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OLAVO DE CARVALHO Visões de Descartes Entre o Gênio Mau e o Espírito da Verdade En mi soledad he visto cosas muy claras que no son verdad. ANTONIO MACHADO SUMÁRIO Capa Folha de Rosto Epígrafe Introdução e agradecimentos Parte 1 – O enigma Descartes I . O eu pensante e a consciência II. A psicologia da dúvida Parte 2 – Consciência e estranhamento III. Revisão do itinerário IV. Passagem a um novo enfoque V. A condição de possibilidade da dúvida cartesiana: o dinamismo antivital VI. Uma falsa explicação: o desejo de conhecimento VII. É natural saber geralmente a verdade ou é natural geralmente errar? VIII. Fenomenologia do estranhamento (1) – Precauções de método IX. Fenomenologia do estranhamento (2) – Estranhar e assumir X. Reflexão completa e dúvida cartesiana XI. No fundo do poço XII. Mais problemas XIII. A segunda morte Parte 3 – Conclusões e acréscimos XIV. Os três sonhos XV. Descartes e Husserl Apêndice: nas origens da burrice ocidental Créditos Sobre a Obra A INTRODUÇÃO E AGRADECIMENTOS LINHAVADO ÀS PRESSAS com transcrições de aulas e outros fragmentos que fui espalhando entre meus alunos ao longo dos anos, este livro não é decerto o primor de exposição ordenada que eu desejaria ter feito dele se me sobrasse tempo. Isso não o impede de conter o essencial do que andei ensinando sobre a filosofia de René Descartes segundo um método que absorvi principalmente do Platão de Paul Friedländer.[ 1 ] Esse método envolve a convicção de que a filosofia não nasce do simples gosto pelo raciocínio abstrato, mas do impulso urgente e profundo de apreender e expressar, na medida das possibilidades individuais, o sentido universal da experiência acessível. Retornar das “idéias” às experiências reais que as originaram não é, portanto, uma tentativa de “explicar psicologicamente” uma filosofia, mas simplesmente de esclarecer o sentido efetivo que essas idéias tinham na consciência pessoal do filósofo que as pensou, para além ou por baixo do sentido formal e dicionarizado que adquiriram depois na tradição filosófica. Quando sei, por exemplo, que Hegel via em Napoleão Bonaparte a encarnação viva da “Alma do Mundo”, entendo mais concretamente o que ele queria dizer ao falar da “auto-realização de Deus na História”. Quando sei que Maquiavel apostava quase sempre no partido perdedor, entendo que sua visão amoral dos jogos de poder não era o resultado de uma fria observação científica, como tantos pretenderam, e sim uma idealização poética do mal.[ 2 ] A pura investigação psicológica de uma biografia de filósofo pode levar a compreender a sua filosofia como o perfil de uma consciência individual tomada como mero fato histórico, mas o método de Friedländer descortina o que essa consciência tem de universal como manifestação exemplar de altas possibilidades cognitivas humanas tal como se realizaram num indivíduo e numa situação em particular. A construção de uma filosofia assume assim a figura de um drama, não psicológico, mas cognitivo. Foi por isso que defini a filosofia como “busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa”. Acredito que esse enfoque neutraliza e supera a antinomia assim formulada por Martial Guéroult na introdução da sua monumental Histoire de l’Histoire de la Philosophie: se a filosofia consiste em verdades universais, em princípio eternas e imutáveis, como pode haver uma história das filosofias que se sucedem no tempo? A consciência individual humana, seja a do filósofo, seja a de qualquer outro, não “contém” verdades universais, apenas as reflete simbolicamente na sua forma própria e singular. A filosofia, em suma, é uma forma simbólica, como a arte, a religião ou a ciência mesma. A sucessão das filosofias, como a das experiências religiosas, dos estilos artísticos e das teorias científicas, deriva da natureza mesma do símbolo, que não se afasta do simbolizado nem o esgota jamais, devendo por isso ser sempre recomeçado de novo e de novo à medida que a passagem do tempo vai tornando opaco aquilo que na origem parecia translúcido. A tese que exponho neste pequeno livro pode ser resumida no seguinte: O “Gênio Mau” a que se refere Descartes não é um artifício literário nem um “instrumento psicológico” (termo de Martial Guéroult) usado para dar mais credibilidade à certeza do ego cogitans, mas é o verdadeiro tema central das Meditações de filosofia primeira, a obra máxima do filósofo. O projeto de Descartes aí não é superar a mera dúvida teorética quanto à possibilidade do conhecimento, mas aplacar o temor da “morte da alma” sem recorrer à fé ou a argumentos teológicos de qualquer natureza. Três séculos depois dele, Edmund Husserl retomaria o mesmo projeto, resumindo-o como um esforço supremo para “chegar a Deus sem Deus”. Esses dois momentos da história da filosofia refletem um dos dramas mais intensos e temíveis do pensamento moderno, e só podem ser compreendidos desde o ponto de vista do drama cognitivo pessoal vivenciado pelos dois filósofos. Um estudo sobre Husserl, para o qual me exercito há vários anos, deve portanto seguir-se a este livro, mais cedo ou mais tarde, como seu complemento natural. Agradeço a Fernando Manso, a Luciane Amato, a Marcela Andrade, a Silvio Grimaldo, ao Grupo de Transcrições do Seminário de Filosofia, à minha esposa Roxane, à minha filha Leilah Maria e a todos os demais que me ajudaram a conservar os fragmentos que compõem este livro. Agradeço também ao editor César Kyn e à sua esposa Adelice pela colaboração inteligente e prestativa. Agradeço especialmente a Rodrigo Gurgel pelas importantes observações e correções que me enviou após um atento exame do texto. Richmond, VA, outubro de 2013 [ 1 ] Plato, transl. Hans Meyerhoff, 3 vols., Princeton University Press (Bollingen Series), 1958-1969. [ 2 ] Expliquei isso em Maquiavel ou A confusão demoníaca, Campinas, Vide Editorial, 2011. PARTE 1 - O ENIGMA DESCARTES I C O EU PENSANTE E A CONSCIÊNCIA OMO RENÉ DESCARTES expõe o núcleo das suas concepções filosóficas sob a forma de uma confissão autobiográfica, julguei que, ao falar dele, seria vantajoso seguir-lhe grosso modo o exemplo, apresentando aqui, em vez de um estudo formal, a evocação singela e um tanto anárquica de algumas reações que a leitura de suas Meditações de filosofia primeira despertou em mim. Digo “evocação” em vez de “narrativa” porque não as reconstituo em ordem cronológica, apenas extraio delas o essencial do que me deixaram na memória, do qual algumas partes fui expondo em fragmentos, ao longo dos tempos, em cursos, conferências e artigos; outras aparecem aqui pela primeira vez. Além das Meditações e das Objeções e respostas que a complementam, estudei também as Regras para a direção do espírito, o Discurso do método, o Tratado das paixões e partes do Tratado do mundo. Confesso que, fora disso, não li mais nenhuma linha de autoria do filósofo, embora tenha estudado uma boa quantidade de excelentes livros a seu respeito, como os de Martial Gueroult, Alain, Henri Gouhier, Jean-Luc Marion, Maxime Leroy, Richard Watson, Lívio Teixeira, Ferdinand Alquié, John R. Cole, Geneviève Rodis-Lewis, Denis L. Rosenfield, Jorge Secada, Antonio Negri, Benjamín García-Hernández e não sei mais quantos. Meu conhecimento das partes da filosofia de Descartes que se espalham pela sua correspondência, bem como pelos seus escritos de matemática e ciências naturais, é, pois, todo de segunda mão, ainda que de boas mãos. Mas, de tudo quanto li de Descartes, nada me impressionou tanto quanto as Meditações, sem dúvida a sua obra maior. Foi delas que surgiram, no essencial, as experiências a que me refiro. À leitura das demais obras – dele ou de seus intérpretes – só recorri para me certificar de que havia compreendido o espírito das Meditações. Não tenho, por isso, a mais mínima presunção de expor aqui o conjunto do sistema cartesiano, nem de revelar suas estruturas essenciais, nem muito menos de apreciar com justeza a herança que deixou na História. Tudo o que desejo é expor com sinceridade as reaçõesque as palavras do filósofo despertaram na alma de um leitor. Essas reações são estritamente pessoais, pontuais e limitadas. Não se referem ao sistema tomado na sua totalidade, mas somente a determinadas partes e aspectos que me chamaram a atenção durante a leitura e que continuaram atiçando minha curiosidade ao longo dos anos. Às vezes, mais que curiosidade: inquietação e angústia. O estudo que publiquei recentemente sobre Maquiavel[ 3 ] reconstituía a seqüência de visões diferentes que o pensamento do secretário florentino havia despertado em seus intérpretes ao longo do tempo. O título do presente livro pode sugerir algo de semelhante, mas é impressão falsa. As obras dos diversos e ilustres intérpretes do cartesianismo só são mencionadas aqui de raspão. Só dois tipos de “visões de Descartes” me interessam neste relato: as que ele teve e as que eu tive dele. Estas últimas, não obstante a índole pessoal do testemunho, não são, é claro, um desenho arbitrário, que ouse reconstruir as opiniões do filósofo segundo uma hierarquia de interesses que é minha, não dele. Aqueles aspectos e partes que destaquei são geralmente reconhecidos como importantes e decisivos pelos mais abalizados intérpretes de Descartes, e tenho, por isso, a certeza de que o percurso do meu foco de atenção, se não cobriu o território inteiro da matéria nem pode se gabar de ter descoberto a quintessência do cartesianismo, também não se desviou para nada de marginal e irrelevante. Onde nossas perguntas diferem, deixo isso muito claro, sem aceitar passivamente a formulação que ele lhes deu nem impor a minha como se fosse a dele.