo que me vem pronto e aquilo que faço e proponho.
Logo, está aí pressuposta a consciência da diferença entre o
objetivo e o subjetivo e, portanto, a crença na objetividade do
objetivo e na subjetividade do subjetivo.
5º) Mais ainda: se o sujeito confundisse esses dois domínios,
acreditando que supôs o percebido e percebeu o suposto, teria
perdido a continuidade da consciência e da memória, que é, como
vimos, condição de possibilidade da dúvida. Logo, a dúvida sobre a
realidade do mundo não pode se apresentar como simples escolha
entre duas possibilidades de valor igual e idêntica origem, mas
sempre como escolha entre um dado e um suposto, entre o
recebido e o inventado.
6º) Não é possível portanto duvidar da realidade do mundo sem
saber de antemão que esta dúvida, e a suposição que a
fundamenta, são puras invenções do próprio sujeito, e que esta
invenção é formal e temporalmente distinta do ato perceptivo, bem
como do conteúdo percebido. A dúvida é a suposição de que um
mundo inventado é mais válido que o mundo percebido, suposição
que se funda por sua vez na consciência de inventar, de supor e de
fingir. A dúvida quanto à realidade do mundo é sempre e
necessariamente um fingimento, e quanto mais o fingidor se esforce
para levar esta dúvida a sério, para torná-la cada vez mais
verossímil, tanto mais o brilho mesmo da performance atestará a
diferença entre o verossímil e o verdadeiro, assim como, no teatro,
aplaudimos o ator precisamente porque sabemos que ele não é o
personagem.
7º) Mas esta consciência de fingir seria impossível se não se
fundasse, por sua vez, na consciência da diferença entre pensar e
ser, imaginar e agir. Pois, subentendida a consciência da diferença
entre supor e perceber, paralelamente à consciência que o eu tem
de suas próprias ações, não haveria como negar que o eu pensante
tem consciência da diferença entre ação suposta e ação realizada,
de vez que a ação realizada não é somente pensada, mas
percebida fisicamente, exatamente como os seres do mundo
sensível. Não posso portanto colocar em dúvida os seres do mundo
sensível sem no mesmo ato colocar também em dúvida os atos
físicos que me vejo realizando, como por exemplo os movimentos
de minhas mãos e pernas. Mas, ao mesmo tempo, não os posso
colocar em dúvida sem questionar, no mesmo instante, a
continuidade e unidade do eu, a qual no entanto está pressuposta,
como vimos, no ato mesmo de duvidar do que quer que seja. Eis aí
outro motivo pelo qual a dúvida cartesiana, sendo dúbia por
definição, não poderia instalar-se senão pondo-se também a si
mesma em dúvida, isto é, sabendo-se fundada numa suposição e
num fingimento voluntário. Eis também por que a dúvida cartesiana
é tão rara e dificultosa: ela implica um movimento que se desmente
a si mesmo, que coloca em questão as condições mesmas que o
possibilitam.[ 14 ]
8º) Finalmente, a dúvida só é possível quando se sabe que algo,
seja no percebido, seja no suposto, é insatisfatório, que não atende
a algum requisito fundamental de veracidade. Mas como poderia o
sujeito dubitante exigir veracidade de suas suposições ou
percepções se não tivesse nenhuma idéia da verdade, ainda que
como mero objeto imaginário de desejo? O desejo de fundamento
pressupõe, no sujeito, ao menos a possibilidade de imaginar que
seus conhecimentos possam ser mais seguros do que realmente ele
sente que o são num dado momento, ou seja, pressupõe a verdade
como ideal e a opção pela verdade. Mas, ao mesmo tempo, vimos
que o sujeito não conhecia a verdade somente como ideal abstrato,mas já conhecia pelo menos uma diferença real entre verdade e
falsidade: a diferença entre o dado e o suposto, acompanhada da
consciência verdadeira de que o suposto não foi dado, nem dado o
suposto.
A dúvida ergue-se, assim, sobre todo um edifício de dados e
pressupostos: longe de ser logicamente primeira, ela é um produto
requintado e elaboradíssimo de uma máquina de saber. Longe de
ter um poder fundante, ela não é senão a manifestação mais ou
menos acidental e secundária de um sistema de certezas.
Só que, se assim é, se o primado da dúvida metódica é apenas o
primado de um equívoco, então ficam sob suspeita, igualmente, o
primado kantiano do problema crítico, o dogma positivista da
impossibilidade de obter certezas metafísicas válidas, e muitas
outras crenças que o homem moderno toma, mesmo a contragosto,
como verdades óbvias e patentes.