[ 4 ] Não sei em que medida minhas observações podem ou não podem concorrer para uma reinterpretação da filosofia de Descartes. Não sei e, para ser franco, nem me interessa saber. Com exceção do tempo que consagrei a Aristóteles, para fins de educação e treinamento, nunca estudei uma filosofia para conhecer essa filosofia como tal, mas sim para conhecer, através dela, algo da realidade, do destino, da vida. Dito de outro modo, nunca tomei filosofia nenhuma como objeto de estudo, mas sempre como instrumento que me ajudasse a enxergar melhor o verdadeiro objeto das minhas preocupações. Segui nisso a lição de Alain, aprendida, por sua vez, do próprio Descartes, segundo a qual cada um deve filosofar não para fazer avançar uma disciplina acadêmica, mas “pour son propre salut”.[ 5 ] A recusa geral dessa lição, nos dias que correm, dá uma boa medida do estado de corrupção mental em que o nosso país afundou. No Brasil, por influência da “geração de predadores” a que me referi em artigo de 2011,[ 6 ] só é considerado filósofo quem se atenha aos fins, temas e métodos convencionais do ensino acadêmico cada vez mais deficiente[ 7 ] ou quem, afastando-se deles porventura, o faça no intuito de “transformar o mundo” num sentido que tem de ser, é claro, o desejado pelos professores. Aqueles que filosofam como Alain, como Sócrates, como Agostinho ou – mais ainda – como Descartes são rejeitados para as trevas exteriores do “beletrismo”, do “amadorismo” ou do “ensaísmo”, ainda que revelem, como era o caso do saudoso Mário Ferreira dos Santos (não pretendo que seja o meu), um domínio das disciplinas acadêmicas muito superior ao dos seus concorrentes “profissionais”. Nesse quadro paradoxal, os filósofos de verdade – um Miguel Reale, um Vilém Flusser e os dois Ferreiras, Mário e Vicente – são oficialmente não-filósofos; e, por sua vez, os não- filósofos, os burocratas da filosofia, são chamados de filósofos precisamente porque não têm filosofia nenhuma e sim, em vez disso, a licença estatal para ensiná-la. A comicidade desse estado de coisas não escapou a alguns visitantes estrangeiros, Enzo Paci e Luigi Bagolini entre outros, como não escapará a ninguém que medite a advertência de Nicolás Gómez Dávila: “Quanto maior seja a importância de uma atividade intelectual, mais ridícula é a pretensão de avalizar a competência de quem a exerce. Um diploma de dentista é respeitável, mas um de filósofo é grotesco”. Este livro arrisca-se, portanto, a ser expelido do campo da filosofia brasileira precisamente por não ser mero trabalho escolar e sim uma obra de filosofia stricto sensu, que, se assume como ponto de partida a obra de um filósofo ilustre, não a toma como objeto de estudo e sim como ocasião e estímulo para descobrir algo que não está nela nem poderia estar.[ 8 ] Como eu ia dizendo, o interesse que me moveu a ler Descartes não foi o desejo de conhecer “a filosofia de Descartes”, mas sim o de obter dela alguma ajuda para enfrentar três problemas que me pareciam importantes e que, em parte, mas só em parte, coincidiam com aqueles que ela suscitava: Qual o caminho que leva ao conhecimento certo, adequado à ordem do ser? Quais as certezas fundamentais (supondo-se que existam e sejam mais de uma) das quais todas as outras dependem? Qual o critério da verdade e do erro? Dessas três perguntas, como vim a reconhecer depois, só a primeira tinha na minha mente um sentido parecido ao que tinha para Descartes. Na segunda, nunca esperei, como ele, que as certezas derivadas e secundárias tivessem com as fundamentais a relação simples que, na ordem dedutiva, as conseqüências têm com as premissas. De maneira inicialmente espontânea e nebulosa, que pouco a pouco foi depois se precisando, o que eu entendia como certezas fundamentais não eram proposições universais indubitáveis, das quais tudo o mais pudesse ser deduzido. Eram apenas princípios ordenadores que dessem sentido ao conjunto da experiência acessível (acessível a mim, é claro), ainda que não podendo, ou nem sempre podendo, fundamentar cada parte logicamente, como Descartes esperava que os seus princípios fizessem. Quanto ao critério da verdade e do erro, que Descartes acreditou encontrar nas “idéias claras e distintas” e na certeza que o eu pensante tem de si mesmo, foi problema que desde o início me pareceu infinitamente mais complicado e temível. Desde logo, eu estava advertido do perigo pelos versos de Antonio Machado que aqui coloquei em epígrafe. Aos quinze anos de idade, acreditei ter descoberto a Lei dos Três Estados, que brilhava ante meus olhos com clareza fulgurante. Pouco depois fiquei sabendo que era de Comte e estava errada. A mais clara e distinta das idéias, mesmo quando verdadeira, pode ser apenas uma verdade lógico-formal, desligada de todo conteúdo determinado, portanto apenas uma verdade possível, hipotética, como todas as verdades da lógica. Digo, por exemplo, que todos os tiranos que não foram maus foram bons ou neutros de algum modo. É uma verdade lógica indiscutível, de vez que entre o bom, o mau e as várias gradações possíveis do mezzo a mezzo, não há outra alternativa. Mas, quando vasculho a História em busca de algum tirano que não tenha sido mau, não encontro nenhum. Aquela proposição, portanto, só é verdadeira no terreno puramente lógico, mas a lógica só investiga as relações entre proposições, não entre estas e “a realidade” (a não ser que você reduza a realidade a um conceito lógico, mas neste caso ela já não será a realidade e sim apenas um conceito). Em segundo lugar, Descartes, que professava colocar tudo em dúvida, jamais mostrou duvidar por um só instante do seu desejo sincero e honesto de descobrir a verdade. Ele proclama esse desejo com uma certeza absoluta e faz dele, explicitamente, o motor da sua vida. Em que medida poderia eu fazer o mesmo? Que garantias tinha eu de que queria a verdade e não somente alguma ilusão lisonjeira, “clara e distinta”? O critério da verdade e do erro, que para Descartes se resumia num simples método lógico de investigação, tinha para mim, antes disso, uma dimensão psicológica e moral aterradora. Se logicamente a verdade é apenas o oposto do erro ou da falsidade e tudo pode se resolver com tabelas de proposições verdadeiras e falsas, na alma humana ela tem um inimigo mais poderoso, carregado de uma energia que a impassividade fria e cristalina da lógica desconhece: a mentira. Pior que todas, a mentirainterior, a camuflagem que estendemos sobre aquilo que sabemos, para negá-lo ou fazê-lo parecer outra coisa. Isso não é um obstáculo sobre o qual se possa saltar tranqüilamente, presumindo que tudo o que se interpõe entre nós e a verdade seja uma dificuldade de método. Descartes, aparentando ousadia, chega a levantar a hipótese do engano universal, mas, nesse cenário, ele desempenha apenas o papel da vítima inocente, ludibriada pela força superior do Gênio Mau. Quando cheguei a essa parte das Meditações, a coisa me pareceu de uma ingenuidade surpreendente, até mesmo com uma ponta de vaidade psicótica. Por mais que tentasse me achar lindo, eu não conseguia me imaginar como uma ilha de sinceridade cercada de mentiras e fingimentos por todos os lados. Bem ao contrário, eu me conhecia como autor de mentiras interiores bem cabeludas, às vezes escondendo-me de mim mesmo como um rato na toca. Ninguém nasce depois de Freud e Nietzsche impunemente. Para me enxergar como pura vítima de um Gênio Mau eu teria de fazer abstração de um fato inegável: o fato de que muitas vezes eu mesmo tinha sido meu próprio gênio mau, empenhado em enganar- me com uma persistência e uma inventividade admiráveis. A hipótese de que “tudo” no mundo fosse uma encenação, um teatro macabro concebido para me enganar, colocava-me automaticamente fora e acima do cenário falsificado, na condição não só de vítima inocente, mas de testemunha acusadora do engodo universal. Mas como poderia eu me colocar nessa posição, desempenhar esse papel, sem, no mesmo ato, me instaurar a mim mesmo como o único ponto de veracidade brilhando solitário no oceano infinito e tenebroso dos enganos? Com toda a evidência, a proclamação do cogito, a afirmação do eu pensante como fundamento único do conhecimento da verdade já estava dada desde o início como premissa oculta da hipótese do Gênio Mau, que sem ela não poderia ser nem mesmo formulada. Mas, esperem um pouco: mais tarde não será precisamente da certeza do cogito que Descartes vai obter a refutação do império do Gênio Mau? Como pode a premissa que fundamenta uma hipótese constituir também a base da sua radical impugnação? A experiência de qualquer pessoa adulta que se conheça um pouco mostra que não existem limites precisos entre a autonomia interior da consciência individual e a ação do Gênio Mau: elas se mesclam e se confundem. A fé ingênua – autêntica ou fingida – que Descartes deposita na sinceridade da sua busca da verdade separa em compartimentos estanques o eu pensante e o Gênio Mau, lançando unilateralmente sobre este as culpas que o eu compartilha, e já fundando como premissa certa e inabalável, muito antes da afirmação do cogito ergo sum, o eu como morada única da verdade universal, restando-lhe apenas, para consumação desse destino excelso, encontrar as regras do método apropriado. Todo o universo de dúvidas que Descartes dizia atormentá-lo permanecia exterior ao seu eu pensante, não o comprometia em absolutamente nada e por isso podia ser facilmente neutralizado por um “método”. E este, por sua vez, não fazia senão reafirmar retroativamente a premissa da incorruptibilidade do eu pensante, postulada entre sombras desde o início. Conhecendo-me como me conhecia, eu não podia embarcar nesse jogo. O método de que eu precisava não era aquela máquina bem azeitada que um eu soberano manejava com a segurança e a desenvoltura de quem já se imagina, desde o início, detentor ou merecedor privilegiado da verdade fundamental. Ao contrário: o que eu precisava não era um “método”: era uma luta incessante contra a mentira interior que, com ou sem a ajuda de um Gênio Mau, fazia de mim um inimigo da verdade no instante mesmo em que eu proclamava buscá-la, ao ponto de me fazer suspeitar, nos piores momentos, que eu próprio era o gênio mau empenhado em tudo falsificar. Haveria um “método” que me garantisse para sempre contra mim mesmo? Para isso seria