[ 10 ] Aproveito, deste ponto em diante até o fim do capítulo, parte das notas que
apresentei ao Colóquio Descartes da Academia Brasileira de Filosofia, Faculdade da
Cidade, Rio de Janeiro, em 9 de maio de 1996, sob o título “René Descartes e a Psicologia
da Dúvida”, extensão, por sua vez, do capítulo do meu livreto Universalidade e Abstração e
Outros Estudos (São Paulo, Speculum, 1983), que leva o título de “O cogito cartesiano à
luz da psicologia espiritual”. A redação que dei a esses dois trabalhos parece-me hoje
totalmente inadequada, por dar ares de conclusões definitivas a constatações que não
eram senão etapas provisórias de meditações que iriam estender-se ainda por muitos
anos. Ao trazer de volta esses parágrafos do estilo expositivo para o narrativo, creio que
corrijo um pouco a perspectiva.
[ 11 ] Ao dizer “sucessão e coexistência”, pareço estar pronunciando um monumental
contra-senso. Mas o sim e o não que compõem a dúvida são coexistentes sob um aspecto,
sucessivos por outro. Coexistentes logicamente como termos de uma contradição, são
sucessivos psicologicamente, isto é, entram no palco da consciência de modo cíclico,
rotativo: um entra, o outro sai, como o dia e a noite, que coexistem no céu e se sucedem
num ponto da terra.
[ 12 ] “Certo e indubitável” ou “incerto e duvidoso” são predicados que não se aplicam ao
fato como tal, mas aos juízos que fazemos a respeito dele.
[ 13 ] A posterior dissolução da unidade do eu na pluralidade dos seus estados, tal como
viria a ser operada por David Hume, já estava portanto em germe no cogito cartesiano.
[ 14 ] Ela é uma torção do aparato mental humano, um gesto doloroso que se auto-
suprime, e que raros homens têm condição de suportar por muito tempo sem grave risco
para sua integridade psicológica. A possibilidade de assumir esse risco e vencê-lo repousa
na existência de um corpo de crenças tão arraigado, tão sólido, que o homem possa se dar
o luxo de sair dele numa viagem mental, seguro de reencontrá-lo na volta. Essa
possibilidade, por sua vez, só se cumpre nas sociedades e nas culturas urbanas altamente
diferenciadas e estáveis, que dão ao indivíduo pensante o espaço para inocentes vôos de
imaginação que em nada afetarão sua conduta de cidadão ou de súdito honrado e
cumpridor de seus deveres; que lhe dão, mais ainda, espaço livre para pensar uma coisa e
fazer outra, para cultivar aquela hipocrisia defensiva que é notoriamente ausente entre os
primitivos, e que, para o mal e para o bem, é uma sólida proteção da consciência individual
contra a tirania do discurso coletivo. Daí a coexistência pacífica entre a audácia
revolucionária da dúvida cartesiana e o conservadorismo da “moral provisória” que a
possibilita.
PARTE 2 – CONSCIÊNCIA E ESTRANHAMENTO
III
E
REVISÃO DO ITINERÁRIO
XAMINEI NO CAPÍTULO II o passo inicial da filosofia de René
Descartes, a dúvida radical ou metódica. Nas célebres
conferências que pronunciou na Sorbonne em 23 e 25 de fevereiro
de 1929, e que depois viriam a ser publicadas sob o título bem
significativo de Meditações Cartesianas, Edmund Husserl afirmou
categoricamente que as meditationes de Descartes não eram
apenas um assunto pessoal do filósofo, “menos ainda uma simples
forma literária da qual ele usasse para expor suas opiniões
filosóficas, mas, ao contrário, elas desenham o protótipo do gênero
de meditações necessárias a todo filósofo que comece sua obra, as
únicas que podem dar nascimento a uma filosofia”.[ 15 ] Em nota de
rodapé, ele acrescentava que tal era a maneira de ver do próprio
Descartes.
Se Descartes tinha sido, nas palavras de Charles Péguy, “ce
chevalier français qui partit d’un si bon pas”,[ 16 ] todos os que
depois dele se aventurassem pela mesma senda deveriam,
portanto, imitar-lhe o exemplo e o estilo.
Husserl, no entanto, deixava claro que alguns aspectos do
empreendimento cartesiano tinham “um alcance eterno” –
subentendendo que outros não tinham. O eterno nas Meditações, o
que fazia delas o modelo por excelência de toda filosofia, estava em
dois pontos: a) A aspiração de encontrar princípios universalmente
válidos, auto-evidentes, que pudessem servir de fundamento e
critério último de validade para todos os conhecimentos científicos.
b) A descoberta de que para encontrar esses princípios o filósofo,
em vez de examinar o mundo em torno, deveria voltar-se para
dentro de si mesmo, para o âmago da sua consciência.
Nenhum desses dois pontos era novo no tempo de Descartes. O
segundo ecoava as palavras de Agostinho pronunciadas onze
séculos antes: “Noli foras ire, in te ipsum reddi: in interiore hominis
habitat veritas”.[ 17 ] O primeiro era a própria definição da filosofia
segundo Aristóteles.
O que restava de propriamente cartesiano na proposta era o
método adotado para realizar essa dupla aspiração, isto é, o método
da dúvida. Husserl não dizia uma palavra contra esse método, mas
confessava julgá-lo “muito estranho” e, após resumi-lo em dois
parágrafos, recuava da exigência da dúvida integral para um
modesto “voto de pobreza em matéria de conhecimento”. Sem voltar
ao assunto, passava em seguida a expor o seu próprio método
fenomenológico, o qual, em vez de colocar tudo em dúvida,
simplesmente se abstinha de pronunciar-se quanto à existência ou
inexistência do que quer que fosse e se contentava em descrever os
objetos tal como se apresentavam à consciência.
O parentesco, a afinidade profunda que Husserl dizia enxergar
entre Descartes e ele mesmo não residia, portanto, naquilo que o
método cartesiano tinha de mais característico, e sim em traços
genéricos que a filosofia de Descartes compartilhava, de um lado,
com a de Aristóteles, de outro com a de Agostinho. Seria então uma
afinidade meramente periférica, ou uma “simples forma literária”
usada para captar a benevolência da platéia francesa? Nada disso.
O próprio Husserl nunca se explicou claramente em público quanto
ao verdadeiro elo de simpatia espiritual profunda que o ligava a
Descartes, elo que ia muito além de qualquer semelhança de
métodos e se erguia às dimensões de uma comunidade de destinos.
O caso é dos mais intrigantes, mas, como é impossível deslindá-lo
sem antes escavar um pouco mais fundo o próprio enigma
Descartes, não vejo alternativa senão deixar o leitor em suspense
até o capítulo final, em que ambos os mistérios serão solucionados
de uma vez.
Por enquanto, devo fazer uma breve revisão do itinerário
percorrido e um balanço das conclusões obtidas até agora.
***
Na seqüência de pensamentos que resume sob o título
Meditationes de Prima Philosophia, René Descartes começa, como
todo mundo sabe, por impugnar todas aquelas verdades que
aprendera desde a infância, nas quais não visse um fundamento
suficiente.
Ele notava, por exemplo, que os cinco sentidos, nos quais
geralmente acreditamos, não são fundamentos de si mesmos, não
trazem consigo a certeza das informações que fornecem. Ele usa,
para impugnar a confiabilidade dos sentidos, uma série de
argumentos que, na verdade, não são dele, são bem antigos, são da
escola pirrônica, e que consistem em alegar os enganos
costumeiros do conhecimento sensível – a famosa história do pau
que, posto na água, parece quebrado, ou oefeito de perspectiva
que faz as coisas distantes parecerem menores do que as mais
próximas. Essas ilusões comuns mostram que os sentidos corporais
podem ser uma fonte de conhecimento, mas não uma fonte segura.
Ademais, há o fato de que durante o sonho também temos
sensações e nem sempre temos a prova de que o sonho é apenas
sonho.
Em seguida, Descartes faz a crítica da memória, da imaginação e
das crenças do senso comum, sempre em busca do ponto
arquimédico,[ 18 ] o ponto seguro que poderia servir de fundamento
à construção de um sistema válido de filosofia.
Como ele descreve apenas as conclusões a que foi chegando no
exercício da dúvida metódica, mas não faz em nenhum momento a
descrição interna do próprio estado de dúvida, passei, em seguida,
a examinar esse estado sob o ponto de vista da sua estrutura lógica,
tentando averiguar os elementos de certeza que estão
necessariamente embutidos em toda dúvida, os pressupostos que
têm de ser aceitos sem discussão para que uma dúvida possa
chegar a ser formulada.
Um desses pressupostos é a continuidade temporal do eu entre a
pergunta e a resposta. René Descartes diz que, quando afirma “não
posso duvidar de que duvido no momento em que estou duvidando”,
isto não é a conclusão de um raciocínio lógico, mas um ato intuitivo,
uma percepção instantânea. Porém, essa percepção, ainda que seja
instantânea, se refere ao mesmo eu que estava duvidando antes.
Portanto, existe aí uma continuidade do eu no tempo que transcorre
entre essas duas vivências: o estado de dúvida e a posterior certeza
intuitiva da dúvida. Não que esta certeza já não esteja contida
potencialmente no primeiro estado, mas o fato é que ela só se
atualiza na consciência após o recuo reflexivo, o giro da atenção
que se desvia do objeto inicial da dúvida para a dúvida mesma
enquanto estado.