preciso que eu me congelasse num circuito repetitivo, acionando sempre os mesmos botões do método para neutralizar sempre as mesmas mentiras. Mas já confessei que minhas mentiras interiores, como as de todo mundo, eram inventivas, auto-renováveis sob formas diversas e pretextos imprevisíveis. O mais incômodo de tudo era que Descartes julgava poder-se precaver contra o engano mediante o expediente de colocar tudo em dúvida até obter provas racionalmente inabaláveis. Mas como poderia a dúvida defender-me contra o auto-engano, se uma das minhas modalidades prediletas de auto-engano – como, aliás, as do restante da espécie humana – consistia precisamente em diluir numa turva poção de dúvidas aquilo que eu sabia perfeitamente bem? João Calvino, que era um sujeito execrável mas fino psicólogo, definiu a consciência como aquilo que, dentro de nós, inibe a tentação de negar o que sabemos. O que eu precisava não era um método lógico que permitisse ao meu eu pensante impugnar umas proposições e provar outras, mas algo, uma força, um elemento, um impulso, um x, enfim, que impedisse o meu eu pensante de sufocar a voz da minha consciência mais profunda. O que eu precisava era o contrário do que Descartes buscava: não um método pelo qual o meu eu pensante afirmasse a sua soberania, mas uma disciplina ativa que subjugasse o pensamento às exigências da consciência. Essa consciência, por sua vez, não era um ponto luminoso estável e fixo, mas uma vaga luminosidade, trêmula e intermitente, que só brilhava nos instantes fugazes em que obtinha alguma vitória, temporária e incerta, sobre as trevas revoltas que a cercavam, ora impetuosas e atemorizantes, ora entorpecentes e sedutoras. Somadas e articuladas, a consciência e as trevas constituíam a minha “alma” ou pessoa, e nesse conjunto o eu pensante não era senão um servidor da consciência, mas servidor inconstante e rebelde, traiçoeiro no mais alto grau, que volta e meia proclamava sua independência e se voltava contra a proprietária, adornando a mentira com as pompas da certeza racional ou camuflando-a sob o prestígio intelectual da dúvida cartesiana. Das “paixões da alma”, que segundo Descartes o eu pensante deve esclarecer e domar, nenhuma era mais poderosa e ameaçadora do que o próprio eu pensante. Que arrebatamento lúbrico, que acesso de temor, que ciúme doido, que explosão de cólera se compara, em sua força destrutiva, ao impulso raciocinante quando destravado de freios morais, quando livre de obstáculos sentimentais como a piedade, a compaixão, o amor ao próximo, a humildade, o medo de desagradar a Deus, isto para não mencionar a simples modéstia e um pouco de senso estético? Em poucos meses, o culto da razão, na França, matou dez vezes mais gente do que a Inquisição Espanhola matara em quatro séculos. As ideologias mortíferas que fizeram do genocídio a prática habitual de muitos governos conquistaram os povos na base do apelo emocional, é certo, mas não puderam fazê-lo antes de ganhar a adesão de hordas inteiras de intelectuais de primeiro plano, graças ao prestígio científico-racional das noções que as fundamentavam. É fácil mas inútil alegar que se tratava de “pseudociência” e não de ciência. Mesmo supondo-se que a distinção entre as duas seja em todos os casos coisa simples e improblemática, que não o é de maneira alguma, o fascínio da pseudociência vem da mesma fonte que o da ciência genuína: tanto uma quanto a outra não apelam prioritariamente a nenhuma das paixões grosseiras da alma humana, como o desejo sexual ou a cobiça de dinheiro, mas à ambição cognoscitiva do eu pensante, ao impulso de conhecer a verdade e através dela controlar, se não o universo físico, ao menos as massas de ingênuos que vivem na ilusão. O dito de Francis Bacon, “saber é poder”, tornou-se a máxima inaugural da moderna civilização científica. E o próprio Descartes não enxerga outra virtude maior na sua filosofia do que sua capacidade de dar aos homens o poder de controlar a natureza. Entre os personagens de Dostoiévski, os loucos mais perigosos não exteriorizam a sua loucura em explosões emocionais, mas em discursos filosófico-ideológicos.Albert Camus distinguia entre os crimes de paixão e os crimes de lógica – e quem negaria que estes, mais que aqueles, espalharam violência e crueldade no mundo em doses insuportáveis? Na tragédia de Eugenio Corti, Processo e Morte de Stálin, o ditador soviético, respondendo aos companheiros que lhe imputam uma lista de crimes hediondos, demonstra calmamente, metodicamente, que tudo o que fizera de mau tinha sido apenas a aplicação lógica e racional dos princípios do marxismo-leninismo. E não vejo meio de contestar a advertência de Victor Frankl: Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e conseqüente.[ 9 ] Não, o eu pensante não é, definitivamente, a sede da consciência, no sentido que Calvino dá ao termo. Como é, precisamente, a relação entre esses dois domínios, tal como aparece nas Meditações de Descartes? [ 3 ] Maquiavel ou A confusão demoníaca, Campinas, Vide Editorial, 2011. [ 4 ] À publicação deste livro deve seguir-se, não sei exatamente quando, a da transcrição completa das aulas do Seminário de Filosofia que dediquei a uma leitura analítica das Meditações. Nessa transcrição, as hipóteses interpretativas aqui esboçadas encontram mais ampla fundamentação textual. [ 5 ] “Les Dieux”, em Les Arts et les Dieux, Paris, Gallimard, 1958, p. 1203. [ 6 ] “Uma geração de predadores”, Diário do Comércio (São Paulo), 3 de junho de 2011, reproduzido em http://www.olavodecarvalho.org/semana/110603dc.html. [ 7 ] “Imitação subdesenvolvida de um modelo degenerado”, chamou-o Jean-Yves Bézieau. [ 8 ] “Embora tenha dedicado bons anos de minha vida ao estudo de alguns grandes autores do passado, não me considero um ‘especialista’ em nenhum deles. Acho até engraçada essa peculiar invenção brasileira: o filósofo especialista em outro filósofo. Diversamente do que cabe ao mero estudioso, erudito, professor, pesquisador ou coisa que o valha, a obrigação do filósofo é desenvolver a sua própria filosofia, não a dos outros, por ilustres e grandes que sejam. Ele pode, como aliás todos fazem, utilizar-se de elementos que aprendeu deles, mas integrando-os na estrutura do seu próprio pensamento e dando- lhes por isso, necessariamente, um sentido um tanto diverso do que tinham nos textos originais. Não há nenhuma infidelidade nisso, é apenas a obra da inteligência que vai em frente, descobrindo novas dificuldades e soluções, sem poder ater-se servilmente à letra do que foi ensinado no passado. O próprio Sto. Tomás de Aquino é às vezes um mau explicador do seu mestre, justamente nos momentos em que sua própria filosofia alcança dimensões que Aristóteles desconhecera. Pode-se duvidar da exatidão histórica do Nietzsche de Heidegger, e eu mesmo duvido; mas nem por isso o livro deixa de ser uma admirável exposição do pensamento de Heidegger” (O. de C., “Malditos farsantes”, 21 de julho de 2011, em http://www.olavodecarvalho.org/textos/110721farsantes.html). Uma vez, aliás, travei o seguinte diálogo com uma dama da sociedade: – Ouvi dizer que o senhor é filósofo! Que interessante! Especialista em quem? – Em mim mesmo, cara senhora. Os outros são apenas cultura geral. [ 9 ] Sede de sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Editora Quadrante, 1989, p. 45. Grifo meu. II D A PSICOLOGIA DA DÚVIDA La verdad es lo que es y sigue siendo verdad aunque se piense al revés. ANTONIO MACHADO ESCARTES ASSEGURA-NOS que a seqüência das Meditações que o leva do questionamento do mundo exterior à descoberta do cogito não é apenas um esquema lógico, uma articulação hipotética de pensamentos pensáveis, mas uma experiência vivida, um relato fidedigno de pensamentos pensados. Mas vários indícios, no texto, sugerem que essa afirmação não deve ser tomada em sentido muito literal. Notei-os desde a primeira leitura, mas tive de voltar a eles muitas vezes, sem poder evitar a pergunta: até que ponto aquela narrativa correspondia adequadamente aos fatos, e a partir de que ponto ela se tornava um modelo inventado, concebido para dar ordem e sentido a experiências que na verdade teriam se passado de maneira muito mais imprecisa e nebulosa, se não totalmente diversa? Para piorar as coisas, aquela seqüência de pensamentos se apresentava como um modelo, um paradigma que deveria repetir-se de modo igual ou semelhante, com semelhantes ou iguais resultados, em todo homem que se dispusesse a reexaminar desde os fundamentos o edifício de suas crenças. Edmund Husserl, nas suas Meditações cartesianas, que levam esse título precisamente por isso, afirma que as coisas são realmente assim. Ao menos uma vez na vida, diz ele, todo pretendente a filósofo tem de fazer tábua rasa do seu edifício de crenças e, como Descartes, reconstruir tudo desde o grau zero, a autoconsciência do eu pensante. Para aprender a fazer isso, eu tinha de me imbuir profundamente da lição de Descartes antes de poder aprender a de Husserl, que a estendia e radicalizava. Uma simples releitura analítica dos textos principais do autor era desnecessária e insuficiente para isso. Desnecessária, porque nesse tipo de investigação o essencial já tinha sido feito por Martial Gueroult, que eu não tinha nem tenho a menor pretensão de superar. Insuficiente porque, se algum segredo o filósofo havia guardado, eu não poderia encontrar sinal dele nos textos se primeiro não o tivesse vislumbrado imaginariamente. E o fato é que, naquele momento, eu não vislumbrava coisíssima nenhuma. Decidi, então, começar pelo começo: reencenar na minha própria cabeça a sucessão das Meditações que vai da dúvida metódica à descoberta do cogito ergo sum como fundamento absoluto de toda certeza. Mas não se tratava só de repetir, pela ordem, uma série de “pensamentos”. Pensamentos supõem percepções, recordações, sentimentos, fantasias. O que eu queria não era só repetir uma seqüência de raciocínios: era reconstruir mentalmente as experiências interiores que Descartes condensara nesse raciocínio. Como uma extravagância merece outra, apelei, para isso, a um método que nenhum professor de filosofia julgaria muito respeitável, mas que me pareceu o mais adequado naquela situação: o método da “memória afetiva”, com que o grande ator russo Constantin Stanislavski – cujas obras eu andara estudando sob a direção de Eugênio Kusnet – construía seus personagens mediante a evocação de situações da sua própria vida, análogas àquelas que ele deveria representar no palco. Esse método me pareceu ainda mais adequado porque o próprio Descartes, como acabo de dizer, assegurava que suas Meditações não eram uma construção intelectual e sim o relato de experiências vividas. Muito mais tarde, ao estudar o Platão do Paul Friedländer e as obras de Eric Voegelin, confirmei que minha decisão não era tão louca quanto parecia: com esses dois autores ilustres aprendi que a compreensão das idéias filosóficas não pode ser obtida nem só pela análise de textos, nem só pela reconstituição da atmosfera cultural donde os textos emergiram, mas exige o rastreamento meditativo das experiências reais de onde as idéias nasceram. Comecei então a reler as Meditações como se fossem uma peça de teatro, na qual eu deveria representar, por meio do método Stanislavski, o papel de René Descartes na reconstituição imaginativa das suas experiências cognitivas. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que isso era muito mais difícil do que eu jamais poderia ter imaginado! Descartes resume tudo em umas poucas páginas, dando a impressão de que a seqüência de meditações havia fluído pela sua mente com a naturalidade da água corrente. Mas o esforçode puxar da minha memória afetiva algum análogo da dúvida metódica, do Gênio Mau e da certeza absoluta que o Eu Pensante tem de si mesmo esbarravam em tantos obstáculos e contradições, que não pude evitar a conclusão de que, enquanto relato de experiências vividas, as Meditações não eram muito confiáveis. Descartes simplesmente não podia ter vivenciado aquelas experiências exatamente como ele as narra. Que é possível duvidar das nossas sensações, das nossas imaginações e dos nossos pensamentos, é coisa que qualquer um de nós pode testemunhar. Também é possível colocar todo o orbe das nossas representações entre parênteses, reduzindo o “mundo” a uma hipótese evanescente. Mas, após ter feito essas operações, Descartes assegurava-nos ter encontrado, no fundo, a certeza da dúvida: a dúvida é um pensamento, e, no instante em que a penso, não posso duvidar de que a penso. A autoconfiança do ego pensante na sua própria solidez metafísica surgia como poderosa compensação psicológica para a perda da crença na realidade do “mundo”. Só que, tão minucioso em descrever os pensamentos que o induzem ao estado de dúvida integral, ele é estranhamente evasivo quanto a esse estado mesmo. Na verdade, ele nem mesmo o descreve: afirma apenas que ele aconteceu, e, saltando imediatamente da descrição para a dedução, passa a tirar as conseqüências lógicas que a constatação desse estado lhe impõe. Para dar alguma consistência verossímil à minha performance no papel de Descartes que pretendia representar no meu teatro interior, eu precisava portanto fazer o que ele não fizera: examinar e descrever não o mero conteúdo de algumas dúvidas em particular, mas o ato mesmo de duvidar, o estado de dúvida.[ 10 ] E aí a primeira constatação que se me impôs como inegável foi a seguinte: a dúvida não era propriamente um “estado” — uma posição estática na qual eu pudesse permanecer, como se permanece triste ou absorto, imóvel ou deitado. Era uma alternância entre um sim e um não, uma impossibilidade de deter-me num dos termos da alternativa sem que o outro viesse disputar-lhe a primazia. Pois o sim ou o não, tão logo aceitos como definitivos, eliminariam imediatamente a dúvida, que é feita da sua coexistência antagônica e de nada mais. Mas esse antagonismo, como vim a perceber logo em seguida, não é estático: é móvel. A mente em dúvida passa incessantemente de um dos termos ao outro, sem encontrar um ponto de apoio onde possa repousar e “estar”. Só que, como cada um dos termos é a negação do outro, a mente não poderia deter-se nele sem, por um instante, negar o outro: e, precisamente nesse instante, não está em dúvida – está afirmando ou negando, afirmando uma coisa e negando a outra, ainda que não consiga perseverar na afirmação ou na negação sem que lhe ocorram mil e uma razões para abandoná- la. No instante em que nega ou afirma, a dúvida suprime-se a si mesma como dúvida, passando a argumentar em favor de uma hipótese e contra a outra, lutando para se estabilizar na afirmação ou na negação; mas fracassa, e é neste fracasso que consiste, precisamente, a dúvida. Seguia-se a conclusão fatal: é impossível uma dúvida que não se ponha em dúvida a si mesma, uma dúvida que, suspendendo a alternância, se imponha como “estado” e permaneça. Ao tomar a dúvida como um “estado”, omitindo que se tratava de uma alternância entre dois momentos antagônicos, Descartes a coisificava e fazia dela uma certeza: a famosa asserção “não posso duvidar de que duvido no instante em que duvido”, que Descartes toma como expressão da mais patente obviedade, expressava no entanto uma pura impossibilidade psicológica. Mais certo seria dizer que, ao duvidar, ponho tudo em dúvida, inclusive a dúvida mesma. A dúvida não é um estado: é uma sucessão e coexistência de estados antagônicos, é um não poder estar.[ 11 ] O que aí se passava era que Descartes confundia a dúvida com a negação, mais propriamente com a negação hipotética. Posso efetivamente produzir uma negação hipotética e repeti-la indefinidamente. Posso mesmo ampliá-la – hipoteticamente, é claro – até que abranja a totalidade do que julgo saber. Mas não posso “duvidar” do que creio sem ao mesmo tempo afirmá-lo reiteradamente, na medida em que só assim poderei intercalar com as suas afirmações sucessivas as suas respectivas negações, e com estas as suas afirmações e assim por diante, cujo círculo vicioso constitui a dúvida. Ora, a negação hipotética não é a mesma coisa que a dúvida, mas é o seu correspondente lógico, a sua versão reduzida, conceptualizada e descarnada, separada da experiência viva do antagonismo que constitui a substância psicológica da experiência da dúvida. A negação hipotética é a “dúvida” tal como aparece no eu pensante, não na consciência, não na alma. Descartes usa sempre o termo “dúvida”, mas de fato não está falando senão da negação hipotética, portanto somente do eu pensante, não da consciência ou da alma. Quando, na Segunda Meditação, ele relata as emoções que sentiu ao ver-se incapaz de contestar as negações que fizera na véspera, ele volta a falar da alma, é certo, mas não como centro ativo da dúvida, e sim como vítima passiva dos efeitos provocados nela pelo eu pensante. Dito de outro modo: ao dar à negação hipotética as dimensões de uma “dúvida”, Descartes substitui a alma pelo eu pensante e, falando deste, acredita falar daquela. Mas, se o eu pensante tem tamanha primazia sobre a alma, como não a terá também sobre tudo quanto a alma conhece? A prioridade do ego cogitans, que mais tarde será afirmada como conclusão da seqüência de pensamentos, já está dada desde início na mera formulação da “dúvida”. O raciocínio das Meditações é inteiramente circular, só oferecendo como resposta o que já estava contido na pergunta. Colocado nesses termos, o cogito cartesiano repetia apenas o argumento de Sócrates contra o céptico, de que não se pode negar sem afirmar a negação, sem afirmar portanto alguma coisa. Mas, vistas as coisas assim, a bem pouco se reduzia a descoberta cartesiana: longe de ter instaurado um novo fundamento, crítico ou negativo, para o mundo do saber, ela não fizera senão demonstrar novamente, pelas vias tortuosas de uma autodescrição psicológica bem imprecisa, o primado lógico da afirmação sobre a negação. Só que o reconhecimento deste primado era, no mesmo ato, a negação da dúvida como ato fundador. Mas se a dúvida, como tal, não podia servir de fundamento crítico, restava ainda perguntar quais fundamentos a tornam possível. E este era o ponto decisivo, pois, se havia um algo “por trás” da dúvida, seria esse algo, e não a dúvida, o ponto de apoio firme que Descartes buscava, e que acreditou ter encontrado na constatação da dúvida. Descartes diz que a dúvida é uma certeza no instante em que é pensada. Mas isto é falso: o que é certeza é a reflexão posterior que afirma a realidade da experiência da dúvida. No instante mesmo da dúvida, o que há é, como vimos, uma alternância entre afirmação e negação, e portanto a impossibilidade mesma de afirmar um estado qualquer, se por estado entendemos, como se deve entender, a coincidência entre um juízo de fato e o sentimento que o valoriza negativamente ou positivamente, como ocorre na tristeza, na raiva, na pressa, na esperança etc. A dúvida não é um estado, pela simples razão de que nela o sentimento, que pode ser de ansiedade, de esperança, de curiosidade etc., não coincide com um juízo determinado, mas provém justamente da impossibilidade de afirmar ou negar um juízo. Ela é antes um momento de suspensão entre estados, um vazio agitado que contém em germe vários estados possíveis – pelo menos dois – e não se resolve em nenhum deles sem suprimir-se a si mesma. A mente, portanto, nunca “está” em dúvida: apenas passa por ela, precisamente como transição entre estados. É só quando a dúvida deixa de ser experiência presente para passar a ser objeto de reflexão que surge esta certeza retrospectiva e narrativa: “Não consegui, até agora, estabilizar-me na negação ou na afirmação”. Existe, portanto, não só distinçãológica como também separação de fato entre a dúvida enquanto experiência presente e a dúvida enquanto objeto de recordação e reflexão – e é esta que é certa e indubitável,[ 12 ] não aquela, embora Descartes tome uma pela outra e nos repasse como evidência intuitiva direta o que é fruto de reflexão posterior. É somente esta reflexão que, dando um nome à alternância recém- vivenciada, confere artificialmente a unidade de um “estado” ao que é na verdade uma sucessão de estados que se suprimem mutuamente ou uma coexistência de estados puramente potenciais, dos quais cada um só se pode atualizar à custa da exclusão dos outros. Conferindo ao vazio da alternância a consistência positiva de um estado, no mesmo instante Descartes transforma a dúvida em mera negação hipotética, tomando então como estado psicológico efetivo o que é apenas o conceito lógico de um estado possível. Para piorar ainda mais as coisas, na afirmação reflexiva da realidade da dúvida estão pressupostas duas crenças: a crença na continuidade da consciência entre a dúvida e a reflexão, e o conhecimento da distinção entre verdade e falsidade. 