De modo mais geral, toda dúvida, na sua própria estrutura lógica,
pressupõe a continuidade do eu entre a primeira alternativa pensada
e a segunda alternativa que a desmente. Se tenho uma dúvida é
porque vejo aí uma contradição, e se vejo a contradição é porque vi
duas hipóteses que se excluem, e eu permaneci o mesmo enquanto
via a primeira e a segunda. Portanto, a continuidade temporal do eu
é um pressuposto da dúvida: não é possível ter uma dúvida sem
afirmar, no mesmo ato, a continuidade do eu.
Outro pressuposto da dúvida é a identidade do objeto a respeito do
qual tenho a dúvida, porque se digo algo a respeito do objeto A e o
oposto a respeito do objeto B, as duas afirmações não se
contradizem necessariamente e o seu confronto não tem por que
suscitar dúvida. Só dois predicados opostos do mesmo sujeito
podem contradizer-se. Se me dizem que José é gordo, mas Antônio
é magro, isso não é contradição; porém, se dizem que José é gordo
e magro, então entro em dúvida. Não há, portanto, possibilidade de
dúvida sem a admissão prévia da identidade do seu objeto e sem
que essa admissão, por sua vez, esteja fora de dúvida.
Além disso, os próprios fundamentos do raciocínio lógico também
estão pressupostos na dúvida. Se não existe princípio de identidade,
de não-contradição e de terceiro excluso, não tenho como formar a
dúvida.
Também está pressuposta na dúvida a continuidade da língua na
qual ela se transmite. Eu não poderia formular uma dúvida sem o
auxílio da minha língua natal, e essa língua, evidentemente, sei que
não a estou inventando no momento em que formulo a dúvida, sei
que estou usando regras de gramática que existem de antemão e
que, se eu não as tivesse recebido, também não poderia produzi-las
na hora.
Por fim, a própria conclusão que René Descartes vai extrair desta
parte do exame – que, enquanto estamos duvidando, não podemos
duvidar de que duvidamos, e que, portanto, o próprio ato da dúvida
seria a primeira certeza filosófica inabalável –, também não é
inabalável, porque, se a dúvida é uma alternância entre duas
convicções opostas, ela não apenas admite a dúvida a respeito de si
mesma, mas a exige. No fim das contas, não é possível alguém
duvidar sem duvidar de que duvida, porque, se a certeza, ainda que
hipotética, fosse excluída do horizonte, não haveria mais dúvida,
haveria simplesmente a negação.[ 19 ]
Em suma, por baixo do ato da dúvida, nominalmente uma dúvida
radical da qual nada escapa, há toda uma montanha de certezas.
Esta conclusão, a que chegamos no capítulo II, mostra que, a rigor,
não existe dúvida radical, total ou abrangente. A dúvida cartesiana
não pode ser realizada como um ato ou estado efetivo de um
espírito pensante, de um eu humano existente e concreto. Ela só
pode ser concebida como uma hipótese hiperbólica, como a
ampliação ilimitada – e por isso mesmo irrealizável – do estado de
dúvida normal que questiona uma coisa enquanto afirma outra. No
máximo, a dúvida ampliada se aproximaria da dúvida total como
numa assíntota, sem jamais poder alcançá-la. Isso quer dizer, em
resumidas contas, que nenhum ser humano jamais teve uma dúvida
total. Nem o próprio René Descartes.
Mas, se a dúvida total não existe nem pode existir, ela é um mal
imaginário que não ameaça os seres humanos no mais mínimo que
seja. E nisso reside, creio eu, a estranheza que Husserl viu no
método cartesiano. De um lado, a dúvida total bem parece aquilo
que em retórica se chama um “boneco de palha”: um espantalho
imaginário concebido propositadamente para ser demolido com dois
ou três golpes e dar ao seu autor a glória fácil do triunfo obtido sobre
um adversário inexistente. De outro lado, ela aparece com uma
feição mais horrível e ameaçadora que a de qualquer outro desafio
cognitivo que tenha jamais se apresentado à mente humana. Afinal,
a completa ausência de certezas corresponderia à total privação de
conhecimento e à aterradora solidão de um “eu” isolado de tudo, até
de si mesmo. Por que, entre tantos caminhos possíveis para a
realização dos dois objetivos máximos da filosofia, Descartes foi
escolher logo esse, tão exagerado, tão forçado, tão hiperbólico?