1º) Aquele que reflete sobre a dúvida sabe que ainda é “o mesmo” que teve a dúvida; e se o ato de duvidar é formalmente distinto do ato da reflexão, o eu consciente, ao refletir, sabe que é ele mesmo o sujeito de dois atos distintos – distintos logicamente e distintos no tempo –, donde se conclui que esse eu é logicamente e temporalmente anterior aos dois atos e independente deles: não é o ato da dúvida que funda a certeza do eu, mas, ao contrário, a certeza da continuidade do eu é a garantia única de que a dúvida foi realmente vivenciada. Pois a dúvida, se não recebesse da reflexão posterior o nome que lhe confere a aparente unidade de um estado, acabaria por se reduzir à mera sucessão de negações e afirmações irrelacionadas, sucessivas alucinações de um sujeito esquizofrenicamente plural, destituído do domínio de si e dissolvido no fluxo atomístico dos seus estados.[ 13 ] Para poder ser objeto de reflexão, a dúvida recebe a artificial unidade de um nome; e se logo em seguida a mente se esquece de que essa unidade é um mero ente de razão e a toma como unidade substancial, então se trata de um desses casos de auto-hipnose retroativa em que o nome produz magicamente, a posteriori, a realidade do seu objeto. 2º) Sendo formalmente distintos, os dois atos são distintos também empiricamente, isto é, no tempo: primeiro duvido (isto é, vou e venho entre sucessivas afirmações e negações), depois reflito que duvidei (isto é, unifico sob o nome “dúvida” essa multiplicidade de vivências antagônicas). Mas a unidade do eu, que está subentendida nessa reflexão mesma, e portanto na certeza da dúvida, é continuidade no tempo, é memória e recordação: a memória, estando pressuposta como condição indispensável da reflexão, é lógica e temporalmente anterior a ela: longe de poder fundar a confiança que temos na memória, é a dúvida que depende da memória para tornar-se psicologicamente possível. Mas, se a dúvida depende da garantia que lhe é dada pelo eu e pela memória, então ela não tem nenhum poder fundante. É coisa fundada, é certeza secundária e derivada, é mero disfarce de um agente mais profundo e mais inquestionável. 3º) Porém, a dúvida subentende algo mais. Como é possível duvidar? A possibilidade da dúvida repousa inteiramente no nosso poder de conceber que as coisas sejam de um outro modo que não aquele com que se nos apresentam num dado momento. A dúvida assenta-se numa suposição; ela requer e subentende o poder de supor. Ora, tendo as coisas se apresentado ao sujeito de um certo modo, e não de outro, este outro e suposto modo só pode apresentar-se à consciência como invenção do sujeito mesmo, como produto de imaginação ou conjetura. Para saber que duvida, é necessário então que o sujeito saiba que supôs; que se reconheça portanto como sujeito não apenas de dois atos, mas de três: o ato de duvidar, o ato de refletir sobre a dúvida e, antes de ambos, o ato de supor ou imaginar. 4º) Mas, se o sujeito não percebesse nenhuma diferença entre as coisas tal como se lhe apresentam e as coisas tal como as supõe, não poderia tomar consciência de que supôs, pois não haveria para ele diferença entre supor e perceber. Eis, portanto, que a consciência dessa diferença é, ela também, um requisito e um fundamento da possibilidade da dúvida. Para duvidar, necessito distinguir, na representação, o dado e o construído, o recebido e o inventado, aquilo que me vem pronto e aquilo que faço e proponho. Logo, está aí pressuposta a consciência da diferença entre o objetivo e o subjetivo e, portanto, a crença na objetividade do objetivo e na subjetividade do subjetivo. 5º) Mais ainda: se o sujeito confundisse esses dois domínios, acreditando que supôs o percebido e percebeu o suposto, teria perdido a continuidade da consciência e da memória, que é, como vimos, condição de possibilidade da dúvida. Logo, a dúvida sobre a realidade do mundo não pode se apresentar como simples escolha entre duas possibilidades de valor igual e idêntica origem, mas sempre como escolha entre um dado e um suposto, entre o recebido e o inventado. 6º) Não é possível portanto duvidar da realidade do mundo sem saber de antemão que esta dúvida, e a suposição que a fundamenta, são puras invenções do próprio sujeito, e que esta invenção é formal e temporalmente distinta do ato perceptivo, bem como do conteúdo percebido. A dúvida é a suposição de que um mundo inventado é mais válido que o mundo percebido, suposição que se funda por sua vez na consciência de inventar, de supor e de fingir. A dúvida quanto à realidade do mundo é sempre e necessariamente um fingimento, e quanto mais o fingidor se esforce para levar esta dúvida a sério, para torná-la cada vez mais verossímil, tanto mais o brilho mesmo da performance atestará a diferença entre o verossímil e o verdadeiro, assim como, no teatro, aplaudimos o ator precisamente porque sabemos que ele não é o personagem. 7º) Mas esta consciência de fingir seria impossível se não se fundasse, por sua vez, na consciência da diferença entre pensar e ser, imaginar e agir. Pois, subentendida a consciência da diferença entre supor e perceber, paralelamente à consciência que o eu tem de suas próprias ações, não haveria como negar que o eu pensante tem consciência da diferença entre ação suposta e ação realizada, de vez que a ação realizada não é somente pensada, mas percebida fisicamente, exatamente como os seres do mundo sensível. Não posso portanto colocar em dúvida os seres do mundo sensível sem no mesmo ato colocar também em dúvida os atos físicos que me vejo realizando, como por exemplo os movimentos de minhas mãos e pernas. Mas, ao mesmo tempo, não os posso colocar em dúvida sem questionar, no mesmo instante, a continuidade e unidade do eu, a qual no entanto está pressuposta, como vimos, no ato mesmo de duvidar do que quer que seja. Eis aí outro motivo pelo qual a dúvida cartesiana, sendo dúbia por definição, não poderia instalar-se senão pondo-se também a si mesma em dúvida, isto é, sabendo-se fundada numa suposição e num fingimento voluntário. Eis também por que a dúvida cartesiana é tão rara e dificultosa: ela implica um movimento que se desmente a si mesmo, que coloca em questão as condições mesmas que o possibilitam.[ 14 ] 8º) Finalmente, a dúvida só é possível quando se sabe que algo, seja no percebido, seja no suposto, é insatisfatório, que não atende a algum requisito fundamental de veracidade. Mas como poderia o sujeito dubitante exigir veracidade de suas suposições ou percepções se não tivesse nenhuma idéia da verdade, ainda que como mero objeto imaginário de desejo? O desejo de fundamento pressupõe, no sujeito, ao menos a possibilidade de imaginar que seus conhecimentos possam ser mais seguros do que realmente ele sente que o são num dado momento, ou seja, pressupõe a verdade como ideal e a opção pela verdade. Mas, ao mesmo tempo, vimos que o sujeito não conhecia a verdade somente como ideal abstrato,mas já conhecia pelo menos uma diferença real entre verdade e falsidade: a diferença entre o dado e o suposto, acompanhada da consciência verdadeira de que o suposto não foi dado, nem dado o suposto. A dúvida ergue-se, assim, sobre todo um edifício de dados e pressupostos: longe de ser logicamente primeira, ela é um produto requintado e elaboradíssimo de uma máquina de saber. Longe de ter um poder fundante, ela não é senão a manifestação mais ou menos acidental e secundária de um sistema de certezas. Só que, se assim é, se o primado da dúvida metódica é apenas o primado de um equívoco, então ficam sob suspeita, igualmente, o primado kantiano do problema crítico, o dogma positivista da impossibilidade de obter certezas metafísicas válidas, e muitas outras crenças que o homem moderno toma, mesmo a contragosto, como verdades óbvias e patentes. [ 10 ] Aproveito, deste ponto em diante até o fim do capítulo, parte das notas que apresentei ao Colóquio Descartes da Academia Brasileira de Filosofia, Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, em 9 de maio de 1996, sob o título “René Descartes e a Psicologia da Dúvida”, extensão, por sua vez, do capítulo do meu livreto Universalidade e Abstração e Outros Estudos (São Paulo, Speculum, 1983), que leva o título de “O cogito cartesiano à luz da psicologia espiritual”. A redação que dei a esses dois trabalhos parece-me hoje totalmente inadequada, por dar ares de conclusões definitivas a constatações que não eram senão etapas provisórias de meditações que iriam estender-se ainda por muitos anos. Ao trazer de volta esses parágrafos do estilo expositivo para o narrativo, creio que corrijo um pouco a perspectiva. [ 11 ] Ao dizer “sucessão e coexistência”, pareço estar pronunciando um monumental contra-senso. Mas o sim e o não que compõem a dúvida são coexistentes sob um aspecto, sucessivos por outro. Coexistentes logicamente como termos de uma contradição, são sucessivos psicologicamente, isto é, entram no palco da consciência de modo cíclico, rotativo: um entra, o outro sai, como o dia e a noite, que coexistem no céu e se sucedem num ponto da terra. [ 12 ] “Certo e indubitável” ou “incerto e duvidoso” são predicados que não se aplicam ao fato como