Notem que, se a dúvida radical é irrealizável como operação
concreta da mente pensante, ela é perfeitamente concebível como
hipótese imaginária, como limite último de uma espécie de
inconsciência idealizada. Ela é uma fantasia, um sonho mau, cujo
conteúdo não pode ser expresso logicamente, mas apenas
conhecido pela emoção, pelo temor que desperta no coração
humano. Dito de outro modo, a dúvida radical não é a formulação de
um problema, mas uma experiência imaginativa que pode ter tanto
mais impacto sobre a mente humana quanto menos esta consegue
formulá-la em termos “claros e distintos” (para usar os termos do
próprio Descartes). Não espanta, pois, que o filósofo, abdicando de
toda clareza e distinção, apelasse, para descrevê-la, ao fantasma
sinistro do Gênio Mau. Na verdade, ele não descreve esse vazio
cognitivo de maneira alguma, nem poderia fazê-lo. O fato mesmo de
haver chegado ao cogito mostra que, em última instância, a privação
de toda certeza é impossível, é, até mesmo por definição, uma
suposição sem conteúdo cognitivo. Nem por isso deixa de ser uma
experiência, mas reconhecível somente pela reação de espanto e
horror ante a expectativa de um abismo sem fundo nem forma.
A pergunta que se segue inexoravelmente é: como Descartes
chegou a essa experiência? Como chegou ao confronto com o
Gênio Mau?
[ 15 ] Méditations Cartésiennes. Introduction à la Phénoménologie, trad. Gabrielle Pfeiffer et
Emmanuel Levinas, Paris, Vrin, 1986, p. 2.
[ 16 ] “Esse cavaleiro francês que partiu com um passo tão bom”.
[ 17 ] “Não vás para fora, permanece em ti mesmo: no interior do homem habita a verdade”.
[ 18 ] A expressão é de Mário Ferreira dos Santos.
[ 19 ] Há um aspecto que não examinei ali, mas que tem sua importância. A pura e simples
suspensão do juízo não pode ser identificada com a dúvida: ela é antes uma superação
psicológica da dúvida mediante um distanciamento da pergunta.
IV
S
PASSAGEM A UM NOVO ENFOQUE
E A DÚVIDA RADICAL não é realizável como operação lógica da
mente pensante, se ela é apenas a antevisão imaginária de um
estadoinalcançável, o que cabe perguntar agora é como essa
experiência é possível e como e por que René Descartes chegou a
desejá-la como via para alcançar a certeza.
Vamos partir de uma observação banal: mesmo que não
possamos duvidar de tudo num sentido cartesiano, podemos
duvidar de muitas coisas. Ainda que seja incompleto no seu
conteúdo e ainda que não se realize plenamente, o estado de
dúvida é um fato da experiência humana. Porém, como nenhuma
dúvida é possível sem certezas preexistentes, a hipótese da dúvida
total é autocontraditória na base, o que suscita uma pergunta
bastante incômoda: Descartes acreditou realmente que estava num
estado de dúvida total ao começar as Meditações, para só sair
desse estado ao encontrar a certeza do cogito, ou, ao contrário, ele
já sabia da impossibilidade da dúvida total desde o começo e
montou como que um jogo de esconde-esconde para poder, depois,
mostrar a solução triunfal que trazia oculta na manga? Nesta
hipótese, o método das Meditações, ao contrário do que disse
Husserl, se resume a um artifício literário. Naquela, temos de admitir
que Descartes tomou, como ponto de partida, não uma pergunta
razoável, mas um estado emocional de temor e incerteza criado
pela pura força da imaginação. A hipótese do artifício esvaziaria as
Meditações de toda relevância filosófica e reduziria a um engano
coletivo o impacto que teve na modernidade. Não vou apostar nisso.
A atração quase hipnótica que as Meditações despertaram em
alguns dos melhores cérebros da humanidade não se deve a
nenhum truque, mas a um mistério genuíno que está contido nelas.
Há muito tempo a imagem popular de um Descartes inteiramente
racional, claro e distinto, já não tem mais credibilidade entre os
estudiosos, e não é minha intenção açoitar um cavalo morto.
Apenas, aqueles mesmos que ressaltaram os elementos ambíguos
e nebulosos da carreira e do pensamento de René Descartes
tentaram, em geral, mantê-los à margem do quadro central ocupado
pelo “sistema”, que assim conservava o seu estatuto de construção
racional, ainda que nascida, como quase tudo o que é humano, de
motivações secretas e insondáveis. A mim me parece, ao contrário,
que o mistério irresolvido e insolúvel está no coração mesmo desse
sistema.
Veremos no fim.
Por enquanto, o que temos de perguntar é: como pôde René
Descartes, ou como poderia qualquer outro em seu lugar, imaginar-
se em estado de dúvida total e chegar a acreditar, ainda que por
alguns dias apenas, que estava realmente nesse estado?