tal, mas aos juízos que fazemos a respeito dele. [ 13 ] A posterior dissolução da unidade do eu na pluralidade dos seus estados, tal como viria a ser operada por David Hume, já estava portanto em germe no cogito cartesiano. [ 14 ] Ela é uma torção do aparato mental humano, um gesto doloroso que se auto- suprime, e que raros homens têm condição de suportar por muito tempo sem grave risco para sua integridade psicológica. A possibilidade de assumir esse risco e vencê-lo repousa na existência de um corpo de crenças tão arraigado, tão sólido, que o homem possa se dar o luxo de sair dele numa viagem mental, seguro de reencontrá-lo na volta. Essa possibilidade, por sua vez, só se cumpre nas sociedades e nas culturas urbanas altamente diferenciadas e estáveis, que dão ao indivíduo pensante o espaço para inocentes vôos de imaginação que em nada afetarão sua conduta de cidadão ou de súdito honrado e cumpridor de seus deveres; que lhe dão, mais ainda, espaço livre para pensar uma coisa e fazer outra, para cultivar aquela hipocrisia defensiva que é notoriamente ausente entre os primitivos, e que, para o mal e para o bem, é uma sólida proteção da consciência individual contra a tirania do discurso coletivo. Daí a coexistência pacífica entre a audácia revolucionária da dúvida cartesiana e o conservadorismo da “moral provisória” que a possibilita. PARTE 2 – CONSCIÊNCIA E ESTRANHAMENTO III E REVISÃO DO ITINERÁRIO XAMINEI NO CAPÍTULO II o passo inicial da filosofia de René Descartes, a dúvida radical ou metódica. Nas célebres conferências que pronunciou na Sorbonne em 23 e 25 de fevereiro de 1929, e que depois viriam a ser publicadas sob o título bem significativo de Meditações Cartesianas, Edmund Husserl afirmou categoricamente que as meditationes de Descartes não eram apenas um assunto pessoal do filósofo, “menos ainda uma simples forma literária da qual ele usasse para expor suas opiniões filosóficas, mas, ao contrário, elas desenham o protótipo do gênero de meditações necessárias a todo filósofo que comece sua obra, as únicas que podem dar nascimento a uma filosofia”.[ 15 ] Em nota de rodapé, ele acrescentava que tal era a maneira de ver do próprio Descartes. Se Descartes tinha sido, nas palavras de Charles Péguy, “ce chevalier français qui partit d’un si bon pas”,[ 16 ] todos os que depois dele se aventurassem pela mesma senda deveriam, portanto, imitar-lhe o exemplo e o estilo. Husserl, no entanto, deixava claro que alguns aspectos do empreendimento cartesiano tinham “um alcance eterno” – subentendendo que outros não tinham. O eterno nas Meditações, o que fazia delas o modelo por excelência de toda filosofia, estava em dois pontos: a) A aspiração de encontrar princípios universalmente válidos, auto-evidentes, que pudessem servir de fundamento e critério último de validade para todos os conhecimentos científicos. b) A descoberta de que para encontrar esses princípios o filósofo, em vez de examinar o mundo em torno, deveria voltar-se para dentro de si mesmo, para o âmago da sua consciência. Nenhum desses dois pontos era novo no tempo de Descartes. O segundo ecoava as palavras de Agostinho pronunciadas onze séculos antes: “Noli foras ire, in te ipsum reddi: in interiore hominis habitat veritas”.[ 17 ] O primeiro era a própria definição da filosofia segundo Aristóteles. O que restava de propriamente cartesiano na proposta era o método adotado para realizar essa dupla aspiração, isto é, o método da dúvida. Husserl não dizia uma palavra contra esse método, mas confessava julgá-lo “muito estranho” e, após resumi-lo em dois parágrafos, recuava da exigência da dúvida integral para um modesto “voto de pobreza em matéria de conhecimento”. Sem voltar ao assunto, passava em seguida a expor o seu próprio método fenomenológico, o qual, em vez de colocar tudo em dúvida, simplesmente se abstinha de pronunciar-se quanto à existência ou inexistência do que quer que fosse e se contentava em descrever os objetos tal como se apresentavam à consciência. O parentesco, a afinidade profunda que Husserl dizia enxergar entre Descartes e ele mesmo não residia, portanto, naquilo que o método cartesiano tinha de mais característico, e sim em traços genéricos que a filosofia de Descartes compartilhava, de um lado, com a de Aristóteles, de outro com a de Agostinho. Seria então uma afinidade meramente periférica, ou uma “simples forma literária” usada para captar a benevolência da platéia francesa? Nada disso. O próprio Husserl nunca se explicou claramente em público quanto ao verdadeiro elo de simpatia espiritual profunda que o ligava a Descartes, elo que ia muito além de qualquer semelhança de métodos e se erguia às dimensões de uma comunidade de destinos. O caso é dos mais intrigantes, mas, como é impossível deslindá-lo sem antes escavar um pouco mais fundo o próprio enigma Descartes, não vejo alternativa senão deixar o leitor em suspense até o capítulo final, em que ambos os mistérios serão solucionados de uma vez. Por enquanto, devo fazer uma breve revisão do itinerário percorrido e um balanço das conclusões obtidas até agora. *** Na seqüência de pensamentos que resume sob o título Meditationes de Prima Philosophia, René Descartes começa, como todo mundo sabe, por impugnar todas aquelas verdades que aprendera desde a infância, nas quais não visse um fundamento suficiente. Ele notava, por exemplo, que os cinco sentidos, nos quais geralmente acreditamos, não são fundamentos de si mesmos, não trazem consigo a certeza das informações que fornecem. Ele usa, para impugnar a confiabilidade dos sentidos, uma série de argumentos que, na verdade, não são dele, são bem antigos, são da escola pirrônica, e que consistem em alegar os enganos costumeiros do conhecimento sensível – a famosa história do pau que, posto na água, parece quebrado, ou oefeito de perspectiva que faz as coisas distantes parecerem menores do que as mais próximas. Essas ilusões comuns mostram que os sentidos corporais podem ser uma fonte de conhecimento, mas não uma fonte segura. Ademais, há o fato de que durante o sonho também temos sensações e nem sempre temos a prova de que o sonho é apenas sonho. Em seguida, Descartes faz a crítica da memória, da imaginação e das crenças do senso comum, sempre em busca do ponto arquimédico,[ 18 ] o ponto seguro que poderia servir de fundamento à construção de um sistema válido de filosofia. Como ele descreve apenas as conclusões a que foi chegando no exercício da dúvida metódica, mas não faz em nenhum momento a descrição interna do próprio estado de dúvida, passei, em seguida, a examinar esse estado sob o ponto de vista da sua estrutura lógica, tentando averiguar os elementos de certeza que estão necessariamente embutidos em toda dúvida, os pressupostos que têm de ser aceitos sem discussão para que uma dúvida possa chegar a ser formulada. Um desses pressupostos é a continuidade temporal do eu entre a pergunta e a resposta. René Descartes diz que, quando afirma “não posso duvidar de que duvido no momento em que estou duvidando”, isto não é a conclusão de um raciocínio lógico, mas um ato intuitivo, uma percepção instantânea. Porém, essa percepção, ainda que seja instantânea, se refere ao mesmo eu que estava duvidando antes. Portanto, existe aí uma continuidade do eu no tempo que transcorre entre essas duas vivências: o estado de dúvida e a posterior certeza intuitiva da dúvida. Não que esta certeza já não esteja contida potencialmente no primeiro estado, mas o fato é que ela só se atualiza na consciência após o recuo reflexivo, o giro da atenção que se desvia do objeto inicial da dúvida para a dúvida mesma enquanto estado. De modo mais geral, toda dúvida, na sua própria estrutura lógica, pressupõe a continuidade do eu entre a primeira alternativa pensada e a segunda alternativa que a desmente. Se tenho uma dúvida é porque vejo aí uma contradição, e se vejo a contradição é porque vi duas hipóteses que se excluem, e eu permaneci o mesmo enquanto via a primeira e a segunda. Portanto, a continuidade temporal do eu é um pressuposto da dúvida: não é possível ter uma dúvida sem afirmar, no mesmo ato, a continuidade do eu. Outro pressuposto da dúvida é a identidade do objeto a respeito do qual tenho a dúvida, porque se digo algo a respeito do objeto A e o oposto a respeito do objeto B, as duas afirmações não se contradizem necessariamente e o seu confronto não tem por que suscitar dúvida. Só dois predicados opostos do mesmo sujeito podem contradizer-se. Se me dizem que José é gordo, mas Antônio é magro, isso não é contradição; porém, se dizem que José é gordo e magro, então entro em dúvida. Não há, portanto, possibilidade de dúvida sem a admissão prévia da identidade do seu objeto e sem que essa admissão, por sua vez, esteja fora de dúvida. Além disso, os próprios fundamentos do raciocínio lógico também estão pressupostos na dúvida. Se não existe princípio de identidade, de não-contradição e de terceiro excluso, não tenho como formar a dúvida. Também está pressuposta na dúvida a continuidade da língua na qual ela se transmite. Eu não poderia formular uma dúvida sem o auxílio da minha língua natal, e essa língua, evidentemente, sei que não a estou inventando no momento em que formulo a dúvida, sei que estou usando regras de gramática que existem de antemão e que, se eu não as tivesse recebido, também não poderia produzi-las na hora. Por fim, a própria conclusão que René Descartes vai extrair desta parte do exame – que, enquanto estamos duvidando, não podemos duvidar de que duvidamos, e que, portanto, o próprio ato da dúvida seria a primeira certeza filosófica inabalável –, também não é inabalável, porque, se a dúvida é uma alternância entre duas convicções opostas, ela não apenas admite a dúvida a respeito de si mesma, mas a exige. No fim das contas, não é possível alguém duvidar sem duvidar de que duvida, porque, se a certeza, ainda que hipotética, fosse excluída do horizonte, não haveria mais dúvida, haveria simplesmente a negação.