Como poderia um homem imaginar que colocava “todo” o mundo
entre parênteses, se sua consciência nunca esteve desprovida de
um “mundo” externo e interno? Como é possível duvidar de “todo” o
conhecimento se nunca ninguém teve a experiência do total
desconhecimento e se, como dizia Aristóteles, todo conhecimento
provém de algum conhecimento anterior? Não temos realmente a
experiência de ficar “fora” dos nossos sentidos, da nossa memória,
da nossa imaginação, muito menos dos nossos próprios
pensamentos – simplesmente não temos essa experiência. Se não
a temos, de onde obtivemos a possibilidade de concebê-la e de
tentar colocar-nos nesse estado imaginariamente? É claro que
nenhum outro animal, além do homem, experimenta isso. Você pode
ver que, às vezes, um animal pode ficar num estado de
perplexidade entre duas alternativas, mas você nunca verá um
animal paralisado por uma dúvida cartesiana.
A vítima primeira e mais óbvia da dúvida cartesiana é o “mundo
exterior”. Mas muito mais interessante do que o velho problema de
como podemos ter a certeza do mundo exterior é o de como
podemos chegar a duvidar dele, se nunca tivemos a experiência de
estar fora dele por um instante sequer. Podemos, é claro, refugiar-
nos dele nos nossos próprios pensamentos, mas, como estes não
ocupam lugar no espaço, a própria noção de exterior e interior cessa
aí de fazer sentido. Fugir para um mundo interior não é “negar” o
exterior, é simplesmente desviar-se dele e pensar em outra coisa.
Na introdução à Filosofia do Direito, Georg Wilhelm Friedrich Hegel
afirma que uma das capacidades essenciais do ego humano é a de
suprimir mentalmente todo dado exterior ou interior, quer se
imponha como presença física ou por quaisquer outros meios – a
capacidade, em suma, de negar o universo inteiro e fazer da
consciência de si a única realidade. Se não fosse essa faculdade,
diz ele, estaríamos presos no círculo dos estímulos imediatos, como
os animais, e não teríamos acesso aos graus mais elevados de
abstração. A negação do dado – “a irrestrita infinitude da abstração
absoluta ou universalidade, o puro pensamento de si mesmo”,
segundo Hegel – é uma das glórias peculiares da inteligência
humana. Mas isso é, com toda a evidência, um exagero. O que a
inteligência humana pode fazer é negar este ou aquele dado
isoladamente ou negar o mero conceito abstrato da totalidade, não a
totalidade em si. Negar a totalidade não como conceito, mas como
presença concreta, implicaria realizar, na escala miúda da
inteligência humana, o infinito quantitativo em ato. Toda negação da
totalidade é apenas hipotética e afirma categoricamente aquilo que
nega em hipótese.
O mais estranho no solipsismo experimental de René Descartes é
precisamente que o filósofo imagine entrar nele a despeito de saber
que, mesmo durante esse período de radical isolamento,
necessitará de uma “moral provisória” para se arranjar de um modo
ou de outro naquele mesmo mundo exterior que, enquanto isso, ele
está negando. Querendo colocar em dúvida todos os seus
conhecimentos, mas sabendo que enquanto isso vai continuar
vivendo, agindo, conversando com as pessoas, tomando decisões,
pagando suas dívidas etc., Descartes pergunta-se: como vou
orientar-me no mundo enquanto estou em dúvida com relação a
tudo? Então, ele concebe os princípios do que chama “moral
provisória”, que vai seguir, sem questioná-la nem legitimá-la,
durante o período em que estiver realizando esse experimento
interior.
A função da moral provisória no método cartesiano é mais
complexa e ambígua do que pode parecer à primeira vista. A um
exame superficial, ela parece sugerir apenas a divisão de trabalho
entre a razão pura e a razão prática, esta afirmando o que aquela
nega ou suspende. Haveria nisso nada mais que uma precaução de
bom senso, e foi realmente assim que a maioria dos intérpretes
entendeu a coisa. Mas, a um segundo exame, aparece a pergunta:
para que necessitaria Descartes formular regras práticas explícitas,
a fim de continuar se orientando no mundo durante a experiência, se
não temesse que esta poderia afetar profundamente sua psique e
sua conduta, a ponto de deixá-lo completamente desorientado? O
primeiro desses pontos de vista indica que Descartes estava
consciente, desde o início, da incongruência lógica da dúvida total, a
ponto de saber que não deveria se deixar arrastar por ela nos atos
da vida real. O segundo mostra que, ao contrário, a dúvida total,
como experimento imaginativo, podia ser algo de mortalmente sério
e perigoso.
Isso não apenas deixa a questão irresolvida, mas parece tê-la
tornado mais difícil ainda. Temos, então, de examiná-la por outro
ângulo.
O conhecimento começa com o estranhamento. O primeiro passo
da investigação filosófica é colocar-nos num estado no qual
possamos perceber ou conceber a estranheza de alguma coisa.
Normalmente não notamos essa estranheza, mas, quando
prestamos mais atenção, a estranheza pode aparecer. Quando
estamos lendo René Descartes, deslizamos sobre o texto e não nos
lembramos de perguntar: mas como ele conseguiu se transportar
imaginariamente a um estado de dúvida total no mesmo instante em
que, pela moral provisória, admitia que essa dúvida era apenas
parcial?
Quase tudo o que os filósofos descobriram ao longo dos milênios
foi estranhando coisas que habitualmente não nos parecem
estranhas. Para estranhar, temos de nos colocar mentalmente “fora”
do envolvimento direto com o objeto e olhá-lo como se fôssemos um
turista de outro planeta. Decorridos três séculos, já nos
acostumamos com a idéiada dúvida metódica, mas, se Descartes
acredita poder avançar no conhecimento colocando-se mentalmente
“fora” do mundo, por que deveria eu tentar envolver-me nessa
proposta, saltando para dentro dela e deixando-me embeber dela
como uma esponja, em vez de colocar-me fora dela e olhá-la com a
mesma estranheza com que Descartes olhou o mundo? A natureza
da proposta cartesiana é tal, que não podemos aceitá-la sem lhe
sermos infiéis no mesmo instante: se aceito a dúvida radical como
um ato natural e improblemático, deixo de aplicá-la ao próprio ato de
duvidar e, assim, faço arbitrariamente desse ato uma exceção ao
método, reduzindo a uma pobre petição de princípio a minha
posterior afirmação de que não posso duvidar da dúvida.
Se Descartes exige explicitamente que olhemos o mundo com
estranheza, sei que essa mesma exigência está sendo formulada no
mundo e deve também tornar-se alvo de estranheza.
Notem bem que, durante todo o exercício da dúvida metódica,
Descartes sabe que está pensando; ele coloca entre parênteses não
o pensar, mas o saber. Ele está pensando, mas aquilo que ele sabe
lhe parece duvidoso, portanto, ele não assume o que sabe, ele
assume apenas que está pensando. Ora, como é que podemos
fazer isso? Notem bem que um animal não pode fazê-lo: tudo aquilo
em que um animal pensa, ele acredita; ele não pode pensar uma
coisa no mesmo instante em que se recusa a acreditar nela. Um
computador também não pode fazer isso, ele “aceita” todas as
informações que colocamos nele. Ele pode até, se programado para
isso, classificar certas informações sob o rótulo de “duvidosas”, mas
não pode duvidar pessoalmente delas. Então, a dúvida cartesiana é
um estado muito peculiar e podemos dizer que é um estado
exclusivamente humano. Talvez pudéssemos até definir o homem
como o animal capaz de imaginar-se em dúvida cartesiana. Os
outros animais não podem vivenciar esse estado, os anjos não
podem e Deus também não pode.
Mesmo que não se chegue jamais a realizar a dúvida integral, a
capacidade de negar mentalmente sem negar existencialmente é
uma das propriedades mais estranhas do ser humano. Ela é mais
enigmática, decerto, do que a nossa certeza do mundo exterior, que
compartilhamos com os outros animais e a cuja discussão e
fundamentação se dedicaram, no entanto, muitas horas e livros.
V
A
A CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DA DÚVIDA CARTESIANA: O
DINAMISMO ANTIVITAL
DÚVIDA CARTESIANA não pode se levantar senão sobre todo um
edifício de certezas; ela não é, portanto, um começo, como por
longo tempo se pretendeu, mas uma simples etapa dialética no
movimento interno de uma máquina de certezas. A dúvida radical
não é senão a negação hipotética de algo que no mesmo instante
se afirma categoricamente.
Não obstante, enquanto estado psicológico suscitado pela
antevisão imaginária, essa dúvida é um fato. Aconteceu a
Descartes, e pode acontecer a qualquer um de nós vivenciá-la ao
menos por alguns instantes. Pouco importa que ela traga em si sua
própria negação. Se Descartes se enganou ao descrever seu estado
como “certeza da dúvida”; se não pode haver certeza do estado de
dúvida precisamente porque este não é senão uma oscilação entre
duas certezas possíveis que se contradizem – e a certeza da dúvida
é, portanto, negação de si mesma –, tudo isso não impede que esse
estado exista de algum modo como experiência imaginária. É a
possibilidade lógica e existencial dessa experiência que constitui um
problema. Podemos imaginar que duvidamos de tudo – mas como,
raios me partam, podemos fazer isso?