[ 19 ] Em suma, por baixo do ato da dúvida, nominalmente uma dúvida radical da qual nada escapa, há toda uma montanha de certezas. Esta conclusão, a que chegamos no capítulo II, mostra que, a rigor, não existe dúvida radical, total ou abrangente. A dúvida cartesiana não pode ser realizada como um ato ou estado efetivo de um espírito pensante, de um eu humano existente e concreto. Ela só pode ser concebida como uma hipótese hiperbólica, como a ampliação ilimitada – e por isso mesmo irrealizável – do estado de dúvida normal que questiona uma coisa enquanto afirma outra. No máximo, a dúvida ampliada se aproximaria da dúvida total como numa assíntota, sem jamais poder alcançá-la. Isso quer dizer, em resumidas contas, que nenhum ser humano jamais teve uma dúvida total. Nem o próprio René Descartes. Mas, se a dúvida total não existe nem pode existir, ela é um mal imaginário que não ameaça os seres humanos no mais mínimo que seja. E nisso reside, creio eu, a estranheza que Husserl viu no método cartesiano. De um lado, a dúvida total bem parece aquilo que em retórica se chama um “boneco de palha”: um espantalho imaginário concebido propositadamente para ser demolido com dois ou três golpes e dar ao seu autor a glória fácil do triunfo obtido sobre um adversário inexistente. De outro lado, ela aparece com uma feição mais horrível e ameaçadora que a de qualquer outro desafio cognitivo que tenha jamais se apresentado à mente humana. Afinal, a completa ausência de certezas corresponderia à total privação de conhecimento e à aterradora solidão de um “eu” isolado de tudo, até de si mesmo. Por que, entre tantos caminhos possíveis para a realização dos dois objetivos máximos da filosofia, Descartes foi escolher logo esse, tão exagerado, tão forçado, tão hiperbólico? Notem que, se a dúvida radical é irrealizável como operação concreta da mente pensante, ela é perfeitamente concebível como hipótese imaginária, como limite último de uma espécie de inconsciência idealizada. Ela é uma fantasia, um sonho mau, cujo conteúdo não pode ser expresso logicamente, mas apenas conhecido pela emoção, pelo temor que desperta no coração humano. Dito de outro modo, a dúvida radical não é a formulação de um problema, mas uma experiência imaginativa que pode ter tanto mais impacto sobre a mente humana quanto menos esta consegue formulá-la em termos “claros e distintos” (para usar os termos do próprio Descartes). Não espanta, pois, que o filósofo, abdicando de toda clareza e distinção, apelasse, para descrevê-la, ao fantasma sinistro do Gênio Mau. Na verdade, ele não descreve esse vazio cognitivo de maneira alguma, nem poderia fazê-lo. O fato mesmo de haver chegado ao cogito mostra que, em última instância, a privação de toda certeza é impossível, é, até mesmo por definição, uma suposição sem conteúdo cognitivo. Nem por isso deixa de ser uma experiência, mas reconhecível somente pela reação de espanto e horror ante a expectativa de um abismo sem fundo nem forma. A pergunta que se segue inexoravelmente é: como Descartes chegou a essa experiência? Como chegou ao confronto com o Gênio Mau? [ 15 ] Méditations Cartésiennes. Introduction à la Phénoménologie, trad. Gabrielle Pfeiffer et Emmanuel Levinas, Paris, Vrin, 1986, p. 2. [ 16 ] “Esse cavaleiro francês que partiu com um passo tão bom”. [ 17 ] “Não vás para fora, permanece em ti mesmo: no interior do homem habita a verdade”. [ 18 ] A expressão é de Mário Ferreira dos Santos. [ 19 ] Há um aspecto que não examinei ali, mas que tem sua importância. A pura e simples suspensão do juízo não pode ser identificada com a dúvida: ela é antes uma superação psicológica da dúvida mediante um distanciamento da pergunta. IV S PASSAGEM A UM NOVO ENFOQUE E A DÚVIDA RADICAL não é realizável como operação lógica da mente pensante, se ela é apenas a antevisão imaginária de um estadoinalcançável, o que cabe perguntar agora é como essa experiência é possível e como e por que René Descartes chegou a desejá-la como via para alcançar a certeza. Vamos partir de uma observação banal: mesmo que não possamos duvidar de tudo num sentido cartesiano, podemos duvidar de muitas coisas. Ainda que seja incompleto no seu conteúdo e ainda que não se realize plenamente, o estado de dúvida é um fato da experiência humana. Porém, como nenhuma dúvida é possível sem certezas preexistentes, a hipótese da dúvida total é autocontraditória na base, o que suscita uma pergunta bastante incômoda: Descartes acreditou realmente que estava num estado de dúvida total ao começar as Meditações, para só sair desse estado ao encontrar a certeza do cogito, ou, ao contrário, ele já sabia da impossibilidade da dúvida total desde o começo e montou como que um jogo de esconde-esconde para poder, depois, mostrar a solução triunfal que trazia oculta na manga? Nesta hipótese, o método das Meditações, ao contrário do que disse Husserl, se resume a um artifício literário. Naquela, temos de admitir que Descartes tomou, como ponto de partida, não uma pergunta razoável, mas um estado emocional de temor e incerteza criado pela pura força da imaginação. A hipótese do artifício esvaziaria as Meditações de toda relevância filosófica e reduziria a um engano coletivo o impacto que teve na modernidade. Não vou apostar nisso. A atração quase hipnótica que as Meditações despertaram em alguns dos melhores cérebros da humanidade não se deve a nenhum truque, mas a um mistério genuíno que está contido nelas. Há muito tempo a imagem popular de um Descartes inteiramente racional, claro e distinto, já não tem mais credibilidade entre os estudiosos, e não é minha intenção açoitar um cavalo morto. Apenas, aqueles mesmos que ressaltaram os elementos ambíguos e nebulosos da carreira e do pensamento de René Descartes tentaram, em geral, mantê-los à margem do quadro central ocupado pelo “sistema”, que assim conservava o seu estatuto de construção racional, ainda que nascida, como quase tudo o que é humano, de motivações secretas e insondáveis. A mim me parece, ao contrário, que o mistério irresolvido e insolúvel está no coração mesmo desse sistema. Veremos no fim. Por enquanto, o que temos de perguntar é: como pôde René Descartes, ou como poderia qualquer outro em seu lugar, imaginar- se em estado de dúvida total e chegar a acreditar, ainda que por alguns dias apenas, que estava realmente nesse estado? Como poderia um homem imaginar que colocava “todo” o mundo entre parênteses, se sua consciência nunca esteve desprovida de um “mundo” externo e interno? Como é possível duvidar de “todo” o conhecimento se nunca ninguém teve a experiência do total desconhecimento e se, como dizia Aristóteles, todo conhecimento provém de algum conhecimento anterior? Não temos realmente a experiência de ficar “fora” dos nossos sentidos, da nossa memória, da nossa imaginação, muito menos dos nossos próprios pensamentos – simplesmente não temos essa experiência. Se não a temos, de onde obtivemos a possibilidade de concebê-la e de tentar colocar-nos nesse estado imaginariamente? É claro que nenhum outro animal, além do homem, experimenta isso. Você pode ver que, às vezes, um animal pode ficar num estado de perplexidade entre duas alternativas, mas você nunca verá um animal paralisado por uma dúvida cartesiana. A vítima primeira e mais óbvia da dúvida cartesiana é o “mundo exterior”. Mas muito mais interessante do que o velho problema de como podemos ter a certeza do mundo exterior é o de como podemos chegar a duvidar dele, se nunca tivemos a experiência de estar fora dele por um instante sequer. Podemos, é claro, refugiar- nos dele nos nossos próprios pensamentos, mas, como estes não ocupam lugar no espaço, a própria noção de exterior e interior cessa aí de fazer sentido. Fugir para um mundo interior não é “negar” o exterior, é simplesmente desviar-se dele e pensar em outra coisa. Na introdução à Filosofia do Direito, Georg Wilhelm Friedrich Hegel afirma que uma das capacidades essenciais do ego humano é a de suprimir mentalmente todo dado exterior ou interior, quer se imponha como presença física ou por quaisquer outros meios – a capacidade, em suma, de negar o universo inteiro e fazer da consciência de si a única realidade. Se não fosse essa faculdade, diz ele, estaríamos presos no círculo dos estímulos imediatos, como os animais, e não teríamos acesso aos graus mais elevados de abstração. A negação do dado – “a irrestrita infinitude da abstração absoluta ou universalidade, o puro pensamento de si mesmo”, segundo Hegel – é uma das glórias peculiares da inteligência humana. Mas isso é, com toda a evidência, um exagero. O que a inteligência humana pode fazer é negar este ou aquele dado isoladamente ou negar o mero conceito abstrato da totalidade, não a totalidade em si. Negar a totalidade não como conceito, mas como presença concreta, implicaria realizar, na escala miúda da inteligência humana, o infinito quantitativo em ato. Toda negação da totalidade é apenas hipotética e afirma categoricamente aquilo que nega em hipótese. O mais estranho no solipsismo experimental de René Descartes é precisamente que o filósofo imagine entrar nele a despeito de saber que, mesmo durante esse período de radical isolamento, necessitará de uma “moral provisória” para se arranjar de um modo ou de outro naquele mesmo mundo exterior que, enquanto isso, ele está negando. Querendo colocar em dúvida todos os seus conhecimentos, mas sabendo que enquanto isso vai continuar vivendo, agindo, conversando com as pessoas, tomando decisões, pagando suas dívidas etc., Descartes pergunta-se: como vou orientar-me no mundo enquanto estou em dúvida com relação a tudo? Então, ele concebe os princípios do que chama “moral provisória”, que vai seguir, sem questioná-la nem legitimá-la, durante o período em que estiver realizando esse experimento interior. A função da moral provisória no método cartesiano é mais complexa e ambígua do que pode parecer à primeira vista. A um exame superficial, ela parece sugerir apenas a divisão de trabalho entre a