Essa possibilidade supõe, no ser humano, uma capacidade de
cortar ao menos por instantes os laços entre a faculdade pensante e
a existência pessoal concreta, vivente, da qual essa faculdade não é
senão manifestação e função.
Por um lado, sabemos que estamos vivos, que estamos no mundo,
que estamos nos relacionando com pessoas, que comemos, que
dormimos, que trabalhamos etc., e é exatamente porque fazemos
tudo isso que podemos nos dedicar a uma investigação filosófica.
Se não estivéssemos vivos, não pensaríamos nem filosofaríamos.
Todos sabemos disso, e então, podemos dizer que o pensamento é
o exercício de uma faculdade vital, que ele supõe, portanto, a vida.
Como é que, sendo o exercício de uma faculdade vital, sendo uma
espécie de manifestação da vida, ele pode, ao mesmo tempo, negar
a vida, ainda que hipoteticamente?
Tão antinatural é essa operação, de tal modo ela se opõe a todo o
potente dinamismo psicofísico que deseja viver e que ademais tem
de estar vivo para realizá-la, que temos de admitir que ela não se
realizaria sem que esse dinamismo pudesse ser “suspenso” –
mentalmente, é claro – pela ação de um dinamismo contrário dotado
de poder equivalente, embora certamente descontínuo. Foi nesse
sentido que Fichte disse que “filosofar é não viver; viver é não
filosofar”.
Tudo o que fazemos, pensamos, rememoramos etc. é, certamente,
uma expressão do nosso impulso de viver e de perseverar na
existência. É isso o que chamo dinamismo. Ora, o ato de colocar
tudo em dúvida contraria de tal modo esse impulso vital, que não
conseguiríamos realizá-lo a não ser que nos apoiássemos num
impulso igual e contrário, não permanente (porque senão ficaríamos
definitivamente paralisados), mas temporário. Isso quer dizer que o
impulso vital pode ser detido por instantes. Se ele pode ser detido, é
por uma força capaz de detê-lo. Que força é essa?
Se alguém deseja e consegue imaginar-se desprovido de todo o
saber, colocando para isso todas as funções vitais entre parênteses,
quer dizer que, nesse momento, é levado por uma motivação que
não é aquela mesma que o faz pensar, sonhar, sentir, viver etc. É
uma “outra” motivação diferente e que se opõe a tudo isso, e essa
motivação tem de ser muito forte. Com isso, a nossa pergunta inicial
– “Como é possível a dúvida radical?” – se converte numa outra
pergunta. Essa mutação das perguntas é um dos elementos
fundamentais da técnica filosófica: a conversão da pergunta numa
outra pergunta mais explícita, mais detalhada e mais fácil de ser
examinada. A segunda forma que a nossa pergunta assume é a
seguinte: de onde tiramos, do nosso ser vivente, a força para
realizar a torção da nossa consciência da atitude de crença natural,
ou da dúvida corriqueira, para a de negação cartesiana ou
suspensão husserliana?
Husserl vai tornar a dúvida cartesiana um processo muito mais
preciso, muito mais detalhado. Comparar a dúvida cartesiana com a
suspensão, como a denomina Husserl – a epokhé, com a qual ele
coloca tudo entre parênteses – é como comparar um relógio de
areia com um relógio suíço a quartzo: a máquina tornou-se muito
mais precisa, mas a função continua exatamente a mesma. Esta
análise realizada aqui valeria até certo ponto tanto para Husserl
quanto para Descartes. Husserl chegava a dizer que a “atitude
fenomenológica”, como ele a chama, é não só diferente, mas é
radicalmente oposta à atitude natural. A atitude natural é crer no que
se pensa, crer no que se sente, crer no que se imagina. Crer ou
descrer: ou afirmamos, ou negamos, mas em ambos os casos
cremos – cremos na afirmação ou na negação. Ora, a atitude
fenomenológica não afirma nem nega, ela simplesmente descreve o
que está se passando diante da nossa consciência, ou seja, o
próprio conteúdo intencional do ato cognitivo é aí observado, sem
que o afirmemos ou neguemos. Não se trata sequer de
“introspecção”, porque aquilo que observamos no processo
cognitivo pela técnica fenomenológica não são os atos reais do
pensamento, é simplesmente o fenômeno enquanto dado presente
à consciência, sem afirmar que ele seja verdadeiro ou falso, real ou
irreal. É claro que essa mesma atitude pode ser adotada para se
estudar o próprio processo cognitivo, considerado enquanto
fenômeno presente à consciência. Também neste caso não é uma
observação pessoal, mas transcendental. Essa atitude é de fato
muito estranha, tão estranha quanto o método cartesiano. Husserl
dizia que ela é tão antinatural que tem de ser treinada: o
fenomenólogo precisa passar por um treinamento

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