razão pura e a razão prática, esta afirmando o que aquela nega ou suspende. Haveria nisso nada mais que uma precaução de bom senso, e foi realmente assim que a maioria dos intérpretes entendeu a coisa. Mas, a um segundo exame, aparece a pergunta: para que necessitaria Descartes formular regras práticas explícitas, a fim de continuar se orientando no mundo durante a experiência, se não temesse que esta poderia afetar profundamente sua psique e sua conduta, a ponto de deixá-lo completamente desorientado? O primeiro desses pontos de vista indica que Descartes estava consciente, desde o início, da incongruência lógica da dúvida total, a ponto de saber que não deveria se deixar arrastar por ela nos atos da vida real. O segundo mostra que, ao contrário, a dúvida total, como experimento imaginativo, podia ser algo de mortalmente sério e perigoso. Isso não apenas deixa a questão irresolvida, mas parece tê-la tornado mais difícil ainda. Temos, então, de examiná-la por outro ângulo. O conhecimento começa com o estranhamento. O primeiro passo da investigação filosófica é colocar-nos num estado no qual possamos perceber ou conceber a estranheza de alguma coisa. Normalmente não notamos essa estranheza, mas, quando prestamos mais atenção, a estranheza pode aparecer. Quando estamos lendo René Descartes, deslizamos sobre o texto e não nos lembramos de perguntar: mas como ele conseguiu se transportar imaginariamente a um estado de dúvida total no mesmo instante em que, pela moral provisória, admitia que essa dúvida era apenas parcial? Quase tudo o que os filósofos descobriram ao longo dos milênios foi estranhando coisas que habitualmente não nos parecem estranhas. Para estranhar, temos de nos colocar mentalmente “fora” do envolvimento direto com o objeto e olhá-lo como se fôssemos um turista de outro planeta. Decorridos três séculos, já nos acostumamos com a idéiada dúvida metódica, mas, se Descartes acredita poder avançar no conhecimento colocando-se mentalmente “fora” do mundo, por que deveria eu tentar envolver-me nessa proposta, saltando para dentro dela e deixando-me embeber dela como uma esponja, em vez de colocar-me fora dela e olhá-la com a mesma estranheza com que Descartes olhou o mundo? A natureza da proposta cartesiana é tal, que não podemos aceitá-la sem lhe sermos infiéis no mesmo instante: se aceito a dúvida radical como um ato natural e improblemático, deixo de aplicá-la ao próprio ato de duvidar e, assim, faço arbitrariamente desse ato uma exceção ao método, reduzindo a uma pobre petição de princípio a minha posterior afirmação de que não posso duvidar da dúvida. Se Descartes exige explicitamente que olhemos o mundo com estranheza, sei que essa mesma exigência está sendo formulada no mundo e deve também tornar-se alvo de estranheza. Notem bem que, durante todo o exercício da dúvida metódica, Descartes sabe que está pensando; ele coloca entre parênteses não o pensar, mas o saber. Ele está pensando, mas aquilo que ele sabe lhe parece duvidoso, portanto, ele não assume o que sabe, ele assume apenas que está pensando. Ora, como é que podemos fazer isso? Notem bem que um animal não pode fazê-lo: tudo aquilo em que um animal pensa, ele acredita; ele não pode pensar uma coisa no mesmo instante em que se recusa a acreditar nela. Um computador também não pode fazer isso, ele “aceita” todas as informações que colocamos nele. Ele pode até, se programado para isso, classificar certas informações sob o rótulo de “duvidosas”, mas não pode duvidar pessoalmente delas. Então, a dúvida cartesiana é um estado muito peculiar e podemos dizer que é um estado exclusivamente humano. Talvez pudéssemos até definir o homem como o animal capaz de imaginar-se em dúvida cartesiana. Os outros animais não podem vivenciar esse estado, os anjos não podem e Deus também não pode. Mesmo que não se chegue jamais a realizar a dúvida integral, a capacidade de negar mentalmente sem negar existencialmente é uma das propriedades mais estranhas do ser humano. Ela é mais enigmática, decerto, do que a nossa certeza do mundo exterior, que compartilhamos com os outros animais e a cuja discussão e fundamentação se dedicaram, no entanto, muitas horas e livros. V A A CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DA DÚVIDA CARTESIANA: O DINAMISMO ANTIVITAL DÚVIDA CARTESIANA não pode se levantar senão sobre todo um edifício de certezas; ela não é, portanto, um começo, como por longo tempo se pretendeu, mas uma simples etapa dialética no movimento interno de uma máquina de certezas. A dúvida radical não é senão a negação hipotética de algo que no mesmo instante se afirma categoricamente. Não obstante, enquanto estado psicológico suscitado pela antevisão imaginária, essa dúvida é um fato. Aconteceu a Descartes, e pode acontecer a qualquer um de nós vivenciá-la ao menos por alguns instantes. Pouco importa que ela traga em si sua própria negação. Se Descartes se enganou ao descrever seu estado como “certeza da dúvida”; se não pode haver certeza do estado de dúvida precisamente porque este não é senão uma oscilação entre duas certezas possíveis que se contradizem – e a certeza da dúvida é, portanto, negação de si mesma –, tudo isso não impede que esse estado exista de algum modo como experiência imaginária. É a possibilidade lógica e existencial dessa experiência que constitui um problema. Podemos imaginar que duvidamos de tudo – mas como, raios me partam, podemos fazer isso? Essa possibilidade supõe, no ser humano, uma capacidade de cortar ao menos por instantes os laços entre a faculdade pensante e a existência pessoal concreta, vivente, da qual essa faculdade não é senão manifestação e função. Por um lado, sabemos que estamos vivos, que estamos no mundo, que estamos nos relacionando com pessoas, que comemos, que dormimos, que trabalhamos etc., e é exatamente porque fazemos tudo isso que podemos nos dedicar a uma investigação filosófica. Se não estivéssemos vivos, não pensaríamos nem filosofaríamos. Todos sabemos disso, e então, podemos dizer que o pensamento é o exercício de uma faculdade vital, que ele supõe, portanto, a vida. Como é que, sendo o exercício de uma faculdade vital, sendo uma espécie de manifestação da vida, ele pode, ao mesmo tempo, negar a vida, ainda que hipoteticamente? Tão antinatural é essa operação, de tal modo ela se opõe a todo o potente dinamismo psicofísico que deseja viver e que ademais tem de estar vivo para realizá-la, que temos de admitir que ela não se realizaria sem que esse dinamismo pudesse ser “suspenso” – mentalmente, é claro – pela ação de um dinamismo contrário dotado de poder equivalente, embora certamente descontínuo. Foi nesse sentido que Fichte disse que “filosofar é não viver; viver é não filosofar”. Tudo o que fazemos, pensamos, rememoramos etc. é, certamente, uma expressão do nosso impulso de viver e de perseverar na existência. É isso o que chamo dinamismo. Ora, o ato de colocar tudo em dúvida contraria de tal modo esse impulso vital, que não conseguiríamos realizá-lo a não ser que nos apoiássemos num impulso igual e contrário, não permanente (porque senão ficaríamos definitivamente paralisados), mas temporário. Isso quer dizer que o impulso vital pode ser detido por instantes. Se ele pode ser detido, é por uma força capaz de detê-lo. Que força é essa? Se alguém deseja e consegue imaginar-se desprovido de todo o saber, colocando para isso todas as funções vitais entre parênteses, quer dizer que, nesse momento, é levado por uma motivação que não é aquela mesma que o faz pensar, sonhar, sentir, viver etc. É uma “outra” motivação diferente e que se opõe a tudo isso, e essa motivação tem de ser muito forte. Com isso, a nossa pergunta inicial – “Como é possível a dúvida radical?” – se converte numa outra pergunta. Essa mutação das perguntas é um dos elementos fundamentais da técnica filosófica: a conversão da pergunta numa outra pergunta mais explícita, mais detalhada e mais fácil de ser examinada. A segunda forma que a nossa pergunta assume é a seguinte: de onde tiramos, do nosso ser vivente, a força para realizar a torção da nossa consciência da atitude de crença natural, ou da dúvida corriqueira, para a de negação cartesiana ou suspensão husserliana? Husserl vai tornar a dúvida cartesiana um processo muito mais preciso, muito mais detalhado. Comparar a dúvida cartesiana com a suspensão, como a denomina Husserl – a epokhé, com a qual ele coloca tudo entre parênteses – é como comparar um relógio de areia com um relógio suíço a quartzo: a máquina tornou-se muito mais precisa, mas a função continua exatamente a mesma. Esta análise realizada aqui valeria até certo ponto tanto para Husserl quanto para Descartes. Husserl chegava a dizer que a “atitude fenomenológica”, como ele a chama, é não só diferente, mas é radicalmente oposta à atitude natural. A atitude natural é crer no que se pensa, crer no que se sente, crer no que se imagina. Crer ou descrer: ou afirmamos, ou negamos, mas em ambos os casos cremos – cremos na afirmação ou na negação. Ora, a atitude fenomenológica não afirma nem nega, ela simplesmente descreve o que está se passando diante da nossa consciência, ou seja, o próprio conteúdo intencional do ato cognitivo é aí observado, sem que o afirmemos ou neguemos. Não se trata sequer de “introspecção”, porque aquilo que observamos no processo cognitivo pela técnica fenomenológica não são os atos reais do pensamento, é simplesmente o fenômeno enquanto dado presente à consciência, sem afirmar que ele seja verdadeiro ou falso, real ou irreal. É claro que essa mesma atitude pode ser adotada para se estudar o próprio processo cognitivo, considerado enquanto fenômeno presente à consciência. Também neste caso não é uma observação pessoal, mas transcendental. Essa atitude é de fato muito estranha, tão estranha quanto o método cartesiano. Husserl dizia que ela é tão antinatural que tem de ser treinada: o fenomenólogo precisa passar por um treinamento
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